Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
937/24.1T8STB.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
TACÓGRAFO
REPOUSO SEMANAL
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL - CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Legislação Comunitária: REGULAMENTO (CE) N.º 561/2006
Sumário: Sumário elaborado pela relatora:
I. A única intervenção possível do tribunal da Relação em sede de matéria de facto é a que resulta do preceituado no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que é de conhecimento oficioso, sendo que os vícios previstos neste artigo têm de resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo e não podendo basear-se em documentos juntos ao processo.

II. O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando há uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, facilmente percetível pelo cidadão comum.

III. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autos, cobertos pelo objeto do processo, que o tribunal não investigou, embora o pudesse ter feito e sendo ainda possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a proferir.

IV. Demonstrado que um motorista, que laborava por instruções e no interesse da arguida, no período de duas semanas consecutivas apenas gozou dois períodos de repouso semanal reduzido, ou seja, não efetuou nenhum repouso semanal regular de 45 horas, mostra-se preenchido o elemento objetivo do tipo da contraordenação resultante da violação do artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.

Decisão Texto Integral: P.937/24.1T8STB.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


I. Relatório


Doctrans - Transportes Rodoviários de Mercadorias, Lda. impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Para As Condições de Trabalho (ACT) que lhe aplicou uma coima única de 45 UC pela prática de:


- uma contraordenação muito grave negligente, a título de reincidência, prevista no artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, e artigo 20.º, n.º 5, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, na coima de 37 €;


- uma contraordenação grave negligente prevista no artigo 18.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 27/2010, na coima de 6 UC:


- uma contraordenação grave negligente prevista nos artigos 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 27/2010, na coima de 6 UC;


uma contraordenação leve negligente prevista no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27/2010, na coima de 2 UC.


- uma contraordenação leve negligente prevista no artigo 20.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 27/2010, na coima de 2 UC.


O Ministério Público apresentou os autos ao juiz, ao abrigo do artigo 37.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


A 1.ª instância julgou improcedente a impugnação, tendo mantido, na íntegra, a decisão administrativa.


-


A impugnante interpôs recurso desta decisão, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:


«A. Como de uma leitura da mesma se constata a, aliás mui douta, sentença de que e recorre incorre num erro notório de apreciação de prova – artº 410º nº 2 al a) c) CPP aplicável ex vi artº 60º Lei 107/2009


B. Erros esses que, inclusive são de conhecimento oficioso


C. E que no caso se consubstanciam em que no processo 222300252


D. O tribunal deu (mal) como provado o preenchimento do elemento objetivo do tipo legal de contraordenação muito grave imputada e pela qual a recorrente vem condenada


E. Desde logo porque a matéria de facto dada como provada no facto 3 provado da sentença:


F. «…o condutor, no período entre as 00:00H de 17/10/2022 (segunda-feira) e as 23h59m de 30/10/2022 (domingo) efetuou apenas 24h02m de repouso, não tendo efetuado o repouso semanal regular de 45h em duas semanas..»


G. Mesmo considerando que








H. Atenta a prova documental dos autos que demonstram existir nesse período transporte internacional de mercadorias


I. Não preenche no caso o elemento objetivo do tipo legal de contraordenação previsto no artº 8, n.º 6º, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03/2003, na redação do Regulamento 1054/2020 e art. 20º, n.º 5, da Lei n.º 27/2010, de 30/08


J. Artigo este que, além do mais, na redação resultante do Regulamento 1054/2020, de 15 de Julho veio a ser aditado no seu nº 6 que passou a prever que um condutor que efetue operações de transporte internacional de mercadorias pode gozar dois períodos de repouso semanal reduzidos consecutivos fora do Estado-Membro onde se encontra estabelecido, desde que, em cada período de quatro semanas consecutivas, o condutor goze pelo menos quatro períodos de repouso semanal, dos quais pelo menos dois sejam períodos de repouso semanal regular


K. Ora, resulta da matéria de facto dada como provada que o condutor AA efetuou no período que medeia entre 17 e 30 de Outubro de 2022 dois descansos semanais reduzidos de mais de 24 horas consecutivos


L. O que é permitido pelo nº 6 do artº 8º do Regulamento 561/2006


M. Dado resultar dos registos tacográficos juntos aos autos de notícia que deram origem aos processos de contraordenação que efetuou operações de transporte internacional – dado estar nesses períodos fora de Portugal;


N. País esse que não é nem o Estado Membro da união Europeia onde o empregador (a aqui recorrente) está estabelecida – que é em Portugal – nem o país de residência do condutor (que no caso dos condutores aqui em causa é também Portugal) como resulta do auto de notícia que deu origem aos processos de contraordenação


