Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
529/24.5T8PTG.E1
Relator: FILIPE AVEIRO MARQUES
Descritores: INVENTÁRIO
AVALIAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
OPOSIÇÃO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
RENDIMENTO
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
1. Na modalidade de inventário divisório procura-se uma justa e igualitária partilha do acervo hereditário, pelo que a discussão em torno do valor dos bens pode ser impulsionada logo depois da citação dos interessados para o inventário e nada obsta a que a avaliação seja requerida em momento anterior ao da conferência de interessados.

2. Quando ao impulsionador do processo de inventário não compete o exercício das funções de cabeça‑de‑casal, apenas tem de apresentar com o requerimento inicial as indicações constantes do artigo 1099.º CPC, sendo mais moderado o seu ónus de alegação e instrução.

3. Cabe ao cabeça‑de‑casal o ónus de juntar a relação de bens, seja com o requerimento inicial (quando seja o seu autor) ou em prazo que lhe seja concedido para o efeito (quando não seja ele a apresentar o requerimento inicial).

4. De acordo com a tramitação legal do processo de inventário, só depois da apresentação da relação de bens (por quem tem o dever de a apresentar – o cabeça‑de‑casal) se pode abrir a fase da oposição, designadamente a fase em que os interessados podem reclamar contra a relação de bens e se poderá falar do seu ónus de apresentação da oposição e do eventual efeito cominatório da falta desta.

5. A relação de bens que deve constar dos autos de inventário deverá integrar, no que concerne ao activo, os direitos patrimoniais do autor da herança e, no que concerne ao passivo, as obrigações do mesmo que não meramente pessoais, ou exceptuadas por lei, sendo que a titularidade de tais direitos e obrigações tem de ser determinada com referência à data da abertura da sucessão (a data da morte).

6. O rendimento produzido pelos bens da herança entre a sua abertura e a partilha (como as rendas dos imóveis) não é relacionado no inventário, podendo ser afectado aos encargos da administração da herança pelo cabeça‑de‑casal e por este contabilizado a fim de proceder anualmente à prestação de contas.

Decisão Texto Integral: Apelação n.º 529/24.5T8PTG.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.ª Adjunta: Sónia Kietzmann Lopes


2.ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos



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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA e BB, requerentes nos autos de inventário por morte de CC e em que é cabeça‑de‑casal DD, interpuseram recurso do despacho de 21/03/2025 (Referência: 34258749) proferido pelo Juízo Local Cível de Portalegre - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre.

I.B.

Os apelantes AA e BB apresentaram alegações que terminam com as seguintes:

CONCLUSÕES:

1 - Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo e que recaiu sobre a reclamação dos aqui Recorrentes à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal (refª citius 2623756 de 3-10-2024) que julgou parcialmente, procedente, por provada, a reclamação apresentada na parte respeitante à relacionação das verbas n.º 15, 21, 24, 25 e 26, constantes da relação de bens de 2/09/2024, determinando que as mesmas fossem relacionadas na relação de bens de 3/01/2025, numa rúbrica distinta, intitulada “E) Bens Imóveis Indivisos (que integram também a herança de EE)”, e renumerados como verbas n.º 22 a 26, e indeferiu o demais peticionado.

Ainda, condenou em custas do incidente ambas as partes, na proporção de 1/6 (um sexto) para o cabeça de casal, e de 5/6 (cinco sextos) para os reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, ao abrigo do disposto nos artigos 527.º, n.º 1 do NCPC, 7.º, n.º 4 e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.

2 - Em sede de reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, vieram os aqui recorrentes entre outras questões acusar a falta de relacionação de bens e valores e, ainda requerer, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 1114 do CPCiv, a avaliação da verba 3.

3 - Em suma:

a) acusaram a falta de relacionação dos bens móveis que constituíam o recheio da casa de morada de família da inventariada, referindo que estavam impedidos de os relacionar, por se encontrarem em poder da interessada FF, requerendo que a mesma fosse notificada, nos termos do artigo 1101.º, n.º 1 do NCPC.

b) acusaram a falta de relacionação de uma conta bancária da CGD, de que a inventariada e a interessada FF eram titulares, referindo que não conseguiam relacionar por não terem posse da mesma, requerendo que se oficiasse o Banco de Portugal “em respeito pelo princípio da economia processual, …para vir identificar nos autos todas as contas bancárias de que a inventariada era titular, requerendo ainda …que em face da resposta do Banco de Portugal, mande notificar todas a instituições bancárias identificadas, designadamente a Caixa Geral de Depósitos, para indicarem juntarem aos autos os extratos dos 6 meses anteriores ao óbito da inventariada.”

c) acusaram a falta de relacionação das rendas dos imóveis descritos nas verbas 9, 10 e 12, por serem produto de bens da herança e requereram que o cabeça de casal fosse notificado para juntar aos autos os respetivos contratos de arrendamento e os recibos respeitantes aos últimos 14 meses.

d) referiram que não aceitavam os valores dos bens relacionados pelo cabeça de casal as verbas n.º 1, 2, 3, 6 a 26, requerendo a avaliação da verba n.º 3 e, para esse efeito, a notificação do cabeça de casal para juntar aos autos “as contas da sociedade, e as demonstrações financeiras (balanço...) e inventário classificado, à data da morte de cada um dos avós dos Requerentes e bem assim do ano anterior (1979 e 2022)”

e) fizeram requerimento probatório, arrolando inclusivamente uma testemunha.

4 – A douta sentença em crise, veio indeferir o peticionado pelos aqui Recorrentes, constando da decisão proferida e aqui em crise, que:

“Sucede que, compulsado o teor da relação de bens apresentada nos autos pelos ora reclamantes, enquanto requerentes do presente inventário, a 4/06/2024, a mesma é inteiramente omissa quanto a todos esses bens, cuja falta de relacionação, agora, acusam o cabeça de casal.

