Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | MEDIDA DA PENA CULPA DO AGENTE EXIGÊNCIAS DE PREVENÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | De acordo com o art.º 71.º, n.º 1 do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. ''A redacção dada ao nº 1 harmonizou esta norma com a do novo art.º 40.º: o texto anterior podia sugerir que se atribuía à culpa um papel preponderante na determinação da medida da pena, possibilitaria mesmo, contra a filosofia que era já a do Código, uma leitura que apontasse no sentido da afirmação da retribuição como fim das penas; poderia ser entendido como atribuindo às exigências de prevenção um papel secundário, meramente adjuvante, naquela determinação, que não é, de modo algum, o que agora expressamente se lhes assinala.'' Deste modo, resulta expressamente do normativo citado a necessidade da consideração da díade culpa / prevenção na determinação do quantum punitivo. Relativamente à culpa, entende-se como inequívoco que se trata de um conceito chave do Código Penal de 1982, constando do ponto 2 do respectivo preâmbulo que “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta”. A eleição legal de um verdadeiro princípio da culpa cinde-se em duas realidades diferentes, a saber, a culpa como fundamento da pena e a culpa como fundamento da medida da pena. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Juízo Local Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 815/23.1T9ORM, tendo sido no mesmo, após a realização do julgamento, proferida sentença com o seguinte dispositivo (na parte que interessa), transcrição: “Em face ao exposto, julgo a acusação parcialmente procedente por provada, e em conformidade, decido: 1. ABSOLVER o arguido AA, da prática de um crime de pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. nos termos do disposto art.º 107º, n.º 1 e 105º, nº 1 e 5 do R.G.I.T. 2. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. nos termos do disposto do art.º 107º, n.º 1 e 105º, nº 1 e 5, do R.G.I.T. e 30.º, nº 2 do Código Penal, na pena de 120 (CENTO) dias de multa à taxa diária de €2,00 (dois euros), o que perfaz o montante global de € 240,00 (DUZENTOS E QUARENTA euros); (…).” Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1- Por douta sentença proferida no dia 11 de Fevereiro de 2025, foi o arguido AA, além do mais, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. no art. 107, nº 1 e 105, nº 1 e 5 do RGIT e 30, nº 2 do Código Penal, na pena de 120 de multa à taxa diária de 2,00€. 2- O Tribunal a quo considerando o grau médio da ilicitude do facto, a ausência de antecedentes criminais, a atitude colaborante do arguido, não lhe serem conhecidas condutas semelhantes após a prática dos factos dados como provados nestes autos, o sério risco de voltar a prevaricar e revelar arrependimento, condenou o arguido em 120 dias de multa. 3- O Tribunal a quo considerando os factos provados de 26 a 31, condenou o arguido na quantia diária de 2,00€. 4- A discordância do ora recorrente com a douta sentença prende-se com o número de dias de multa a que o arguido foi condenado e com o quantitativo diário. 5- Entendemos que face à culpa, às necessidades de prevenção geral e especial, bem como à ilicitude e ao dolo, deveria ter sido aplicada uma pena mais elevada ao arguido. 6- A moldura da pena de multa do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no art. 107, nº 1 e 105, nº 1 e 5 do RGIT, vai de 10 dias a 360 dias. 7- No caso em apreço, as exigências de prevenção geral são significativas, considerando que é prática comum satisfazer todos os compromissos à excepção daqueles que têm como credor o Estado. 8- O grau de ilicitude, reflectido no facto e no desvio de valores impostos pela ordem jurídica, é mediano, atenta a quantia global não entregue à Segurança Social e o inerente prejuízo para o Estado/Segurança Social (€ 29.067,64). 9- O dolo é directo, porquanto o arguido representou claramente o facto criminoso e actuou com intenção de o realizar, tendo tal facto constituído o objectivo primeiro e final da sua conduta. 10- A conduta delituosa foi reiterada no tempo, tendo ocorrido entre 01 de Novembro de 2019 a 20 de Janeiro de 2021 e de 01 de Outubro de 2021 a 20 de Outubro de 2022; 11- As exigências de prevenção especial não são acentuadas, pois, o arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se social, profissional e familiarmente integrado. 12- Assim, tendo em conta as necessidades de prevenção geral e especial, a culpa, a ilicitude, o dolo, entendemos que o arguido deverá ser condenado em pena de multa nunca inferior a 180 dias. Tal pena ainda se situa na moldura penal abaixo do limite da culpa. 