Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3560/24.7T8STR-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ACORDO DE CREDORES
PLANO DE PAGAMENTO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O CIRE não contém norma legal relativa à possibilidade de ser interposto recurso do despacho proferido no âmbito do Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) que declare o encerramento do processo negocial por não aprovação do plano de pagamentos, donde a solução ter de ser encontrada no âmbito do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
2 – A decisão judicial em que o tribunal se pronunciou sobre o motivo de recusa da devedora em assinar a ata com o resultado da votação, declarou o encerramento do processo negocial sem aprovação do plano de pagamentos e ordenou a notificação do administrador judicial provisório para se pronunciar sobre se a devedora se encontra, ou não, em situação de insolvência, não encerrou o PEAP e determinou a extinção dos seus efeitos.
3 – O PEAP encerrou-se com o despacho subsequente que determinou o encerramento do processo e o seu arquivamento na sequência da dedução de oposição à declaração de insolvência por parte da devedora; com esse despacho extinguiram-se todos os efeitos do PEAP que ainda não se haviam extinguido. Por conseguinte, a decisão judicial referida em 2) não se integra no n.º 1, alínea a), do artigo 644.º do CPC, nem, tão pouco no artigo 644.º, n.º 2, alínea h), do CPC.
4 – A decisão referida em 2) podia ser impugnada, como foi, no recurso interposto da decisão referida em 3), ao abrigo do disposto no artigo 644.º, n.º 3, do CPC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3560/24.7T8STR-A.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

1.º Adjunto: Mário João Canelas Brás

2.ª Adjunta: Isabel de Matos Peixoto Imaginário


Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:


I.

RELATÓRIO

(…), devedora nos autos supra mencionados, veio reclamar para a conferência da decisão singular proferida em 21-08-2025 que julgou improcedente a reclamação por ela apresentada e, em conformidade, manteve a decisão proferida pela primeira instância de não admitir o recurso por ela interposto em virtude da respetiva extemporaneidade.

A decisão singular sobre a qual a apelante/reclamante pretende que recaia acórdão tem o seguinte teor:

«I. Relatório.
(…) veio ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas intentar o presente processo especial para acordo de pagamento.
Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 222.º-C, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Foi publicada a lista provisória de credores.
Foram apresentadas impugnações à lista provisória de credores que foram decididas em 09-04-2025 [99459923].
Em 21-04-2025 [11611467] a devedora juntou o acordo de pagamento, que foi publicitado no portal Citius (com a retificação de 28-04-2025 [11627898]).
A AJP veio juntar a ata de apuramento da votação do plano em 13-05-2025 [11668018].
Por sentença de 16.05.2025 declarou-se o processo negocial concluído sem aprovação do plano, decisão que se fundamentou na circunstância de o plano ter sido votado por credores representando 81,48%, sendo que votaram favoravelmente 20,86%, tendo votado desfavoravelmente 79,14%, “pelo que, nos termos da disposição legal acabada de citar o plano não foi aprovado”.
Tal decisão foi notificada por comunicação expedida em 19.05.2025.
Por despacho de 05.06.2025 foi determinado o “encerramento e arquivamento do presente processo – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b), do CIRE – cessando as funções da sra. AJP – artigo 222.º-J, n.º 2, alínea b), do CIRE”, despacho que foi notificado por comunicação expedida em 06.06.2025.

*
Por requerimento de 18.06. veio a Devedora interpor recurso, apresentando, após alegações, a seguinte síntese conclusiva:
1. A ora recorrente vem interpor recurso da decisão proferida em 05.06.2025 e notificada à recorrente a 06.06.2025, que determinou o encerramento do presente processo especial de acordo de pagamento (PEAP).
2. Esta decisão de encerramento constitui um verdadeiro acto lesivo, na medida em que produziu efeitos definitivos sobre a situação processual da recorrente e determinou o encerramento do presente PEAP.
3. A recorrente entende que a decisão de encerramento assenta numa premissa juridicamente incorreta, porquanto resulta de uma errada contagem dos votos emitidos na votação do plano, nomeadamente, a contabilização do voto de quatro instituições financeiras – (…), Banco (…), Caixa (…) e (…) Banco – que às quais não assistiria direito de voto.
4. Com efeito, a Administradora e bem assim o Tribunal considerou, para efeitos de apuramento do resultado da votação, a totalidade dos votos emitidos por todos os credores participantes, sem atender ao disposto e previsto no artigo 212.º do CIRE.
5. Com efeito e à luz do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º do CIRE, aplicável subsidiariamente ao PEAP por força do n.º 3 do artigo 222.º-A do mesmo diploma, apenas os credores cujos créditos sejam efetivamente afetados pelo plano têm legitimidade para votar.
6. No caso concreto dos autos o plano apresentado pela devedora expressamente determina que tais créditos financeiros dos credores (…), Banco (…), Caixa (…) e (…) Banco mantêm na íntegra as suas condições contratuais iniciais, sem qualquer alteração de capital, juros, prazos ou garantias.
7. A jurisprudência tem reiteradamente afirmado que os votos de credores não afetados devem ser excluídos da contagem para efeitos de aprovação do plano:
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/09/2013 (Proc. n.º 576/13.2TBSXL): “O credor garantido, por não ter sido o seu crédito modificado pelo plano, não tem direito de voto, nem conta para o apuramento do quórum”.

- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/01/2014 (Proc. n.º 4303/13.6TCLRS-A.L1): “Os credores cujos créditos não hajam sido modificados (…) não têm direito de voto, sendo de aplicar a delimitação constante do art. 212.º, n.º 2, alínea a)”.
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/06/2014 (Proc. n.º 2281/13.0TBCLD.C1): “Os credores que não veem os seus créditos afetados não devem interferir com o destino do plano”.
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/02/2016 (Proc. n.º 54/14.2T8BRR.L1): “As condições dos credores comuns do setor financeiro não comportam qualquer redução ou constrangimento à sua cobrança, razão pela qual os votos de tais entidades não podem entrar no cômputo do quórum deliberativo, pela singela razão que nem sequer tinham direito de voto”.
8. A contabilização indevida dos votos dos referidos credores falseou a referida contagem, dando origem à errada conclusão de que o plano foi rejeitado, quando, na realidade, a maioria dos credores efetivamente impactados se pronunciou favoravelmente.
9. A decisão de encerramento, fundada nesta contagem viciada, deve, por isso, ser revogada, sob pena de violação dos princípios da justiça negocial, da boa-fé, e da finalidade do PEAP.
10. Com efeito, o processo foi indevidamente encerrado com base numa decisão de não aprovação de plano que adveio da contabilização indevida de credores que não deveriam ter sido contabilizados.

11. Nestes termos, deve ser revogada a decisão recorrida, com a consequente revogação da decisão de encerramento e determinação da recontagem dos votos, excluindo-se os votos dos credores não afetados, porquanto, verificada tal exclusão, resulta inequivocamente a aprovação do plano de pagamentos pelos credores afetados, impondo-se, em consequência, a prossecução do processo com vista à homologação judicial do plano validamente aprovado.
Normas Jurídicas violadas: artigos 212.º, n.º 2, alínea a), 222.º-A do CIRE;
Peças para instruir o recurso:
- Lista de credores, com a Ref.ª 51015628 e datada de 14.01.2025;
- notificação com o despacho que contém a decisão sobre a impugnação da lista de credores com a Ref.ª 99543731, datado de 10.04.2025;
- Plano de acordo de pagamento, Ref.ª 52064212, de 21.04.2025;
- Despacho com a Ref.ª 99796185, datado de 16.05.2025;
- Decisão de enceramento do processo com Ref.ª 100016665, datada de 05.06.2025.
Nestes termos e contando com o sempre mui douto suprimento de V/ Exas., se apresenta recurso, em razão da injustiça subjacente ao doutamente decidido bem como disformidade jurídica, requerendo-se, a revogação da douta sentença.
Assim decidindo farão, V/Exas. acostumada Justiça!

A Credora “Caixa (…), S.A.” contra-alegou, pugnando, além do mais, pela inadmissibilidade do recurso.

*
Foi então proferido o seguinte despacho:
“Por requerimentos de 18-06-2025 [11770713] e de 23-06-2025 [11778339], a devedora e a credora (…), Lda. vieram apresentar alegações em que indicam recorrer da decisão de 05-06-2025 [100016665] que face à oposição da devedora e ao disposto no artigo 222.º-G, n.º 6, do CIRE determinou o encerramento e arquivamento do presente processo – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b), do CIRE.
A credora Caixa (…), SA respondeu a ambos os recursos em 08-07-2025 [11825538] e em 11-07-2025 [11834103].
Cumpre apreciar e decidir.
O Processo Especial para Acordo de Pagamento encontra-se regulado nos artigos 222.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao qual se aplicam subsidiariamente as restantes disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos termos do artigo 222.º-A, n.º 3, e na falta destas as normas do Código de Processo Civil, nos termos do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Os recursos encontram-se previstos no artigo 14.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Esta norma regula a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1), a contagem dos prazos quando exista mais do que um recorrente ou recorrido (n.º 2) e o regime de subida e o efeito dos recursos (n.º 5 e 6).
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é omisso quanto ao prazo para a interposição do recurso.
Estabelece o artigo 9.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal”.
Nos termos do artigo 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil aplicável, ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º”.
Assim, o prazo de interposição do recurso é de 15 dias. Este prazo não se suspende nas férias judiciais, nos termos do artigo 138.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Determinado o regime aplicável, cumpre apreciar a tempestividade dos recursos.
Compulsadas as conclusões de dois recursos apresentados, verifica-se que em ambos os recursos se pretende impugnar a decisão de 16-05-2025 [99796184] (e no caso da credora (…), Lda. ainda a decisão de 09-04-2025 [99459923]) no que diz respeito à contagem dos votos e não a decisão de 05-06-2025 [100016665] que nada decidiu quanto a tal questão.
Ora, a decisão de 16-05-2025 [99796184] foi notificada aos recorrentes em 19-05-2025, pelo que, iniciando-se o prazo para interpor recurso no dia seguinte, verifica-se que ambos os recursos são extemporâneos.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 641.º, n.º 2, alínea a) e 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não se admitem os recursos interpostos, por extemporâneos.
Notifique.”
*
Inconformada com esse despacho, veio a Devedora reclamar do mesmo, alegando que:
“(…)7. Sucede que, com o devido respeito, tal entendimento não pode proceder.
8. Pois a decisão de 16.05.2025, que declarou a não aprovação do plano, não constitui a decisão final do processo, nem representa, por si só, a consolidação definitiva dos efeitos lesivos da reclamante.
9. Apenas com o despacho que determina o encerramento do PEAP se concretizam plenamente os efeitos jurídicos lesivos para a Devedora,
10. pois é nesse momento que:
• a rejeição do plano assume carácter definitivo e inalterável;