Tal como nada foi dito, pelos mesmos, no requerimento inicial, ou nos requerimentos subsequentes, quanto à impossibilidade da sua relacionação.

Do mesmo modo, os valores que o cabeça de casal indicou às verbas n.º 1, 2, 3, e 6 são, precisamente, os valores que constam da relação de bens apresentada nos autos pelos ora reclamantes.

Ora, o cabeça de casal foi notificado, nos termos do artigo 1102.º, n.º 1, alíneas a) e b), para, além do mais, confirmar, corrigir ou completar, de acordo com o estabelecido no artigo 1097.º, o que consta do requerimento inicial apresentado pelos requerentes, e apresentar ou completar a relação de bens nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º.

Como é evidente não é lícito aos reclamantes apresentar uma relação de bens no inventário, enquanto requerentes do mesmo, e depois, acusar o cabeça de casal de confirmar a mesma, nessa parte, sob pena de incorrerem em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, o qual é de conhecimento oficioso.

Com efeito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».

A propósito veja-se o teor do Acórdão do STJ de 20-12-2022 (Proc. 8281/17.4T8LSB.L1.S1), in dgsi.pt: «I - O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito;

II - O tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os respectivos pressupostos legais.».

5 - Ainda, no que concerne ao pedido de avaliação da verba nº3, que:

“Para além do mais, refira-se que, ao contrário do que clamam os reclamantes, o artigo 1098.º, n.º 1, alínea b) do NCPC, é claro quando refere que o valor das participações sociais é o respetivo valor nominal.

Não tendo os reclamantes indicado qualquer fundamento para a não aceitação do valor da verba n.º 26, nem carreado para os autos qualquer meio de prova nessa matéria, falece, também, a reclamação nessa parte.”

6 - Não perfilham os Recorrentes o douto entendimento do Tribunal a quo.

7 - Pois que, de facto, importa ter presente que o art.º 1097º do Código de Processo Civil regula o requerimento inicial apresentado por cabeça de casal e o art.º 1099º do mesmo diploma regula o requerimento inicial apresentado por outro interessado, existindo diferença significativa entre o requerimento inicial de um qualquer interessado ou o apresentado pelo cabeça de casal.

8 - Quando o requerimento inicial não foi apresentado pelo cabeça de casal, mas sim pelos interessados na partilha é de aplicar o artº 1099º do Código de Processo Civil, resultando assim, que apenas lhes competiria identificar o autor da herança, o lugar da sua residência habitual, a data e o lugar em que haja falecido (alínea a)), indicar quem deve exercer o cargo de cabeça de casal (alínea b)), na medida do seu conhecimento identificar os interessados, respetivos cônjuges e regime de bens, legatários, herdeiros legitimários e donatários (alínea c) por remissão para a alínea c) do nº 2 do artº 1097º) e, por fim, juntar os documentos comprovativos dos factos alegados ( alínea d)).

Neste caso, não existe a obrigação, mas a possibilidade de os requerentes do inventário indicarem alguns dos bens a partilhar.

9 - A possibilidade de os requerentes do inventário, que não assumem a qualidade de cabeça de casal, indicarem alguns dos bens, resulta do teor do artº 1102º nº 1 alínea b), que permite ao cabeça de casal citado do requerimento inicial apresentar ou “completar a relação de bens”.

10 - Todavia, a possibilidade de completar a relação de bens não se confunde ou pode confundir com a apresentação da relação de bens, competindo esta ao cabeça de casal, nos termos do artº 1102º do Código de Processo Civil.

11 - De facto, é perante tais elementos e a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, que os demais interessados são citados ou notificados (consoante já tenham ou não sido chamados aos autos) para deduzir a oposição que entendam efetuar.

12 - E, é sobre tal relação que, com efeito preclusivo, os demais interessados, entre os quais os próprios requerentes, podem reclamar contra a relação de bens apresentada, com fundamento na insuficiência, no excesso ou na inexatidão da descrição ou até do valor, apresentando prova– artº 1104º nº 1 alíneas d) – que seguirá a tramitação do artº 1105º do Código de Processo Civil.

13 - Ora, no caso dos autos, o requerimento inicial não foi apresentado pelo cabeça de casal.

14 - Contudo, dando cumprimento ao despacho proferido pelo Tribunal a quo de 24-4-2025 (refªcitius 33423397) os interessados/ requerentes, acabaram por extravasar o que lhes incumbia por força do artº 1099º do Código de Processo Civil, tendo, desde logo, indicado alguns dos bens que, no seu entender, pertenciam à herança e faziam parte do acervo a partilhar.

15 - Acontece que, tal excesso não determina, como parece ser o douto entendimento do Tribunal a quo, que se alterem as regras e as preclusões previstas no regime do inventário!

16 - E, portanto, só na sequência da notificação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal após ter sido citado nos termos e para os efeitos do artº 1102º do CPCiv que, os interessados/requerentes, apresentaram a reclamação à relação de bens sobre a qual recaiu a decisão aqui em crise.

17 - De facto, nos autos em apreço, citado o cabeça de casal (Refª citius 33538548 de 7-6-2024) nos termos e para os efeitos do artº 1102º do Código de Processo Civil, de forma correta e nos termos adjetivamente previstos, veio o cabeça de casal, por requerimento de 2-9-2024 (refªcitius 2600708) aceitar o cabecelato, juntando a declaração de compromisso de honra e relação de bens, corrigida e completada.

18 - A relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, é como se o fizesse ab initio, nos termos do artº 1102º!

19 - Pois que, é perante tais elementos e a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, que os demais interessados são citados ou notificados (consoante já tenham ou não sido chamados aos autos) para deduzir a oposição que entendam efetuar.

20 - Pelas razões supra referidas, andou mal o Tribunal a quo quando entendeu indeferir o relacionamento dos bens cuja falta os aqui recorrentes acusaram, com fundamento de que os mesmos, na relação que apresentaram a 4-6-2024, foram omissos a tais verbas cuja falta de relacionação, acusam o cabeça de casal.

