Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ANTÓNIO MARQUES DA SILVA | ||
| Descritores: | RECONSTITUIÇÃO NATURAL INDEMNIZAÇÃO DANOS NÃO PATRIMONIAIS RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- independentemente da forma como se compreenda o primado da reconstituição natural, ficando demonstrado que a reparação dos bens é viável, e opondo-se o devedor/lesante ao pagamento de indemnização em dinheiro, não pode o credor/lesado reclamar o pagamento de indemnização em dinheiro. - sendo compensáveis os danos não patrimoniais em sede contratual, a atribuição de indemnização por eles depende de estes revestirem a especial gravidade que justifica a sua tutela, o que não ocorre quando apenas se apura que o lesado sentiu transtorno, desconforto e nervosismo, sem qualquer outro elemento, mormente contextualizador. | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. 1258/24.5T8LLE
Acordam no Tribunal da Relação de Évora I. AA intentou a presente acção contra New Concept International Unipessoal, Lda., formulando os seguintes pedidos: a) Seja decretada a resolução do contrato de prestação de serviços e incumprimento contratual por causa imputável única e exclusivamente à ré; b) Mais se requer seja a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos, que nunca deverá ser inferior a € 10.000,00 (dez mil euros) e não patrimoniais que nunca deverá ser inferior a € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescido dos respectivos juros legais vencidos e vincendos até integral pagamento. Alegou, no essencial, que: - em 8.10.2021 contratou os serviços da R. para esta proceder à remoção e transporte dos seus bens da sua habitação para as instalações daquela, onde ficariam armazenados mediante remuneração. - ocorreu um problema com o contentor onde se encontravam armazenados alguns bens, tendo ficado danificados um sofá, um candeeiro de pé, um colchão de cama, um aparador feito à medida de televisor; e um móvel feito à medida, com cinco portas. - as peças ficaram com mossas e peças partidas, sendo que o candeeiro ficou amolgado e o sofá inutilizável, com os apoios dos braços partidos. - não é possível a sua reparação, pelo que pretende indemnização pela perda em valor não inferior a 10.000 euros. - ficou desapossada dos bens, e não tem meios para adquirir nova mobília para a sua habitação, sendo que esta situação causou um grande desconforto e desgaste emocional, reclamando, por danos não patrimoniais, 3.500 euros. A R. contestou, impugnando a versão da A., tendo, em particular, invocado que: - os bens danificados foram totalmente reparados por si, com anuência da A., que não os foi, contudo, levantar. - deve ser «considerada inepta a petição inicial por não se verificar a existência de indemnizar a A., atendo na recuperação dos móveis daquela». Realizou-se a audiência prévia, na qual se efectivou o saneamento da causa, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova Após actos instrutórios, realizou-se a audiência de julgamento, tendo depois sido proferida sentença com o seguinte dispositivo: A) Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 2.094,00€ (dois mil e noventa e quatro euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal para juros civis, vencidos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; B) Condeno a Ré: i) a reparar o braço do sofá de forma a que deixe de apresentar folga; ii) a substituir o interior e as laterais das gavetas do aparador de televisor por material idêntico ao que tinham antes da reparação já efectuada; iii) a reparar o risco existente na pintura da parte traseira do móvel cor de laranja. C) Absolvo a Ré do demais peticionado. Desta decisão interpôs a A. recurso, formulando as seguintes conclusões: I. O presente recurso visa impugnar a douta sentença que, salvo o devido respeito, enferma de erro de julgamento na apreciação da prova, bem como na aplicação do direito aos factos, mormente quanto à reparabilidade dos bens, à fixação da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, e à valoração da prova produzida em audiência de julgamento. II. O tribunal a quo reconheceu a ocorrência do acidente causado pela Recorrida, bem como a existência de danos nos bens da recorrente, incluindo bens essenciais ao conforto e vida quotidiana, como o colchão, o sofá, o aparador de TV e o móvel laranja, de elevado valor económico e estético. III. A tentativa de reconstituição natural levada a cabo pela Recorrida foi rejeitada pela recorrente de forma clara, fundamentada e reiterada, tendo esta demonstrado que as reparações efetuadas não devolviam aos bens a qualidade, funcionalidade e aparência originais, revelando-se insuficientes e ineficazes. IV. A Recorrida substituiu elementos originais por materiais distintos, alterando o carácter dos bens, em clara afronta ao princípio da reposição natural previsto no artigo 562.º do Código Civil. V. As declarações prestadas em julgamento pela recorrente demonstram, com clareza e verosimilhança, o impacto real e direto que os danos causaram na sua vida quotidiana, quer ao nível patrimonial, quer ao nível emocional e psicológico. VI. O valor dos bens foi corretamente estimado e apresentado pela recorrente com base na sua experiência profissional, no conhecimento dos materiais e das marcas em causa, e sustentado por orçamento junto aos autos, não tendo a Recorrida logrado fazer prova em sentido contrário. VII. O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao valorizar seletivamente o orçamento apresentado – aceitando-o no que toca ao colchão e desconsiderando-o quanto aos restantes bens – sem qualquer fundamentação técnica ou legal que justifique essa diferenciação. VIII. Destarte, percorrendo o iter factual, quanto ao ponto 9) dos factos dado como provados, deverá ser alterado no sentido de que “A Ré tentou proceder à reparação do sofá, do aparador e do móvel cor de laranja, tendo despendido o montante de € 3.456,30 (três mil, quatrocentos e cinquenta e seis euros e trinta cêntimos)”. IX. O ponto 10) dos factos dado como provados deverá ser alterado no sentido de que “A Ré comunicou à Autora, por mensagem electrónica de 29.06.2023, que os móveis e o sofá já se encontravam reparados, no seu entender, e que iria proceder à sua entrega, tendo a Autora se recusado a recebê-los, por entender que não se encontravam devidamente reparados, porquanto não é possível a sua reparação.” X. Já o ponto 12) dos factos dado como provados deverá ser modificado no sentido de que “O móvel cor de laranja não se encontra reparado, apresentando ainda um risco na pintura com cerca de 2 cm na parte traseira.” XI. O ponto 13 dos factos dado como provados (“o aparador de televisor foi reparado com material e cor castanho escuro idênticos ao original, com