Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
537/23.3T8BJA-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O dever de gestão processual e o princípio da cooperação impõem que o tribunal auxilie a parte na obtenção da legalização de documento quando a parte invoque dificuldades na remoção de obstáculos que encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal.
2 – Também na perspectiva da natureza do processo – jurisdição voluntária – e dos princípios que o regem, nomeadamente o princípio do inquisitório, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 537/23.3T8BJA-A.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Rui Manuel Machado e Moura
Vítor Sequinho dos Santos

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
O Ministério Público veio interpor recurso de despacho proferido pelo Juízo de Família e Menores de Tomar, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual indeferiu um requerimento apresentado pelo primeiro no âmbito dos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor (…), filho de (…) e de (…), no sentido de se obter o assento de nascimento do menor autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, a remeter àquela entidade por via diplomática.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«Requerimento de 23/1:
Salvo o devido respeito por juízo jurídico diferente, não vislumbro fundamento para se
deferir o aí peticionado.
Por um lado, não vislumbro obstáculo jurídico à aplicação da Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros, concluída em Haia, em 5 de outubro de 1961 nos termos mencionados no ponto III do despacho proferido em
18/9. Veja-se o seguinte documento extraído do site oficial https://www.hcch.net/:
(…)
Por outro lado, a ser inaplicável, o assento de nascimento em causa depende da sua legalização para produzirem efeitos na ordem jurídica portuguesa sujeita ao procedimento
previsto no artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Civil português (cfr. o n.º 2 desse artigo).
Por fim, é dever da parte ativo instruir a causa com os elementos essenciais indispensáveis, de modo juridicamente válido, não competindo ao Tribunal suprimir tal omissão, dado que não está na sua disposição a prática do ato de legalização em causa.
Pelo exposto, indefiro o precedente requerimento apresentado pelo Ministério Público e determino que se aguarde nos termos do ordenado no ponto III do despacho proferido em 18/9/2023.
Notifique o Ministério Público e a Requerente».

I.3
O Recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1) A requerente alega fundadamente a impossibilidade de obter o certificado de nascimento do filho menor com as formalidades legais exigidas pela Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros (Haia, 1961), dada a sua atual residência em Portugal e sua débil condição económica e dos familiares residentes na Índia (país da nacionalidade);
2) O pedido pela autoridade judiciária formulado às autoridades indianas apresenta-se concretamente como o procedimento idóneo e adequado de modo a ultrapassar as efetivas dificuldades da parte na obtenção do documento;
3) Nos processos de jurisdição voluntária o tribunal pode e deve investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes com vista a boa decisão da causa (artigos 986.º e 987.º do CPC);
4) Devendo mesmo o formalismo processual ceder ante critérios de oportunidade ou conveniência sobre os interesses em causa (artigo 987.º do CPC).
5) Sendo a documentação em apreço fundamental para a boa decisão da causa, tratando-se de processo de jurisdição voluntária e estando em causa a tutela de menor, afigura-se-nos que o mero formalismo deve ceder ante a possibilidade do efetivo exercício do poder de investigação (artigo 986.º, n.º 2, do CPC).
6) A decisão recorrida violou, assim, o disposto nos artigos referidos 986.º, n.º 2 e 987.º do CPC.
7) Nesta medida, deve a mesma ser revogada e substituída por outra que ordene a emissão de carta rogatória dirigida ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, acompanhada de tradução em inglês e a remeter para cumprimento por via do Ministério dos Negócios Estrangeiros (via diplomática) nos termos requeridos.
Este, o nosso entendimento.
V. Excelências, porém, julgarão de Justiça!».