21 - Tendo os aqui Recorrentes atuado, aquando da reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, em consonância com a Lei e não em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, como a decisão em crise de forma errada lhes imputa!

22 – Acresce que, prevê o art.º 1114 do CPCiv que, até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.

23 - Tendo a douta decisão em crise indeferido a pretensão dos ali reclamantes, em virtude daqueles, alegadamente, na sua reclamação não terem indicado qualquer fundamento para a não aceitação do valor seu valor, nem carreado para os autos qualquer meio de prova nessa matéria.

24 – Contudo, os aqui Recorrentes alegaram as razões pelas quais não aceitavam o valor atribuído pelo cabeça de casal (correspondente ao valor nominal), quando pediram a avaliação da verba 3, constante da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, e correspondente a “Uma quota na sociedade por quotas “M..T.. & Filhos, Lda. ”, nuipc ..., com sede na Estrada 1, s/n, rés-do-châo, em Local ..., com o valor nominal de mil, duzentos e cinquenta euros €1250,00”.

25 - Assim, referiram em 43:- da reclamação apresentada que “ao que os Requerentes julgam saber, a sociedade é proprietária de diversos bens móveis (fornos, amassadoras, cortadoras, automóveis e outros) que cumpre avaliar para avaliar a participação da inventariada, a partilhar.”

26 - Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., dando provimento ao presente recurso e consequentemente anulando a decisão em crise, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA!

I.C.


Apenas a interessada FF veio apresentar contra-alegações, onde defendeu a manutenção da decisão recorrida.


I.D.


O recurso foi recebido pelo tribunal a quo, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.


Foi cumprido o contraditório quanto ao eventual conhecimento, pelo Tribunal de recurso, da questão da falta de relacionamento das rendas recebidas dos imóveis da herança na relação de bens, nos termos do artigo 665.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Pronunciaram-se os recorrentes (REFª: 53629507), a interessada FF (REFª: 53614312) e o cabeça-de-casal (REFª: 53603974).


Após os vistos, cumpre decidir.



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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


No caso, comportando a decisão recorrida vários segmentos, retira-se das conclusões apresentadas pelos recorrentes que apenas pretendem ver reapreciada, dir‑se‑ia que naturalmente, a parte em que ficaram vencidos. Assim, não fará parte do objecto do recurso a reapreciação da parte da decisão relativa “à relacionação das verbas n.º 15, 21, 24, 25 e 26, constantes da relação de bens de 2/09/2024”, já que a decisão quanto a elas (“devendo as mesmas ser relacionadas na relação de bens de 3/01/2025, numa rúbrica distinta, intitulada “E) Bens Imóveis Indivisos (que integram também a herança de EE)”, e renumerados como verbas n.º 22 a 26”) não foi impugnada.


Será, por isso, objecto do recurso saber-se se ocorreu eventual erro relativamente à decisão de julgar improcedente:

a. O requerimento para se proceder a avaliação da participação social;

b. O requerimento relativo à falta de relacionamento dos bens móveis, contas bancárias e rendas;



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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A Fundamentação de facto:


Vistos os autos pode retirar-se a seguinte factualidade relevante para a decisão:

1. Por requerimento de 11/04/2024, GG, AA e BB tinham vindo requerer que se proceda a inventário para partilha da herança aberta por óbito de EE (falecido a .../.../1986) e mulher CC (falecida a .../.../2023).

2. Aí identificaram os demais interessados (DD e FF) e identificaram para exercer o cargo de cabeça‑de‑casal DD.

3. De seguida foi proferido o despacho de 24/04/2024 (Referência: 33423397) com o seguinte teor: “Verificando-se que o requerimento inicial não cumpre o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1097.º ex vi artigo 1099.º, alínea c), ambos do NCPC, dado que é inteiramente omisso quanto à relação de bens do(a) inventariado(a), convido o(a) requerente, em dez dias, a aperfeiçoar o mesmo com as menções em falta, acompanhada das respectivas certidões do registo predial e/ou automóvel (se for o caso), sob pena de indeferimento liminar.

4. Por requerimento de 10/05/2024 (REFª: 48861612) os requerentes AA e BB vieram apresentar requerimento nos seguintes termos: “notificados que foram para o efeito, vêm, na medida do seu conhecimento atual, juntar aos autos, relação de bens, acompanhada de duas descrições do registo predial e uma certidão do registo comercial.

5. Foi, então, proferido o despacho de 14/05/2024 (Referência: 33463830) com o seguinte teor: “No prazo de dez dias deverão os requerentes esclarecer se os prédios cuja descrição predial não foi indicada se se encontram omissos no registo predial, caso em que, deverão reformular a relação de bens em conformidade. No mesmo prazo deverão juntar aos autos as cadernetas prediais de cada um dos prédios.

6. Por requerimento de 4/06/2024 (REFª: 49100164) vieram os requerentes AA e BB, em resposta a esse despacho, “vêm esclarecer que, ao que julgam saber, os prédios cuja descrição predial não foi indicada se encontram omissos no registo predial. Mais esclarecem que as cadernetas prediais de cada um dos prédios foram juntas com a PI (refª 2517803 de 15‑04‑2024) sob os documentos 10 a 25. Pedem a junção aos autos da relação de bens reformulada em conformidade.” Juntam nova relação de bens.

7. De seguida foi proferido o despacho de 7/06/2024 (Referência: 33524412) que: admitiu a requerida cumulação de inventários; nomeou como cabeça‑de‑casal DD; determinou a citação do cabeça‑de‑casal “nos termos e para os efeitos previstos no disposto dos artigos 1100.º, n.º 2, alínea b) e 1102.º, ambos do NCPC” e determinou a notificação dos requerentes “nos termos do n.º 3 do artigo 1100.º do NCPC”.