13- Relativamente ao quantitativo diário, o Tribunal a quo entendeu aplicar a quantia diária de 2,00€, atendendo às circunstâncias económicas dos factos provados sob o nº 26 a 31. 14- Não concordamos com o valor aplicado a título de quantitativo diário, por o mesmo ser muito reduzido, tendo em conta a situação económica e financeira do arguido. 15- Com efeito, tal como resulta dos factos provados sob os nºs 21 a 23, o arguido continua a explorar 3 padarias/pastelarias, tem 15 trabalhadores ao seu encargo, pagando de renda mensal das lojas a quantia de 2.700,00€ e da casa onde reside a renda mensal de 400,00€. 16- O arguido não se encontra em situação de indigência para que lhe tivesse sido aplicado o quantitativo diário de 2,00€, o qual se situa muito perto do mínimo legal. 17- Face ao exposto, entendemos que o arguido deverá ser condenado no quantitativo diário, no mínimo, de 10,00€, de acordo com a sua situação económica e financeira e dos seus encargos. 18- O tribunal a quo violou as normas do art. 40, nº 1 e 2 e art. 71, nº 1 e 2 todos do Código Penal e art. 13, 15, nº 1 e 105, nº 1 da Lei 15/2001 de 05-06.” Pugnando, sinteticamente, pelo seguinte resultado: “Termos em que deve ser julgado procedente, por provado, o presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que aplique ao arguido pena de multa nunca inferior a 180 (cento e oitenta) dias à taxa diária nunca inferior a 10,00€ (dez euros), fazendo assim Vªs Exªs JUSTIÇA” Não houve resposta ao recurso. A Digna PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer em que, “ponderando os termos da decisão recorrida e a motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, com a qual manifestamos a nossa concordância, endereçamos aos autos o nosso parecer de que deve o recurso obter provimento, nos termos peticionados.” Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal1, sem resposta. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. 2 - Fundamentação. A. Delimitação do objeto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. A questão que importa decidir nos presentes autos traduz-se na determinação da medida da pena (quer quanto ao número de dias da multa, quer quanto à fixação do quantitativo diário da multa). * B. Decidindo. Reprodução da decisão recorrida, na parte que interessa à decisão: “III – Fundamentação de Facto A) Factos Provados: Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa: 1. O arguido é empresário em nome individual e durante o período compreendido entre 1 novembro de 2019 a 20 janeiro de 2021 e entre 1 outubro de 2021 a 20 outubro de 2022 inclusive, explorou pastelarias/padarias denominadas “…”, sitas nas localidades de …, … e em …. 2. Era, pois, o próprio arguido que dirigia a atividade das pastelarias/padarias, nomeadamente, a contratação de pessoal, a direção de funcionários, pagamento de salários a trabalhadores e a fornecedores, entrega de recibos, retenção e entrega dos montantes devidos ao Instituto de Segurança Social, em suma, gerindo e controlando de facto e de direito todas as padarias/pastelarias que explorava. 3. No decurso da sua atividade, o arguido, estava obrigado no final de cada mês de prestação de trabalho efetivo, a liquidar o montante das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores à Segurança Social. 4. O arguido assumia-se como mero substituto tributário, funcionando como depositário das importâncias descontadas/retidas nas renumerações mensais dos colaboradores, com a obrigação de as entregar à de Segurança Social nos prazos regulados por lei, facto que o arguido bem conhecia. 5. Uma vez apurado o valor das contribuições, o arguido estava obrigado, a entregá-lo à Segurança Social, mensalmente e entre o dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições dissessem respeito, facto que este bem sabia. 6. Assim o arguido no âmbito das suas funções, entre o período compreendido entre 1 de novembro de 2019 a 20 de janeiro de 2021 e entre 1 de outubro de 2021 a 20 de outubro de 2022, procedeu ao desconto mensal prévio nas remunerações salariais pagas aos seus trabalhadores, do valor das cotizações devidas ao Instituto de Segurança Social, nos seguintes montantes: (…) 7. Em obediência a uma decisão tomada em momento anterior, o arguido, no exercício das suas funções, não procedeu à entrega ao Instituto de Segurança Social dos valores liquidados, os quais foram efetivamente cobrados e retidos aos seus trabalhadores e no prazo legalmente estipulado. 8. Nem nos noventa dias volvidos sobre essa data, nem até à data da prolação da acusação, não obstante ter sido notificado para o efeito. 