Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MANUEL BARGADO | ||
| Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO LIQUIDEZ EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO INTERPRETAÇÃO DE DECLARAÇÕES NEGOCIAIS | ||
| Data do Acordão: | 12/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário:
I - A liquidez é a qualidade da obrigação que esteja quantitativamente determinada. O acertamento da obrigação cujo objeto não esteja quantificado em face do título é um dos pressupostos da execução, já que ele irá dar a medida do ataque ao património do executado - cf. o princípio da proporcionalidade estabelecido no artigo 735º, nº 3, do CPC. II - No domínio da interpretação dos negócios formais estabelece a regra especial contida no artigo 238º, nº 1, do CC que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. II – Face à declaração do representante da recorrente, constante da escritura de compra e venda, de que aceita para a sua representada as vendas dos imóveis em causa «nos termos exarados e que os prédios ora adquiridos se destinam a revenda», um declaratário normal colocado na posição da recorrida jamais poderia entender, face a tal declaração, que a cláusula de ajuste de preço acordada, apenas manteria “a sua eficácia e razão de ser”, caso os prédios não fossem revendidos. | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2624/24.1T8STB-A.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO Santamaro – Empreendimentos Imobiliários, Unipessoal, Lda. veio, por apenso à execução que lhe move Silcoge – Sociedade Construtora de Obras Gerais, S.A., deduzir embargos de executado com pedido de suspensão da execução, peticionando a extinção da execução por inexistência de título executivo e por incerteza, inexigibilidade e iliquidez da obrigação exequenda. Alega, em síntese, que efetivamente celebrou com a exequente/embargada o contrato de compra e venda dado à execução, onde ficou estipulado um ajuste de preço dos imóveis vendidos em função de uma possível alteração do Índice de Utilização Bruta de Referência (IUBR) estabelecido no Plano Diretor Municipal de Lisboa, mas que, tendo a embargada vendido os imóveis a terceiro e perante a integração desses imóveis num novo loteamento, deixou de ter direito ao ajuste de preço convencionado. Entende deste modo que o título executivo prevê a existência de uma obrigação futura que não é exequível face ao disposto no art. 707º do CPC, e que o alvará respeita a vários prédios, não sendo possível aferir do mesmo qual o Índice de Utilização Bruta de Referência (IUBR) dos imóveis vendidos. Subsidiariamente, afirmou pretender a compensação do seu crédito com o eventual crédito da exequente, com os legais efeitos. A exequente contestou, alegando, em resumo, que o título executivo é composto pelo alvará de licenciamento e pelo contrato de compra e venda, o qual não contém qualquer prestação futura, mas uma condição suspensiva, sendo o seu crédito resultante da cláusula do contrato que estipula essa condição, sendo irrelevante a venda a terceiro dos imóveis objeto desse contrato, mantendo-se válida a referida cláusula. Conclui, assim, que a quantia exequenda é certa, líquida e exigível, mais impugnando a existência de um contra crédito a favor da embargante. Foi proferido despacho que deferiu o pedido de suspensão da execução sem prestação de caução, o qual foi objeto de recurso, decidido por acórdão desta Relação de 25.06.2025, transitado em julgado1, que julgou procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e indeferindo, em conformidade, a suspensão da execução com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 733.º do Código de Processo Civil. Realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual o tribunal pôs à consideração das partes a possibilidade de decisão de mérito nesta fase processual, tendo as mesmas dito nada terem a opor. Por considerar que o processo continha todos os elementos a uma apreciação de mérito, foi proferido saneador-sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo os presentes embargos procedentes, por provados, e, em consequência, determino a extinção da execução. Custas pela embargante. Notifique, comunique ao A.E. e registe.» Inconformada, a exequente/embargada apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem: «A. O entendimento do Tribunal a quo segundo o qual a obrigação exequenda seria