8. Após citação em 14/06//2024, veio DD, por requerimento de 2/09/2024 (REFª: 49734835), apresentar relação de bens e declaração de compromisso de honra. Disse pretender corrigir a relação de bens apresentada, por alguns imóveis estarem descritos no Registo Predial e, ainda, por faltarem imóveis (cinco novas).

9. Foi proferido, de seguida, o despacho de 19/09/2024 (Referência: 33724583) com o seguinte teor: “Aguardem os autos o decurso do prazo legal para a reclamação à relação de bens ora apresentada.

10. Vieram os requerentes AA e BB, por requerimento de 3/10/2024 (REFª: 50030658), dizer que o requerimento do cabeça‑de‑casal é extemporâneo, não pagou taxa de justiça e apresentaram reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça‑de‑casal. Alegaram, em suma, que:

i. o cabeça‑de‑casal quando completa a relação de bens, refere‑se a bens de EE, que não constavam da relação de bens apresentada pelos Requerentes, pois o mesmo não é inventariado nos presentes autos (já correram seus termos autos de inventário obrigatório por óbito de EE, com n.º ...6/8... da 2.ª secção do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre);

ii. o prédio relacionado pelo cabeça‑de‑casal como verba 23 foi adquirido em 2011, por usucapião e sem determinação de parte ou direito, pela inventariada CC e pelos filhos, DD, HH e FF, não podendo concluir-se que o mesmo pertença à massa hereditária da herança aberta por óbito de EE, mas outrossim à massa hereditária aberta por óbito da inventariada CC;

iii. os prédios das verbas 15, 21, 24, 25 e 26, estão inscritos, sem determinação de parte ou direito, em nome da inventariada CC e dos filhos, DD, HH e FF, por disso1ução da comunhão conjugal e sucessão, figurando como sujeito passivo EE, o que pode acontecer por não terem sido partilhados judicialmente nos autos n.º ...6/8... da 2.ª secção do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre e que importa esclarece; mas tais bens, respeitantes às verbas 15, 21, 23, 24, 25 e 26, devem manter-se na relação de bens a partilhar nos presentes autos por fazerem parte da herança indivisa aberta por óbito da inventariada CC;

iv. o cabeça‑de‑casal não relacionou os bens móveis que constituíam o recheio da casa de morada de família da falecida sita à Estrada 1, n.º 21, Local ..., Portalegre, estando em poder da interessada FF (mais requerendo que seja esta notificada para fornecer os elementos necessários à inclusão na relação de bens, nos termos do artigo 1101.º, n.º 1, CPC);

v. o cabeça‑de‑casal não relacionou a conta bancária de que a inventariada e a interessada FF, eram titulares junto do Banco Caixa Geral de Depósitos;

vi. o cabeça‑ de‑casal não relacionou ainda as rendas dos imóveis descritos nas verbas 9, 10 e 12, que por serem produto de bens da herança devem igualmente ser relacionados;

vii. não aceitam os valores dos bens relacionados pelo cabeça‑de‑casal como as verbas n.º 1, 2, 3, 6 a 26 e requerem a avaliação da verba 3 e que seja o cabeça‑de‑casal notificado para juntar as contas da sociedade, as demonstrações financeiras e o inventário classificado à data da morte dos avós dos requerentes.

11. Por requerimento de 17/10/2024 (REFª: 50189292) veio o cabeça‑de‑casal DD responder à reclamação à relação de bens nos seguintes termos: foi tempestiva a apresentação do seu requerimento anterior e, quanto à taxa de justiça, não tinha o cabeça‑de‑casal de a pagar por o seu requerimento não ter a natureza de contestação; quanto aos bens imóveis, pede a apensação aos presentes do processo referido pelos reclamantes; aceita que a inventariada CC residia com FF, mas não tendo conhecimento de quaisquer bens móveis, não se opõe à notificação desta para informar se existem e para os identificar para que possam ser relacionados; não tem conhecimento de dinheiro noutras contas bancárias, mas não se opõe à notificação do Banco de Portugal conforme requerido; é verdade que há imóveis arrendados, mas as rendas não são bens da herança, são rendimentos da herança que devem ser objecto de prestação de contas (e que o cabeça‑de‑casal já prestou); os valores das verbas 1 e 2 foram os dados pelos requerentes, os valores das verbas 6 a 26 são os previstos na lei e, quando à participação social, até ser fixado é o nominal que conta como base de licitação.

12. Por despacho de 21/10/2024 (Referência: 33827346), relativamente ao requerimento de 3/10/2024, decidiu-se, depois de se dizer que “A junção aos autos da relação de bens, por parte do cabeça de casal, não está sujeita ao pagamento de taxa de justiça, pois que não constitui uma contestação, antes se trata de uma obrigação legal do exercício do cabeçalato” e que “Em contraposição, o incidente de reclamação à relação de bens, deduzido pela requerente do inventário, está sujeito ao pagamento prévio de taxa de justiça, o que não ocorreu”, determinar a notificação dos reclamantes para, no prazo de 10 dias, comprovar o pagamento da taxa de justiça devida pela reclamação em apreço.

13. Paga a taxa de justiça, foi proferido despacho em 20/11/2024 (Referência: 33919317) que determinou o desentranhamento de uma PI apresentada em 15/04/2024 e determinou a requisição do referido processo n.º 6/82.

14. Foi, de seguida, proferido o despacho de 3/12/2024 (Referência: 33937926) que ordenou a apensação do aludido processo aos presentes autos e decidiu o seguinte: “julgo oficiosamente procedente, por provada, a excepção dilatória de caso julgado e, em consequência, ABSOLVO OS REQUERIDOS DA INSTÂNCIA, ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º n.º 2, 577.º, alínea i), 578.º, 580.º, 581.º e 591.º, n.º 1, alínea b), todos do NCPC, quanto aos bens pertencentes à herança aberta por óbito de EE, já partilhados no processo apenso”. Mais se decidiu o seguinte: “Considerando o teor do despacho que antecede, notifique o cabeça de casal para, no prazo de 15 dias, reformular a relação de bens apresentada, mediante a exclusão dos bens pertencentes à herança aberta por óbito de EE, já partilhados no processo apenso. Uma vez apresentada nos autos a nova relação de bens proceda-se à citação do(a/s) restante(s) interessado(s) directo(s) na partilha, nos termos dos artigos 1100.º, n.º 2, alínea a), in fine, e 1104.º, ambos do NCPC”.