O. Ou seja, atendendo a que a contraordenação em que a Recorrente foi condenada pelos factos imputados no processo CO 222300252 consiste na violação do artº 8º nº 6 do Regulamento 561/2006


P. O condutor em causa, ao efetuar consecutivamente dois descansos semanais reduzidos de mais de 24 horas cada, estando a efetuá-los fora de Portugal, ou seja, fora do Estado Membro da União Europeia onde residem e onde a ora Recorrente está estabelecida


Q. Podiam efetuar esses dois descansos reduzidos consecutivos que o regulamento 1054/2020 veio permitir serem efetuados nessas circunstâncias não havendo a obrigação de efetuar um descanso semanal regular de 45 Horas in casu


R. Pelo que, com todo o devido respeito, o tribunal errou ao dar como provada a prática desta contraordenação com a matéria dada como provada nos pontos 2 e 3 da fundamentação de facto


S. Matéria esta manifestamente insuficiente para nos seus elementos fácticos preencher o elemento objetivo do tipo legal de contraordenação em que a Recorrente foi condenada


T. E porque o tribunal a quo, não investigou toda a matéria de facto com interesse para a (boa) decisão da causa


U. E muito pelo contrário aceita pelo menos implicitamente que a mesma não é suficiente para demonstrar o preenchimento do elemento objetivo do tipo legal de contraordenação em causa


V. Imputando a responsabilidade por essa essa insuficiência a uma falta de impugnação da matéria de facto considerando a mesma como uma «questão nova suscitada nas alegações orais»


W. Quando a única questão, desde o princípio, é saber se as provas carreadas para os autos demonstram a matéria de facto impugnada pela recorrente que preenche o elemento objetivo do tipo legal


X. O que foi desde o início questionado pela Recorrente que impugnou a matéria de facto nas suas alegações e conclusões da peça de impugnação judicial (e inclusive logo na resposta escrita apresentada em sede administrativa)


Y. Sendo a acusação que tem que demonstrar o preenchimento do elemento objetivo da contraordenação e não a ora recorrente a fazer prova negativa


Z. E não a ora recorrente enquanto arguida a fazer prova (negativa) da não prática da contraordenação.


AA. Sempre o tribunal – dando cumprimento aos princípios de direito processual penal que são aplicáveis em sede de direito contraordenacional que, também é direito sancionatório,


BB. E desde logo do princípio in dúbio pro reo bem como da descoberta da verdade material e em obediência ao princípio do inquisitório e da estrutura acusatória do direito contraordenacional


CC. A averiguar se a arguida havia praticado factos subsumíveis na contraordenação.


DD. O que, smo, não se verifica no caso e, por isso, deveria ter levado á absolvição da ora Recorrente e não á sua condenação.


EE. Assim, não preenchendo a factualidade dada como provada na, aliás mui douta sentença o elemento objetivo da contraordenação prevista e punida no artigo 20.º, n.º 5, al. c) da Lei n.º 27/2010.


FF. E resultando da sentença, erro notório na apreciação da prova documental constante dos autos e consequentemente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;


GG. Dispõe o artº 410º nº 2 CPP que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum os previstos nas al a) e c)


HH.Tendo que, necessariamente ser absolvida a ora Recorrente por não ter cometido a contraordenação porque vem condenada


II. Que não foi sequer praticada pela ora Recorrente na pessoa do seu motorista


JJ. Não preenchendo a factualidade dada como provada o elemento objetivo da contraordenação prevista e punida no artigo 20.º, n.º 5, al. c) da Lei n.º 27/2010.


KK. Tendo que, necessariamente da mesma ser absolvida


Devendo por isso a sentença ora sob recurso ser anulada revogada e substituída na parte que condenou a Recorrente na prática de uma contraordenação continuada por violação do disposto na Lei 27/2010, nº 5, al c) por outro que seja conforme á lei


Fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!»


-


A 1.ª instância admitiu o recurso, limitado à contraordenação sancionada com a coima de 37 UC e à matéria de Direito, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.


-


O Ministério Público respondeu ao recurso, propugnando pela sua improcedência.


-


O processo subiu à Relação e a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se a favor da manutenção da sentença recorrida.


Não foi oferecida resposta.


Elaborado projeto de acórdão e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*


II. Objeto do recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO) e artigos 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:


1.ª Erro notório na apreciação da prova e insuficiência fáctica relativamente ao elemento objetivo do ilícito contraordenacional.


2.ª Não preenchimento do elemento objetivo.


