Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO CARROLA | ||
Descritores: | PROVA INDIRECTA PROVA INDICIÁRIA PRESUNÇÕES JUDICIAIS | ||
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Data do Acordão: | 12/15/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. A presunção judicial permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. II. Sendo, pois, um meio legítimo de chegar ao facto probando, a partir da prova de outros factos que a ele se ligam com segurança segundo as regras da experiência comum. III. O fundamento racional da presunção está no valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos e, na medida desse valor, está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção. IV. Assim, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. V. Porém, a ilação derivada de uma presunção natural não pode formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além, de toda a dúvida razoável. VI. Não se mostra possível por recurso a esse tipo de presunção colocar o falecido a atravessar a passadeira aquando do momento do embate por inexistência de um ponto de ancoragem que permita firmar o facto desconhecido, pois inexistem rastos de travagem (abonatório da tese da velocidade reduzida), o veículo se imobilizou cerca de 5 metros depois da passagem e a vítima do embate ficou caída no solo cerca de 5 metros à frente deste veículo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. No processo 561/18.8T9FAR do Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, Comarca de Faro, foi submetido a julgamento a arguida AA depois de pronunciada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137º, n.º 1 do C.P. e também pelo art.º 69º, n.º 1, al. a) do C.P., em concurso aparente com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291º, n.ºs 1, als. a) e b), e 4 (este quanto à al, b)), com referência aos art.ºs 81º, n.ºs 1 e 2, 24º, n.º 1, 25º, n.º 1, al. a) e 103º, n.º 2, do C. Estrada, e 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal (havendo de considerar a agravação do art.º 285º, n.º 3 do Código Penal, ex vi do art.º 294º e 18º do Código Penal). Efectuado o julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu absolver a arguida AA do crime pelo qual estava pronunciada. II. Desta decisão absolutória veio recorrer o M.º P.º, formulando as seguintes conclusões: “1. A sentença recorrida absolveu a arguida do crime de homicídio por negligência de que se encontrava pronunciada por não ter efectuado uma apreciação cuidada e concatenada de todos os meios de prova disponíveis. 2. Deu como provados os factos sob os nºs 9, 12, 13, 14 e 15 quando não o deveria ter feito, designadamente por a prova gravada produzida nos depoimentos referidos e passagens especificadas na motivação deste recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, ter sido produzida noutro sentido. 3. Tendo, também, divergido da prova documental, bem como da pericial produzida, em sentido contrário, sem fundamentar tais divergências. 4. A apreciação cuidada e rigorosa dos referidos depoimentos e passagens, conjugada com a prova documental, designadamente a participação do acidente de viação e as fotografias efectuadas no local e ao veículo conduzido pela arguida, e pericial, nomeadamente o relatório da perícia ao acidente efectuado pelo DIAT, deveriam ter conduzido a terem sido considerados provados os factos não provados nºs 24, 25 e 26. 5. E à consequente condenação da arguida pela prática do referido crime. 6. A sentença recorrida é nula nos termos do art.º 379º, nº 1, al. c) do C.P.P., pois ao divergir da prova pericial, não fundamentou as razões da divergência tal como exige o art.º 163º, nº 2 do C.P.P., pelo que deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar. 7. Deve, assim, ser substituída por outra que considere não provados os referidos factos provados e que considere provados os factos não provados, condenando a arguida pelo citado crime, assim se fazendo JUSTIÇA.” A este recurso veio responder a arguida, resposta de que formulou as seguintes conclusões: “1. O tribunal “a quo” fez uma correcta apreciação da prova produzida; 2. Sendo certo que não houve lugar a prova pericial; 3. Dos depoimentos das testemunhas e do depoimento da arguida não se pode concluir que o tribunal recorrido tenha errado ao considerar como não provada a factualidade donde decorria a responsabilidade penal da arguida; 4. Pelo que se deve tal factualidade manter-se inalterada; 5. E assim sendo, e aplicando o direito aos factos provados, decorre, tal com se decidiu, inexistir responsabilidade penal da recorrente; 6. Tudo razões para se manter inalterada a sentença recorrida.”