15. Por requerimento de 3/01/2025 (REFª: 50901001) o cabeça‑de‑casal DD apresentou relação de bens com rectificação da verba 23 e eliminação das verbas 15, 21, 24, 25 e 26 (por lhe parecer que deve reabrir-se o inventário instaurado por morte de EE para, aí, serem relacionados esses bens).

16. E a interessada FF veio, por requerimento de 4/02/2025 (REFª: 51242527) juntar procuração forense a favor de Ilustre advogada.

17. De seguida, foi proferida a decisão recorrida que é do seguinte teor:

Da Reclamação à Relação de Bens:

Os Requerentes do inventário, AA e BB, vieram, a 3/10/2024, deduzir incidente de reclamação à relação de bens, apresentada, a 2/09/2024, pelo cabeça de casal, DD, o qual respondeu por intermédio do requerimento de 17/10/2024.

Por sentença de 3/12/2024, transitada em julgado, foi julgada oficiosamente procedente, por provada, a excepção dilatória de caso julgado e, em consequência, foram os requeridos absolvidos da instância quanto aos bens pertencentes à herança aberta por óbito de EE, já partilhados no processo apenso.

Ainda, e por intermédio do despacho de 3/12/2024, foi o cabeça de casal notificado para reformular a relação de bens apresentada, mediante a exclusão dos bens pertencentes à herança aberta por óbito de EE, já partilhados no processo apenso.

A 3/01/2025, o cabeça de casal apresentou nova relação de bens tendo procedido à exclusão das verbas n.º 15, 21, 24, 25 e 26, mantendo, na íntegra, as restantes verbas, as quais foram renumeradas.

Notificados dessa nova relação de bens, os reclamantes nada vieram dizer.

Cumpre decidir.

*

I - Bens imóveis

No que concerne aos bens imóveis os reclamantes vieram reclamar das verbas n.º 15, 21, 23, 24, 25 e 26, referindo que as mesmas pertencem à herança da inventariada.

Como prova requerem que o tribunal oficie à Conservatória do Registo Predial de Portalegre para juntar aos autos o documento que serviu de base aos respectivos registos.

Ora, e desde logo, refira-se que o ónus da prova pertence aos reclamantes (cfr. Artigos 5.º, n.º 1, e 1105.º, n.º 2, ambos do NCPC, e 342.º, n.º 1 do Código Civil), não lhes sendo lícito transferir esse ónus para o tribunal, de modo a poupar esforços e custos, quando não alegaram, e muito menos comprovaram, que a referida entidade se recusou a fornecer tais elementos, sendo assim tal requerimento improcedente.

Consequentemente, a decisão a proferir nessa matéria fundamentar‑se-á, apenas, nas certidões do registo predial juntas aos presentes autos, e o teor do apenso A.

Analisado o teor da relação de bens imóveis, de fls. 14, e 16-20 do processo de inventário apenso (cfr. Refª 34024010 e 34024035), verifica-se que apenas a verba n.º 23 foi descrita sob a verba n.º 14, e partilhada nesses autos.

Sendo que, de acordo com a acta da conferência de interessados realizada no processo de inventário apenso, constata‑se que tais bens foram, efectivamente, partilhados nesses autos do seguinte modo: “todas as verbas constantes da descrição foram adjudicadas à cabeça de casal e demais interessados, pelos valores da descrição, e na proporção das suas quotas.”, cabendo 5/8 à ora inventariada, conforme o respectivo mapa de partilha.

Recorde-se que o referido inventário foi aberto por óbito de EE, sendo a cabeça de casal, a ora inventariada, CC, e os 3 filhos, HH e mulher GG, DD (ora cabeça de casal) e FF, os quais, são também interessados neste inventário, à excepção de HH, pré-falecido à inventariada, que é representado pelos seus dois filhos, netos da inventariada, AA e BB, ora reclamantes.

Consequentemente, é evidente que, ao contrário do referido pelos reclamantes, a verba n.º 23 (actual verba 21) encontra-se correctamente relacionada na proporção de 5/8.

Já o mesmo não sucede quanto às verbas n.º 15, 21, 24, 25 e 26 que, pese embora, pertencessem, também, à herança de EE, não foram objecto de partilha no referido processo de inventário, permanecendo indivisas.

No requerimento de 3/01/2025, o cabeça de casal justificou a exclusão dos referidos bens da nova relação de bens, com o argumento de que têm que ser relacionados no apenso A, o qual, para tanto, deverá ser reaberto, ordenando-se a cumulação de inventários.

Não é essa, porém, a solução legal, na medida em que o artigo 1129.º do NCPC prescreve o seguinte: «1 - Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo.

2 - No inventário a que se proceda por óbito do cônjuge supérstite, são descritos e partilhados os bens omitidos no inventário do cônjuge predefunto, quando a omissão só venha a descobrir-se por ocasião daquele inventário.»

Efectivamente, uma vez que só agora se descobriu esta omissão é nestes autos, e não no apenso A, que tais bens deverão ser relacionados e objecto de partilha.

No entanto, tratando-se de bens que pertencem a duas heranças diferentes, não existindo coincidência de interessados, devido ao óbito de um dos herdeiros, deverão tais bens ser relacionados numa rúbrica distinta, e renumerados como verbas n.º 22 a 26.

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II - Falta de relacionação de bens e valores

Vieram, ainda, os reclamantes acusar a falta de relacionação dos bens móveis que constituíram o recheio da casa de morada de família, referindo que estão impedidos de os relacionar, por se encontrarem em poder da interessada FF, a qual requerem que seja notificada, nos termos do artigo 1101.º, n.º 1 do NCPC.