excepção o interior das gavetas, que foi pintado em cinzento, e as laterais das mesmas, em que foi substituída a madeira por metal”), terá de ser alterado, porquanto o material não é idêntico e a reconstituição natural não cobre substituição de peças “idênticas”, XII. O ponto 18 dos factos provados reconhece expressamente a existência de dano moral – transtorno, desconforto e nervosismo – sofrido pela recorrente em resultado direto da atuação da Recorrida. XIII. Havendo perda dos bens e não sendo possível a sua reparação, a recorrida deverá ser indemnizada nos termos peticionados, pelo que deverá serem dados como não provados os pontos 11 e 12, 13 e 15, no sentido de que os bens em causa não são passíveis de reparação. XIV. A jurisprudência dominante e a doutrina reconhecem que o sofrimento emocional e o impacto na vida pessoal causados pela privação de bens essenciais são indemnizáveis. XV. A decisão recorrida desconsidera injustificadamente este reconhecimento expresso e afasta a compensação por danos não patrimoniais, em violação do princípio da tutela dos direitos de personalidade. XVI. O valor peticionado a título de danos morais – € 3.500,00 – é moderado, proporcional e ajustado à gravidade do dano, sendo adequado à função compensatória e sancionatória da indemnização por danos não patrimoniais. XVII. Deverá, pois, ser reconhecido o direito da Recorrente à indemnização integral pelos danos patrimoniais sofridos, bem como à compensação pelos danos não patrimoniais reconhecidos nos autos. XVIII. Os pontos da matéria de facto devem ser alterados nos termos requeridos, sendo eliminadas ou modificadas as referências que sustentam a alegada eficácia da reparação, por inexistirem provas concludentes nesse sentido. XIX. O valor da indemnização deve refletir o prejuízo real e concreto da recorrente, considerando o valor de aquisição, a impossibilidade de substituição por bens equivalentes e a desvalorização resultante das reparações defeituosas. XX. O sofrimento da recorrente, obrigando-se a utilizar durante meses um colchão rasgado, com perda de sustentação, é demonstrativo da gravidade dos danos causados, cuja repercussão ultrapassa em muito o mero incómodo e representa uma verdadeira violação do direito à integridade física e ao repouso. XXI. A impossibilidade de reparação integral dos bens, especialmente os de marca, como os Poliforme, torna ineficaz qualquer tentativa de reconstituição natural, reforçando a necessidade de indemnização pecuniária. XXII. A frustração das legítimas expectativas da recorrente, associada à perda de confiança contratual e à não reposição da situação anterior, são suscetíveis de abalar a segurança jurídica e a boa-fé contratual, o que fundamenta ainda mais o direito à compensação moral. XXIII. O comportamento da Recorrida, além de negligente, foi desprovido de diligência e zelo contratuais, ignorando as objeções da recorrente e promovendo soluções parciais, esteticamente dissonantes e materialmente inferiores. A R. não respondeu. II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa». Assim, importa avaliar: - a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (incluindo a sua admissibilidade). - o direito à indemnização substitutiva dos bens danificados. - o direito à indemnização por danos não patrimoniais. III.1. A recorrente começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Essa impugnação sujeita-se às regras decorrentes do art. 640º do CPC, do qual decorre que o recorrente deve especificar: i. os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (art. 640º n.º1 al. a) do CPC), ii. os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640º n.º1 al. b) do CPC), iii. a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640º n.º1 al. c) do CPC), iv. a estar em causa prova gravada, deve indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (art. 640º n.º2 al. a) do CPC). 2. Tem sido entendido (de forma claramente dominante na jurisprudência [1]) que não cabe despacho de aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto em sede de recurso [2], com razões que se julgam fundadas, assentes: na sequência das intervenções legislativas, em sentido agregador de maior exigência; na letra da norma em causa, que inculca uma sanção imediata (art. 640º n.º1 in fine e, em particular, n.º2 al. a) do CPC); na contraposição sistemática e material face ao art. 639º n.º3 e ao art. 652º n.º1 al. a) do CPC, confirmando a referida asserção literal (quanto à imediata rejeição) derivada do art. 640º e indiciando quer o carácter específico (especial) do regime do art. 640º em causa, quer a existência de razões que distinguem aqueles regimes e explicam a diferença entre eles; razões estas ligadas ao tipo de recurso, no qual o tribunal ad quem intervém após a produção da prova e sobre questões factuais específicas (sem reavaliação de toda a prova produzida nem de toda a prova produzida), exigindo-se, por razões de coerência, inteligibilidade, funcionalidade e também derivadas da sujeição do recurso ao dispositivo e ao contraditório, que a intervenção do tribunal de recurso esteja devidamente balizada (condição da possibilidade da devida discussão), obviando do mesmo passo a recursos infundados, assentes em meras considerações gerais (derivando de razões de economia mas também, com o demais, sublinhando a auto-responsabilidade das partes) – assim, a exigência legal é condição da fixação precisa do objecto da impugnação, da sua inteligibilidade e da seriedade da impugnação, condições sem as quais o recurso não merece ser aproveitado; a própria concessão do prazo adicional de 10 dias para recorrer tempera o rigor da exigência, quanto à al. a) do n.º2 do art. 640º, mas tende também a justificar a dispensa legal do aperfeiçoamento (pois a parte teve tempo adicional para cumprir, e cumprir bem). Nesta medida, verificado fundamento de rejeição, não cabe qualquer medida paliativa prévia mas apenas operar o efeito legal. 3. Quanto aos termos da impugnação, admite-se dever valer, na sua avaliação e como sustentado pelo STJ, «um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade». Não obstante, esta funcionalização material não serve para permitir ao recorrente desconsiderar os ónus legais, mantendo-se a exigência de cumprimento do conteúdo essencial das imposições legais 4. No que respeita ao assento formal destas obrigações, entende-se que o requisito imposto pela al. a) do n.º1 do art. 640º deve estar enunciado quer na motivação quer nas conclusões (nestas porque a indicação nessa sede se mostra essencial à definição do objecto do recurso, que, salvo as situações de oficiosidade, só poderá incidir sobre os pontos factuais impugnados), admitindo-se que os demais devem estar expressos nas alegações mas não têm que ter tradução, sucinta que seja, nas conclusões - valendo agora, quanto à indicação do sentido da decisão pretendido (al. c) do n.