ilíquida e inexigível, bem como que a mesma teria perdido a sua eficácia e razão de ser, para além de ser contrariado por Acórdão proferido por este Tribunal ad quem em 25 de junho de 2025, no âmbito deste processo, desconsidera o teor do título executivo e um conjunto de normas jurídicas. Quanto à (in)exigibilidade e (i)liquidez da obrigação exequenda B. Ao contrário daquilo que foi o entendimento do Tribunal a quo – que foi objeto de censura por parte deste Tribunal ad quem no Acórdão de 25 de junho de 2025, proferido no âmbito deste processo –, não é pelo facto de os prédios objeto da Escritura Pública terem sofrido um loteamento e de estarem previstas diferentes áreas de construção acima do solo para os diferentes lotes que o valor da obrigação exequenda deixa de ser líquido. C. Da Escritura Pública resulta claro que as partes estabeleceram a seguinte fórmula para o cálculo do valor correspondente à redução do preço da venda – i.e. o valor da obrigação (aqui) exequenda: [(9.433,50 x 1,8) – (9.433,50 x IUB)] x EUR 450 = valor da redução do preço. D. A única incógnita que não resulta diretamente da Escritura Pública e que poderia, em abstrato, ser um óbice à liquidez da obrigação exequenda é o IUB, mas, conforme ficou provado nos autos, o IUB de 1,70 veio a ser estabelecido no alvará que – como concluiu o Tribunal a quo – é parte integrante do título dado à execução. E. Assim, com base nos elementos constantes do título (complexo) não existe nenhuma incógnita e basta proceder à seguinte operação de simples cálculo aritmético para liquidar o valor da obrigação exequenda: a. 9.433,50 m2 x 1,70 = 16.036,95 m2 (ABC aprovada) b. 16.980,30 m2 – 16.036,95 m2 = 943,35 m2 (diferença entre ABC prevista e aprovada) c. 943,35 x EUR 450,00 = EUR 424.507,50 (redução do preço) F. Sendo, por isso – e ao contrário daquilo que concluiu o Tribunal a quo –, a obrigação exequenda líquida. G. De resto, resulta do teor da Sentença Recorrida, que a inexigibilidade da obrigação exequenda seria uma decorrência lógica da iliquidez da mesma ou, pelo menos, a decorrência daquilo que foi o entendimento do Tribunal a quo a respeito da liquidez. H. Tendo ficado, porém, assente que a obrigação é líquida, também se terá de concluir que perdeu substrato a Sentença Recorrida quanto a uma putativa inexigibilidade e que, por imperativo lógico, a obrigação é exigível. I. Em qualquer caso, sempre se dirá – à cautela – que a obrigação de redução do preço foi constituída no momento da celebração da Escritura Pública, tendo as partes subordinado a produção dos seus efeitos a um facto futuro: a aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa de um alvará de licenciamento donde resultasse um IUB inferior ao IUBR e, por conseguinte, uma área bruta de construção inferior à área bruta de construção previsível. J. Esse facto ocorreu em 22 de julho de 2019, pelo que, desde essa data que a obrigação exequenda é exigível. K. Pelo que independentemente da “indicação de quais os lotes implementados na área dos dois imóveis dos autos e quais as áreas de construção acima do solo de cada um deles”, a obrigação exequenda é líquida e exigível, tendo o Tribunal a quo errado ao concluir o contrário. Quanto à (perda da) eficácia e razão de ser da obrigação exequenda L. Ao contrário daquilo que foi o entendimento do Tribunal a quo, a obrigação exequenda mantém a sua eficácia e razão de ser, não tendo cabimento os argumentos esgrimidos na Sentença Recorrida para sustentar o contrário. M. Em primeiro lugar, não tem como se compreender o entendimento, segundo o qual “não se verificou a condição constante da cláusula que prevê a redução do preço”, uma vez que está assente que essa condição é a aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa de um alvará de licenciamento donde resultasse um IUB inferior ao IUBR e está assente que tal aprovação ocorreu em 19 de julho de 2019. N. Em segundo lugar, a interpretação do Tribunal a quo, segundo a qual a cláusula do ajuste do preço só manteria a sua eficácia e a sua razão de ser, se a Recorrente não alienasse os imóveis, peca desde logo por desconsiderar o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CC. O. Um declaratário médio colocado na posição da ora Recorrida, face à declaração constante da Escritura Pública de que os prédios em causa serão revendidos, nunca poderia entender que a cláusula de ajuste de preço apenas manteria “a sua eficácia e razão de ser”, caso os prédios não fossem revendidos. P. Para além disso, extrair da Escritura Pública uma obrigação de a Recorrente não revender os prédios vendidos, sob pena de perder o direito ao ajuste do preço, é ir muito além do texto da Escritura Pública e constitui, inclusivamente, uma extrapolação da mesma, que faz expressa menção ao escopo de revenda. Q. Tudo à revelia do comando dirigido ao intérprete pelo artigo 238.