I.4
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Corridos os vistos, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2 e I.3) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (cfr. artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
Em causa está apenas decidir se a decisão recorrida padece de erro de julgamento ao rejeitar a emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia com vista à obtenção do assento de nascimento do menor autenticado com apostila.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar resultam do relatório supra.
Consta ainda dos autos a seguinte factualidade:
1 – Em 18/09/2023 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«(…)
III.
Por se tratar de documento emitido em país estrangeiro, o documento anexo à petição inicial que corporiza registo de nascimento não cumpre os requisitos legais de validade e eficácia na ordem jurídica portuguesa, pois não observa os requisitos normativos (aposição de apostilha, pela entidade competente) imperativamente exigidos pela Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros, concluída em Haia, em 5 de outubro proferido em de 1961, aplicável ao documento em causa. Esse documento foi alegadamente emitido por entidade competente da República da Índia e a produção de efeitos na ordem jurídica portuguesa depende da respetiva aposição de apostilha, e não, salvo respeito por diverso entendimento, de uma mera tradução para qualquer língua ou de outro ato. O ato de aposição de apostilha não foi realizado quanto ao documento em causa e não pode este requisito ser dispensado. A referida Convenção está também em vigor na República da Índia desde 14 de julho de 2005.
Pelo exposto, notifique a Requerente e o Ministério Público para, qualquer deles, apresentar o certificado de nascimento do menor com as formalidades legais exigidas pela aludida Convenção, sem prejuízo do regime previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível».
2 – Na sequência da notificação do despacho referido em (1), em 21/09/2023, a mãe do menor veio requerer aos autos o seguinte:
(…), mãe do menor, notificada para apresentar o certificado de nascimento do menor
com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia, vem dizer e requerer a V.
Exa. o seguinte:
«Dado que o documento foi emitido por entidade competente na Índia, necessita de ser apostilhado também pelas entidades competentes para o efeito na Índia.
Acontece, porém, que, dadas as condições atuais da mãe do menor, a residir em Portugal numa casa abrigo, não tem a mesma quaisquer contactos na Índia, nem condições económicas que lhe possibilitem obter o certificado de nascimento do menor com a apostilha de Haia.
Solicita assim a V. Exa. que a obtenção de tal documento com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia seja promovida pelo Ministério Público, em face da necessidade subjacente da regulação das responsabilidades parentais do menor».
3 – Sobre o requerimento referido em (2) recaiu despacho datado de 11/10/2023, com o seguinte teor:
«II.
Requerimento de 21/9:
A apostilha é realizável em Portugal, pelo que indefiro o aí requerido, sem prejuízo de ordenar que se notifique também ao Ministério Público o referido requerimento (o despacho em 18/9 já foi também notificado ao Ministério Público)».
4 – Em 11/10/2023, a mãe do menor apresentou aos autos requerimento com o seguinte teor:
«(…), mãe do menor, notificada para apresentar o certificado de nascimento do menor
com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia e do despacho consignando que a apostilha é realizável em Portugal, indeferindo o seu pedido de promoção da apostilha do documento com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia pelo Ministério Público, vem dizer e requerer a V. Exa. o seguinte:
Dado que o documento foi emitido por entidade competente na Índia, necessita de ser apostilhado também pelas entidades competentes para o efeito na Índia, conforme email
do Tribunal da Relação de Évora que se junta em anexo em resposta ao pedido de esclarecimento formulado pela patrona da requerente.
Assim, reitera-se que, dadas as condições atuais da mãe do menor, a residir em Portugal numa casa abrigo, não tem a mesma quaisquer contactos na Índia, nem condições económicas que lhe possibilitem obter o certificado de nascimento do menor com a apostilha de Haia.
Solicita assim A v. Exa. que a obtenção de tal documento com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia seja promovida pelo Ministério Público, em face da necessidade subjacente da regulação das responsabilidades parentais do menor.».
5 – Em 18/10/2023, o Ministério Público faz promoção nos autos com o seguinte teor:
«Conforme artigos 3.º, 4.º e 6.º da Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros (Convenção da Haia de 5.10.1961), a apostila é passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário e cada Estado contratante designará as autoridades, determinadas pelas funções que exercem, às quais é atribuída competência para passar a apostila.