*


III. Matéria de Facto


A 1.ª instância deu por provados os seguintes factos:





*


IV. Erro notório na apreciação da prova e insuficiência fáctica relativamente ao elemento objetivo do ilícito contraordenacional


Principia a recorrente por invocar que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova documental, com referência aos pontos 2 e 3 do elenco dos factos provados.


De seguida, sustenta que a matéria de facto é insuficiente para preencher o elemento objetivo do tipo legal de contraordenação que lhe foi imputado.


Analisemos.


Nos termos previstos pelo artigo 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, pelo que se mostra vedada a este tribunal qualquer reapreciação da prova produzida nos autos.


A única intervenção possível do tribunal da Relação, em sede de matéria de facto, é a que resulta do preceituado no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que é de conhecimento oficioso.


Estipula o n.º 2 do referido preceito legal:


«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:


a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;


b) A contradição insanável da fundamentação;


c) Erro notório na apreciação da prova».


Têm tais vícios da matéria de facto, deste modo, de resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos2, não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo3 e não podendo basear-se em documentos juntos ao processo4.


No caso dos autos, atenta a motivação do recurso, há que apreciar os seguintes vícios:


- o erro notório na apreciação da matéria de facto;


- a insuficiência da matéria de facto provada para o preenchimento do elemento objetivo do ilícito.


Desde já afirmamos, no entanto, que a sentença recorrida não padece de qualquer um dos vícios.


Em relação ao erro notório na apreciação da matéria de facto, como referem Simas Santos e Leal Henriques, tal vício verifica-se quando há uma «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, que as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável.


Dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das "leges artis "»5.


Ora, no vertente caso não existe qualquer elemento indiciador da existência de tal erro.


Os factos dados como assentes, e particularmente os descritos nos pontos 2 e 3, são conciliáveis entre si, e lendo a sentença recorrida não vislumbramos no texto de tal peça processual qualquer falha grosseira imediatamente percetível para um cidadão comum.


Acresce que a valoração livre da prova, que o tribunal fez ao abrigo do artigo 127.º do Código de Processo Penal, não se inclui no erro notório da apreciação da prova.6


Inexiste, assim, erro notório na apreciação da prova que deva ser corrigido por este tribunal.


Quanto à alegada insuficiência da decisão fáctica para o preenchimento do elemento objetivo do tipo de ilícito contraordenacional imputado, também não assiste razão à recorrente.


A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autos que o tribunal não investigou, embora o pudesse ter feito e sendo ainda possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a proferir.


Este vício só ocorre quando existirem factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objeto do processo - mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória - que foram indevidamente descurados na investigação do tribunal, que, assim, se não apetrechou com a base factual indispensável, seja para condenar, seja para absolver, ou para determinação da espécie ou medida da pena.


Ou, como afirmam Simas Santos e Leal Henriques7, a insuficiência para a decisão da matéria de facto traduz-se numa «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher (…) [;] só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final».


Assinalam ainda os mesmos autores, citando o que de modo impressivo se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-01-1999 (Proc. n.º 1126/98), que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só existe quando se faz a «formulação incorreta de um juízo» em que a «conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão».


Como também se afirmou em acórdão do mesmo tribunal de 01-06-2006 (Proc. n.º 06P1614)8, «o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objeto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso»; ou ainda, como se escreveu no sumário do acórdão do mesmo tribunal de 04-10-2006 (Proc. n.º 06P2678)9, «(…) [o] vício de «insuficiência para a decisão» relevante para integração do normativo do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP não pode ser confundido, como frequentemente sucede, com erro de julgamento, que resultaria de errada apreciação da prova ou insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida. (…) É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena».


Esclarecido o vício em causa, importa, também, que nos pronunciemos sobre o que significa o elemento objetivo do ilícito, para que possamos analisar se a decisão recorrida se revela insuficiente quanto a este elemento, como alega a recorrente.


Para o efeito, recorremos ao Acórdão da Relação de Évora de 05-12-2023 (Proc. n.º 155/22.3GESLV.E1)10, no qual se escreveu:


«I. Os elementos objetivos de um tipo de ilícito constituem a materialidade do crime e emergem da descrição da ação empreendida ou omitida, produtora de uma modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos.»


Ou seja, e simplificando, o elemento objetivo do tipo de ilícito corresponde à prática ou omissão de uma determinada ação ou conduta, que tem de ser objetivada no mundo exterior.


Posto isto, foquemo-nos no caso concreto.


A infração impugnada no recurso traduz-se no incumprimento do período de repouso semanal no período temporal de duas semanas consecutivas – cf. artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.