º, n.º 1, do CC, segundo o qual não pode ser dado ao negócio formal um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento. R. Em terceiro lugar - e ao contrário daquilo que ficou vertido na Sentença Recorrida -, não resulta da Escritura Pública qualquer obrigação, indicação ou indício de que seria a Recorrente a pedir o alvará e a urbanizar os prédios objeto daquela. Muito pelo contrário, como se viu. S. Aliás, sobre esta questão, já teve este Tribunal ad quem a oportunidade de se pronunciar e foi perentório a referir que na Escritura Pública “não foi (…) estipulada qualquer obrigação da Exequente proceder ela própria à urbanização desses prédios, tendo simplesmente declarado que destina tais prédios à revenda”. T. Extrair tal obrigação (ou ilação) da Escritura Publica configura, também, uma desconsideração do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do CC. U. Em quarto lugar, ao manifestar-se no sentido de que a cláusula de ajuste do preço teria perdido a sua eficácia, pela circunstância de no contrato de venda a terceiro não ter sido estabelecida uma cláusula igual à prevista na Escritura Pública, o Tribunal a quo construiu, à revelia do disposto no artigo 406.º, n.º 2, do CC, uma situação de eficácia externa do contrato fora dos “casos e termos especialmente previstos na lei”. V. Em quinto lugar, não se compreende – e o Tribunal a quo não explica – qual seria a “factualidade provada” que levaria a entender que a invocação, pela Recorrente, da cláusula de ajuste do preço “consubstanciaria abuso de direito”. W. Por tudo isto se conclui que, também a respeito da eficácia da cláusula do ajuste de preço, andou mal o Tribunal a quo, impondo-se a revogação da Sentença Recorrida.» A executada/embargante contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se a obrigação exequenda é líquida e exigível. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos2: 1. Em 06-01-2003 a embargada e a embargante celebraram, por escritura pública, o Contrato de Compra e Venda junto ao requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual a embargante vendeu à embargada, pelo preço global de €7.726.778,24 (sete milhões, setecentos e vinte e seis mil, setecentos e setenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos) os seguintes bens imóveis: - Prédio urbano sito em Alcântara, na Rua 1, freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, descrito na 6ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ...20 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...38; - Prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área 1968 m2, sito em Alcântara, na ..., freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, descrito na 6ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ...21 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...72. 2. Ficou estipulado no contrato referido no ponto antecedente o seguinte: «(…) no caso da Câmara Municipal de Lisboa vir a conceder uma autorização ou licenciamento para construção para a área dos prédios ora vendidos, que permita a construção de uma área bruta de construção acima do solo inferior a dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros, que é o valor previsível em Função do índice de Utilização Bruta de Referência (IUBR) de um vírgula oito, estabelecido pelo Plano Director Municipal de Lisboa, o preço da presente compra e venda será reduzido, à razão de quatrocentos e cinquenta euros por cada metro quadrado de área bruta de construção acima do solo autorizada ou licenciada a menos, relativamente aos dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros.». 