Do mesmo modo, acusam a falta de relacionação de uma conta bancária da CGD, de que a inventariada e a interessada FF eram titulares, referindo que não conseguem relacioná-la por não terem posse da mesma, requerendo que se oficie ao Banco de Portugal em conformidade.

Outrossim, acusam a falta de relacionação das rendas dos imóveis descritos nas verbas 9, 10 e 12, que por serem produto de bens da herança devem igualmente ser relacionados, requerendo que o cabeça de casal seja notificado para juntar aos autos os respetivos contratos de arrendamento, e os recibos respeitantes aos últimos 14 meses.

Vieram, ainda, os reclamantes referir que não aceitam os valores dos bens relacionados pelo cabeça de casal nas verbas n.º 1, 2, 3, 6 a 26, requerendo a avaliação da verba n.º 3, a qual não pode respeitar ao seu valor nominal, e a notificação do cabeça de casal para juntar aos autos “as contas da sociedade, e as demonstrações financeiras (balanço...) e inventário classificado, à data da morte de cada um dos avós dos Requerentes e bem assim do ano anterior (1979 e 2022)” - cfr. artigo 44º da reclamação.

Sucede que, compulsado o teor da relação de bens apresentada nos autos pelos ora reclamantes, enquanto requerentes do presente inventário, a 4/06/2024, a mesma é inteiramente omissa quanto a todos esses bens, cuja falta de relacionação, agora, acusam o cabeça de casal.

Tal como nada foi dito, pelos mesmos, no requerimento inicial, ou nos requerimentos subsequentes, quanto à impossibilidade da sua relacionação.

Do mesmo modo, os valores que o cabeça de casal indicou às verbas n.º 1, 2, 3, e 6 são, precisamente, os valores que constam da relação de bens apresentada nos autos pelos ora reclamantes.

Ora, o cabeça de casal foi notificado, nos termos do artigo 1102.º, n.º 1, alíneas a) e b), para, além do mais, confirmar, corrigir ou completar, de acordo com o estabelecido no artigo 1097.º, o que consta do requerimento inicial apresentado pelos requerentes, e apresentar ou completar a relação de bens nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º.

Como é evidente não é lícito aos reclamantes apresentar uma relação de bens no inventário, enquanto requerentes do mesmo, e depois, acusar o cabeça de casal de confirmar a mesma, nessa parte, sob pena de incorrerem em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, o qual é de conhecimento oficioso.

Com efeito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».

A propósito veja-se o teor do Acórdão do STJ de 20-12-2022 (Proc. 8281/17.4T8LSB.L1.S1), in dgsi.pt: «I - O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito; II - O tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os respectivos pressupostos legais.».

Para além do mais, refira-se que, ao contrário do que clamam os reclamantes, o artigo 1098.º, n.º 1, alínea b) do NCPC, é claro quando refere que o valor das participações sociais é o respetivo valor nominal.

Não tendo os reclamantes indicado qualquer fundamento para a não aceitação do valor da verba n.º 26, nem carreado para os autos qualquer meio de prova nessa matéria, falece, também, a reclamação nessa parte.

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III - Decisão

Termos em que, nos termos e com os fundamentos expostos, decide‑se julgar, parcialmente, procedente, por provada, a reclamação apresentada na parte respeitante à relacionação das verbas n.º 15, 21, 24, 25 e 26, constantes da relação de bens de 2/09/2024, devendo as mesmas ser relacionadas na relação de bens de 3/01/2025, numa rúbrica distinta, intitulada “E) Bens Imóveis Indivisos (que integram também a herança de EE)”, e renumerados como verbas n.º 22 a 26, indeferindo-se o demais peticionado.

Custas do incidente por ambas as partes, na proporção de 1/6 (um sexto) para o cabeça de casal, e de 5/6 (cinco sextos) para os reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, ao abrigo do disposto nos artigos 527.º, n.º 1 do NCPC, 7.º, n.º 4 e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.

Registe e notifique.

Após trânsito proceda-se à correcção da relação de bens de 3/01/2025, no processo, em lugar próprio, conforme determinado.

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III.B Fundamentação jurídica:


a) O novo modelo procedimental do inventário parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração. Como ensina Carlos Lopes do Rego [1], o inventário comporta as seguintes fases:

I. Uma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objeto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo;

II. Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (também ele agora antecipado para esta fase de saneamento, anterior à conferência de interessados), em que define as quotas ideais dos vários interessados na herança, antes de convocar a conferência de interessados;

III. Um procedimento específico (e eventual) para a verificação e redução de eventuais inoficiosidades, através de um incidente com a estrutura de uma acção enxertada no inventário (compreendendo a formulação pelo herdeiro legitimário de um pedido, explícito e fundamentado, de redução de liberalidades e o exercício subsequente do contraditório pelos requeridos/beneficiários das liberalidades alegadamente inoficiosas, culminando, após produção de prova, numa decisão que decreta ou rejeita a pretendida redução por inoficiosidade – incidente este que deve iniciar-se até ao momento do início das licitações);

IV. A fase da partilha, consubstanciada, desde logo, nas diligências e actos que integram a conferência de interessados, em que devem realizar-se todas as diligências que culminam na consumação ou realização concreta da partilha: frustrando-se o acordo (por unanimidade dos interessados, nos termos da lei civil e por exigência do princípio da intangibilidade da legítima), a partilha do acervo hereditário resultará das licitações (que pressupõem a necessária estabilização do valor dos bens, já que funciona como momento terminal para o pedido de avaliação precisamente o início das licitações), que estão compreendidas no âmbito dos actos que integram a própria conferência de interessados, devendo ser também nela deduzidas as oposições a um eventual excesso de licitação por algum dos herdeiros; e, subsidiariamente, terão cabimento as diligências da formação de lotes igualitários, do sorteio ou – como ultima ratio – da adjudicação de bens em contitularidade.