º1 do art. 640º), o AUJ 12/2023, segundo o qual «o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações». 5. A esta luz se deve avaliar a impugnação realizada. Assim: - impugnação do facto 9. Este facto tem a seguinte redacção: A Ré procedeu à reparação do sofá, do aparador e do móvel cor de laranja, tendo despendido o montante de 3.456,30€. A recorrente pretende que se substitua a menção a que a R. reparou certos móveis pela menção a que tentou reparar esses móveis. Em termos prejudiciais, e assim independentemente do preenchimento dos requisitos legais da impugnação, verifica-se que a substituição se não mostra curial nem necessária. Não se mostra curial porquanto torna ambígua a descrição factual, já que a menção à tentativa induz a ideia de actividade incompleta, não acabada, o que não é o caso. Mesmo na perspectiva da recorrente, a incompletude não corresponde a característica da actividade, mas à insuficiência do resultado. Assim, a menção à tentativa não corresponde realmente a uma caracterização da actividade desenvolvida, mas a um juízo de valor ou qualificativo do resultado de tal actividade, por esta não ter tido sucesso (ou integral sucesso). Não devia, assim, ser admitida. Mas a alteração também não se mostra necessária pois a insuficiência da reparação deriva de outros factos provados (onde se indicam as insuficiências da reparação) - factos que a recorrente também impugna para ampliar aquelas insuficiências. E serão estas insuficiências que permitirão formular a conclusão de que a reparação foi cabal ou não (sendo então, neste segundo caso, um empreendimento insuficiente). - impugnação do facto 10. Este facto tem a seguinte redacção: A Ré comunicou à Autora, por mensagem electrónica de 29.06.2023, que os móveis e o sofá já se encontravam reparados e que iria proceder à sua entrega, tendo a Autora se recusado a recebê-los. Da sua redacção se vê que a primeira parte da descrição (a maior parte do facto descrito) respeita a comunicação realizada pela R.. A segunda parte, ou parte final, respeita à resposta da recorrente. A recorrente pretende, de um lado, que na primeira parte do facto, atinente à comunicação, se adite a menção «no seu entender». É evidente que tal menção não faz parte do conteúdo nem do sentido da comunicação (junta ao processo). A recorrente pretende introduzir no facto uma sua interpretação da realidade, não contemplada na comunicação. E que até contraria a posição do autor da comunicação, que manifestamente considera feita a reparação, não apenas na sua perspectiva, mas numa perspectiva geral ou integral. Já saber se essa perspectiva é correcta ou não é questão diferente, que não se resolve com a adulteração do teor e sentido da comunicação. A alteração é inadmissível. Quanto à parte final do facto em causa, este expressa apenas a recusa de recebimento dos bens após a reparação, quando foi ensaiada a sua entrega. A recorrente pretende que se aditem as razões da sua recusa. Consegue ainda apreender-se que suporta a pretensão essencialmente nas suas declarações/depoimento de parte. Sucede que inexiste qualquer meio de prova que ateste que razões indicou, se é que indicou algumas, para recusar essa entrega, após a reparação. Com efeito, a recorrente, nas suas declarações/depoimento de parte, não se reportou a esta recusa específica, falando apenas em termos gerais sobre o motivo por que não aceitaria reparações: por que os bens nunca ficam em condições. Poder-se-ia retirar daqui que seria essa, também, a razão para aquela específica recusa. Sucede que tal generalização é contrariada pelo teor das mensagens trocadas com representante da recorrida, das quais decorre que existiu abertura da sua parte para a reparação, salvo quanto ao sofá, cuja reparação recusou. Deste modo, não se pode afirmar com rigor que a razão da recusa é aquela que a recorrente sustenta. Além de, em rigor, o aditamento ser inconsequente (e assim inútil, o que, em rigor, até impediria a avaliação da impugnação [3]) pois nenhum efeito foi atribuído à descrita recusa na sentença recorrida, nem tal se discute no recurso. Não colhe, pois, esta impugnação. - impugnação do facto 12. Este facto tem a seguinte redacção: O móvel cor de laranja encontra-se integralmente reparado e pintado de forma uniforme, sem apresentar qualquer mossa ou peça partida, salvo um risco na pintura com cerca de 2 cm na parte traseira. A recorrente pretende que passe a ter a seguinte redacção: O móvel cor de laranja não se encontra reparado, apresentando ainda um risco na pintura com cerca de 2 cm na parte traseira. A alteração envolve: i. a substituição da menção a que está reparado pela menção a que não está reparado. ii. a eliminação da menção a que está pintado de forma homogénea, sem apresentar qualquer mossa ou peça partida. A recorrente invoca as suas declarações/depoimento para sustentar a sua pretensão. Quanto à segunda alteração referida, nada se colhe das suas declarações/depoimento, ou de outro meio de prova, que justifique a exclusão: em momento algum a asserção factual em causa, derivada da inspecção judicial realizada (v. o respectivo auto), é contrariada por outro meio de prova. Quanto à primeira alteração, é a própria recorrente quem, nas suas declarações/depoimento, admite aceitar o móvel em causa, após a reparação, o que equivale a aceitar a existência de uma reparação suficientemente idónea - afirmando que espera que com o tempo o tom das cores se adeqúe [4]. Deste ponto de vista, a sua pretensão não pode ser acolhida, acabando por redundar quase numa conduta contraditória. Sem embargo, admite-se que a redacção factual admite acertos. Pois a reparação não pode ser tida por integral (isto é, total, completa, sem falha) se persiste um risco. Existe assim uma pequena contradição que deve ser resolvida pela prevalência da menção ao risco, constante do auto de inspecção realizada. E que justifica desta forma que, no quadro do art. 662º n.