3. Por escritura de compra e venda outorgada em 28-12-2017 pela exequente e pela sociedade denominada “Alrio, S.A.”, a primeira vendeu à segunda vários prédios, entre os quais os prédios identificados em 1, supra, estes últimos pelo preço global de €8.992.943,71, conforme cópia da escritura junta aos autos por requerimento de 09-06-2025 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 4. Em 19-07-2019 a Camara Municipal de Lisboa emitiu um Alvará nº 3/2019 de Licenciamento de Operações de Loteamento relativamente a 14 prédios, 11 deles propriedade da sociedade denominada “Alrio, S.A.”, entre os quais os prédios identificados em 1, supra, e 3 deles propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e das sociedades denominadas “Catumbel – Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda.” e “Stonewise – Sociedade Imobiliária, Lda.”, respectivamente, conforme cópia que junta ao requerimento executivo como documento nº 2 e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido. 5. O mencionado alvará foi emitido em nome de “Alrio, S.A.”, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, “Catumbel – Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda.” e “Stonewise – Sociedade Imobiliária, Lda.”. 6. O índice de edificabilidade aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa pelo referido alvará foi 1,70, conforme Planta Síntese junta com o requerimento executivo como documento nº 3, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 7. Em 22-07-2019, a sociedade denominada “Alrio, S.A.” foi notificada pela Câmara Municipal de Lisboa da emissão do referido alvará. 8. A exequente remeteu à executada uma carta datada de 28-08-2023, que esta última recebeu, através da qual lhe solicitou a devolução do preço pago em excesso, conforme documento 4 junto com o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. E foi considerado não provado que em 22.07.2019, a exequente foi notificada pela Câmara Municipal de Lisboa da emissão do referido alvará. O DIREITO A liquidez constitui um dos requisitos da obrigação exequenda (art. 713º do Código de Processo Civil)3, dispondo sobre a liquidação o art. 716º. Pode dizer-se que «[a] obrigação é ilíquida quando não se encontra determinada em relação à sua quantidade, carecendo da efetivação de cálculos aritméticos ou da alegação de factos que, depois, de submetidos ao contraditório, permitam a sua quantificação (art. 716.º)»4. Lê-se no saneador-sentença recorrido: «No caso vertente, em face do título dado à execução pode concluir-se que a obrigação exequenda é certa, pois que é constituída por uma prestação em dinheiro. Quanto à liquidez e exigibilidade, importa atender que, como referido supra, a obrigação exequenda resulta da cláusula contratual constante da escritura de compra e venda onde, grosso modo, se prevê que, caso a Câmara Municipal de Lisboa viesse a conceder uma autorização ou licenciamento para construção para a área dos prédios supra referidos, que permitisse a construção de uma área bruta de construção acima do solo inferior a 16.980,30m2 (que é o valor previsível em função do Índice de Utilização Bruta de Referência, estabelecido pelo Plano Director Municipal de Lisboa), o preço da compra e venda realizada seria reduzido, à razão de €450 por cada metro quadrado de área bruta de construção acima do solo autorizada ou licenciada a menos, relativamente aos 16.980,30m2 previstos. Provou-se que o índice de edificabilidade aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa através do alvará nº 3/2019 foi de 1,70 metro quadrado de área bruta de construção acima do solo. Em face disso a exequente concluiu que só é possível construir acima do solo 16.036,95m2, ou seja, menos 943,35m2 face à área inicialmente prevista no contrato (de 16.980,30m2). Sucede que, como se provou, o alvará foi emitido, em conjunto, em nome de quatro entidades, nenhuma delas a exequente, e refere-se a loteamento de um conjunto de 14 terrenos e não, apenas, aos que foram objecto da escritura dada à execução. Ora, referindo-se o alvará, não apenas aos dois prédios dos autos, mas a um conjunto de 14 prédios, não é possível aferir se uma área bruta de construção acima do solo é inferior ao inicialmente previsto, na medida em que se desconhece-se qual o índice de edificabilidade que seria aprovado caso fossem apenas considerados os terrenos objecto da escritura dada à execução. É que, muito embora esses índices possam estar genericamente previstos nos instrumentos camarários, a verdade o índice de edificabilidade de 1,70 metro quadrado de área bruta de construção acima do solo, constante do alvará, se reporta a todo o loteamento, onde se incluem 12 outros imóveis, sendo possível verificar