Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
591/18.0PALGS.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
ARGUIDO NÃO NOTIFICADO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Decorre do disposto no artigo 61º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, assistir ao arguido, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, o direito a estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito.

O artigo 332º, nº 1, do mesmo Código, impõe a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, excecionando os casos previstos nos artigos 333º, nºs 1 e 2, e 334º, nºs 1 e 2.

Todos os preditos preceitos da legislação processual ordinária são expressão, corolário, do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, e, bem assim, do disposto no nº 6 desse artigo, mediante o qual, “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.”.

No caso em apreço, a audiência de julgamento realizou-se sem a presença do arguido, que não estava regularmente notificado para comparecer.

O desrespeito por tal procedimento redunda numa ausência do arguido por falta da sua notificação, sancionada como nulidade insanável nos termos prevenidos no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 591/18.0 PALGS, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Lagos, foi submetido a julgamento o arguido PR, (devidamente identificado nos autos), e em consequência da sentença proferida em 16.11.2020, foi decidido:

“1. Condenar o arguido PR, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo Art. 25º alínea a), ex vi do Art. 21, nº1, ambos, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I anexa, na pena de três anos de prisão.

2. Condenar o arguido no pagamento de custas criminais (…).

3. Declarar perdido a favor do Estado Português o estupefaciente apreendido, atenta a sua natureza proibida e determinar a sua destruição.

4. Considerar perdidos a favor do Estado Português o telemóvel e quantias apreendidas nos autos.”.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

“I. O Arguido foi submetido a julgamento na sua ausência, não tendo sido notificado do despacho que designou data para a sua realização.

II. Não tendo a notificação do despacho que designou data para a realização da audiência sido enviada para a morada do arguido, não poderia o mesmo ter-se considerado notificado da mesma.

III. Portanto, não poderia a audiência ter tido lugar na sua ausência, como veio a ocorrer, por não se encontrarem reunidos nenhum dos pressupostos legais, tendo sido violado os artigos 61.º, n.º 1, alínea a) e 332.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

IV. A ausência do arguido a julgamento por tal falta de notificação, acarreta nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. c), do CPP.

V. Nulidade que afecta o despacho que designou dia para julgamento, bem como todos os actos subsequentes, incluindo a audiência de julgamento e sentença proferida nos autos, devendo ser anulados o despacho que designou data para a realização da audiência e os actos subsequentes, neles se incluindo a audiência de julgamento e a sentença proferida, que padece de nulidade.

VI. Deverá o arguido ser regularmente notificado e realizar-se nova audiência de discussão e julgamento.

Caso assim não se entenda, o que apenas em tese se admite, e por mera cautela de patrocínio, conclui-se ainda:

VII. Não foram apuradas as condições pessoais do arguido nem a sua situação económica, elementos relevantes a ponderar na determinação da pena, tendo sido violado o disposto no art.º 71.º, n.º 2 do Código Penal.

VIII. O tribunal a quo tinha o poder-dever de, oficiosamente, proceder às diligências que fossem razoáveis e necessárias, de modo a apurar as condições pessoais e económicas do arguido, sob pena de incorrer num vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

IX. Não o fazendo, incorreu naquele vício e violou o disposto nos artigos 369.º e 370.º do CPP.

X. Perante o desconhecimento, em absoluto, das condições pessoais e económicas do arguido, a decisão recorrida padece do vício da INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA PARA A DECISÃO, previsto no art.º 410.º n.º 2 al. a) do Código Processo Penal.

XI. Não foi produzida qualquer prova em audiência que pudesse sustentar a conclusão de que as 16 doses que o arguido detinha se destinassem a ser cedidas por qualquer forma a terceiros.

XII. A prova produzida em audiência impunha decisão diversa da recorrida, o que significa que esse facto deveria ter sido dado como não provado e o arguido absolvido.

XIII. Incorreu, assim, o tribunal a quo, em erro notório na apreciação da prova.

XIV. Em tese, e em ultima análise, o arguido apenas poderia ser condenado pelo crime de consumo previsto no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, em virtude da quantidade exceder minimamente a legalmente considerada como necessária para o consumo individual médio de 10 dias, e não se ter apurado qualquer facto suficientemente relevante para poder concluir que o mesmo destinava aquele produto à cedência a terceiros.

XV. Ainda que, em tese, se considerasse que o arguido havia praticado o crime de tráfico de menor gravidade, e apesar da reincidência, ainda assim poderia e deveria o tribunal aplicar pena inferior, substituída por multa, atenta a quantidade pouco expressiva de estupefaciente apreendida e o arguido tem profissão (é …), encontrando-se familiar e socialmente bem inserido (tem um filho maior, unicamente a seu cargo).