º2 al. c) do CPC [5],seja eliminado o advérbio usado (aliás, o uso de advérbios de modo e adjectivos na descrição factual deve ser rodeada de especais cuidados pois, em regra, envolvem um juízo de valor não propriamente factual que pode contaminar a descrição factual). - impugnação do facto 13. O facto tem a seguinte redacção: O aparador de televisor foi reparado com material e cor castanho escuro idênticos ao original, com excepção o interior das gavetas, que foi pintado em cinzento, e as laterais das mesmas, em que foi substituída a madeira por metal. A recorrente pretende que passe a ter a seguinte redacção: Não é possível a reparação do aparador de televisor, porquanto o mesmo é constituído por peças novas, excepto a divisória interior que separa as gavetas – única peça original – sendo que o interior das gavetas e as laterais das mesmas, foi substituída a madeira por metal, não sendo assim possível a sua reparação. A recorrente sustenta a pretensão em declarações de funcionário da recorrida que se encontraria presente na inspecção ao local. Tal elemento é inaproveitável porque não consta do processo: as declarações invocadas não constam do auto de inspecção, desconhecendo-se o seu teor, nem são atribuídas a qualquer testemunha, ignorando-se quem as prestou, a que título e sob que condições. Invoca depois as suas próprias declarações, sendo estas, em rigor, o único meio de prova relevante. Sucede que, nessa parte, a recorrente não indica o momento das suas declarações que seria relevante, o que contraria o disposto no art. 640º n.º2 al. a) do CPC, e assim justifica a rejeição da impugnação - aliás, até sugere que seriam declarações prestadas durante a inspecção realizada, as quais não constam do processo (sendo assim irrelevantes). Notando-se que não é caso de aproveitamento das transcrições anteriormente efectuadas porque foram integradas em outra impugnação (factos 9, 10 e 12) e não cabe ao tribunal avaliar se tais transcrições, e em que momento, também relevam nesta nova, e autónoma, impugnação (embora também se note que nelas se não encontra directo apoio para o facto com a redacção - em parte conclusiva - que propõe). - impugnação dos factos descritos em 14 e 15 dos factos provados e nas al. c) e e) dos factos não provados. A pretensão tem que ser rejeitada porquanto: i. nenhum meio de prova concreto que sustente a alteração é invocado, o que contraria o disposto no art. 640º n.º1 al. b) do CPC. A alegação sugere que a alteração seria meio efeito da alteração do facto 13, ou dos meios de prova que justificariam a alteração do facto 13. Ainda que se aceitasse o relevo desta sugestão, nada se alterava. Pois, recusada a alteação do facto 13, não pode essa alteração servir de suporte a outras modificações. E inexistindo, como se viu, a indicação de meios de prova relevantes quanto ao facto 13, também não existiriam para estes factos agora impugnados. ii. no que toca ao facto 14 e às al. c) e e) dos factos não provados, as conclusões não lhes fazem qualquer menção, como deveriam fazer, pelo que também por isso deveria ser rejeitada, nesta parte, a impugnação (em rigor, estes factos acabaram por não ser integrados no objecto da impugnação/recurso). - impugnação dos factos descritos em 11, 12, 13 e 15 (contida exclusivamente no art. 43 das alegações). A impugnação vem repetida quanto aos factos 13 e 15, já anteriormente impugnados. Os próprios termos da impugnação são ambíguos, não sendo claro o que se pretende quando se afirma que «deverá serem dados como não provados os pontos 11 e 12, 13 e 15, no sentido de que os bens em causa não são passíveis de reparação». Como quer que seja, a pretensão tem que ser rejeitada porquanto: i. não vem indicada qual a formulação dos factos pretendida (art. 640º n.º1 al. c) do CPC), já que parece seguro que a recorrente não pretende que os factos sejam pura e simplesmente tidos por não provado - e uma vez que pretende que eles traduzam outra realidade, a de que os bens não são reparáveis (de harmonia, aliás, com a anterior impugnação dos factos 13 e 15 e a formulação que nessa anterior impugnação lhes atribuiu). ii. nenhum meio de prova é indicado para sustentar a impugnação, em contravenção ao disposto no referido art. 640º n.º1 al. b) do CPC. Aliás, nos momentos anteriores a esta impugnação nada é dito sobre a matéria em causa naqueles factos, discutindo a recorrente o valor dos bens (art. 42 e anteriores das alegações). 6. Aparentemente ainda a propósito da impugnação de facto, a recorrente, nos art. 19, 20, 21 e 39 das alegações, expõe uma série de asserções, de natureza diversa, que afirma que se deveriam dar por provadas, ou por não provadas. art. 19: Nestes termos, deve considerar-se provado que a recorrida recusou formalmente a reconstituição natural, que a reparação foi realizada unilateralmente, que a reconstituição natural não foi procedente, a Recorrida não apresentou alternativa justa nem demonstrou a equivalência funcional e económica dos bens reparados. art. 20: Destarte, está preenchido o critério de subsidiariedade da indemnização pecuniária nos termos legais, pelo que deverá dar-se como provado que a recorrente recusou a reconstituição natural por considerar que não restabeleceria o estado original dos bens, que a reparação realizada não restituiu o valor funcional, material ou estético dos bens, que a aceitação do colchão danificado foi condicionada por absoluta necessidade de uso e não representa aceitação da sua reparação, que não foi possível a reconstituição natural plena dos bens, pelo que a indemnização pecuniária é devida. art. 21: Bem como o tribunal a quo deverá dar como não provado que os bens se encontram em estado equiparado ao original, que a recorrente aceitou validamente a solução da Recorrida, que a reparação foi eficaz, e que a Recorrida procedeu à reposição do valor dos bens, nos planos material e funcional. art. 39: Conclui-se, assim, que deve ser dado como provado que os bens da recorrente tinham um valor global de aquisição na ordem dos € 10.000,00 /dez mil euros) e nunca inferior, e de acordo com o aposto no orçamento, que não foi possível restabelecer o seu valor, função e aparência originais, que a Recorrida não apresentou alternativa válida nem reparação eficaz, e que, consequentemente, se encontra preenchido o requisito legal da indemnização em dinheiro nos termos do art. 566.º, n.º 2, do Código Civil. Pese embora a recorrente se reporte a que devam ser dados como provados ou não provados certos dados, é patente que não está em causa verdadeira impugnação factual, mas apenas alegação valorativa genérica, na qual a recorrente mistura dados de facto com juízos de valor e dados normativos. De qualquer modo, e a querer ver-se aqui uma verdadeira impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ela deveria ser rejeitada porquanto: i. não consta das conclusões qualquer menção que represente a indicação destes «factos». ii. não vem indicado qualquer meio de prova concreto que suporte a asserções (art. 640º n.º1 al. b) do CPC). iii. as menções em causa não correspondem em rigor à decisão a proferir sobre os factos (que supõem uma indicação clara do facto a dar como provado ou não provado) - art. 640º n.