9. Nem, ainda, quando foi notificado pelo Instituto de Segurança Social para, em 30 dias, proceder ao pagamento dos montantes em falta, acrescida dos valores dos juros respetivos e da coima aplicável. 10. Encontrando-se, assim, em falta à data da prolação da acusação, em sede de contribuições devidas ao Instituto de Segurança Social, referente ao período compreendido entre 1 de novembro de 2019 a 20 de janeiro de 2021 e entre 1 de outubro de 2021 a 20 de outubro de 2022 inclusive, no valor total de € 29.067,64 (vinte e nove mil, sessenta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos). 11. O arguido agindo no seu próprio interesse e das padarias/pastelarias que explorava, sabia que estava obrigado a liquidar os montantes das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores. 12. Bem como sabia que os referidos montantes pertenciam ao Instituto da Segurança Social. 13. Não obstante, o arguido decidiu não entregar esses montantes descontados nos salários dos seus trabalhadores ao Instituto de Segurança Social, 14. Integrando tais quantias no seu património, utilizando-as em proveito próprio e na gestão das padarias/pastelarias que explorava, como se lhe pertencessem, enriquecendo deste modo o seu património, em igual montante, e prejudicando o Instituto de Segurança Social, pelo menos, em valor equivalente, ao montante não entregue de obtendo vantagens patrimoniais que sabia ser indevidos e proibidos por lei. 15. O arguido praticou o mesmo tipo de conduta nos intervalos temporais mencionados, aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos, nomeadamente, o facto de após a prática dos primeiros factos, não ter sido alvo de qualquer fiscalização ou penalização. 16. E por ter verificado que persistia a possibilidade de repetir a sua conduta, convencendo-se de que as suas atuações estavam a ser bem-sucedidas, reiterou a prática descrita, de forma homogénea, ao longo dos períodos de tempo referidos – entre 1 de novembro de 2019 a 20 de janeiro de 2021 e entre 1 de outubro de 2021 a 20 de outubro de 2022 inclusive - movido pela facilidade com que sucessivamente lograva concretizar os seus intentos. 17. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou que: 18. Em 04 de fevereiro de 2025, o arguido já pagou as cotizações respeitantes aos meses Novembro de 2019 a janeiro de 2021 e outubro a novembro de 2021. 19. Encontrando-se, assim, em falta em 04 de fevereiro de 2025, em sede de cotizações devidas ao Instituto de Segurança Social, referente ao período compreendido entre dezembro de 2021 e outubro de 2022, a quantia global de 13 534,33 euros. 20. O arguido optou por não entregar as quantias retidas a título de cotizações à Segurança Social para proceder ao pagamento de trabalhadores e fornecedores. 21. O arguido continua a gerir três padarias/pastelarias. 22. Tem a seu encargo 15 trabalhadores, suportando com o pagamento de salários a quantia global de 15 mil euros a título mensal. 23. As lojas onde laboram as padarias/pastelarias são arrendadas suportando a quantia mensal de 2 700,00 euros. 24. O arguido celebrou, em 2024, com a Segurança Social, um plano de pagamento prestacional das cotizações em falta, pelo período de um ano, suportando uma prestação mensal de 4 300,00 euros. 25. O arguido celebrou, em 2024, com a Segurança Social, outro plano de pagamento prestacional de juros e contribuições em falta, pelo período de 10 anos, suportando uma prestação mensal de 1 200,00 euros. DAS CONDIÇÕES PESSOAIS E CONÓMICAS DO ARGUIDO 26. O arguido vive com a companheira e com o filho desta. 27. O arguido não tem filhos. 28. O arguido vive em casa arrendada suportando a quantia mensal de 400,00 euros. 29. A companheira também é trabalhadora na padaria/pastelaria e aufere o ordenado mínimo. 30. O arguido não tem vencimento. 31. O arguido tem o 6º ano de escolaridade. DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS 32. O arguido não tem antecedentes criminais averbados. B) Factos Não Provados: Não foram apurados factos com interesse para a boa decisão da causa. (…) Da escolha e medida concreta da pena: Efetuada a operação de subsunção jurídico-legal das condutas do arguido importa proceder à escolha das penas a aplicar. O crime praticado pelo arguido enquanto pessoa singular é punível, em abstrato, com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias (cfr. arts. 105.º, nº1 da Lei nº15/2001, de 5/7 ex vi art 107º do RGIT). Cumpre ainda salientar que o crime continuado é punido com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação – cfr. art. 79.º, nº 1 do Código Penal. Ora, nos presentes autos estamos perante o mesmo tipo de crime, logo a pena aplicável é igual para a conduta em apreço. No tocante ao critério da escolha da pena principal aplicável quando o crime estatui, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, consagra o artigo 70.