XVI. Ainda que o arguido devesse ser condenado, a pena aplicada é excessiva e desadequada, violadora do princípio da adequação e proporcionalidade que deve presidir à escolha e determinação das penas.

TERMOS EM QUE DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.”.

Admitido o recurso interposto e notificados os devidos sujeitos processuais, o Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao mesmo, alegando, em síntese conclusiva:

“A –DA NULIDADE POR FALTA DE NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO

Na sequência do recurso interposto, constata-se que o arguido, nestes autos, não foi regularmente notificado para estar presente em julgamento, porquanto, a notificação expedida, por via postal, não foi remetida para a morada que o arguido forneceu (cfr. fls. 121) dos autos.

Assim, o julgamento e a subsequente prolação da sentença condenatória encontra-se fulminada pela nulidade absoluta do artº 119º, al. c) do CPP (ausência do arguido, nos casos em que a lei impõe a sua comparência), nulidade de conhecimento oficioso.

B. DA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA PARA A DECISÃO

Logo de seguida, invoca o recorrente a existência, na sentença proferida, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Baseia a existência de tal vício porquanto “o tribunal a quo tinha o poder-dever de, oficiosamente, proceder às diligências que fossem razoáveis e necessárias, de modo a apurar as condições pessoais e económicas do arguido, sob pena de incorrer num vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”.

Quanto ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, (consagrado no art. 410 nº 2 al a) do CPP), importa referir que este ocorre quando os factos apurados sejam insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.

Antes de mais, há que referir que, neste particular, nada foi requerido pela Defesa do arguido. Por outro lado, o arguido não compareceu à audiência de discussão e julgamento, conduta que o Mmo. Juiz considerou que mostrava alheamento e desinteresse pelo decurso do processo crime. Partindo dessa perspectiva (e sem prejuízo da procedência da nulidade invocada) assistiria razão ao Mmo. Juiz, e não se verificaria o invocado vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

C. Do Crime de Tráfico de Menor Gravidade

Logo de seguida, afirma o recorrente que “não foi produzida qualquer prova em audiência que pudesse sustentar a conclusão de que as 16 doses que o arguido detinha se destinassem a ser cedidas por qualquer forma a terceiros”. Pelo que o arguido apenas poderia ser condenado pelo crime de consumo previsto no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000.

A Douta sentença proferida alicerça-se, não só nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, mas também no facto de o arguido ter à sua disposição instrumentos e produtos altamente conotados com a actividade de tráfico. Sejam eles, por exemplo, a balança, os recortes de plástico, e o produto indeterminado, sob a forma de pó, e bem assim das quantias monetárias apreendidas, que se reputam, e bem, “como vestígios de uma actividade de tráfico, na perspectiva de venda ou cedência a terceiros, que afastam a consideração de um quadro de detenção para consumo, em que tais instrumentos figuram como estranhos e desnecessários”. Em suma, e neste particular, concorda-se com a Douta Sentença proferida.

D. Da escolha da Pena de Prisão

Afirma o recorrente, por último, que “ainda que, em tese, se considerasse que o arguido havia praticado o crime de tráfico de menor gravidade, e apesar da reincidência, ainda assim poderia e deveria o tribunal aplicar pena inferior, substituída por multa, atenta a quantidade pouco expressiva de estupefaciente apreendida e o arguido tem profissão (é …), encontrando-se familiar e socialmente bem inserido (tem um filho maior, unicamente a seu cargo).

Como bem refere a sentença proferida, o grau de ilicitude do facto é relativamente acentuado, a intensidade do dolo também releva, pois é directo e as exigências de prevenção geral e especial são elevadíssimas, pelo que o quadro completo do ilícito criminoso cometido exigia a aplicação de pena de prisão, nos termos em que foi aplicada.

Vossas Excelências decidirão, como sempre, como for de lei e de JUSTIÇA.”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, opinando, em suma, pela verificação da apontada nulidade insanável, p. e p. pelo artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal, que deve ser declarada.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o condenado feito uso do direito de resposta.

Foi efectuado o exame preliminar.

Foi realizada a Conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação [(cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82)].

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões aportadas ao conhecimento desta instância são as seguintes:

(i) - Se ocorre nulidade processual por o julgamento ter ocorrido na ausência do arguido sem que este se encontrasse devidamente notificado da designação de julgamento, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal ;

(ii) - Se a decisão recorrida se mostra ferida dos vícios prevenidos no artigo 410º, nºs 1 e 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal;

(iii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de direito no conspecto da medida da pena imposta ao arguido.