que nesse alvará se estabelecem áreas de construção acima do solo diferentes para os diversos lotes nele aprovados. Assim, sem a indicação de quais os lotes implementados na área dos dois imóveis dos autos e quais as áreas de construção acima do solo de cada um deles, entendo que não é possível proceder à liquidação da quantia exequenda, nem, sequer, aferir da existência do invocado direito à redução do preço nos termos da cláusula prevista no contrato de compra e venda (exigibilidade). Em suma, considero que a quantia exequenda não é líquida, nem, por isso, exigível.» Contra este entendimento insurge-se a recorrente, aduzindo, designadamente, que não é pelo facto de os prédios objeto da escritura pública a que se alude no ponto 1 dos factos provados, terem sofrido um loteamento e de estarem previstas diferentes áreas de construção acima do solo para os diferentes lotes, que o valor da obrigação exequenda deixa de ser líquido, convocando em abono deste seu entendimento o acórdão desta Relação de 25.06.2025, supra referido, o qual, na procedência da apelação, indeferiu a suspensão da execução com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 733º do CPC. Na análise desta questão assume particular relevância a cláusula de ajuste de preço constante da escritura de compra e venda a que se alude no ponto 1 dos factos provados, do seguinte teor: «(…), no caso da Câmara Municipal de Lisboa vir a conceder uma autorização ou licenciamento para construção para a área dos prédios ora vendidos, que permita a construção de uma área bruta de construção acima do solo superior a dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros, que é o valor previsível em função do Índice de Utilização Bruta de Referência (IUBR) de um vírgula oito, estabelecido pelo Plano Director Municipal de Lisboa, o preço da presente compra e venda será acrescido, à razão de quatrocentos e cinquenta euros por cada mero quadrado da área bruta de construção acima do solo autorizada ou licenciada em excesso, relativamente aos dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros»; e «(…), no caso da Câmara Municipal de Lisboa vir a conceder uma autorização ou licenciamento para construção para a área dos prédios ora vendidos, que permita a construção de uma área bruta de construção acima do solo inferior a dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros, que é o valor previsível em função do Índice de Utilização Bruta de Referência (IUBR) de um vírgula oito, estabelecido pelo Plano Director Municipal de Lisboa, o preço da presente compra e venda será reduzido, à razão de quatrocentos e cinquenta euros por cada mero quadrado da área bruta de construção acima do solo autorizada ou licenciada a menos, relativamente aos dezasseis mil novecentos e oitenta metros quadrados e trinta decímetros». Nesta cláusula as partes tiveram, pois, em conta, o IUBR de “um vírgula oito” (1,8) estabelecido pelo Plano Diretor Municipal vigente à data da celebração da escritura, sendo que os prédios vendidos têm, respetivamente, a área de “sete mil quatrocentos e sessenta e cinco metros quadrados e cinquenta decímetros” (7.465,50 m2) e de “mil novecentos e sessenta e oito metros quadrados” (1.968,00 m2), o que totaliza uma área de 9.433,50 m25. Com base nestes dois elementos, estabeleceram as partes que a área bruta de construção previsível seria de 16.980,30 m2 (= 9.433,50 m2 x 1,8), tendo previsto, como bem observa a recorrente, «um mecanismo de reequilíbrio contratual destinado a abater a imprevisibilidade daquilo que seria o efetivo IUB para o local em que se encontravam os prédios e, consequentemente, o valor real dos prédios objeto da Escritura Pública». Esse mecanismo de ajuste de preço passa por somar ou subtrair, consoante o caso, € 450,00 por cada m2 a mais ou a menos da área bruta de construção efetivamente aprovada em função do referido IUB, relativamente à área bruta de construção previsível (calculada com base no IUBR). Ora, não é pelo facto de os prédios em causa serem objeto de um loteamento e de estarem previstas diferentes áreas de construção acima do solo para os diferentes lotes, que o valor da obrigação exequenda deixa de ser líquido. Isto mesmo, aliás, constatou o acórdão desta Relação de 25.06.2025 acima referido: «(…), em termos aritméticos é igual calcular o índice de edificabilidade com respeito à área de cada um dos prédios individualmente