• cessam todos os efeitos suspensivos e protetores conferidos pelo PEAP, nomeadamente a suspensão das execuções;
• se revelam, de forma inequívoca, as consequências práticas da consideração indevida dos votos de credores cujos créditos não foram afetados pelo plano, que influenciaram decisivamente o resultado da votação.
11. Acresce que, nos termos do artigo 644.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, as decisões que não se enquadrem nas alíneas do n.º 1 – como é o caso da decisão de não aprovação – apenas admitem recurso com a decisão final.
12. E no âmbito de um PEAP, essa decisão final é o despacho de encerramento do processo, proferido em 05.06.2025.
13. Ora, a irrecorribilidade autónoma do despacho de não aprovação do plano de recuperação não é suscetível de produzir a situação irreversível que a lei preconiza, dado que a não aprovação do Plano não conduz inevitavelmente ao encerramento do processo,
14. Só com a prolação do despacho de encerramento do PEAP se consuma, de forma definitiva, a rejeição do plano de revitalização, cessando com o mesmo os efeitos suspensivos e protetores associados ao processo.
15. Assim, é só nesse momento que se esgota a possibilidade de reestruturação da devedora, encerrando-se o procedimento de forma irreversível.
16. É, pois, apenas com a decisão de encerramento que se consuma plenamente a lesão jurídica da Devedora, ora Reclamante;
a) por um lado, na medida em que a contagem de votos de credores não afetados inviabilizou a aprovação do plano de pagamentos;
b) por outro, porque é nesse momento que se torna definitiva a impossibilidade de ver assegurado o seu direito, enquanto devedora, a beneficiar do mecanismo legal de reestruturação previsto no PEAP, frustrando-se, em definitivo, a viabilidade da sua recuperação..
17. Assim, é a partir do despacho de encerramento do PEAP (decisão que constitui a única decisão final recorrível de forma autónoma, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil) que se permite às partes reagir sobre os demais despachos proferidos no processo.
18. Onde, por exemplo se enquadra o despacho de não aprovação
19. Ou seja, só com a prolação do despacho de encerramento do PEAP é que a decisão de não aprovação do Plano é suscetível de produzir efeitos no resultado do procedimento.

20. Pelo que só nesta fase faz sentido a impugnação desta decisão de não aprovação.

21. Acresce que, existe uma diferença de tramitação entre a decisão de homologação do plano de recuperação, que dá lugar ao encerramento do processo logo «após o trânsito em julgado» da mesma, e uma decisão de não aprovação (o que sucedeu nos presentes autos),
22. Ou seja, no caso de uma decisão de não aprovação, não há qualquer referência ao trânsito em julgado, antes, o trânsito em julgado terá de aguardar «o cumprimento do disposto nos n.ºs 1 a 7 do artigo 17.º- G» para que finalmente o processo se possa dar por encerrado, e se comece a contar o prazo de recurso ou trânsito em julgado.
23. Por outro lado, também não se retira, da redação do n.º 10 do artigo 17.º-F do CIRE qualquer argumento a favor da recorribilidade autónoma da decisão de não aprovação,
24. E por duas razões:
25. em primeiro lugar, porque a norma do n.º 10 do artigo 17.º-F vem imediatamente a seguir à norma que determina que, em caso de não homologação, «aplica-se o disposto nos n.ºs 3 a 9 do artigo 17.º-G», que consta do respetivo n.º 9, sendo assim condicionada por essa inserção sistemática
26. Em segundo lugar, porque o elemento literal da interpretação aponta em sentido diferente: vejam-se os incisos «é aplicável ao recurso que venha a ser interposto dessa decisão» e «caso o parecer do administrador venha a ser», que claramente apontam para a oportunidade de interposição do recurso em momento posterior ao conhecimento do parecer do administrador judicial provisório;
27. Por último, o argumento que aponta para o facto de a decisão de não homologação do plano de recuperação ter estrutura equivalente à de uma sentença não colhe, pois, o CIRE refere-se a «decisão de não aprovação» e não a sentença, designação que está reservada unicamente para as decisões que tenham a ver com a insolvência (sentença de insolvência, sentença de homologação do plano de insolvência, sentença de indeferimento do pedido de insolvência).
28. Em conclusão, só com a notificação do despacho de encerramento do processo é que a lesão jurídica se consuma de forma plena e definitiva, conferindo legitimidade e oportunidade para a interposição de recurso.
29. Esta é interpretação respeita o princípio da segurança jurídica e evita decisões prematuras que poderiam comprometer a efetividade do direito de recurso da devedora.
30. Nestes termos, deve ser reconhecida a tempestividade do recurso apresentado pela devedora.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, vem a Reclamante apresentar a presente reclamação, requerendo a revogação do despacho reclamado, por ser manifestamente injusto e juridicamente incorreto, devendo o recurso interposto ser admitido, para que possa ser devidamente apreciado.
Assim decidindo farão, V/Exas. acostumada JUSTIÇA!