É no artigo 1110.º do Código de Processo Civil que está previsto o despacho de saneamento, a proferir após realização das diligências instrutórias.


Já a questão do valor dos bens é matéria que pode ficar em aberto nessa fase. A fixação definitiva ocorrerá na fase seguinte (ver artigo 1114.º do Código de Processo Civil) e, sobretudo, está dependente do resultado que for alcançado por via de acordo ou das licitações feitas (cf. artigo 1113.º do Código de Processo Civil).


No entanto, deve sublinhar-se o relevo que a definição do valor dos bens da herança assume para a realização dos objectivos da partilha (importando não esquecer que, na modalidade de inventário divisório, se procura uma justa e igualitária partilha do acervo hereditário). Por ser assim, como defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[2] a discussão em torno do valor dos bens pode ser impulsionada logo depois da citação dos interessados para o inventário, através da impugnação do valor atribuído pelo cabeça‑de‑casal; mas também nada obsta a que a avaliação seja requerida em momento anterior ao da conferência de interessados, designadamente para facilitar a composição consensual dos interesses na audiência prévia; em qualquer caso, a abertura das licitações constitui o termo final para a dedução do requerimento de avaliação de bens.


Por ser assim, até à abertura das licitações pode ser feito o requerimento para a avaliação dos bens, pelo que não pode manter-se o despacho que indefere o requerimento dos reclamantes para se avaliar o valor das participações sociais (até para que, por via do seu eventual trânsito em julgado, não se possa vir afirmar que estão os ora recorrentes impedidos de fazer novos requerimentos relacionados com a definição do valor dos bens a partilhar).


E, salvo o devido respeito, não abusa do seu direito o interessado que, indicando na relação de bens o valor nominal de uma participação social vem, depois disso, pretender que se avalie essa participação pelo seu valor real para que seja possível uma partilha igualitária e justa.


Deve, por isso, proceder o recurso nessa parte para, em suma, se determinar que o Tribunal a quo aprecie esse requerimento para avaliação da participação social que foi tempestivamente apresentado e que, como se viu, não mereceu oposição por parte de nenhum dos outros interessados.


B) O requerimento inicial do processo de inventário tem de cumprir uma série de requisitos, que variam consoante a qualidade que assuma quem se apresenta a tomar a iniciativa (cf. artigos 1097.º e 1099.º do Código de Processo Civil).


Quando, como foi o caso destes autos, ao impulsionador do processo não compete o exercício das funções de cabeça-de-casal, apenas tem de apresentar com o requerimento inicial as indicações constantes do artigo 1099.º do Código de Processo Civil. Deve indicar (juntando os documentos comprovativos dos factos alegados):

- o autor da herança (bem como o lugar da sua última residência habitual e data o lugar em que haja falecido);

- quem deve exercer o cargo de cabeça‑de‑casal;

- indicar, na medida do seu conhecimento, os interessados directos na partilha, os respetivos cônjuges e o regime de bens do casamento, os legatários e ainda, havendo herdeiros legitimários, os donatários.

Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[3], é mais moderado o ónus de alegação e de instrução a cargo do requerente que não exerça o cargo de cabeça-de-casal.


Decisivamente, o que se retira da conjugação dos artigos 1097.º, n.ºs 2 e 3, 1098.º[4] e 1102.º, n.º1, alínea b)[5], do Código de Processo Civil, é que cumpre ao cabeça‑de‑casal juntar a relação de bens: seja com o requerimento inicial (quando seja o seu autor) ou em prazo que lhe seja concedido para o efeito (qual não seja ele a apresentar o requerimento inicial)[6].


Assim, salvo o devido respeito, não só o despacho de 24/04/2024 não tinha cabimento (pois não era dever dos requerentes apresentarem a relação de bens, já que nenhum deles se intitulou cabeça‑de‑casal nem foi nomeado para esse cargo) como, na verdade e mais relevante neste momento, não constitui caso julgado formal (cf. artigos 620.º e 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), por se tratar de despacho de mero expediente (que se destinou simplesmente a prover andamento do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes).


Assim, ao contrário do que parece defender a interessada que contra‑alegou neste recurso, esse despacho não teve a virtualidade de transferir um dos mais importantes encargos legais do cabeça‑de‑casal (o de apresentar a relação de bens) para os requerentes do inventário (retirando-se, mesmo, dos despachos posteriores proferidos nos autos – como o de 21/10/2024 (Referência: 33827346) em que se alude à obrigação legal do cabeça‑de‑casal de juntar aos autos a relação de bens ou o despacho de 3/12/2024 (Referência: 33937926) que ordenou ao cabeça‑de‑casal a apresentação de nova relação de bens – precisamente o contrário).


Por ser assim, também esse despacho de 24/04/2024 não podia ter o efeito de inverter a ordem de apresentação das pretensões dos interessados. É que, de acordo com a tramitação legal do processo de inventário, só depois da apresentação da relação de bens (por quem tem o dever de a apresentar – o cabeça‑de‑casal) se pode abrir a fase da oposição, designadamente a fase em que os interessados podem reclamar contra a relação de bens (cf. artigo 1104.º do Código de Processo Civil).


Por outras palavras, não podiam os requerentes, por terem sido forçados a apresentar primeiro a sua versão quanto à existência de bens a partilhar, ficar impedidos de reclamar perante a relação de bens apresentada pelo cabeça‑de‑casal – salvaguardadas as devidas distâncias, seria o mesmo que forçar o réu a apresentar a sua defesa antes de ser apresentada a petição inicial pelo autor para, depois, o impedir de se defender da pretensão apresentada posteriormente.


Só após a apresentação da relação de bens (de cada nova relação de bens, com inclusão de novos bens) é que os restantes interessados podem reclamar e se pode falar do seu ónus de apresentação da oposição e do eventual efeito cominatório da falta desta (cf. artigos 574.º, n.º 1 e 2 e 1105.º, do Código de Processo Civil)[7].