º do Código Penal, em articulação com o artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa o princípio da preferência pela segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) – cfr. art. 40.º, nº1 do Código Penal. Com o ilícito em apreço pretende-se criar uma consciencialização coletiva relativamente às questões fiscais e afins. Ora, inserindo-se nesta linha de progresso e procurando combater com a eficiência reclamada pela modernização das técnicas de evasão fiscal ou equiparável, a sensação de impunidade que lentamente se vai instalando entre os empregadores, o legislador passou a punir severamente este tipo de condutas, inclusive com pena de prisão. Nesta luta contra a criminalidade fiscal ou equiparada procura-se atingir um certo tipo de pessoas de elevado estatuto social e profissional que, manipulando os usos/regras da vida económica e revelando uma intolerável indiferença pelos objetivos da justiça retributiva para que se encontra vocacionada todo o sistema fiscal e de Segurança Social, praticam condutas altamente lesivas dos interesses coletivos, orientados pela ambição do enriquecimento. No caso dos autos, a factualidade aqui em discussão deveu-se, segundo o que resultou provado, a dificuldades financeiras sentidas, não possuindo verbas suficientes para pagar ordenados e aos fornecedores, cuja falta de pagamento implicaria necessariamente a paragem da atividade comercial, ficando sem proventos para pagar as suas responsabilidades já acumuladas. A omissão da entrega das cotizações efetivamente deduzidas e retidas, apesar de corresponder a uma prática ilícita e socialmente censurável, pode neste contexto, ser reconduzida à concretização dos riscos e das contingências inerentes ao mundo empresarial, acrescendo o facto de o arguido ser primário, razão pela qual se reclamará, in casu, a aplicação da pena de multa. Importa agora determinar a respetiva medida concreta da pena, obedecendo ao disposto nos artigos 40.º, 47.º, nº1 e 71.º, nº1 todos do Código Penal. O artigo 71.º do Código Penal estabelece, em conjugação com o disposto no artigo 40.º do mesmo diploma, os parâmetros a ter em reflexão na determinação da medida da pena, salientando-se, desde já, que esta tem como suporte axiológico-normativo a culpa, sem prejuízo das considerações de prevenção geral e especial. Assim, a pena deve determinar-se de modo a que o seu pressuposto e limite máximo inultrapassável seja a culpa, sendo o seu limiar mínimo a medida da pena abaixo da qual já não é comunitariamente suportável uma vez que põe em causa a função tutelar dos bens jurídico, a confiança da comunidade na vigência e validade da norma violada. A pena deverá ainda assegurar a defesa do ordenamento jurídico de tal forma que consiga atingir o efeito sociopedagógico da comunidade, isto é, que provoque nos outros a intenção de não praticarem idênticos atos criminosos. Ora, é no domínio desta “moldura de prevenção” – culpa como limite máximo e prevenção geral positiva como limite mínimo – que, tendo sempre presente a prevenção especial de socialização (o cumprimento da missão ressocializadora da própria pena com respeito ao arguido, isto é, a capacidade de o arguido se influenciar pena que lhe é imposta, no sentido de promover a sua responsabilização e reintegração na sociedade, assim se evitando de voltar a delinquir) se irá determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido (neste sentido Figueiredo Dias in “Direito Pena Português” – As consequências Jurídicas do Crime, Ed. Aequitas 1993, pág. 229 a 231 e ac. do STJ de 24/5/2000). Na determinação da medida concreta da pena são ainda atendíveis os chamados fatores de determinação da pena a que se referem as diversas alíneas do nº 2 do artigo 71.º do Código Penal: Assim, no caso em apreço importa ponderar os seguintes factos: -o grau médio da ilicitude do facto, atendendo ao valor em dívida, já considerável (facto 6 e 10); - não tem antecedentes criminais; - apresentou-se em julgamento e mostrou uma atitude colaborante; - não lhe serem conhecidas condutas semelhantes após a prática dos factos dados como provados nestes autos. - continua a exercer cargo de administração enquanto empresário em nome individual, pelo que se verifica um sério risco de voltar a prevaricar, atendendo à existência da atividade comercial da sociedade. - tem estado a pagar as quantias devidas, estando neste momento apenas em dívida o valor de 13 534,33 euros, o que revela arrependimento. Deste modo considerando os fatores aqui aludidos, entendo fixar ao arguido uma pena de 120 dias de multa. Relativamente ao quantitativo diário Dispõe o artigo 15º do RGIT na redação dada pela Lei 15/2001, de 05/06 o seguinte: “1 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 1 e (euro) 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre (euro) 5 e (euro) 5000, tratando-se de pessoas coletivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos. 2 - Sobre a pena de multa não incidem quaisquer adicionais.” Ou seja, a taxa diária da multa, para o arguido, conforme o disposto no artigo 15.