***
A Caixa (…), S.A. respondeu à reclamação, pugnando pela respetiva improcedência.
*
Nos termos do disposto no artigo 643.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir se deve o recurso rejeitado pelo despacho reclamado, ser admitido.
*
II. Fundamentação.
II.1. Fundamentação de facto.
Com interesse para a decisão da reclamação relevam os factos relativos ao processamento dos autos constantes do relatório supra.
*
II.2. Fundamentação jurídica.
O teor das alegações recursivas evidencia que o único conteúdo que contém sustentação suficiente para alicerçar os fundamentos que a ora reclamante aduz com vista à obtenção da pretendida revogação corresponde à decisão de recusa de homologação do plano de pagamento, inexistindo qualquer fundamento autónomo dirigido à decisão de encerramento do processo, que a ora reclamante pretende erigir em decisão final do processo especial e que constitui um passo processual subsequente a esta, definido por lei e dependente apenas do conteúdo do parecer do AJP, da posição que a devedora assuma perante tal parecer e da decisão a proferir pelo juiz no confronto de ambos.
Vejamos então.
É sabido que o recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais, colocado à disposição dos vários sujeitos processuais, através do qual lhes é dada a oportunidade de submeterem uma decisão judicial à apreciação de uma instância judicial superior, em ordem à sua correção.
A Constituição consagra, como princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e corolário lógico do monopólio tendencial da resolução de conflitos por órgãos estaduais ou, ao menos, dotados de legitimação pública, um fundamental direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
O direito de acesso aos tribunais pode ser concebido como um direito de proteção do particular, através dos tribunais do Estado, no sentido de este o proteger da violação dos seus direitos por terceiros, portanto, como um dever de proteção do Estado e um direito do particular a exigir essa proteção.
Na medida em que qualquer decisão judicial comporta uma margem inescapável de erro, a reapreciação da decisão por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior confere, em princípio, maiores garantias de acerto quanto à solução do conflito ou à regulação dos interesses em causa, porquanto teoricamente, a eventual experiência acrescida dos juízes que compõem o tribunal superior e a estrutura coletiva deste, aliadas à concentração dos seus esforços em aspetos específicos da causa, coloca-os tendencialmente em melhores condições para declarar o direito do caso.
O direito à impugnação surge assim como uma dimensão, um reflexo ou uma concretização do direito de acesso ao direito e à tutela judicial efetiva.
O conteúdo do direito ao recurso como garantia de defesa é, de há muito, identificado pelo Tribunal Constitucional como a garantia do duplo grau de jurisdição quanto a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação da liberdade ou outros direitos fundamentais, como, de resto, se encontra expressamente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quer no respetivo protocolo n.º 7, quer no artigo 2.º, n.º 1.
Fora do Direito Penal, apenas como emanação do direito ao acesso ao direito e à tutela judicial efetiva, o mesmo encontra consagração constitucional, constituindo um direito fundamental de configuração legal, na medida em que deixa para as leis processuais o desenho do regime de recursos. Nesta matéria, o Tribunal Constitucional tem vindo a decidir no sentido de o legislador não pode suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer, bem como de não poder restringir o direito ao recurso quando isso representar uma vulnerabilidade ostensiva desse direito, por corresponder a uma violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva.
Por outro lado, na justa medida em que impede que a decisão impugnada transite em julgado, o recurso protela inevitavelmente a obtenção de uma decisão definitiva, nessa medida conflituando com o direito a uma decisão definitiva temporalmente adequada, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
A configuração concreta do sistema de impugnação das decisões judiciais deve, assim, refletir a preocupação de obtenção de uma decisão definitiva sem dilações indevidas ou desproporcionadas, tendo sempre em consideração que tal não deve ser assegurado através da restrição, pura e simples, do direito à impugnação.
Avancemos, pois.
O recurso, em rigor, versa, como se referiu, não sobre a decisão se pronunciou sobre o encerramento do processo, mas antes sobre a que recusou a homologação do plano.
A Apelante sustenta a tempestividade do recurso nos seguintes argumentos:
- é a partir do despacho de encerramento do PEAP (decisão que constitui a única decisão final recorrível de forma autónoma, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil) que se permite às partes reagir sobre os demais despachos proferidos no processo;
- só com a prolação do despacho de encerramento do PEAP é que a decisão de não aprovação do Plano é suscetível de produzir efeitos no resultado do procedimento;
- pelo que, só nesta fase faz sentido a impugnação desta decisão de não aprovação.
Afigura-se que não lhe assiste razão.
Na verdade, como se assinalou na decisão recorrida, a sentença de recusa de homologação do plano é autonomamente recorrível nos termos gerais (artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC), como aliás resulta do disposto no artigo 222.º-F, n.º 7, do CIRE (v.g. artigo 17.º-F, n.º 10, do CIRE, para o processo especial de revitalização) onde se prescreve como efeito do recurso da decisão de não homologação o efeito suspensivo da liquidação e partilha do ativo (por remissão para o artigo 40.º, n.º 3, do CIRE).
A decisão de encerramento e arquivamento do processo fundada na circunstância de a Sra. AJP ter apresentado o parecer previsto no artigo 222.º-G, n.º 3, do CIRE, no qual concluiu no sentido da devedora se encontrar em situação de insolvência e de, notificada a devedora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º-G, n.º 5, do CIRE, a mesma ter, por requerimento de 03-06-2025 [Ref.ª 11730096], manifestado oposição à declaração de insolvência, surge num momento processual diverso e diz respeito ao prosseguimento do processo na sequência da decisão de não homologação do plano mencionado.
Ora, sendo a decisão de não homologação suscetível de apelação autónoma, o prazo para interposição do recurso seria de 15 dias, nos termos conjugados dos artigos 638.º, n.º 1 e 644.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, pelo que tendo sido notificada em 19.05., em 18.06. o referido prazo havia já decorrido.
Assim, o requerimento de interposição de recurso é intempestivo, pelo que não podia deixar de ter sido rejeitado, ao abrigo do disposto nos artigos 638.º, n.º 1, 641.º, n.º 2, alínea a), 644.º e 853.º, n.º 2, alínea a), do CPC, cuja interpretação normativa não viola quaisquer regras ou princípios constitucionais, como se esclareceu.
***
III. Decisão.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão reclamada que não admitiu o recurso.
Custas pela Reclamante.»