considerados, ou com respeito ao resultado da soma das áreas de todos os prédios, uma vez que se trata sempre de aplicar o índice 1,70». A única coisa que não resulta diretamente da escritura e que poderia, em abstrato, obstar à liquidez da obrigação exequenda, é o IUB, como refere a recorrente. Porém, como é reconhecido pelo próprio Tribunal a quo na decisão recorrida, estamos perante “título executivo complexo” composto pela “escritura pública de compra e venda e o alvará de licenciamento”. Ora, está provado6 que o IUB de 1,70 veio a ser estabelecido no alvará que é parte integrante do título dado à execução. Como refere Rui Pinto7, «(…) a liquidez é a qualidade da obrigação que esteja quantitativamente determinada. O acertamento da obrigação cujo objeto não esteja quantificado em face do título é um dos pressupostos da execução, já que ele irá dar a medida do ataque ao património do executado - cf. o princípio da proporcionalidade estabelecido no artigo 735º, nº 3». Assim, com base nos elementos constantes do título (complexo), basta proceder à seguinte operação de simples cálculo aritmético para liquidar o valor da obrigação exequenda: (i) 9.433,50 m2 x 1,70 = 16.036,95 m2 (ABC8 aprovada) (ii) 16.980,30 m2 – 16.036,95 m2 = 943,35 m2 (diferença entre ABC prevista e aprovada) (iii) 943,35 x EUR 450,00 = EUR 424.507,50 (redução do preço). Assim, ao invés do que concluiu o saneador-sentença recorrido, a obrigação exequenda é líquida e, como tal, exigível, considerando, ademais, que a obrigação de redução do preço foi constituída no momento da celebração da escritura de compra e venda, tendo as partes subordinado a produção dos seus efeitos a um facto futuro: a aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa de um alvará de licenciamento donde resultasse um IUB inferior ao IUBR e, por conseguinte, uma área bruta de construção inferior à área bruta de construção previsível. Ora, esse facto ocorreu em 22.07.20199, pelo que a obrigação exequenda é exigível desde essa data. Tendo o Tribunal a quo concluído diversamente, considerou «prejudicado o conhecimento da compensação de créditos, que só pode ser invocada se o contra crédito for titulado por documento com força executiva, assim como da invocada inexistência do crédito exequendo». A este propósito escreveu-se no saneador-sentença recorrido: «Quanto a esta última questão, dir-se-á, no entanto, que sempre haveria que atender aos seguintes factos: - a exequente não requereu a emissão do alvará, nem foi emitido a seu favor qualquer alvará relativamente aos imóveis dos autos; - a exequente procedeu à venda dos imóveis a terceiro; - do respectivo contrato de compra e venda a terceiro não foi estabelecida uma cláusula idêntica àquela que foi acordada no contrato dos autos, ou seja, não ficou prevista a redução do preço em função do índice de edificabilidade (como resulta do texto desse contrato – ponto 3 da matéria de facto provada); - do respectivo contrato de compra e venda a terceiro não resulta, igualmente, que essa venda teve por base, para a determinação do preço, um indicie de construção acima do solo inferior àquele que a exequente e a executada previram aquando da conclusão do negócio entre ambas. Perante esta factualidade e, se mais não fosse, por interpretação das declarações negociais constantes do contrato dos autos – arts. 236º a 239º do código civil -, sempre seria de concluir que não se verificou a condição constante da cláusula que prevê a redução do preço ou, pelo menos, que a mesma perdeu a sua eficácia e razão de ser. No limite, perante a factualidade provada, a invocação da referida cláusula consubstanciaria abuso de direito.» Desde logo, resulta algo incompreensível a afirmação vertida no saneador-sentença de que «não se verificou a condição constante da cláusula que prevê a redução do preço», quando está provado que essa condição é a aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa de um alvará de licenciamento donde resultasse um IUB inferior ao IUBR10, tendo essa aprovação ocorrido em 19.07.201911, pelo que nenhuma dúvida pode haver quanto à verificação da condição. Também o entendimento do Tribunal a quo, segundo a qual a cláusula do ajuste do preço só manteria a sua eficácia e a sua razão de ser, se a recorrente não alienasse os imóveis, não tem em consideração o disposto no art. 236º, nº 1, do CC, segundo o qual «[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele». O sentido atendível para um declaratário normal, à luz da teoria da impressão do destinatário consagrada neste normativo, significa que a declaração negocial vale com o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo que podia conhecer12. Consta preto no branco na escritura de compra e venda que o representante da recorrente declarou: «[q]ue para a sociedade sua representada aceita estas vendas nos termos exarados e que os prédios ora adquiridos se destinam a revenda”. Ora, como bem aduz a recorrente, «um declaratário médio colocado na posição da ora Recorrida, face à declaração de que os prédios objeto da Escritura Pública serão revendidos, nunca poderia entender que a cláusula de ajuste de preço apenas manteria “a sua eficácia e razão de ser”, caso os prédios não fossem revendidos». Por sua vez, no domínio da interpretação dos negócios formais estabelece a regra especial contida no artigo 238º, nº 1, do CC que «[a] declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”. Ver na escritura de compra e venda uma obrigação de a recorrente não revender os prédios vendidos, sob pena de perder o direito ao ajuste do preço, é ir muito mais além do respetivo texto, onde se faz expressa menção ao escopo de revenda, e constituiria clara violação do preceito em causa, segundo o qual não pode ser dado ao negócio formal um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento. Também se afigura irrelevante a circunstância de o alvará não ter sido emitido em nome da recorrente, porquanto não resulta da escritura de compra e venda nenhuma obrigação ou indicação de que seria a recorrente a solicitar o alvará e a urbanizar os prédios em causa. Sobre esta questão, aliás, já se pronunciou este Tribunal da Relação no acima citado acórdão de 25.06.2025, ao referir que na escritura de compra e venda «não foi (…) estipulada qualquer obrigação da Exequente proceder ela própria à urbanização desses prédios, tendo simplesmente declarado que destina tais prédios à revenda», o que merece a nossa inteira concordância. Extrair tal obrigação da escritura de compra e venda, configuraria, como bem aduz a recorrente, «uma desconsideração do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do CC». Também ao dizer que a cláusula de ajuste do preço teria perdido a sua eficácia, pela circunstância de no contrato de venda a terceiro não ter sido estabelecida uma cláusula igual à prevista na escritura a que vimos aludindo, o Tribunal a quo construiu, à revelia do disposto no artigo 406º, nº 2, do CC, uma situação de eficácia externa do contrato13 fora dos “casos e termos especialmente previstos na lei”, sendo que o saneador-sentença também não diz qual a base legal em que assenta o seu entendimento. Por último, também resulta incompreensível qual seria a “factualidade provada” que levaria a entender que a invocação, pela recorrente, da cláusula de ajuste do preço “consubstanciaria abuso de direito”, sendo certo que o Tribunal a quo também não o explica. Por conseguinte, o recurso procede, impondo-se a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos. Vencida no recurso, suportará a embargante/recorrida as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador-sentença, determinando o prosseguimento dos embargos quanto às demais questões suscitadas. Custas pela recorrida. * Évora, 10 de dezembro de 2025 Manuel Bargado (Relator) Ricardo Miranda Peixoto Elisabete Valente (documento com assinaturas eletrónicas)
______________________________________ 1. Cf. apenso B.↩︎ 2. Mantém-se a numeração e redação da sentença recorrida.↩︎ 3. São deste Código os artigos adiante citados sem indicação de origem.↩︎ 4. Abrantes Geraldes et alii, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020-Reimpressão, p. 41, nota 4.↩︎ 5. Cf. Doc. 1 junto com o Requerimento Executivo.↩︎ 6. Ponto 6 e doc. 3 junto com o requerimento executivo.↩︎ 7. In A Ação Executiva. AAFDL Editora, 2018, p. 240.↩︎ 8. Área Bruta de Construção.↩︎ 9. Cf. ponto 3 dos factos provados.↩︎ 10. Cf. ponto 2 dos factos provados.↩︎ 11. Cf. ponto 4 dos factos provados.↩︎ 12. Ac. do STJ de 15.01.2015, proc. 883/08.6TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎ 13. Sobre o entendimento da doutrina clássica na problemática da eficácia externa das obrigações – cf. Estudo do Professor Almeida Costa, in RLJ, Ano 135º, nº 3936, pp. 130 a 136.↩︎ |