Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1610/14.4T8LLE-B.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
QUESTÕES NOVAS INVOCADAS EM FASE DE RECURSO
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Se o recurso interposto não aborda as questões que constam do despacho recorrido, o tribunal de recurso, por se tratarem de questões novas, ainda não apreciadas pelo tribunal da 1.ª instância, apenas apreciará as questões que sejam de conhecimento oficioso.
II – Apesar de o abuso de direito ser de conhecimento oficioso, se for invocado tal abuso relativamente ao processo de execução, mas no âmbito de um recurso em incidente de oposição à penhora, por não ser esta a sede própria, o tribunal ad quem não poderá apreciar tal questão.
(Sumário d Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1610/14.4T8LLE-B.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
No âmbito da execução instaurada pelo exequente “Banco (…), S.A.” contra o executado (…), veio este último deduzir oposição à penhora, solicitando, a final, que a oposição à penhora seja julgada procedente, por provada, devendo, em consequência, ser determinado o levantamento da penhora do seu ordenado.
Em 01-02-2024, foi proferido despacho final com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, decide-se indeferir liminarmente o requerimento inicial do incidente de oposição à penhora.
Valor do incidente: 16.232,17 euros.
Custas do incidente de oposição pelo Opoente, sem prejuízo, se for o caso, do beneficio do apoio judiciário.
Registe e notifique.
Inconformado com tal despacho, veio o executado interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1. A obrigação encontra-se prescrita – o prazo a considerar é o de 5 anos, sendo que o processo em causa se encontra parado há mais do que se esse tempo, prescrição que se invoca para todos os efeitos legais.
2. Sempre foi dito, aliás, que, a partir do momento em que o veículo fosse entregue, que a obrigação se extinguiria.
3. Ainda que assim não fosse, a Exequente só poderia exercer o seu direito de ação sobre os últimos 5 anos.
4. Não foi notificado o Executado de qualquer transmissão de créditos entre entidades.
5. De maneira que, nunca tendo sido comunicadas quaisquer cedências de créditos ao Executado, a presente Execução é totalmente ineficaz e inválida, não tendo a Exequente legitimidade legal para a levar a cabo, devendo, consequentemente, improceder.
6. Portanto, a presente execução deve improceder por três ordens de razões:
a) Prescrição da obrigação exequenda;
b) Subsidiariamente a esse pedido, prescrição parcial da obrigação Exequenda;
c) Ausência de comunicação das sucessivas transmissões da alegada divida em causa às Executadas, bem como ao seu progenitor, o que torna a alegada obrigação inválida/ineficaz contra as executadas,
7. Ainda que assim fosse, o que por mera hipótese se admite, não tem o Réu qualquer cópia de qualquer contrato de crédito – o que é obrigatório; e, como isso nunca aconteceu, tal eventual contrato é Nulo – nulidade que se invoca para todos os efeitos legais.
8. A exequente atua em abuso de Direito
9. Nunca pode a Exequente obter da Executada quantia superior àquela que eventualmente consiga provar em juízo.
10. Impede isso o facto de ter levado quase 20 anos para instaurar o presente processo, que teve unicamente em vista o aumento desproporcional de juros.
Assim,
Termos em que requer a V. Exa. concedem provimento ao presente Recurso, renegando a douta sentença recorrida nos termos das presentes Alegações, fazendo a necessária e inteira JUSTIÇA!
O exequente apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
1. A recorrente não contesta/recorre da decisão/sentença de indeferimento liminar da apresentação de oposição à penhora limitando-se a reproduzir o que alegou em sede de requerimento de oposição à penhora.
2. A recorrente não alega ou fundamenta em que alínea do artigo 784.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, se enquadra a sua dedução de oposição à penhora
3. A recorrente não alega, ou fundamenta, em que parte, a decisão de indeferimento de oposição à penhora errou na sua apreciação.
4. Nas suas supostas conclusões o recorrente não requer, se quer, que a decisão proferida seja substituída por outra, que admita a oposição à penhora, mas sim que seja proferida decisão, em sede de recurso, sobre matéria que não foi apreciada, contraditada e objecto de julgamento, se necessário, nos autos de execução.
5. Acresce que, como bem refere a sentença sob recurso, o recorrente “vem repetir neste incidente todos os fundamentos invocados nos embargos de executado, que correm sob o apenso A e que na presente data foram liminarmente indeferidos e não alega um único facto subsumível aos fundamentos de oposição à penhora”.
6. As conclusões do recorrente, alem de destituídas de qualquer fundamento, violam o disposto nos artigos 639.º, n.º 1 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, como é de JUSTIÇA
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, por as conclusões recursivas serem perfeitamente percetíveis, não se determina o convite previsto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil.
Assim, no presente recurso o recorrente invoca as seguintes questões:
1) A prescrição total ou parcial da obrigação exequenda;
2) A ineficácia e invalidade da execução;
3) A nulidade do contrato de crédito; e
4) Existência de abuso de direito por parte do exequente.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do presente relatório.