*

Apreciando.

A decisão singular sobre a qual a reclamante pretende que recaia acórdão considerou que o recurso que aquela interpôs versa sobre uma decisão que recusou a homologação do plano de pagamentos (e não sobre a decisão que declarou o encerramento do processo) e que a sentença de recusa de homologação do plano é autonomamente recorrível nos termos gerais, ou seja, nos termos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, pelo que tendo a apelante sido notificada daquela primeira decisão em 19 de maio de 2025, tendo o recurso sido interposto na data de 18 de junho de 2025, o mesmo é extemporâneo por já ter decorrido o prazo de 15 dias.

Não se conforma a reclamante, pugnando pelo entendimento de que a decisão de 16.05.2025 não constitui a decisão final do processo, nem representa, por si só, a consolidação definitiva dos efeitos lesivos da reclamante e que apenas com o despacho que determinou o encerramento do processo ao abrigo do disposto no artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b), do CIRE é que as partes podiam reagir sobre os demais despachos nele proferidos, nomeadamente sobre a decisão que declarou a não aprovação do plano. Donde, tendo sido tal despacho proferido em 05.06.2025, o recurso deve ser considerado tempestivo.

Vejamos.

Não vem posto em causa que o efeito jurídico-prático que a reclamante pretende alcançar com o recurso que interpôs é a revogação da decisão proferida na data de 16 de maio de 2025 na medida em que, na perspetiva da apelante/reclamante, quer a Administradora Judicial Provisória quer o Tribunal, ao considerarem não aprovado o plano de pagamentos apresentado pela devedora, tiveram em atenção para efeitos de apuramento do resultado da votação a totalidade dos votos emitidos por todos os credores participantes, sem atender ao disposto e previsto no artigo 212.º do CIRE, ou seja, sem ponderarem que «à luz do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º do CIRE, aplicável subsidiariamente ao PEAP por força do n.º 3 do artigo 222.º-A do mesmo diploma, apenas os credores cujos créditos sejam efetivamente afetados pelo plano têm legitimidade para votar», tendo votado contra o plano quatro instituições financeiras – (…), Banco (…), Caixa (…) e (…) Banco – às quais não assistiria direito de voto.

O Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) – que foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo D/L n.º 79/2017, de 30 de junho e alterado pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro – é um processo pré-insolvencial aplicável a devedores que não sejam empresas e que se encontrem em situação económica difícil ou de insolvência iminente. Trata-se de um processo que tem em vista a aprovação e homologação de um acordo de pagamento entre o devedor e os seus credores que permita ao primeiro superar a situação de pré-insolvência em que se encontra. A este processo são aplicáveis todas as regras previstas no CIRE que não sejam incompatíveis com a sua natureza (artigo 222.º-A, n.º 3), aqui se incluindo quer as regras aplicáveis ao PER (artigos 17.º-A a 17.º-J do CIRE), quer as regras aplicáveis ao plano de insolvência, nomeadamente os artigos 207.º a 216.º do CIRE.

O processo inicia-se com o requerimento do devedor, sobre o qual o juiz deve proferir de imediato despacho liminar[1]. O despacho liminar de nomeação do administrador judicial provisório tem importantes efeitos processuais: i. obsta à instauração de quaisquer ações executivas para cobrança de dívidas contra o devedor e suspende, quanto ao devedor, as ações executivas que estejam em curso com idêntica finalidade (artigo 222.º-E, n.º 1); ii. suspende, na data da publicação no portal Citius do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor desde que ainda não tenha sido proferida sentença declarativa de insolvência (artigo 222.º-E, n.º 6) e suspende os processos de insolvência em que seja requerida a insolvência do devedor e que entrem depois da publicação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório.