III

A sentença recorrida encontra-se fundamentada de facto nos seguintes termos:

“(…)

Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 25 de Setembro de 2018, pelas 19h07, no entroncamento da Rua … com a Praça …,, em …, o arguido PR encontrava-se a conversar com PG, quando aquele, ao ser abordado por agentes da Polícia de Segurança Pública que se encontravam no local, encetou uma fuga apeada, tendo vindo a ser interceptado na Rua …, em ….

2. O arguido PR, na referida ocasião, tinha em sua posse, o seguinte:

- Canabis (resina), com o peso líquido de 40,852gramas e um grau de pureza de 1,9%THC (correspondente a 15 doses);

- Um plástico contendo uma substância indeterminada, com o peso líquido de 2,134gramas;

- Um telemóvel da marca e modelo "Samsung J511;

- A quantia monetária de €80,00 (composta por 2 notas com o valor facial de €20,00 e 4 notas com o valor facial de €10,00).

4. Ainda no referido dia 25 de Setembro de 2018, pelas 20h40, o arguido PR tinha ainda em sua posse, no interior da sua residência, localizada na Rua …, em …, o seguinte:

- Canabis (resina), com o peso líquido de 3,299gramas e um grau de pureza de 2,2%THC (correspondente a 1 dose);

- Uma balança de precisão da marca e modelo «Silverê'rest, SOL 300 BI»;

- Vários recortes em plástico;

- Um cofre com o formato de "livro enciclopédico" e ostentando a inscrição "The New English Dictionary"

4. O arguido PR conhecia a natureza estupefaciente da canabis que tinha em sua posse nas circunstâncias supra indicadas e que destinava a ceder a terceiros.

5. Actuou de forma livre, consciente e deliberada e, bem ainda, estava perfeitamente ciente de que não tinha autorização para deter, transportar, receber, vender e ou ceder canabis.

6. O arguido PR sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. Por decisão proferida em 29.10.2010, no processo n.º 785/08.6T ALGS, do Tribunal Judicial de Lagos, o arguido foi condenado pela prática, entre o ano de 2009 e 20 de Janeiro de 2010, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de sete anos de prisão.

8. Por decisão proferida em 12.11.2019, no processo n.º 125/18.6GALGS, do Juízo de Competência de Lagos, o arguido foi condenado pela prática, em 13.05.2018, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de cem dias de multa.

9. No âmbito do processo indicado em 7., o arguido cumpriu a pena de prisão que lhe foi aplicada, ininterruptamente, entre 21.01.2010 e 21.11.2015, data em que lhe foi concedida liberdade condicional

***

*

Factos Não Provados

Não se provaram as condições pessoais e económicas do arguido, nem ficaram por provar quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

***

MOTIVAÇÃO

A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma, partindo das regras da experiência, assim como da prova escrita e oral que foi produzida, aferindo-se quanto a esta o conhecimento de causa e isenção dos depoimentos prestados, conforme se passa a explicitar.

In concretu.

Esteou a afirmação da ocorrência histórica do núcleo factual vertido na acusação, o teor das declarações prestadas por JL e RS, apreciadas à luz das regras da experiência e do que usa ser a habitual idade das coisas, concatenadas com o teor dos autos de apreensão, autos de busca e apreensão, relatórios fotográficos e exames periciais e relatórios forenses juntos ao processo, que validam e chancelam aqueles depoimentos, robustecendo-os e conferindo-lhes credibilidade.

Tais testemunhas, agentes da Polícia de Segurança Pública, verbalizaram as condições em que avistaram e abordaram o arguido, dando conta da posse, após fuga, de produto estupefaciente, com ele e na sua residência, bem assim como quantias monetárias e produtos conotados com a actividade de tráfico.

Apresentaram um depoimento consistente, sem contradições, propiciando uma imagem global do facto unívoca, que a par do expediente a que se fez já alusão, esteou a afirmação da factualidade vertida em 1., 2. e 3 ..

Por banda da afirmação dos factos a que se alude em 4., 5. e 6. – o elemento volitivo ou a determinação do arguido-: sendo elementos íntimos ou internos do agente, raras vezes exteriorizados ou susceptíveis de percepção directa, amparou-se o Tribunal nas condutas logradas demonstrar, que não deixam de os revelar.

Efectivamente, o quadro de facto objectivamente apurado, põe em evidência, de harmonia com o que são as regras da experiência e considerando o conhecimento comum, que o arguido conhecia a natureza do produto que detinha – encetando fuga, revelando não desconhecer a natureza proibida do seu agir e sendo certo que, por factos de igual génese, conhecera já condenação - esteando, pois, a componente subjectiva da sua conduta, bem como a destinação do produto apreendido pois que a balança, os recortes de plástico e o produto indeterminado, sob a forma de pó, bem assim como as quantias monetárias apreendida, são os vestígios da actividade de tráfico, na perspectiva da cedência ou venda a terceiros, que afastam a consideração de um quadro de detenção para consumo, em que tais instrumentos figuram como estranhos e desnecessários - que, como tal, se deu por provada.