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que, depois de elencar as questões que se mostram suscitadas no recurso e desenvolvendo as mesmas, se manifesta no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente. 1 - Nesta cidade situa-se a Avenida ..., comportando duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte / Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul / Norte. 2- Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura. 3- Em 11 de Fevereiro de 2018 o local estava dotado de iluminação pública, porém, fraca. 4 - E no referido separador havia, em toda a sua extensão e largura, arbustos e arvoredo, alto e denso. 5 - Inexistia, no atravessamento de tal separador, qualquer ponto próprio ou específico, antes existindo vários pontos que se foram formando ao longo do tempo pelo uso reiterado das pessoas e através do forçamento e calcar de tais arbustos. 6 - Sensivelmente a meio da Avenida, em ambos os sentidos de marcha, havia uma passagem para peões assinalada na via de circulação. 7 - E cerca de 10 metros antes de tal passagem, havia, considerando o sentido Sul / Norte, uma lomba no pavimento. 8 - No local existia, também, sinalização vertical a assinalar a existência da passagem para peões, e, ainda, de proibição de circular a mais de 40 km/h. 9 - Pelas 19 horas do dia 11 de Fevereiro de 2018, ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo ..., preto, de matrícula ..-..-VN, a arguida seguia na referida Avenida, no sentido Sul – Norte, com uma TAS de 1, 01 g./l., imprimindo ao veículo velocidade de cerca de 33Km/h. 10- Não chovia, o piso estava seco e já não havia luz natural. 11- BB usando roupa escura e proveniente da zona do Lidl, atravessou, no sentido Oeste / Este, a passagem para peões existente na Avenida e considerando o sentido de marcha Norte / Sul. 12- Subitamente, o referido BB iniciou, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, a travessia da faixa de rodagem. 13- Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela arguida. 14- O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo. 15- A arguida imobilizou o seu veículo cerca de 5 metros após a passagem para peões e o BB foi projectado, ficando imobilizado no solo cerca de 5 metros à frente do veículo. 16- Por força do embate do veículo e subsequente embate no solo, BB sofreu traumatismos crânio encefálico e torácico graves, dos quais resultaram hematoma subdural e hemorragia subaracnoídea e contusões pulmonares, com paragem cardiorrespiratória subsequente, os quais foram causa da sua morte verificada pelas 23,38 horas do mesmo dia. Mais se provou que 17- A arguida é contabilista, trabalhando por conta de outrem. 18- Aufere cerca de 750 Euros mensais. 19- Vive em casa da sogra. 20- Tem 2 filhos com 11 e 18 anos. 21- O seu marido trabalha por conta própria. 22- Tem o 12º ano de escolaridade. 23- Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
Factos não provados Não se provou que 24- BB estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem pela passagem de peões assinalada no solo quanto foi embatido. 25- Que a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente, sem adoptar as precauções exigíveis a qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas circunstâncias, designadamente, não conduzir depois de ter consumido bebidas alcoólicas, bem como não reduzir a velocidade que imprimia ao veículo atenta a aproximação da passadeira para peões, e não parar ao verificar que a mesma estava a ser utilizada pela vítima, bem sabendo que a sua conduta punha em perigo a integridade física e a vida dos demais utentes da via, mas acreditando, levianamente, que tal não se iria concretizar em ferimentos ou na morte de quem quer que fosse. 26- Que sabia, perfeitamente, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Motivação A apreciação critica do Tribunal incidiu sobre as declarações da arguida, os depoimentos das testemunhas arroladas e pela análise do teor dos documentos de fls. 4, 5, 30 a 48, 50 a 57, 190 a 216, 218 a 228, 238 e 240, bem como relatório pericial de fls. 259 a 263 e relatório técnico de fls. 468 e ss. Vejamos. Em sede de declarações, a arguida confirmou que na data e hora em causa conduzia o veículo identificado na peça acusatória e pela artéria referida, assumindo que o fazia com algum teor de álcool no sangue. Disse, ainda, que circulava no sentido Sul / Norte e a cerca de 30 km/h, dado que uns metros antes da passagem para peões aludida na predita peça existe uma rotunda pronunciada que implica circulação em velocidade muito reduzida e acarreta, assim, que a entrada na artéria se faça em velocidade também reduzida, circulação essa que fazia pela faixa da esquerda (dado que existem duas faixas de rodagem no mesmo sentido). Quando se encontrava já em cima da passagem para peões surge, repentinamente, cerca de 1 a 2 metros após tal passagem, um individuo a atravessar a via de rodagem. Este individuo saiu do separador central da Avenida e iniciou a travessia da artéria da esquerda para a direita. Trajava roupa escura. A iluminação pública existente era fraca e o separador central apresentava vegetação algo densa e alta. Em suma, disse, não tinha como evitar o embate no dito peão, embate esse que se verificou cerca de 1 a 2 metros após a passagem para peões. A testemunha CC, agente da PSP, não presenciou os factos, tendo tomado conta da ocorrência em virtude de exercício de funções. Disse que o veículo conduzido pela arguida se encontrava imobilizado 1 ou 2 metros após a passagem para peões, que as fotografias existentes nos autos não correspondem à vegetação existente à data do acidente (por tiradas posteriormente), vegetação esta cortada logo após a ocorrência deste, que a vegetação, à data do acidente cobria o separador central e tinha cerca de 1,5 metros de altura, projectando sombras na estrada, e que no local não havia rastos de travagem. A testemunha DD, agente da PSP, não presenciou os factos, tendo conduzido o processo de averiguações já em data posterior. Afirmou ter-se deslocado ao local em data posterior e que mesmo nessa data a