Assim, sugere-se que a requerente indague junto da Embaixada da Índia em Portugal quem é a entidade competente para o efeito e se por via da Embaixada pode obter o documento em questão devidamente apostilado».
6 – Sobre a promoção referida supra recaiu despacho de 30/10/2023, com o seguinte teor:
Requerimento de 11/10:
«O Ministério Público tem as suas competências legalmente previstas e, no caso, promoveu nos termos exarados em 18/10. Ao Tribunal compete garantir a observação do direito convencional aplicável na ordem jurídica portuguesa e é indiferente se a apostilha é lograda por ação da Requerente ou do Ministério Público.
O Ministério Público tem conhecimento da pretensão da Requerente.
Pelo exposto, notifique a Requerente deste despacho e da promoção do Ministério Público exarada em 18 de outubro, sem prejuízo do prazo fixado na parte final do despacho proferido em 18/9».
7 – Em 22/11/2023, a mãe do menor requereu aos autos o seguinte:
«(…), mãe do menor, no que concerne à apresentação do certificado de nascimento do
menor com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia, vem dizer e requerer V. Exa. o seguinte:
A Patrona nomeada enviou 2 emails em 06/11/2023 e 13/11/2023 para a Embaixada da Índia em Portugal por forma a lograr obter informação sobre como obter o certificado de nascimento do menor com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia.
Acontece, porém, que até ao momento não obteve qualquer resposta, sendo ainda que os números de telefone existentes da Embaixada da Índia não são atendidos nunca, apesar de diversas tentativas.
Assim, reitera o pedido de que, dadas as condições atuais da mãe do menor, a residir em Portugal numa casa abrigo, sem condições que lhe possibilitem obter o certificado de nascimento do menor com a apostilha de Haia na Índia, que a obtenção de tal documento com as formalidades legais exigidas pela Convenção de Haia seja promovida pelo Ministério Público, uma vez que o mesmo no âmbito das competências que lhe são atribuídas legalmente terá meios mais eficazes de lograr resposta da Embaixada da Índia».
8 – Em 07/12/2023, o Ministério Público promoveu nos autos o seguinte:
«P. se oficie à Embaixada da Índia em Portugal, com cópia da certidão de nascimento e respetiva tradução juntos com a p.i., a solicitar os bons ofícios no sentido de obter o assento de nascimento da referida criança autenticado pelo Ministério dos Assuntos Exteriores da Índia com apostila de Haia (Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961)».
9 – Sobre a promoção referida em 8) recaiu despacho datado de 05/01/2024 com o seguinte teor:
«A aposição de apostilha no documento em causa não compete ao Tribunal, mas sim à Requerente e ao Ministério Público (cfr. despachos proferidos em 18/9, 11/10 e 30/10), pelo que indefiro a precedente promoção e determino que se aguarde nos termos do ordenado no ponto III do despacho proferido em 18/9/2023».
10 – Na sequência da notificação do despacho referido em 9), o Ministério Público apresentou aos autos, em 23/01/2024, requerimento com o seguinte teor:
«O MP vem aos autos, na sequência da notificação que lhe foi feita, expor e requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:
Os autos reportam-se à criança (…), nascida a 5.12.2014, em L.N.J.P. (…), Estado de (…), Índia.
A ação foi proposta pela sua mãe.
Está em causa a obtenção do assento de nascimento da referida criança autenticado com apostila de Haia (Convenção da Haia, de 5.10.1961).
Os presentes autos constituem um processo tutelar cível e como tal, têm a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artigos 3.º, alínea c) e 12.º do RGPTC).
Nos processos de jurisdição voluntária o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. artigo 986.º, nºs 1 e 2, do CPC).
No caso não é aplicável a Convenção sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial – Convenção da Haia de 18.03.1970 – porquanto, segundo informação da Autoridade Central Portuguesa (DGAJ), Portugal ainda não aceitou a adesão da Índia (A adesão só produzirá efeitos nas relações entre o Estado aderente e os Estados contratantes que declarem aceitar a adesão.)
Assim, a via para obtenção do referido documento será a emissão de carta rogatória a enviar para cumprimento por via do Ministério dos Negócios Estrangeiros (“mala diplomática”).
Deste modo, tendo presente a dificuldade notória ou mesmo a impossibilidade de obtenção do documento por parte da requerente e as normas legais aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária, requer-se ao tribunal que pondere a possibilidade de o obter por via da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, acompanhada de tradução em inglês e a remeter para cumprimento por via do Ministério dos Negócios Estrangeiros (via diplomática).
Pede deferimento».
11 – Sobre o requerimento referido em 10 foi proferido o despacho recorrido.