Para demonstração dos antecedentes criminais e situação prisional do arguido - a que se alude em 7., 8. e 9.- teve-se em atenção o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.

Quedaram-se por provar as condições pessoais e económicas do arguido, porquanto nenhuma das testemunhas inquiridas as conhecia, sendo que o arguido, pessoa que melhor que ninguém as poderia esclarecer, revelando indiferença à sua situação jurídico-penal, optou por não comparecer em audiência.

(…)”.

IV

Apreciando, agora, a primeira editada questão, [(i)], vejamos.

Alega o recorrente que:

“O Arguido foi submetido a julgamento na sua ausência, não tendo sido notificado do despacho que designou data para a sua realização, e tão pouco foi notificado da acusação, ficando, assim, impedido de exercer o seu direito de defesa.

Senão vejamos:

Em 09-10-2020, o tribunal enviou notificação por via postal simples dirigida ao arguido, para a seguinte morada: Rua … …. Notificação que nunca chegou ao conhecimento do arguido.

Conforme consta a fls. dos autos, no dia 03 de Janeiro de 2019, o arguido, como era sua obrigação decorrente do termo de identidade e residência, apresentou requerimento escrito, através do qual comunicou a sua nova morada: … – …, Caixa de Correio …., cfr. requerimento apresentado pelo arguido com a refª citius n.º ….

Ou seja, não tendo a notificação do despacho que designou data para a realização da audiência sido enviada para a morada do arguido, não poderia o mesmo ter-se considerado notificado da mesma e, portanto, não poderia a audiência ter tido lugar na sua ausência, como veio a ocorrer, por não se encontrarem reunidos nenhum dos pressupostos legais.

A ausência do arguido a julgamento por tal falta de notificação, acarreta nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. c), do C.P.P. Nulidade que afecta o despacho que designou data para julgamento, bem como todos os actos subsequentes, incluindo a audiência de julgamento e sentença proferida nos autos.”

E, da compulsa do processo forçoso é concluir que o arguido recorrente tem razão, porquanto dos autos resulta que o mesmo não foi regularmente notificado para estar presente em julgamento, pois a notificação expedida, por via postal, não foi remetida para a morada que o mesmo forneceu.

Preceitua o artigo 119º, nº1, alínea c), do Código de Processo Penal que:

“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

(…)

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.

(…)”

Decorre do disposto no artigo 61º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, assistir ao arguido, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, o direito a estar presente aos actos processuais que diretamente lhe disserem respeito.

O artigo 332º, nº 1, do mesmo Código, impõe a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, excepcionando os casos previstos nos artigos 333º, nºs 1 e 2, e 334º, nºs 1 e 2.

Todos os preditos preceitos da legislação processual ordinária são expressão, corolário, do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, e, bem assim, do disposto no nº 6 desse artigo, mediante o qual, “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.”.

No caso em apreço, a audiência de julgamento realizou-se sem a presença do arguido, que não estava regularmente notificado para comparecer.

O desrespeito por tal procedimento redunda numa ausência do arguido por falta da sua notificação, sancionada como nulidade insanável em conformidade nos termos prevenidos no já citado artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Em conformidade, urge declarar verificada a nulidade insanável consubstanciada na realização do julgamento na ausência do arguido, sem a notificação deste para o efeito, com a consequente invalidade do mesmo e dos subsequentes actos relativamente ao arguido praticados no processo, ordenando-se a repetição do julgamento, com cumprimento da impreterível formalidade legal – cfr. artigos 119º, alínea c) e 122º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal.

Consequentemente prejudicada fica a apreciação das demais questões aportadas ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo arguido – v.g. artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

V

Não há lugar a tributação.

VI

Decisão

Nestes termos, acordam em:

A) - Conceder provimento ao recurso interposto e consequentemente julgar verificada a nulidade insanável prevenida no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal, por realização do julgamento na ausência do arguido sem que o mesmo tivesse sido notificado da respectiva designação, com a consequente invalidade do mesmo e dos subsequentes actos relativamente ao arguido praticados no processo, ordenando-se a repetição do julgamento, com cumprimento da impreterível formalidade legal – cfr. ainda artigo 122º, nºs 1 e 2, do citado Código;

B) - Não é devida tributação.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente por ambos os subscritores (cfr. artigo 94º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal)]

Évora, 08.02.2022

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

J. F. Moreira das Neves