Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
302/18.0T9ETZ.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
CRIMES DOLOSOS
CRIMES NEGLIGENTES
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
É diversa a estrutura factual dos crimes dolosos e negligentes.

Agora sem cuidar do seu arrumo sistemático (na culpa ou no tipo, fundamentalmente) o elemento subjectivo do crime materializa-se naquelas duas realidades, em dolo ou negligência. Desde logo, importa sublinhar que não existe nesta última o elemento intelectual e volitivo que caracteriza o dolo, ou seja, o conhecimento e vontade de concretizar os elementos objectivos da conduta descrita na norma incriminadora: na negligência “não são estes equivalentes ao elemento cognoscitivo e ao elemento volitivo no dolo e tanto assim é que as alíneas a) e b) do art. 15.º se destinam precisamente a negar ou o elemento cognoscitivo ou o elemento volitivo tal como são exigidos no conceito de dolo. É diferente, na negligência, a sua estrutura e objecto.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 302/18.0T9ETZ no qual, mediante despacho judicial, foi proferida decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Inconformada com essa decisão, AA, assistente, dela interpôs recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):

a. Tem razão o tribunal recorrido ao considerar que não se mostravam alegados todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito criminal previsto e punido pelo art.º 150º, n.º 2, do CP.

b. Contudo, no que tange ao crime previsto e punido pelo art.º 137º, n.º 2, do CP, a págs. 4 da decisão recorrida, começou por se afirmar, e bem, que: “num crime negligente, como é o caso, o assistente tem de alegar a violação de um dever objetivo de cuidado e que a violação do cuidado, segundo as suas capacidades e conhecimentos o arguido está em condições de prestar”.

c. Ora, a págs. 5, e pronunciando-se, também sobre os pressupostos respeitantes ao crime de homicídio por negligência, diz-nos o tribunal recorrido que “não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos atinentes à culpa (a atuação de forma livre, deliberada e consciente e de que a conduta em causa é proibida e punida por lei criminal)” e que: “omitiu-se no requerimento de abertura de instrução que, na sua conduta negligente, o arguido agiu livre e deliberada conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.

d. Com base em tal entendimento, o tribunal recorrido rejeitou o requerimento de abertura de instrução por ser legalmente inadmissível devido a falta de alegação dos factos respeitantes à culpa.

e. Ora, ao entender que a recorrente deveria ter alegado que na sua conduta negligente, o arguido agiu livre, deliberada conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, a decisão recorrida confunde os pressupostos do dolo com os da negligência, pelo que padece de manifesto erro na interpretação do direito aplicável, com óbvia violação do disposto nos arts. 15º e 137º, n.º 2, do Código Penal.

f. Sempre se dirá, à cautela, que, em relação à prática do crime de homicídio por negligência, a violação de um dever objetivo de cuidado que, segundo as suas capacidades e conhecimentos, o arguido está em condições de prestar resulta, clara, inequívoca e expressamente, dos factos alegados nos arts. 6º, 7º, 8º e 13º a 22º do libelo acusatório formulado no requerimento de abertura de instrução.

g. Motivo pelo qual deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare aberta a instrução para verificação da decisão de arquivamento no que respeita aos indícios da prática do crime de homicídio por negligência.”

Pugnando, em síntese:

“Termos em que deve ser concedido o douto provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

1 -- Inconformada com o despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, dela veio a assistente interpor recurso alegando que, contrariamente ao referido na decisão recorrida, foram descritos todos os elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º do C.P.M, pugnando pela substituição da decisão recorrida por outra que declare aberta a instrução.

2 - O requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

3 - A realização do tipo legal de crime negligente pressupõe o agente tenha omitido deveres de cuidado a que, segundo as circunstancias e os seus conhecimento e capacidades pessoais, era obrigado, e que em consequência disso, não previu e era capaz, ou tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar.

4 - No caso em concreto, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não contém factos integradores do elemento subjetivo do crime de homicídio por negligência, sendo totalmente omisso, pelo menos, quanto ao tipo de culpa exigido pela negligência.

5 - Em momento algum se diz no requerimento de abertura de instrução que o arguido não agiu com o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigado e de que era capaz ou estava em condições de prestar.

6 - Assim, Tribunal a quo não violou quaisquer preceitos legais, designadamente os mencionados pela assistente.

Pugnando, em síntese:

“Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser confirmada e negar-se provimento ao recurso apresentado pela assistente, assim se fazendo JUSTIÇA!”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (2).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“A assistente veio requerer a abertura de instrução contra o despacho de arquivamento do Ministério Público.

Nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).

Assim, no requerimento de abertura de instrução o assistente terá, desde logo, de descrever os factos concretos por referência ao tipo de ilícito que pretende imputar ao denunciado.

“O requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada (…) o que significa que não sendo uma acusação em sentido processual formal, deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena” (Ac. STJ de 25.10.2006, Proc. N.º 06P3526, em www.dgsi.pt)

“Uma conduta humana só poderá punir-se se estiver prevista numa norma penal que descreva claramente a conduta proibida ou ordenada, acompanhada da cominação de uma pena. Está aqui implicado o princípio da legalidade (…) A descrição exigida para a peça acusatória e (…) aos requisitos de abertura de instrução, reporta-se a todos os factos (factos essenciais) de que dependa a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, quer dizer, todos aqueles que constituem os elementos de algum crime” (Ac. TRG, de 14.02.2005, em CJ, 2005, t. 1, p. 299-300).

Se num crime doloso, como se defendeu no Ac. Relação de Coimbra de 30.03.2009, “(...) há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).”.