II.4.4.
Reapreciação do mérito da decisão
Está em causa no presente recurso um despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que indeferiu um requerimento do Ministério Público no sentido de se obter o assento de nascimento do menor em causa nos autos autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).
Requerimento que surge após uma longa sequência de atos processuais que se iniciaram com um despacho proferido pelo julgador a quo no qual se entendeu que o assento de nascimento do menor que se encontra junto aos autos «não cumpre os requisitos legais de validade e eficácia na ordem jurídica portuguesa» pelo facto de não estar apostilado pela entidade competente o que é «imperativamente exigido pela Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros concluída em Haia em 5 de outubro de 1961» (sic).
O assento de nascimento em causa nos autos – um documento autêntico - proveio de um país estrangeiro que não da União Europeia, a saber, da Índia, o qual é aderente da Convenção de Haia de 5 de outubro de 1961; por conseguinte, a legalização de documentos provenientes daquele pais, quando exigível, é feita por apostilha nos termos do artigo 3.º daquela Convenção.
Pese embora o presente recurso não seja sobre a decisão que julgou da necessidade de legalização do referido documento, sempre se dirá o seguinte: o assento de nascimento do menor (…) destina-se a provar, no âmbito da ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente, a data de nascimento do menor e a sua filiação; de acordo com o disposto no artigo 365.º do Código Civil[1], a legalização de documentos passados no estrangeiro não é indispensável para que eles façam prova em Portugal; apenas se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização, nos termos do artigo 440.º do CPC – neste sentido, vide Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º. 3.ª edição, pág. 259. Também em anotação ao artigo 365.º do Código Civil escreveram Pires de Lima e Antunes Varela[2]: «A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente de legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento». E na jurisprudência, veja-se por todos o Ac. RL de 01.02.2011, processo n.º 987/10.5YPLSB-1, consultável em www.dgsi.pt. No caso, não resulta dos autos que se tivessem suscitado dúvidas, nomeadamente ao julgador a quo, sobre a autenticidade do documento em causa no presente recurso, isto é, dúvidas sobre a autoria do mesmo (assinatura e poderes de quem o elaborou e assinou).
Como se assinalou supra o presente recurso não versa sobre a decisão que julgou ser necessária a legalização do assento de nascimento do menor, mas sobre a decisão que indeferiu o pedido de obtenção do referido documento autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).
Pedido que foi apresentado pelo Ministério Público (que aqui representa o menor – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 68/2019, de 27/08) em face das dificuldades invocadas pela requerente da ação (mãe do menor) em providenciar, ela própria e pelos seus meios (que aparentemente não possui) pela obtenção da legalização do referido documento. Pedido que foi, ao que julgamos, realizado ao abrigo da Convenção de Haia de 18 de março de 1970 sobre Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial e da qual Portugal e a Índia são partes.
Nos termos do disposto no artigo 17.º/2, da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro que aprovou o regime geral do processo tutelar cível «compete especialmente ao Ministério Público instruir e decidir os processos de averiguação oficiosa, representar as crianças em juízo, intentando ações em seu nome, requerendo ações de regulação e a defesas dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciários necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, sem prejuízo das demais funções que estão atribuídas por lei».
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo, sem prejuízo de preceitos especiais imporem às partes o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de atos determinados cuja omissão impeça o prosseguimento da causa – assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 123. É o chamado dever de gestão processual que tem como objetivo primacial uma rápida e justa resolução do litígio.
Dispõe também o artigo 7.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil, epigrafado Princípio da cooperação, que:
«1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
(…)
4 – Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo» (negritos nossos).