º1 al. c) do CPC. 7. Nota-se, por fim, que em vários momentos da impugnação a recorrente pretende que se faça menção nos factos provados a que a reparação não é possível. Trata-se de afirmação que se julga não poder ser levada ao elenco de factos provados Pese embora a flexibilização, correcta, da distinção entre facto e direito, aquela afirmação constitui um juízo valorativo (e que pode envolver elementos normativos) que depende de circunstâncias factuais concretas: seriam estas a descrever, e não aquela afirmação valorativa. Mas, como se viu, a impugnação realizada não é concludente, pelas razões expostas, impedindo o aproveitamento das concretas circunstâncias factuais relevantes que eventualmente existissem. IV. Assim, os factos relevantes têm a seguinte redacção [6]: 1) A Ré tem como objecto, entre outros, o transporte de mudanças e armazenagem de recheio de casas ou escritórios. 2) A Autora e a Ré celebraram um acordo, por escrito particular, datado de 08.10.2021, por via do qual a segunda, no exercício da sua actividade comercial, se obrigou a proceder à remoção e ao transporte de bens e materiais que se encontravam na habitação da Autora para as suas instalações e ao respectivo armazenamento até ordem em contrário, mediante o pagamento mensal de 290,00€ por parte da Autora 3) No mês de Fevereiro de 2023, o contentor onde a Ré tinha colocado os móveis e que se encontrava nas suas instalações caiu. 4) Como consequência da queda do contentor, referido em 3), ficaram danificados: a) Um sofá – Easy Living – tecido categoria A Siena, largura 235 cm, de 2 lugares. b) Um candeeiro de pé - Gervasoni. c) Um colchão de cama, com 180/200cm, Bio Elegance, 100% latex. d) Um aparador de televisor, com 270 x 50, profundidade x 40,3 (altura) cm. b) Um móvel de cor laranja com 300 x 50 x 65,2 (altura) cm. 5) Os móveis ficaram com peças partidas e mossas, o candeeiro ficou danificado, o colchão ficou rasgado na parte lateral e o sofá ficou com o apoio dos braços partidos. 6) A Ré informou a Autora da queda do contentor e os danos causados nos referidos bens/móveis, remeteu-lhe fotografias e disponibilizou-se para os reparar. 7) A Ré reparou o candeeiro e entregou-o à Autora, que o aceitou, em data anterior à interposição da acção. 8) O colchão foi entregue à Autora no estado em que se encontrava, não sendo reparável. 9) A Ré procedeu à reparação do sofá, do aparador e do móvel cor de laranja, tendo despendido o montante de 3.456,30€. 10) A Ré comunicou à Autora, por mensagem electrónica de 29.06.2023, que os móveis e o sofá já se encontravam reparados e que iria proceder à sua entrega, tendo a Autora se recusado a recebê-los. 11) Após a reparação realizada pela Ré, o braço direito do sofá apresenta uma ligeira folga e menor firmeza relativamente ao braço esquerdo. 12) O móvel cor de laranja encontra-se reparado e pintado de forma uniforme, sem apresentar qualquer mossa ou peça partida, salvo um risco na pintura com cerca de 2 cm na parte traseira. 13) O aparador de televisor foi reparado com material e cor castanho escuro idênticos ao original, com excepção o interior das gavetas, que foi pintado em cinzento, e as laterais das mesmas, em que foi substituída a madeira por metal. 14) O interior das gavetas pode ser pintado na cor original do móvel e as peças das laterais podem ser substituídas por peças com material idêntico ao original. 15) A folga que o braço do sofá apresenta, referida em 11), é reparável. 16) O sofá e os móveis têm, pelos menos, 10 anos. 17) O custo de um colchão com características similares ao referido em 4), alínea c) ascende a 2.094,00€. 18) A situação descrita causou transtorno, desconforto e nervosismo à Autora. E foram tidos por não provados os seguintes factos: a) A Autora adquiriu os bens referidos no facto provado 4) como novos, que corresponde ao valor total de 14.846,00€. b) Os móveis foram feitos à medida e a gosto da Autora. c) Os danos do candeeiro, do aparador, do móvel cor de laranja e do sofá são irreversíveis e não são susceptíveis de reparação. d) A Autora desconhece onde se encontram o sofá, o aparador e o móvel cor de laranja. e) Para além do provado em 18), a Autora sentiu-se ansiosa e enganada. V.1. Importa, em primeiro lugar, avaliar se a recorrente tem direito a ser indemnizada pecuniariamente em função do valor de certos bens. O contrato foi qualificado como reunindo elementos da prestação de serviços e do depósito (contrato misto, portanto), com predominância dos elementos do contrato de depósito, cujo regime prevaleceria. Esta qualificação não vem discutida e pode aceitar-se [7], sendo que, de todo o modo, se não repercute no problema da reparação/indemnização, já que este se sujeita às regras gerais da responsabilidade contratual e, em particular, às regras gerais reguladoras da obrigação de indemnização. De forma paralela, também não vem discutida a responsabilização da R. (que esta aceitou), ficando por isso obrigada a reparar os danos causados aos objectos guardados (art. 1187º al. a) e 798º do CC). A questão respeita apenas à forma de eliminação do dano. E, de entre os bens danificados, relevam apenas o sofá, o aparador e o móvel cor de laranja. O candeeiro e o colchão estão excluídos da discussão, dado o objecto do recurso (valendo, aliás, quanto ao candeeiro, o disposto em 7 dos factos provados, e quanto ao colchão o reconhecimento da inviabilidade da sua reparação, com a imposição do pagamento do seu valor pela sentença recorrida, ponto não impugnado). 2. Afirma-se, a partir dos art. 562º e 566º n.º1 do CC, que o sistema legal consagra a denominada primazia da reparação ou reconstituição natural, a qual faz, em princípio, prevalecer a restauração do bem danificado face ao pagamento da indemnização por equivalente ou em dinheiro. Primazia que seria excluída apenas quando a reconstituição natural seja impossível, insuficiente ou excessivamente onerosa (art. 566º n.º1 do CC). Esta prioridade é indisputada. Já a forma como funciona conhece essencialmente duas leituras. Para uma, tradicional e ainda aparentemente dominante, existe uma relação de subsidiariedade pura entre a reconstituição natural e a indemnização em dinheiro: «a indemnização pecuniária apresenta-se como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado gravosa para o devedor» (A. Costa). Assim, a prioridade da reconstituição natural vincula quer o credor, quer o devedor, levando a que nenhum deles possa opor ao outro a indemnização em dinheiro quando seja possível ou viável a reconstituição natural. Dito de outro modo, a indemnização em dinheiro só é admissível quando se revela que a reconstituição natural, não é possível ou suficiente ou é excessivamente onerosa - a indemnização em dinheiro é sucedânea da reconstituição natural, no sentido exacto de que vem apenas depois dela. Como consequência desta compreensão, cabe a quem pretender prevalecer-se da indemnização em dinheiro demonstrar a inviabilidade da reconstituição natural (mormente quando seja o credor/lesado a reclamar a indemnização por equivalente). Esta solução constrói o regime, a partir do art. 566º n.