Ora, os factos relatados nos pontos 1 a 4 são suficientes para o preenchimento objetivo do ilícito, uma vez que neles se descreve a conduta (infratora) respeitante ao condutor do veículo, que laborava por instruções e no interesse da recorrente.


Argumenta a recorrente que o transporte efetuado pelo motorista se tratou de um transporte internacional de mercadorias e que apesar do motorista apenas ter efetuado dois períodos de repouso semanal reduzido consecutivos, estes tinham ocorrido fora do Estado-Membro onde se encontrava estabelecido, o que era permitido à luz do regulamento n.º 1054/2020, pelo que não tinha a obrigação de efetuar um descanso semanal regular de 45 horas entre 17 e 30 de outubro de 2022.


Ademais, prossegue, não há evidência nos autos de que num período de quatro semanas consecutivas, o condutor não tenha gozado, pelo menos, quatro períodos de repouso semanal, dos quais dois foram períodos de repouso semanal, sendo certo que cabia ao Ministério Público a prova de que o motorista executou transporte nacional e que no período temporal de duas semanas não efetuou um descanso semanal regular de 45 horas.


Acontece que a materialidade em que a recorrente se apoia (realização de transporte internacional e observância dos períodos de repouso semanal legalmente exigidos) não foi alegada em sede de defesa.


Impugnar os factos constantes da acusação – como fez a recorrente - não se confunde com a alegação de factos relevantes para a decisão da causa, e que, por isso, devem passar a integrar o objeto do processo.


Aliás, esta questão foi apreciada no seguinte excerto da sentença recorrida:


«Finalmente, e apenas porque em sede de alegações orais o Ilustre Defensor da arguida sustenta diverso entendimento jurídico da ACT no que respeita à infração que se prende com o descanso reduzido no período de duas semanas consecutivas, atenta a alteração ao Regulamento (CE) n.º 561/2006 e ao Regulamento (EU) n.º 165/2014, pelo Regulamento (EU) 2020/1054 do Parlamento Europeu e Conselho, no que tange ao transporte internacional de mercadorias, cumpre dizer uma palavra.


Entende o Ilustre Defensor que, por força da aplicação deste último Regulamento, naquele período de duas semanas, estando em causa o transporte internacional, podia o motorista realizar dois descansos reduzidos e não apenas um.


Salvo o devido respeito, a posição do Ilustre Defensor assenta na leitura de apenas metade da disciplina que ali consta inscrita.


De facto, do ponto 6, daquele Regulamento, consta que:


“O artigo 8.º é alterado do seguinte modo:


a)


O n.º 6 passa a ter a seguinte redação:


«6. Em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor goza pelo menos:


a) De dois períodos de repouso semanal regular; ou


b) De um período de repouso semanal regular e de um período de repouso semanal reduzido de pelo menos 24 horas.


O período de repouso semanal começa o mais tardar no fim de seis períodos de 24 horas a contar do fim do período de repouso semanal anterior.


Não obstante o disposto no primeiro parágrafo, um condutor que efetue operações de transporte internacional de mercadorias pode gozar dois períodos de repouso semanal reduzido consecutivos fora do Estado-Membro onde se encontra estabelecido, desde que, em cada período de quatro semanas consecutivas, o condutor goze pelo menos quatro períodos de repouso semanal, dos quais pelo menos dois sejam períodos de repouso semanal regular.


Para efeitos do presente número, considera-se que um condutor efetua operações de transporte internacional se os dois períodos de repouso semanal reduzido consecutivos do condutor tiverem início fora do Estado-Membro onde o empregador está estabelecido e do país de residência do condutor.»;


(…)


d) É inserido o seguinte número:


«8-A. As empresas de transporte organizam o trabalho dos condutores de modo a que estes possam regressar ao centro operacional do empregador onde o condutor está normalmente baseado e onde iniciam o seu período de repouso semanal regular, no Estado-Membro onde o empregador está normalmente baseado, ou ao local de residência do condutor em cada período de quatro semanas consecutivas, a fim de passar, pelo menos, um período de repouso semanal regular ou um período de repouso semanal superior a 45 horas a título de compensação por um período de repouso semanal reduzido.


Todavia, caso o condutor goze dois períodos de repouso semanal reduzido consecutivos nos termos do n.º 6, a empresa de transporte organiza o trabalho do condutor de modo a que este possa regressar antes do início do período de repouso semanal regular superior a 45 horas a título de compensação.


A empresa documenta a forma como cumpre essa obrigação e conserva a documentação nas suas instalações a fim de a apresentar a pedido das autoridades de controlo.»