Diz-nos Paulo Pimenta[3] que «o princípio da cooperação assume particular importância na conceção moderna do processo civil, que passa a ser visto como uma comunidade de trabalho, assim se apelando ao contributo de todos os intervenientes processuais na realização dos fins do processo e responsabilizando-os pelos resultados obtidos. A efetiva concretização deste princípio implica determinados deveres processuais (de cooperação), tanto para as partes e seus mandatários, como para o juiz, havendo todos de colaborar entre si, desse modo contribuindo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, tal como estabelece o n.º 1 do artigo 7.º».
Também sobre o princípio da cooperação escreveu Teixeira de Sousa[4] o seguinte: «O dever de cooperação do tribunal (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou de um dever funcional) destina-se a incrementar a eficiência do processo, a assegurar a igualdade de oportunidades das partes e a promover a descoberta da verdade. Este dever de colaboração do tribunal é uma “forma de expressão de um processo civil dialógico”, no qual o tribunal, não só dirige ativamente o processo e providencia pelo seu andamento célere (cfr. artigo 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição de matéria de facto e de direito para o proferimento da decisão. O dever de cooperação do tribunal prossegue uma finalidade estabelecida pela lei: esse dever destina-se, como se refere no artigo 7.º, n.º 1, a alcançar a justa composição do litígio, o que demonstra que o dever de cooperação está ao serviço da obtenção de uma justa composição do litígio. Isto significa que, estando o processo na disponibilidade das partes e, por isso, não podendo o tribunal substituir-se às partes na definição do seu objeto e na prática de atos processuais, o dever de cooperação tem essencialmente uma função assistencial das partes (mesmo da parte revel). Neste enquadramento, o dever se cooperação não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao tribunal um dever de auxílio das partes para que seja atingida a justa composição do litígio». Adianta, ainda, este autor que o poder-dever de cooperação desdobra-se em vários deveres, a saber, o dever de inquisitoriedade (artigos 411.º e 986.º/2, do CPC), o dever de prevenção ou de advertência, o qual assume especial relevo nos processos subordinados à inquisitoriedade judiciária, como o são os processos de jurisdição voluntária (artigo 986.º, n.º 2), o dever de esclarecimento, o qual é indispensável para que o tribunal possa interpretar devidamente as alegações, os pedidos e as posições das partes, o dever de consulta das partes quando sempre que pretenda conhecer (oficiosamente) de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artigo 3.º, n.º 3), visando este dever obviar às chamadas “decisões-surpresa”, isto é, às decisões com fundamentos de facto ou de direito inesperados para as partes e o dever de auxílio das partes, o qual implica que o tribunal auxilie as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 4). Em outro passo afirma o mesmo autor que: «Os deveres de inquisitoriedade, de prevenção, de esclarecimento, de consulta e de auxílio não contrariam o princípio da imparcialidade do juiz (cfr. artigos 115.º e 119.º) se essa colaboração tiver um carácter complementar ou corretor da atividade da parte. O juiz não perde a sua imparcialidade pela circunstância de colaborar com qualquer das partes na remoção de incoerências, obscuridades, ambiguidades ou lacunas nas suas peças, na aclaração das questões por elas suscitadas ou na concretização de um pedido genérico (cfr. artigo 556.º, n.º 1), mesmo que essa colaboração se traduza, na prática, na diminuição das hipóteses de ganho de causa pela contra-parte. O que é indispensável é que a colaboração do juiz seja realizada sem quebra da sua imparcialidade, isto é, seja fornecida a ambas as partes, em caso de necessidade, de forma igual. Aliás, o exercício da função assistencial do tribunal é indispensável para que o juiz tome uma decisão com conhecimento de todos os dados relevantes. (…) O dever de cooperação cumpre uma função assistencial das partes, pois que visa garantir que estas exercem adequadamente os poderes correspondentes ao princípio dispositivo, tanto no que respeita à matéria de facto e de direito, como no que se refere ao pedido. (…) Da função assistencial