º1 do CPC, em torno de uma regra (prevalência da reconstituição natural) e uma excepção (indemnização em dinheiro quando aquela reconstituição não seja admissível) [esta é a posição de P. de Lima e A. Varela, CC Anotado vol. I, Coimbra Editora 1987, pág. 581, Almeida Costa Direito das obrigações, Almedina 2005, pág. 715, Mafalda Miranda Barbosa, Lições de responsabilidade civil, Principia 2017, pág. 400, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. II, Coimbra Editora, 2008, pág. 1490/1, David Magalhães, A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente. Contributos jurídico-históricos para a análise do direito português - Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 1, 2019, pág. 490 (na medida em que afirma que a indemnização por mero equivalente é «puramente subsidiária»), Tiago Roza-Rodrigues, A Obrigação de Indemnização: a questão da excessiva onerosidade da reparação natural, Revista De Direito Da Responsabilidade, Ano 4, 2022, pág. 30, ou L. Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I, Almedina 2000, pág. 352/3; parecem também se orientar neste sentido, Rui Ataíde, Direito da responsabilidade civil, Gestlegal 2023, pág. 519, J. Ribeiro de Faria, Direito das obrigações vol. I (actualizada e ampliada), Almedina 2024, pág. 485/6, ou M. Graça Trigo, Responsabilidade civil Temas especiais, UCE 2017, pág. 42; também Maria de Lurdes Pereira parece assumir esta primeira posição ao afirmar que «o primado da restauração natural traduz-se em que, na falta de preenchimento de algum dos pressupostos do art. 566.º, n.º1, do CC, nem o lesado nem o obrigado a indemnizar podem impor-se reciprocamente a indemnização em dinheiro», pois deste modo a imposição da indemnização em dinheiro ficaria sempre dependente da demonstração daqueles pressupostos (Direito da responsabilidade civil, FDUL 2021, pág. 491); na jurisprudência, Acs. do STJ proc. 851/04. 7BBGC.P1.S1 de 31.05.2011, proc. 3048/08.3TBLLE.E1.S1 de 02.05.2012, proc. 17/07.4TBCBR.C1.S1 de 21.04.2010, do TRC proc. 265/09.2T2ALB.C1 de 25.01.2011 ou proc. 1091/12.7TJCBR.C1 de 08.04.2014, do TRL proc. 5321/20.3T8LRS.L1-6 de 09.06.2022, proc. 32159/16.0T8LSB.L1-6 de 21.12.2017 ou proc. 20894/18.2T8LSB.L1-7 de 21.06.2022, ou do TRE proc. 1615/16.0T8STB.E1 de 25.01.2018 [8] [9]]. Para outra, minoritária, aquela prioridade da reconstituição natural implicava antes uma relação de alternatividade, embora imperfeita. Assim, aceitando que aquela prioridade valeria para o credor e o devedor, ela tinha modos diferentes de vinculação. Para o devedor/lesante, aquela prioridade impunha-se sem reservas, não podendo aquele optar por oferecer a indemnização em dinheiro a não ser que demonstrasse a verificação dos obstáculos legais à reconstituição natural [10]. Mas tal prioridade já não valia em termos absolutos para o credor/lesado, o qual, mormente ou especialmente por o regime em causa servir o seu interesse, tinha a faculdade de optar por uma ou outra das modalidades de reparação do dano. Esta faculdade não era, porém, pura, porquanto o devedor a ela se podia opor, revelando que não se verificava algum dos aludidos obstáculos à reconstituição natural e que, por isso, esta devia prevalecer. Neste modo de ver, cabia ao devedor, nesta situação, demonstrar a possibilidade e suficiência e exigibilidade da reconstituição natural, funcionando os factos correspondentes como factos impeditivos ou extintivos do direito do credor. É esta diferenciação quanto ao ónus da prova que, em termos prático-jurídicos, marca a grande diferença entre as duas soluções [esta solução é sustentada por Nuno Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora 2011, pág. 673 e ss., sendo também adoptada por Henrique Sousa Antunes, Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora 2021, pág. 552; a jurisprudência já revelou alguma abertura à solução, mormente no Ac. do proc. 5282/19.1T8GMR.G1.S1 de 14.03.2023, que segue o Ac. do STJ proc. 403/2001.P1.S1 de 14.09.2010 (que por sua vez apela a outros dois acórdãos); o Ac. do TRP proc. 5387/18.6T8MAI.P1 de 09.03.2023 atribuiu ao lesante a prova da excessiva onerosidade, o que equivale aos termos desta posição]. 3. A flexibilização do primado da reconstituição natural face à indemnização em dinheiro também passa pela definição do que constitui ainda reconstituição natural (v.g. quanto ao valor da reparação em vez da própria reparação), mas trata-se de questão que não releva no caso pois a recorrente reclama o pagamento de indemnização pelo valor dos bens danificados e não o pagamento do valor necessário para a sua reparação. 4. No caso, a recorrente (lesada) optou pela indemnização em dinheiro (pelo valor dos bens danificados), considerando que os bens não são susceptíveis de reparação. A recorrida diligenciou pela reparação, e opõe essa reparação à pretensão da recorrente. Analisando os factos provados, eles não se mostram favoráveis à pretensão da recorrente. Com efeito, tendo a R. diligenciado pela reparação, verifica-se que: - o sofá apresenta uma folga no braço direito mas esta é reparável (factos 11 e 5). - o móvel cor de laranja tem uma diminuta falha (risco com 2 cm) na pintura, situada na traseira do móvel, por definição superável. - o aparador também foi reparado, apresentando duas falhas mas que são também superáveis: a cor interior das gavetas, as quais podem ser pintadas, e as peças das laterais das gavetas, em que o metal usado pode ser substituído por madeira. Isto revela que não ocorre a invocada inviabilidade da reparação (a impossibilidade da reconstituição natural) em que a recorrente se baseia. Ou, em perspectiva inversa, revela que a reparação dos bens é viável, pelo que não lhe cabia optar pela indemnização em dinheiro. Sendo, pois, o resultado o mesmo qualquer que seja a perspectiva que se adopte quanto ao primado da reconstituição natural. Sendo que não valem aqui afirmações potestativas de inviabilidade ou insuficiência da reparação. Tais afirmações só são relevantes se decorrerem dos factos provados, e estes dependem, por sua vez, do rigor e completude da alegação, do sentido da prova e da adequação e mérito da impugnação que se faça incidir sobre a decisão de facto do tribunal de primeira instância. Falhando alguma destas etapas, tal tem reflexos nos factos provados, que ficam estabilizados, e estes são os únicos que relevam na avaliação a realizar. 5. A situação apresenta uma particularidade, porém. Com efeito, a recorrida, tendo assumida a obrigação de reparação (de tornar indemne a lesada/recorrente), não a cumpriu de forma integral ou capaz. Ou melhor, foi cumprida de forma não exacta, existindo um cumprimento defeituoso daquela obrigação. A este tipo de cumprimento aplicam-se as regras gerais das obrigações, pelo que, sendo a reparação efectuada de forma não cabal, mas sendo ainda possível, o devedor (a recorrida) incorreu em mora (art. 804º n.