Ora, num crime negligente – como é o caso – o assistente tem de alegar a existência de um dever objectivo de cuidado e que a violação do cuidado, segundo as suas capacidades e os seus conhecimentos, o arguido está em condição de prestar, conforme os seguintes arestos:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 08-02-2016, relatado por DOLORES SOUSA E SILVA disponível em www.dgsi.pt.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-02-2019, relatado por VASCO FREITAS, disponível em www.dgsi.pt.

- Acórdão do Tribunal da Relação do Coimbra, de 13-09-2017, relatado por ORLANDO GONÇALVES, disponível em www.dgsi.pt

Quanto a deficiências do requerimento para a abertura de instrução, «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º2, do Cód. Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», conforme o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12/05/2005, publicado no DR, I-A, de 04/11/2005.

Analisando o requerimento de abertura de instrução, não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos atinentes à culpa (a atuação de forma livre, deliberada e consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei criminal).

Ressalvado o devido respeito, o requerimento não descreve os factos que legitimam a aplicação de uma pena ao arguido. Omitiu-se no requerimento de abertura de instrução que, na sua conduta negligente, o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Tendo assente a jurisprudência uniformizada do Acórdão nº 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR- Iª- Série-A, de 04/11/2005, inexistem os factos necessários a subsumir para efeitos de apuramento da culpa do agente e é o requerimento legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento.

Não é, assim, admissível a comprovação judicial do despacho de arquivamento proferido nos autos.

Termos em que, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Importa, no presente recurso, responder a uma única questão, que se traduz na valoração da (in)admissibilidade da instrução nos presentes autos.

B. Decidindo.

Segundo a recorrente, o despacho recorrido incorre em contradição, ao afirmar, por um lado, que o assistente, num crime negligente como aquele que está em causa nos presentes autos, deve alegar que o arguido violou um dever objetivo de cuidado que, segundo as suas capacidades e conhecimentos, estava em condições de prestar e, simultaneamente, que não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos atinentes à culpa (a atuação de forma livre, deliberada e consciente e de que a conduta em causa é proibida e punida por lei criminal)” e que se omitiu, “no requerimento de abertura de instrução que, na sua conduta negligente, o arguido agiu livre e deliberada conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.

Vejamos.

Num dos acórdãos citados na douta decisão recorrida (3) faz-se alusão à necessidade de, num caso de homicídio negligente e perante o arquivamento do inquérito pelo MP, importa que o assistente apresentasse um texto “acusatório” (ou seja, de estrutura semelhante a uma acusação) onde fosse narrada a concreta conduta (do arguido) de não observância do cuidado objectivamente devido para evitar a morte da vítima, como a possibilidade objectiva de prever a morte como não alocação dos meios de socorro que devia ter reunido para evitar aquele resultado.

De facto, a estrutura factual dos crimes dolosos e negligentes é diversa.

Agora sem cuidar do seu arrumo sistemático (na culpa ou no tipo, fundamentalmente) o elemento subjectivo do crime materializa-se naquelas duas realidades, em dolo ou negligência. Desde logo, importa sublinhar que não existe nesta última o elemento intelectual e volitivo que caracteriza o dolo, ou seja, o conhecimento e vontade de concretizar os elementos objectivos da conduta descrita na norma incriminadora: na negligência “não são estes equivalentes ao elemento cognoscitivo e ao elemento volitivo no dolo e tanto assim é que as alíneas a) e b) do art. 15.º se destinam precisamente a negar ou o elemento cognoscitivo ou o elemento volitivo tal como são exigidos no conceito de dolo. É diferente, na negligência, a sua estrutura e objecto.

a) Na verdade, o facto ilícito, no crime culposo, abrange o facto ilícito do correspondente crime doloso [in casu, a morte de uma pessoa] enquanto é consequência possível da acção perigosa ou da omissão de cautelas que fornecem a violação do dever de diligência ou de cuidado a que o agente está obrigado. (4)”

O Mm.º Juiz a quo faz referência ao Acórdão n.º 7 (5) /2005 (de 12.05.2005 proferido no processo n.º 430/2004, 3.ª Secção 8 (relator Armindo dos Santos Monteiro) publicado no DR 212 SÉRIE I-A, de 2005.11-04, nos termos do qual “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

No entanto, previamente a quaisquer (eventuais) deficiências do RAI, cremos que o Mm.º Juiz a quo, ao obrigar a que do libelo acusatório do assistente, nestas circunstâncias (ou seja, num crime negligente), constasse que o arguido tivesse agido livre, deliberada e conscientemente, está a exorbitar das situações em que pode rejeitar o RAI, nos exactos termos recortados pelo art.º 287.º, n.º 3, o que, se nos afigura estar-lhe legalmente vedado.

Pelo exposto, o despacho em causa deverá ser revogado e substituído por outro que aprecie as razões constantes do RAI apresentado pela assistente (com exclusão da questão objecto da presente decisão).

O recurso é, consequentemente, procedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituído por outro que aprecie as razões constantes do RAI apresentado pela assistente.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Doravante RAI.

2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

3 Acórdão do TRC de 13.09.2017, proferido no processo 36/15.7MAFIG.C1 (relator: Orlando Gonçalves), disponível, como todos os demais sem indicação diversa, em www.dgsi.pt.

4 Manuel Cavaleiro de Ferreira in Lições de Direito Penal, Parte Geral, tomos I e II, Almedina, 2010, página 306, com distinção ulterior atinente aos elementos da negligência consciente e inconsciente.

5 Seguramente por lapso, menciona o AUJ n.º 6/2005.