que é inerente ao dever de cooperação do tribunal decorrem ainda algumas outras consequências. Assim, são irrelevantes os motivos pelos quais a parte exerceu deficientemente ou mesmo omitiu o exercício de um desses poderes: o tribunal não tem de se preocupar com a circunstância de essa deficiência ou omissão se ficar a dever a uma eventual negligência da parte, dado que, mesmo que esta exista, o tribunal tem o dever de exercer a sua função assistencial. Dessa função decorre ainda que o dever de cooperação do tribunal deve ser exercido perante qualquer das partes, sem atender se, no processo pendente, ela é uma parte “forte” ou uma parte “fraca”. Também se pode perguntar se o dever de colaboração do tribunal deve ser observado quando a parte esteja representada por advogado. Deve entender-se que a representação por advogado não dispensa o tribunal de colaborar com as partes, embora a ausência dessa representação deva aumentar a diligência do tribunal no cumprimento do dever de colaboração. (…)» (negritos nossos).
Revertendo agora ao caso em apreço, julgamos que decorre do exposto supra que o despacho sob recurso viola o dever de cooperação do tribunal enquanto dever de colaborar com a parte na remoção de obstáculos que aquela encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal, a saber, o de juntar aos autos uma certidão do assento de nascimento do filho autenticada com a apostilha de Haia, dever, como dissemos, expressamente consagrado no artigo 7.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. O tribunal tem o dever de auxiliar a parte na obtenção da legalização do documento tanto mais que não é sequer posto em causa nos autos que a mãe do menor não consegue providenciar pela mesmas através de meios próprios. E negando esse auxílio o tribunal a quo não só violou aquele dever como concorreu para uma menor eficiência da resposta judiciária à pretensão da requerente, ou seja, a uma decisão de mérito em tempo razoável como lhe impunha também o dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º/1, do Código de Processo Civil. Ainda numa outra perspetiva dir-se-á que a presente ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais tem natureza de jurisdição voluntária (artigo 12.º da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, que aprovou o regime geral do processo tutelar cível), sendo-lhe, por isso, aplicável o disposto nos artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil. Logo, as decisões nela proferidas são tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, o que significa que neste processo as decisões podem ser fundamentadas num critério não normativo. Consequentemente, rege aqui o princípio do inquisitório quanto ao objeto do processo, o que significa que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986.º/2, do CPC). Assim sendo, vistas as coisas na perspetiva da natureza do processo em causa e dos princípios que o regem, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte (mãe do menor e requerente dos autos) o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores.

Em face de todo o exposto, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por um outro que dê acolhimento ao requerimento apresentado pelo Ministério Público em 23/01/2024 em defesa do interesse do menor. O que se ordenará infra.

Procede, pois, a apelação.


Sumário: (…)

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em julgar procedente a presente apelação, revogando o despacho recorrido que o tribunal recorrido deve substituir por outro que dê acolhimento ao pedido contido no requerimento apresentado pelo Ministério Público em 23/01/2024.

Sem custas.

Notifique.

DN.

Évora, 23 de maio de 2024

Cristina Dá Mesquita (Relatora)

Rui Machado e Moura (1.º Adjunto)

Vítor Sequinho dos Santos (2.º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Dispõe o artigo 365.º do Código Civil epigrafado Documentos passados em país estrangeiro, o seguinte:
«1 – Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respetiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.
2 – Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização».
[2] Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 324.
[3] Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, Almedina, págs. 30-31.
[4] Omissão do dever de cooperação do tribunal: que consequências?, in www.academia.edu