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias é fixada entre 1,00€ e 500,00€. Deste modo, atendendo às circunstâncias económicas constantes dos factos provados sob o nº 26 a 31, determino que a cada dia de multa corresponda a quantia 2,00 euros (dois euros cêntimos) para a arguido.” * Conhecendo. A determinação da medida da pena (quer quanto ao número de dias da multa, quer quanto à fixação do quantitativo diário da multa). Propugna o recorrente o agravamento dos dias de multa para 180 e a fixação de uma taxa diária de quantia “nunca inferior a 10,00€”. A motivação do tribunal a quo quanto a esta questão foi a exposta supra. Vejamos. De acordo com o art.º 71.º, n.º 1 do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. ''A redacção dada ao nº 1 harmonizou esta norma com a do novo art.º 40.º: o texto anterior podia sugerir que se atribuía à culpa um papel preponderante na determinação da medida da pena, possibilitaria mesmo, contra a filosofia que era já a do Código, uma leitura que apontasse no sentido da afirmação da retribuição como fim das penas; poderia ser entendido como atribuindo às exigências de prevenção um papel secundário, meramente adjuvante, naquela determinação, que não é, de modo algum, o que agora expressamente se lhes assinala.''2 Deste modo, resulta expressamente do normativo citado a necessidade da consideração da díade culpa / prevenção na determinação do quantum punitivo. Relativamente à culpa, entende-se como inequívoco que se trata de um conceito chave do Código Penal de 1982, constando do ponto 2 do respectivo preâmbulo que “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta”. A eleição legal de um verdadeiro princípio da culpa cinde-se em duas realidades diferentes, a saber, a culpa como fundamento da pena e a culpa como fundamento da medida da pena3, sendo desta última que agora nos ocuparemos. De que forma pode a culpa determinar a medida concreta da pena, articulando-se harmoniosamente nessa função com as citadas exigências de prevenção? A jurisprudência alemã4 desenvolveu a chamada “teoria do espaço livre”: segundo esta, não é possível determinar-se de modo exato uma pena adequada à culpa, sendo apenas possível delimitar uma zona dentro da qual deve situar-se a pena para que não possa falhar a sua função de levar a cabo uma justa compensação da culpabilidade do autor; esta relação imprecisa entre a culpa e a pena pode ser aproveitada pelo tribunal para a prevenção especial, fixando a sanção entre o limite inferior e superior do “espaço livre” da culpa, de acordo com os efeitos que possam esperar-se daquela para a integração social do autor do ilícito.5 Para Jorge de Figueiredo Dias6, a finalidade primordial visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (prevenção geral positiva ou prevenção de integração). Esta ideia traduz a convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena visa alcançar. Porém, tal como na anteriormente aludida “teoria do espaço livre”, esta medida ótima de prevenção geral positiva também não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Assim, de acordo com este entendimento é a prevenção geral positiva (não a culpa) que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial de socialização. Importa sublinhar que o “que é missão do juiz é individualizar, ajustar a sanção a todas as particularidades do caso singular, na medida em que elas possam ser tomadas em linha de conta para o valor a combater penalmente, conforme aos fundamentos político-sistemáticos da lei.”7 Importa, assim, indagar dos aludidos “fundamentos político-sistemáticos da lei”, para, de seguida, articular a relevância do “caso singular” na sua essencial qualidade contraditória (e respetiva medida), em concreto, com aqueles fundamentos. Verifica-se que a pena foi fixada um pouco abaixo do limite superior do 1.º terço da moldura punitiva abstrata. Em confronto com esta decisão encontra-se a pretensão do recorrente, que se situa marginalmente abaixo do ½ daquela moldura. Vejamos. Os montantes que o arguido não entregou à segurança social, totalizando € 29.067,64, ultrapassam a média de montantes do 1.º escalão do tipo e aproximam-se mais do 2.º escalão do tipo (sendo o 2.º escalão o definido no n.º 45 do art.º 105.