Ora, como se vê, não basta para a legitimidade do gozo de dois períodos de descanso semanal reduzido em duas semanas consecutivas a invocação de que estamos perante transporte internacional de mercadorias.


Para além da definição restrita do que, para o regulamento é entendido por condutor que efetua transporte internacional de mercadorias, é necessário alegar e provar que:


- o condutor que efetue operações de transporte internacional de mercadorias, goze dois períodos de repouso semanal reduzido consecutivos fora do Estado-Membro onde se encontra estabelecido;


- em cada período de quatro semanas consecutivas, o condutor goze pelo menos quatro períodos de repouso semanal, dos quais pelo menos dois sejam períodos de repouso semanal regular.


Ora, porque só em sede de alegações orais, a arguida suscita esta questão nova, não a alegou conforme devia na sua impugnação e, nomeadamente, nas conclusões que fixam o objeto da impugnação.


E, por isso, não trouxe aos autos todos os factos que, uma vez provados, permitissem concluir pela verificação daquela previsão normativa que permite dois períodos de repouso semanal reduzido em duas semanas consecutivas.


Não alegando os factos aptos a excluir a sua responsabilidade, não se pode invocar o Direito que neles não tem substrato.»


Em suma, não tendo a materialidade em que a recorrente se apoia para invocar o vício da insuficiência fáctica sido alegada, nem resultando a mesma da discussão da causa (conforme deduzimos da sentença recorrida, o que não é contrariado pela recorrente), não se pode afirmar que ocorreu uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a boa decisão da causa.


Assim sendo, contendo, como já se disse, os pontos 1 a 4 a factualidade suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do ilícito, claudica o segundo vício da sentença apontado pela recorrente.


Concluindo, improcede totalmente a primeira questão suscitada no recurso.


*


V. Elemento objetivo do ilícito


Invoca ainda a recorrente que o elemento objetivo do ilícito contraordenacional não se mostra preenchido.


Também quanto a esta questão não lhe assiste razão.


Já definimos anteriormente em que consiste o elemento objetivo.


No caso, a infração contraordenacional em causa resulta da violação do artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.


Dispõe esta norma:


«Em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar pelo menos:


- Dois períodos de repouso semanal regular, ou


- Um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido de, no mínimo, 24 horas — todavia, a redução deve ser compensada mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão.


O período de repouso semanal deve começar o mais tardar no fim de seis períodos de 24 horas a contar do fim do período de repouso semanal anterior.»


Ora, com arrimo nos factos provados nos pontos 1 a 4, depreende-se que no período de duas semanas consecutivas – entre as 0 h do dia 17-10-2022 e as 23h59m do dia 30-10-2022 – o condutor AA, que laborava por instruções e no interesse da recorrente, apenas gozou dois períodos de repouso semanal reduzido, ou seja, não efetuou nenhum repouso semanal regular de 45 horas, conforme dispõe o citado artigo.


Nesta conformidade, resultou manifestamente demonstrado o preenchimento do elemento objetivo do ilícito.


Consequentemente, improcede, igualmente, a segunda questão suscitada no recurso.


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Finalizando, o recurso improcede totalmente.


Vencida no recurso, a recorrente deverá suportar o pagamento das custas, que se fixam em 4 UC - artigo 59.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e artigo 8.º, n.ºs 7 e 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, e respetiva tabela III anexa.


*


VI. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e consequentemente, confirmam a decisão recorrida.


Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


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Évora, 9 de abril de 2025


Paula do Paço


Emília Ramos Costa


Filipe Aveiro Marques

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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques↩︎

2. Neste sentido, Acórdão do STJ de 31-01-1990, BMJ- 393.º, pág. 333; Acórdão do STJ de 20-06-1990, Col. STJ, 1990, T.3, pág. 22; Acórdão do STJ de 11-06-1992, BMJ-418, pág. 478; Acórdão do STJ de 08-01-1997, BMJ- 463, pág. 189; Acórdão do STJ de 05-03-1997, BMJ-465, pág. 407; Acórdão do STJ de 27-01-1998, BMJ-473, pág. 148; Acórdão do STJ de 10-02-1998, BMJ-474.º, pág. 351; Acórdão do STJ de 09-12-1998, BMJ-482, pág. 68.↩︎

3. Neste sentido, Acórdão do STJ de 19-12-1990, BMJ-402, pág.232.↩︎

4. Neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra, de 05-02-1997, BMJ-464, pág.627.↩︎

5. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77.↩︎

6. Ibidem, pág. 78.↩︎

7. Ibidem, págs. 72-73.↩︎

8. Acessível em www.dgsi.pt.↩︎

9. Idem.↩︎

10. Idem.↩︎