O despacho de nomeação de administrador judicial provisório também determina a imediata suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor (artigo 222.º-E, n.º 8) até: i. ao momento da prolação do despacho de homologação do acordo de pagamento; ii. ao momento d prolação do despacho de não homologação; iii. caso não seja aprovado plano de pagamento, até ao apuramento do resultado da votação, ou até ao encerramento das negociações nos termos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 222.º-G.

O exposto deixa já antever que este processo especial pode terminar sem que seja aprovado e homologado um acordo de pagamento (como, aliás, sucedeu no caso concreto). E tal pode acontecer nas seguintes situações: i. o devedor desiste das negociações (artigo 222.º-G, n.º 2); ii. os credores concluem que não é possível chegar a acordo (artigo 222.º-G, n.º 1); iii. os credores não aprovam o acordo de pagamento (artigo 222.º-G, n.º 1); iv. o juiz não homologa o acordo (artigo 222.º-F, n.º 6.) Em qualquer destas situações o administrador judicial provisório deve emitir um parecer sobre a situação do devedor, o qual vai determinar o que vai suceder a seguir. Assim, o administrador pode emitir parecer no sentido de que o devedor ainda não se encontra em situação de insolvência ou concluir pela insolvência do devedor. No primeiro caso, o PEAP é imediatamente encerrado, extinguindo-se todos os efeitos que ainda não se tenham extinguido. Se o administrador judicial provisório emitir parecer no sentido que o devedor está em situação de insolvência, a secretaria do tribunal notifica o devedor para, no prazo de cinco dias, deduzir oposição por meio de requerimento ou para, querendo, apresentar plano de pagamentos nos termos do disposto nos artigos 249.º e ss. do CIRE; se o devedor se opuser, o juiz determina o encerramento e arquivamento do processo, o qual acarreta a extinção de todos os seus efeitos, nos termos do disposto no artigo 222.º-G, n.º 6, do CIRE[2]; se o devedor não se opuser, o juiz declara a insolvência no prazo de três dias úteis, sendo o PEAP apenso ao processo de insolvência (artigo 222.º-G, n.º 7) e havendo lista definitiva de créditos reclamados, os credores que constem dessa lista não necessitam de reclamar os créditos ali relacionados nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 36.º (artigo 222.º-G, n.º 9).

O artigo 222.º-J contém a disciplina para o encerramento deste processo:

a) Se o acordo de pagamento for aprovado e subsequentemente homologado, o trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória encerra o PEAP – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea a);

b) Se o acordo de pagamento for aprovado mas não homologado, o processo encerra-se com o cumprimento do disposto no artigo 222.º-G, n.ºs 1 a 7, do CIRE – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b);

c) Se terminado o período de negociações, o acordo não for aprovado, o processo encerra-se com o cumprimento do disposto no artigo 222.º-G, n.ºs 1 a 7 – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b);

d) Se o período das negociações terminar antecipadamente, o processo encerra-se com o cumprimento do disposto no artigo 222.º-G, n.ºs 1 a 7 – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b).

Voltando ao caso em apreço, extrai-se dos autos que:

1) O despacho datado de 16 de maio de 2025 foi proferido na sequência de um requerimento apresentado pela sra. Administradora Judicial Provisória, no qual informa os autos que o plano de pagamentos não foi aprovado e que a devedora se recusara a assinar a ata, «razão pela qual a administradora judicial provisória não procedera ao encerramento do processo «nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE» (sic).

2) A decisão de 16 de maio de 2025 tem o seguinte teor:

«SENTENÇA

(…), contribuinte n.º (…), residente na Rua Dr. (…), 429, (…), veio ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas intentar o presente processo especial para acordo de pagamento.

Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 222.º-C, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Foi publicada a lista provisória de credores.

Forma apresentadas impugnações à lista provisória de credores que foram decididas em 09- 04-2025 [99459923].

Em 21-04-2025 [11611467] a devedora juntou o acordo de pagamento, que foi publicitado no portal Citius (com a retificação de 28-04-2025 [11627898]).

A AJP veio juntar a ata de apuramento da votação do plano em 13-05-2025 [11668018].


***

Nos termos do disposto no artigo 222.º-F, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não se tratando de um caso de aprovação unânime de um plano de recuperação, e “sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o acordo de pagamento que:

a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D, não se considerando as abstenções, recolha cumulativamente: i) O voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos; ii) O voto favorável de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D; ou

b) Recolha cumulativamente, não se considerando as abstenções: i) O voto favorável de credores cujos créditos representem mais de 50% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D; ii) O voto favorável de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D.”.

No caso concreto, o plano foi votado por credores representando 81,48%, sendo que votaram favoravelmente 20,86%, tendo votado desfavoravelmente 79,14%, pelo que, nos termos da disposição legal acabada de citar o plano não foi aprovado.