IV – Enquadramento jurídico
O recorrente veio requerer que, em sede de recurso, se declare a prescrição total ou parcial da obrigação exequenda; a ineficácia e invalidade da execução; a nulidade do contrato de crédito; e ainda que se reconheça a existência de abuso de direito por parte do exequente.
Acontece, porém, que, para além do presente recurso ter sido apresentado no âmbito de um incidente de dedução de oposição à penhora, e não no âmbito de embargos de executado, onde tais fundamentos poderiam eventualmente ser apreciados; no despacho de que se recorre nenhum desses fundamentos, cuja decisão o recorrente pretende que seja tomada em sede recursiva, foi apreciado, pelo que, na realidade, estamos perante questões novas, sobre as quais o despacho recorrido não incidiu.
Transcrevemos para melhor compreensão a fundamentação do despacho recorrido:
(…) deduziu a presente oposição à penhora, por apenso aos autos de execução contra si instaurados por Banco (…), S.A..
Começa por impugnar genericamente a obrigação exequenda, invocando depois a prescrição do direito da exequente, a nulidade do contrato por não dispor de cópia do mesmo e, por fim, alegando que não lhe foi notificada a transmissão do crédito.
*
Inexistem excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, o tribunal deva apreciar oficiosamente, sem prejuízo da questão que adiante se apreciará.
*
Os autos foram apresentados para despacho liminar, pelo que se passará a apreciar em conformidade.
*
O executado veio deduzir oposição à penhora do vencimento, o que fez em incidente autónomo e não observando a faculdade de cumular a oposição à execução com a oposição à penhora.
De qualquer modo, passar-se-á a aprecia o deduzido incidente,
Ora, a oposição à penhora apenas poderá ter por fundamento alguns dos elencados no n.º 1 do artigo 784.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o referido n.º 1 do artigo 784.º do Código de Processo Civil:
«1 - Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.»
Como é evidente, tudo o alegado no requerimento inicial não se enquadra em nenhum dos fundamentos acima referidos.
Com efeito, o executado/opoente vem repetir neste incidente todos os fundamentos invocados nos embargos de executado, que correm sob o apenso A e que na presente data foram liminarmente indeferidos e não alega um único facto subsumível aos fundamentos de oposição à penhora.
Por tudo isto, porque manifestamente improcedente, deverá ser liminarmente indeferido o requerimento inicial.

É, assim, evidente que o recurso interposto, apesar de invocar recorrer do citado despacho judicial, não aborda as questões que constam da fundamentação do mesmo, nem sequer requer que o presente incidente de oposição à penhora prossiga.
Ora, o tribunal de recurso reaprecia as questões que o tribunal da 1.ª instância já tenha decidido, com exceção de questões de conhecimento oficioso.
Conforme bem refere o sumário do acórdão do STJ, proferido em 17-11-2016[2], que se cita[3]:
II – Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.

Assim, e quanto à invocada prescrição total ou parcial da obrigação exequenda, à ineficácia e invalidade da execução e à nulidade do contrato de crédito, por não estarmos perante matéria de conhecimento oficioso, este tribunal não irá proceder à sua apreciação.
Dir-se-á ainda que, quanto a estas questões, entendendo o recorrente que a 1.ª instância estava obrigada a apreciá-las, poderia ter invocado a nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia, o que não fez, não sendo tal nulidade de conhecimento oficioso.
Resta-nos, assim, apenas a apreciação da invocada existência de abuso de direito por parte do exequente.
Considera o executado, e requerente da oposição à penhora efetuada à sua conta bancária, que o exequente atuou em abuso de direito por procurar obter do executado quantia superior àquela que eventualmente consiga provar em juízo, a que acresce a circunstância de ter levado quase vinte anos a instaurar o presente processo, o que teve unicamente em vista o aumento desproporcional de juros.
Acontece, porém, que os presentes autos são de oposição à penhora, pelo que os fundamentos para tal oposição mostram-se enunciados no artigo 784.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, conforme citado no despacho recorrido. Ora, a fundamentação da alegada atuação de abuso de direito por parte do exequente não se reporta ao facto de ter sido penhorada ao executado a conta bancária, nem ao montante que, em concreto, se mostra penhorado, antes sim, ao valor da quantia exequenda e ao tempo em que o exequente demorou a instaurar o processo de execução. Ora, tais fundamentos, a serem apreciados, apenas o poderiam ser em sede de incidente de embargos de executado, jamais nos presentes autos, por nada terem a ver com a penhora da conta bancária do executado.
Pelo exposto, por não corresponder aos fundamentos legalmente admissíveis para invocar a oposição à penhora e não se reportar a qualquer atuação relacionada com a penhora, julga-se improcedente o recurso relativamente à invocada atuação do exequente em abuso de direito.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pela total improcedência do recurso.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pelo apelante (artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Notifique.
Évora, 23 de maio de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário João Canelas Brás
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário João Canelas Brás; 2.º Adjunto: José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho.
[2] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S2, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Veja-se igualmente o acórdão do STJ, proferido em 26-06-1984, no âmbito do processo n.º 071592, consultável em www.dgsi.pt.