º2 do CC). Esta mora não é, porém, suficiente para superar, na situação vertente, a prioridade legal da reconstituição natural. Ela concede o direito a uma indemnização pelo atraso, mas esta não está em causa. Pode também servir como ponto de partida para converter aquele cumprimento defeituoso em incumprimento definitivo, que permitiria à recorrente fazer prevalecer o direito à indemnização [11]. Porém, também aquela conversão não está em causa. E admite-se ainda que o cumprimento defeituoso possa, em certas condições, valer como causa de desvinculação face ao devedor da reconstituição natural, passando o credor a assumir aquela reparação (cujo valor pode reclamar). Mas isso também não está em causa. 6. Improcede assim a pretensão da A. atinente à imposição do pagamento da indemnização por equivalente. 7. Cabe apenas, neste ponto, atender a um dado adicional. A recorrente não formulou na PI pedido que corresponda à obrigação de reparação que a sentença impôs à recorrida. Poderia, assim, suscitar-se o problema da congruência da condenação com o pedido formulado (art. 609º n.º1 do CPC), com eventual reflexo no regime do art. 615º n.º1 al. d) do CPC. Sucede que que a recorrente não discute esta questão no recurso. De um lado, não invocou a existência de eventual nulidade da sentença, a qual também não é de conhecimento oficioso (por corresponder em rigor a uma forma de anulabilidade, e atendendo ainda aos dados legais, que supõem a invocação da parte e só em caso particular prevêem a intervenção oficiosa do tribunal: art. 615º n.º2 e 4 do CPC) - nulidade esta que, de todo o modo, se não mostra evidente, pois já foi adiantada a ideia de que «o pedido de indemnização reconduz-se sempre a um pedido de reparação dos danos que será satisfeito, por via da indemnização, mas também pela via da reconstituição natural quando seja possível», o que pode autorizar que seja o lesado condenado nesta reconstituição mesmo quando seja formulado um pedido de indemnização [12]. De outro lado, a recorrente também não sustentou a revogação da sentença com fundamento neste aspecto (diferenciação da condenação face ao pedido), mas apenas com base na inviabilidade da reconstituição natural. Pelo que é esta questão que se situa fora do âmbito do recurso. 8. A recorrente pugna, por fim, pela atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais. Nos factos provados vai contida a conexão desses factos com a situação de incumprimento, em sentido amplo, justificando-se, por reunidos os requisitos gerais de responsabilização da recorrida, discutir a atendibilidade de tais factos como danos compensáveis. A única norma que de forma genérica e directa prevê a compensação dos danos não patrimoniais consta do art. 496º n.º1 do CC, inexistindo norma específica no âmbito da regulação da responsabilidade contratual. Tal levou a que fosse discutida a compensação dos danos não patrimoniais associados ao incumprimento (em sentido amplo) do contrato. Actualmente é claramente predominante a solução favorável a tal compensação, a qual se mostra justificada porquanto, em termos sumários: i. a inserção sistemática do art. 496º do CC não impede que constitua afloramento de uma ideia de integral reparação, acolhida na responsabilidade contratual pelos art. 798º e 804º n.º1 do CC, que não distinguem em função da natureza dos danos, assim se admitindo a aplicação extensiva ou analógica daquele art. 496º - também porque pese embora a falta de referência directa ao dano não patrimonial naqueles artigos 798º e 804º, e como nota Mafalda Miranda Barbosa, o silêncio do legislador não tem de ser entendido em termos eloquentes [13]; ii. também na relação contratual intervêm interesses não patrimoniais, e a relação obrigacional não se subordina a uma visão estritamente patrimonial; iii. a perturbação do comércio jurídico derivada da ampliação do âmbito das indemnizações é, de um lado, afirmação não evidente, e é, de outro lado, afirmação a considerar no tratamento deste tipo de danos no âmbito contratual, com uma devida e rigorosa aplicação do critério da gravidade do dano como mecanismo delimitador das pretensões ajustadas; e é também afirmação a que pode ser contraposta a ideia de que a compensação daqueles danos constitui estímulo ao ajustado cumprimento; iv. a distinção levaria a que danos que, pela sua gravidade, merecessem a tutela do direito fossem tratados como se não a merecessem (N. Pinto Oliveira); v. não existem razões de fundo que justifiquem atender aos prejuízos não patrimoniais numa forma de responsabilidade e não na outra, justificando-se uma «certa uniformidade de regime»; vi. existem normas avulsas que contemplam este tipo de dano na responsabilidade contratual, sinal de que o legislador não é contrário à solução [é esta a solução largamente predominante na doutrina, como se verifica do elenco de posições indicado por A Barroso Rodrigues, em O concurso de responsabilidade civil, Almedina 2024, pág. 238, ou por Gabriela Páris Fernandes no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora 2021, pág. 357 [14]; na jurisprudência, já em 2009 o STJ afirmava que constituía «entendimento jurisprudencial praticamente uniforme a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais por responsabilidade contratual» proc. 08S4117 de 25.06.2009 - o panorama jurisprudencial não se alterou, antes se consolidou naquele sentido (v., a título exemplificativo, Acs. do STJ proc. 1754/18.3T8CSC.L1.S1 DE 19.12.2023, proc. 2232/20.6T8CSC.L1.S1 de 16.11.2023, proc. 497/19.5T8TVD.L1.S1 de 13.12.2022, proc. 3634/15.5T8AVR.P1.S1 de 09.12.2021 ou proc. 2789/16.6T8GMR.G1.S1 de 06.11.2018, ou Acs. do TRE proc. 25050/21.0T8LSB.E1 de 07.11.2024 ou proc. 318/23.4T8ORM.E1 de 21.11.2024)]. 9. Quanto aos danos relevantes, a regra legal pertinente manda atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º n.