Mais, e quanto ao motivo de recusa da devedora em assinar a ata com o resultado da votação, a saber, “A Devedora declara que se recusa a assinar a presente ata, porquanto foram considerados votos vencidos de credores cujos créditos não são afetados pelo plano apresentado, nomeadamente os créditos titulados por (…) – Sociedade de (…), S.A., Banco (…), S.A., Caixa (…), S.A., e (…) Banco, S.A., os quais mantêm integralmente as respetivas condições contratuais, sem qualquer modificação de capital, juros, prazo ou garantias."

(indicado em 13-05-2025 [11668018]), sempre se diga que no quadro PEAP inexiste norma similar à constante do artigo 212.º, n.º 2, alínea a), do CIRE (aplicável apenas aos planos de insolvência). Com efeito, a PEAP dispõe de norma especifica quanto ao quórum de aprovação, a saber o supra citado art. 222.º-F, n.º 3, que em nenhum momento prevê norma semelhante ao artigo 212.º, n.º 2, alínea a), ou remete para tal disposição legal.

Pelo exposto, o processo negocial foi concluído, sem aprovação do plano.

Custas pela Requerente, sendo taxa de justiça reduzida a ¼ (artigos 222.º-F, n.º 9 e 302.º, n.º 1, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e o valor da ação para efeitos de custas equivalente ao da alçada da Relação, nos termos do artigo 301.º do mesmo diploma.

Registe e notifique.» (negritos nossos).

3) Nessa sequência, a sra. administradora judicial provisória emitiu parecer no sentido de a devedora se encontrar numa situação de insolvência atual.

4) A devedora manifestou-se expressamente contra a sua declaração de insolvência.

5) Em 5 de junho de 2026 foi proferido despacho com o seguinte teor:

«Por requerimento de 28-05-2025 [11713431] a sra. AJP veio apresentar o parecer previsto no artigo 222º-G, n.º 3, do CIRE, no qual concluiu no sentido da devedora se encontrar em situação de insolvência. Notificada a devedora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º-G, n.º 5, do CIRE, a mesma veio, por requerimento de 03-06-2025 [11730096], opor-se à declaração de insolvência. Face à oposição da devedora e ao disposto no artigo 222.º-G, n.º 6, do CIRE determino o encerramento e arquivamento do presente processo – artigo 222.º-J, n.º 1, alínea b), do CIRE – cessando as funções da sra. AJP – artigo 222.º-J, n.º 2, alínea b), CIRE.»

Resulta do exposto supra que a decisão proferida em 16-05-2025 não é uma decisão de recusa de homologação do plano de pagamentos mas uma declaração de encerramento do processo negocial por falta de aprovação do plano de pagamentos.

Coloca-se, então, e esse é o cerne da reclamação, a questão de saber se aquela decisão proferida em 16.05.2025 admite apelação autónoma ou se o recurso do mesmo segue o regime previsto no artigo 644.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, como defende a recorrente/apelante, pois o CIRE não contém norma legal relativa à possibilidade de ser interposto recurso do despacho proferido no PEAP que declare o encerramento do processo negocial por não aprovação do plano de pagamentos, donde a solução ter de ser encontrada no âmbito do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.

À luz do artigo 644º, n.º 1, alínea a), do CPC, cabe recurso de apelação da decisão proferida em 1ª instância que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente.

Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância: a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz; b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal; c) Da decisão que decrete a suspensão da instância; d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova; e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual; f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo; g) De decisão proferida depois da decisão final; h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil; i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.

Dispõe o n.º 3 do artigo 644.º do CPC que «As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1» e o n.º 4 que «Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão».

Refere Abrantes Geraldes[3] que «as decisões intercalares que, sendo impugnáveis em abstrato, não admitem recurso de apelação autónomo intercalar, podem (e só podem) ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente venha a ser interposto do despacho saneador ou da decisão final do processo (ou da decisão final do procedimento cautelar ou do incidente respetivo), de acordo com o disposto no n.º 3, ou nas condições referidas no n.º 4. (…) A impugnação da decisão interlocutória pode constituir o único mecanismo capaz de determinar a anulação ou a revogação da decisão final, casos em que a impugnação desta, em vez de se fundar em vícios intrínsecos, pode ser sustentada na impugnação de decisão interlocutória com função instrumental e prejudicial relativamente ao resultado final. A impugnação diferida pressupõe a verificação, relativamente à concreta decisão, de todos os pressupostos da recorribilidade. A única especificidade traduz-se na falta de autonomia e no facto de o decurso do prazo normal do recurso não determinar o efeito de trânsito em julgado. Por isso, só são impugnáveis, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 644.º, as decisões interlocutórias atípicas (isto é, não previstas no n.º 2) relativamente às quais se verifiquem os pressupostos gerais de recorribilidade, maxime o que decorre do artigo 629.º, n.º 1».