º do RGIT, ou seja, inicia-se nos € 50.000,00 de contribuições não entregues). Tal justifica a qualificação (comum à decisão recorrida e à motivação do recurso) do grau de ilicitude do facto como médio / mediano. Temos, por outro lado, como se sublinha no recurso, que atender ao período da omissão de entrega das contribuições, um pouco mais de dois anos interpolados, o que se apresenta como significativo. O dolo direto e as razões (muito relevantes) de prevenção geral também militam contra o arguido. A seu favor, registam-se a ausência de antecedentes criminais (razões de prevenção especial atenuadas) e a sua integração familiar, profissional e social. Também depõe a seu favor a circunstância de se encontrar atualmente em dívida substancialmente menos de metade do montante das contribuições não entregues e existirem dois planos de regularização do remanescente, ou seja, circunstâncias posteriores aos factos de substancial relevância. Atendendo a que deve levar-se “… em conta que a multa deve traduzir-se num encargo sensível”8, impõe-se que esta exigência, em concreto, se articule de forma consistente com o esforço que o arguido está a fazer para pagar o montante ainda em dívida, reputamos dever fixar-se o número de dias de multa aproximadamente entre o 1.º terço e o ½ da moldura punitiva abstrata, ou seja, em 160 dias de multa, assim procedendo parcialmente o recurso quanto a este aspeto. Quanto ao quantitativo diário da multa, diremos que, apesar dos factos serem parcos para a definição “da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos” (art.º 15.º, n.º 1 do RGIT), é irrecusável que a atividade que o arguido desenvolve (recortada pelos factos provados 21 a 23) é de algum relevo empresarial, o que aponta para uma definição do montante diário da multa claramente acima dos (neste contexto) exíguos € 2.00, entendendo-se como adequada a fixação respetiva em € 8.00. O recurso será, assim, também quanto a este aspeto, parcialmente provido. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, revogando nessa parte a sentença, condenar o arguido, pelo crime em causa, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 8.00, o que perfaz o montante global de € 1260.00 (mil duzentos e sessenta euros), confirmando-se a decisão recorrida quanto ao demais. Sem custas.
(Processado em computador e revisto pelo relator) Évora, 16/09/2025 Edgar Valente (relator) Moreira da Neves (1.º adjunto) Carla Oliveira (2.ª adjunta)
............................................................................................................. 1 Diploma a que pertencerão as menções normativas ulteriores, sem indicação diversa. 2 José Gonçalves da Costa, Revisão do Código Penal - Implicações Judiciárias mais Relevantes da Revisão da Parte Geral, CEJ, Lisboa, 1996, página 29. 3 Sobre esta distinção fundamental, pode ver-se Claus Roxin in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, Madrid, 1997, páginas 813 e 814, onde se afirma que a culpa como fundamento da pena diz respeito à imputabilidade ou capacidade de culpa, bem como à possibilidade de conhecimento da proibição, sendo que a culpa como fundamento da medida da pena é uma realidade suscetível de fixação em concreto através da consideração de circunstâncias (cfr. o n.º 2 do art.º 71.º do C. Penal). 4 A norma do C. Penal Alemão equivalente ao art.º 71º do Código Penal Português tem a seguinte estrutura: o § 46 I daquele diploma contém o enunciado de que na individualização da pena se devem tomar em consideração os fins da mesma e no nº II enumeram-se as circunstâncias que, em benefício ou em prejuízo do autor, devem ser levadas em consideração para o aludido desiderato. 5 Assim, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend in Tratado de Derecho Penal – tradução da 5.ª Edição do ''Lehrbuch des Strafrechts, All. Teil'' - Comares, Granada, Dezembro de 2002, páginas 948 e 949. Sabemos que Eduardo Correia (com a concordância da Comissão Revisora) defendia, nas suas linhas essenciais, este conceito, ao afirmar ''é claro que que, em absoluto, a medida da pena é uma certa; simplesmente, qual ela seja exactamente é coisa que não poderá determinar-se, tendo, pois, o aplicador de remeter-se a uma aproximação que, só ela, justifica aquele ''spielraum'', dentro do qual podem ser decisivas considerações derivadas da pena prevenção.'' (BMJ n.º 149, página 72). 6 Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, páginas 105 a 107. 7 Zimmerl, Strafr. Arbeitsmethode, apud José de Sousa e Brito, Sentido e Valor da Análise do Crime, Direito e Justiça, vol. IV, 1989/1990, páginas 140/1. 8 Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Áreas Editora, 2001, página 167. |