Assim, o requerimento dos requerentes/apelantes de 3/10/2024 (REFª: 50030658) não pode ser desatendido quando estes visaram apresentar aquilo que tinham o direito (e o ónus) de fazer nesse momento: uma reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça‑de‑casal e para evitarem o efeito cominatório da falta da sua apresentação. E o exercício desse direito não pode ser visto como tendo excedido os seus limites ou como uma quebra inadmissível de uma situação de confiança, já que os demais interessados, designadamente o cabeça‑de‑casal, não podiam esperar fundadamente que a relação de bens apresentada não seria objecto de reclamação. Não se vislumbra, por isso, qualquer abuso de direito (cf. artigo 334.º do Código Civil)[8] por parte dos requerentes.


Assim, também nesta parte, merece provimento o recurso e deve ser o despacho recorrido revogado na parte em que se indeferiu a reclamação dos requerentes quanto à falta de relacionamento de bens móveis e conta bancária.


C) Se em relação ao valor da participação social e à falta de relacionamento de bens móveis e contas bancárias nada mais haverá a decidir pelo Tribunal de recurso, já que a apreciação de fundo dessas questões está dependente da realização de diligências probatórias que devem ser ordenadas pelo Tribunal de Primeira Instância, a questão da falta de relacionamento das rendas recebidas dos imóveis da herança pode ser conhecida de imediato (sendo que já foi cumprido o contraditório) nos termos do artigo 665.º, n,º 2, do Código de Processo Civil.


Tendo presente o disposto nos artigos 2024.º, 2025.º e 2031.º do Código Civil, no inventário mortis causa o acervo hereditário corresponde ao conjunto de bens da respectiva herança no momento da morte do de cujus, os sub-rogados no lugar deles, o preço dos alienados e os adquiridos com dinheiro e valores da herança.


Assim, a relação de bens que deve constar dos autos de inventário (cf. 1098.º do Código de Processo Civil) deverá integrar: no que concerne ao activo, os direitos patrimoniais do autor da herança e, no que concerne ao passivo, as obrigações do mesmo que não meramente pessoais, ou exceptuadas por lei, sendo que a titularidade de tais direitos e obrigações tem de ser determinada com referência à data da abertura da sucessão (a data da morte)[9].


É verdade que a herança é integrada pelas situações jurídicas que se encontravam na titularidade do de cujus no momento da sua morte e que se não extingam por efeito do decesso e que ainda integram a herança, para além dos bens deixados pelo falecido, os frutos percebidos até à partilha (artigo 2069.º, alínea d), do Código Civil), ou seja, o produto da frutificação posterior à morte de cujus dos primeiros dos mencionados bens.


Farão parte da herança, por isso, entre muitos outros exemplos, as rendas dos imóveis, os juros das contas bancárias e demais aplicações financeiras, os lucros distribuídos por via de titularidade de participações sociais.


Mas o rendimento produzido pelos bens da herança entre a sua abertura e a partilha não é relacionado no inventário, podendo ser afectado aos encargos da administração da herança pelo cabeça‑de‑casal e por este contabilizado a fim de proceder anualmente à prestação de contas (artigos 2092.º e 2093.º, n.º 1, do Código Civil e, eventualmente, 947.º do Código de Processo Civil)[10].


Assim, não podendo ser incluídas na relação de bens as rendas dos imóveis que forem sendo recebidas até à partilha, improcede a reclamação nesse ponto e, consequentemente, improcede o recurso dos apelantes nessa parte, antes se devendo manter a decisão de improcedência (embora por fundamento distinto) do Tribunal a quo quanto à inclusão desses valores da relação de bens.


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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo dos apelantes e da interessada que contra-alegou, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, em função do respectivo decaimento que se deve fixar em 1/3 para os primeiros e 2/3 para a segunda.


***


IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em conformidade:

a. Julga-se improcedente o recurso e confirma-se, por fundamento distinto, o despacho recorrido na parte relativa à falta de relacionamento das rendas recebidas dos imóveis da herança;

b. Julga-se procedente o recurso e revoga-se o despacho na parte relativa à avaliação da participação social e à falta de relacionamento de bens móveis e conta bancária, determinando-se que os autos prossigam, na Primeira Instância, os seus termos com as diligências probatórias necessárias ao seu conhecimento.


Condenam-se apelantes e apelada nas custas do recurso, fixando-se o decaimento em 1/3 para os primeiros e 2/3 para a segunda.


Notifique.



Évora, 30/10/2025


Filipe Aveiro Marques


Sónia Kietzmann Lopes


Maria Adelaide Domingos

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1. “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, acessível em https://julgar.pt/a-recapitulacao-do-inventario/, págs. 9 e ss.↩︎

2. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, inCódigo de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 595.↩︎

3. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 562.↩︎

4. Sendo de notar que parece pacífico que existe um claro lapso, já que a remissão que o n.º 1, do artigo 1098.º faz é para a alínea c) do n.º 3 do artigo 1097.º e não para o n.º 2 desse artigo.↩︎

5. Também na alínea b), do n.º 1 do artigo 1102.º, existe um lapso, em que a remissão é para a alínea c) do n.º 3, do artigo 1097.º e não para o n.º 2 desse artigo.↩︎

6. Neste sentido António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 554.↩︎

7. Pode consultar-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/01/2025, processo n.º 454/22.4T8PNI-A.C1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/c081d4377e4f13e280258c360032141e.↩︎

8. Como ensina Menezes Cordeiro, “a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim: 1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; 3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.”, in “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2005, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/.↩︎

9. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/12/2021, processo n.º 2435/20.3T8OER.L1-7, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/736b503d8abad8e5802587c1004b9f67.↩︎

10. Ver, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/03/2004, processo n.º 04B1080, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e9a092275881109980256e830048d294.↩︎