º1 do CC) [15]. Não obstante, suscita-se um problema autónomo de delimitação dos danos não patrimoniais atendíveis nesta sede contratual, ponto especialmente relevante porquanto sempre haverá que adequar a admissão da compensação às especificidades da matéria, evitando a artificial extensão da indemnização pelo incumprimento (e obviando à «comercialização do dano») - sendo certo que ao incumprimento vem sempre associada uma perturbação pessoal do credor que, só por si, não pode ser logo tida como tutelável. Vários critérios delimitadores têm sido invocados, mormente com a exigência de que a ofensa atinja bem não patrimonial inserido no quadro contratual, que a própria prestação seja atinente a valores não patrimoniais, ou a que se atenda à natureza do interesse violado e à distribuição do risco, ou até à exigência de que este dano não patrimonial tenha sido explícita ou implicitamente contemplado pelas partes [16]. A jurisprudência tem, por regra, atendido ao critério legal da gravidade do dano, afirmando-se, em fórmula expressiva, que «o dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade de uma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”» [17]. Embora não deixe também de se apelar a outras formas de avaliação, mormente atendendo à «conexão entre os danos não patrimoniais e o vínculo obrigacional em causa» [18]. Mas sempre sem deixar de atender à natureza e especificidades do contrato e do incumprimento associado, nomeadamente ao modo como estes se projectam na vida do credor. No caso, temos apurado apenas que a situação causou transtorno, desconforto e nervosismo à recorrente. Trata-se, na verdade, de qualificações muito vagas e superficiais da perturbação emocional causada. Quanto aos transtornos, a menção peca por envolver alguma generalização, ficando por concretizar o que realmente os caracteriza ou em que se traduziram. A menção significa apenas que ocorreu uma perturbação ou alteração do estado da recorrente, mas sem permitir fixar, e por isso avaliar, em que tal consiste. Quanto ao desconforto e nervosismo, constituem caracterizações muito ténues da situação da recorrente, descrevendo apenas um patamar mínimo de perturbação que constitui natural efeito do incumprimento contratual e que, nesse sentido, não ultrapassa o plano da normalidade das coisas no âmbito do incumprimento: qualquer credor, perante a falha contratual, ficará naturalmente nervoso e desconfortável com a situação, sem que isso ultrapasse o plano da mediania das coisas (não chega a ser considerável). A este grau mínimo ou reduzido dos factos descritos acresce a circunstância de não estarem enquadrados ou contextualizados. Isto na medida em que se ignora, por exemplo, a duração da situação, ou, em especial, se existem efeitos pessoais da situação na vida da recorrente e quais (por exemplo, estando em causa móveis, estavam armazenados e por isso dos factos não decorre qualquer relação directa com a vida da recorrente; ora, ignorando-se a finalidade do armazenamento ou a destinação dos móveis, fica oculta a sua relação com a vida da recorrente e assim a forma como os facto se reflectem nessa vida). Assim, as perturbações apuradas não excedem o plano das contrariedades inerentes ao incumprimento, que comummente se verificam e que não justificam uma tutela própria por falta de intensidade da lesão. A apurada caracterização não é suficiente para atingir o grau de gravidade que torna as perturbações pessoais merecedoras de tutela do direito. Assim, é o carácter contido (ou escasso) dos factos provados que prejudica a pretensão da recorrente, nesta parte. 10. Decaindo, suporta a recorrente as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CC). VI. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso. Custas pela recorrente. Notifique-se. Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC): (…) Datado e assinado electronicamente. Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original). António Fernando Marques da Silva - relator Susana Ferrão da Costa Cabral - adjunta Ana Pessoa - adjunta
________________________________________ 1. V. por todos os Ac. do STJ proc. 2015/23.1T8AVR.P1.S1, proc. 21389/15.1T8LSB.E1.S1, proc. 4330/20.7T8OER.L1.S1, proc. 1680/19.9T8BGC.G1.S1, proc. 1229/18.0T8OLH.E1.S1, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1 ou proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1 (3w.dgsi.pt), este com indicações doutrinais a que se podem aditar Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 80 no sentido da inadmissibilidade legal do convite (embora com reservas face ao direito constitucional a um processo equitativo); e, no sentido oposto, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 95 e 99 (também com outras indicações).↩︎ 2. No sentido da constitucionalidade da solução, v. DS 256/2021 do TC (no site do TC).↩︎ 3. Avaliação que, não obstante, se realizou à luz de uma intenção esclarecedora da intervenção do tribunal.↩︎ 4. Em atitude injustificada, muito próxima da litigância de má fé, a recorrente elimina estas menções da reprodução, no mais integral, que faz das suas declarações - introduzindo naquela reprodução reticências entre parêntesis [«(...)»], como se estivesse simplesmente a eliminar dados irrelevantes.↩︎ 5. Sem necessidade de adicional contraditório, dado o âmbito da impugnação realizada (que já incluía a eliminação do advérbio) e, sobretudo, a natureza, simples e em último termo apenas clarificadora, da intervenção.↩︎ 6. Em reprodução literal (mas sem negrito ou itálico, onde aplicável).↩︎ 7. O que poderia era discutir-se se o transporte não seria apenas uma obrigação instrumental, sem autonomia, como a sentença recorrida até sugere. Mas o ponto não tem na avaliação do caso relevo autónomo.↩︎ 8. Embora, em rigor, neles se afirme o primado da reconstituição natural, e o carácter sucedâneo da indemnização em dinheiro, sem, em regra, problematizar a questão, e já que a economia dos casos que decidem não impunha essa autónoma avaliação.↩︎ 9. Todos disponíveis em 3w.dgsi.pt, local onde se encontram os demais acórdãos citados no texto.↩︎ 10. Podendo ainda discutir-se se podia invocar todos os obstáculos.↩︎ 11. Considerando que o incumprimento definitivo e a opção pela indemnização inerente liberta o credor da reconstituição natural (embora em termos gerais) Paulo Mota Pinto, cit., pág. 1492.↩︎ 12. V. Ac. do STJ proc. 403/2001.P1.S1 de 14.09.2010 (ponto 21 do acórdão, em obiter dictum).↩︎ 13. Ob. cit., pág. 428.↩︎ 14. Onde se incluem V. Serra, Pinto Monteiro, Gomes da Silva, Pessoa Jorge, Ribeiro de Faria, Almeida Costa, N. Pinto Oliveira, Menezes Cordeiro, Brandão Proença, Menezes Leitão, Santos Júnior, Paulo Mota Pinto, Rui Soares Pereira, M. Miranda Barbosa, J. González, Calvão da Silva, Rute Pedro ou Maria Manuel Veloso. Em sentido oposto, A. Varela e M. Teixeira de Sousa, para além de A. Barroso Rodrigues.↩︎ 15. Admite-se que a gravidade do dano seja o critério essencial pois é essa gravidade que condiciona (ou desencadeia) a tutela do direito, que não constituirá requisito autónomo. A questão não é, porém, pacífica.↩︎ 16. V. Rui Soares Pereira, A responsabilidade por danos não patrimoniais, Coimbra Editora 2009, pág. 313/314. Indicando outros critérios ou posições, Gabriela Páris Fernandes, ob. cit., pág. 357.↩︎ 17. Ac. do STJ proc. 540/2001.P1.S1 de 24.01.2012, seguindo outros Acs. do STJ.↩︎ 18. Ac. do STJ proc. 497/19.5T8TVD.L1.S1 de 13.12.2022.↩︎ |