No caso sub judice, na decisão judicial de 16.05.2022 o tribunal pronunciou-se sobre o motivo de recusa da devedora em assinar a ata com o resultado da votação e declarou o encerramento do processo negocial sem aprovação do plano de pagamentos, tendo, ainda, ordenado a notificação do administrador judicial provisório para se pronunciar sobre se a devedora se encontra, ou não, em situação de insolvência. Não foi esta decisão que encerrou o PEAP e que determinou a extinção dos seus efeitos. O PEAP encerrou-se com o despacho de 5 de junho de 2026 que determinou o encerramento do processo e o seu arquivamento na sequência da dedução de oposição à declaração de insolvência por parte da devedora; com esse despacho de 5 de junho de 2025 extinguiram-se todos os efeitos do PEAP que ainda não se haviam extinguido. Por conseguinte, a decisão judicial de 16.05.2025 não se integra no n.º 1, alínea a) do artigo 644.º do CPC. Tão pouco aquela decisão judicial se enquadra em qualquer das situações previstas no seu n.º 2, nomeadamente não se integra na alínea h), a qual se refere às decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil. Como salienta Abrantes Geraldes[4]: «Com este preceito o legislador abre a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral do diferimento da impugnação para o recurso de outra decisão, nos termos do n.º 3, importe a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha ser obtida. O advérbio (“absolutamente”) assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador (...). Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutora não passará de uma ‘vitória de DD’, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado.»

Também na jurisprudência se entende que a inutilidade absoluta tem que referir-se ao resultado do recurso e não à inutilização de atos processuais praticados. A título de exemplo, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12.11.2020[5], relator Canelas Brás, consultável em www.dgsi.pt. que «1. Sendo certo que sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria inúteis, não é menos verdade que se tratará sempre de uma inutilidade absoluta. 2. Tal só poderá significar que sempre que, no processo, se possa voltar ao momento em que se proferiu a decisão recorrida (e, depois, revogada no recurso), este nunca é inútil – naturalmente, com custos em tempo gasto e repetições de processado, mas ainda de manifesta utilidade, pois o processo levará ainda o rumo que a decisão do recurso lhe tiver imprimido» e no Relação de Coimbra, de 15.9.2015[6]: «É hoje, ao que cremos, inteiramente pacífico, o entendimento de que a inutilidade absoluta exigida pela lei só se verifica quando “o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição” (cfr. decisão desta Relação de 1/12/2010, proferida no processo n.º 102/08....). O que se pretende evitar é, deste modo, a inutilidade do recurso, e não dos actos processuais entretanto praticados, eventualidade que o legislador previu e com a qual se conformou. Deste modo, o recurso só será inútil se em nada aproveitar ao recorrente, o que ocorrerá apenas quando, revogada embora a decisão impugnada, a situação se mantenha inalterada por os efeitos desta se terem tornado irreversíveis por via da demora na apreciação do recurso».

À luz do que acabou de se expor, a impugnação com o recurso da decisão final de 5 de junho de 2026 do despacho proferido em 16.05.2025 – que declarou o encerramento do processo negocial por falta de aprovação do plano de pagamentos – não é absolutamente inútil, pelo que não se enquadra na alínea h), do n.º 2, do artigo 644.º, do CPC.

Impõe-se, assim, concluir que a decisão proferida em 16 de maio de 2025 podia ser impugnada, como foi, no recurso interposto da decisão proferida em 5 de junho de 2026, ao abrigo do disposto no artigo 644.º, n.º 3, do CPC. E, tendo sido esta última decisão notificada à devedora por comunicação expedida em 06.06.2025, o recurso interposto em 18 de junho de 2025 é tempestivo.

Em síntese, o recurso interposto em 18 de junho de 2025 relativo ao despacho que declarou o encerramento do processo de negociações por falta de aprovação do plano de pagamento e que ordenou a notificação da sra. Administradora Judicial Provisória para emitir parecer sobre a situação de insolvência ou de não insolvência da devedora é tempestivo, devendo, por isso, ser admitido, estando reunidos os pressupostos gerais previstos no artigo 929.º, n.º 1, do CPC. Consequentemente, a decisão singular reclamada deve ser substituída por outra que admita o recurso e ordene a requisição do processo principal ao tribunal de primeira instância, em conformidade com o disposto no artigo 643.º, n.º 6, do CPC.

Sumário: (…)


DECISÃO
Em face do exposto, acordam em deferir a presente reclamação, revogando a decisão singular reclamada e, em conformidade, ordenam a requisição do processo principal ao tribunal de primeira instância.
As custas são da responsabilidade da reclamada Caixa (…) porque ficou vencida, sendo que a este título apenas são devidas custas de parte, uma vez que a reclamada/apelada já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pela resposta à reclamação.

Notifique.

D.N..

Évora, 2 de outubro de 2025

Cristina Dá Mesquita

Mário João Canelas Brás

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] Que pode ser um despacho de aperfeiçoamento, um despacho de indeferimento liminar ou um despacho de nomeação do administrador judicial provisório.

[2] Esta solução foi introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, na decorrência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020, o qual declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da solução legal quando interpretada no sentido de equiparar o parecer do administrador judicial provisório à apresentação do devedor à insolvência sempre que o devedor se opusesse ao conteúdo do parecer.

[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, págs. 216-217.

[4] Ob. cit., págs. 215-216.

[5] Relator sr. Desembargador Canelas Brás, consultável em www.dgsi.pt.

[6] Relatora sra. desembargadora Maria Domingas Simões, consultável em www.dgsi.pt.