vegetação existente no separador central condicionava a visibilidade relativamente a peões que efectuassem a travessia do mesmo. Disse, também, que antes da passagem para peões existia uma lomba (para redução de velocidade), que o veículo terá ficado imobilizado cerca de 4 metros para além da passagem para peões e, finalmente, confirmou o “croquis” de fls. 31. A testemunha EE afirmou que nada data e hora em questão nos autos conduzia um veículo automóvel no sentido Norte / Sul. Estava escuro. Imobilizou o veículo que conduzia antes da passagem para peões porquanto um individuo fez menção de atravessar na referia passagem. O individuo atravessou e uns segundos depois ouviu um estrondo. Deu a volta na rotunda existente uns metros mais à frente e passou a circular no sentido Sul / Norte, verificando, então, que o veículo conduzido pela arguida se encontrava imobilizado já para além da passagem para peões (mais chegado ao separador) e havia um corpo caído no solo cerca de 3 a 4 metros depois. Viu, ainda, que o corpo caído no solo era o do individuo que tinha atravessado a passagem para peões, momentos antes, do outro lado da Avenida. Afirmou, ainda, que no local existe iluminação pública, embora fraca, e que no separador havia árvores e arbustos que, pela dimensão, retiravam visibilidade à passagem para peões. A testemunha FF, marido da arguida, afirmou que circulava no interior do veículo conduzido pela sua esposa, transportando também a filha de ambos. A sua esposa teve que imobilizar o veículo que conduzia antes de entrar na rotunda existente, por força da circulação de outros veículos automóveis, passou, depois, a circular com velocidade reduzida na rotunda e entrou na Avenida em circulação pela faixa da esquerda. A iluminação pública existente era fraca e a vegetação existente no separador não permitia boa visibilidade relativamente ao mesmo. Entretanto, quando o veículo conduzido pela sua mulher estava já em cima da passagem para peões, surge, repentinamente um peão, saído do meio de tal vegetação e envergando roupa escura, iniciando a travessia da via para além da passagem de peões, acabando por ser colhido cerca de 2 a 3 metros para além dessa passagem. Os danos no veículo conduzido pela sua mulher verificaram-se no lado esquerdo deste e, continuou, a vegetação foi entretanto cortada. A testemunha GG, agente da PSP, disse não ter presenciado os factos e que efectuou reportagem fotográfica de fls. 38 e ss. no dia seguinte, reportagem efectuada com base nas informações prestadas pela testemunha CC. A vegetação existente no separador era alta e neste havia um ou outro ponto de passagem. A vítima vivia ali perto e o veículo ter-se-ia imobilizado a cerca de 1,30 metros do separador central. A referida vegetação teria sido cortada no dia seguinte ao do acidente. A testemunha HH nada sabia com interesse para a boa decisão da lide. A testemunha II, agente da PSP, apenas afirmou que à data do acidente a vegetação existente no separador central era alta e que foi cortada no dia seguinte. Todos os depoimentos afiguraram-se sérios, isentos, ponderados, não procurando ir mais além do aquilo que efectivamente presenciaram, logrando, pois, o convencimento do Tribunal relativamente ao afirmado por cada uma das testemunhas. Aqui se incluindo o marido da arguida, dado que, não obstante essa qualidade, não se vislumbrou no seu depoimento qualquer contradição ou qualquer afirmação que possa ser posta em causa pelas regras da experiência comum. Ora, posto isto, quid iuris? Convém, antes de mais, precisar se é admissível (e em que medida) o uso de presunções. É consabido que na formação da sua convicção não está o juiz impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra (in “Direito Probatório Material - BMJ 112/190) que “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”. Mas “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de -continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiencia, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitraria ou dominada por impressões” – cfr. Ac. do STJ de 17/03/04 (Processo n° 265/03), publicado www.dgsi.pt/jstj. Efetivamente a questão do ponto de ancoragem é fundamental, como veremos. Primeiro ponto. Ninguém, com excepção da arguida e da testemunha FF, seu marido, viram como ocorreram os factos. Mesmo a testemunha EE não viu como ocorreram os factos. Segundo ponto. No que respeita às fotografias existentes nos autos a propósito da vegetação no separador central, nenhuma retracta a realidade a ter em conta o no momento do embate. A vegetação existente naquele momento era alta e densa, dificultado a visibilidade e projectando sombras na via de rodagem. Terceiro ponto. Como se infere da análise das fotografias nos autos, não havia, no separador, um ponto específico (por exemplo, cimentado) para passagem de peões através do separador. Ou seja, quem, usando a passagem para peões, pretendesse atravessar a Avenida em toda a sua largura usaria um dos vários pontos existentes no separador e que se foram formando ao longo do tempo (e do uso reiterado) por entre a vegetação. Ora, e recordando que supra se disse a propósito do uso de presunções, caso existisse no local um ponto próprio, especifico, uma espécie de passeio ou ponto cimentado, que permitisse a interligação entre as duas passagens para peões entre os dois lados da Avenida, seria licito presumir que um peão, no atravessamento da Avenida em toda a sua largura, usasse esse mesmo ponto para, assim, descrever uma trajectória linear no uso de ambas as passagens. Porém, dado o que se expendeu supra, essa presunção não pode ser formada pela razão de que tal trajectória linear estava comprometida pela circunstância de inexistir o tal ponto especifico, antes resultando claro que qualquer peão escolhia o ponto (formado ao longo do tempo pelo uso reiterado) que bem lhe aprouvesse. Quarto ponto. O princípio in dubio pro reo tem lugar a propósito do julgamento da matéria de facto e perpassa todas as fases do processo penal. Ora bem, então, na concatenação dos depoimentos e dos documentos juntos aos autos, não há dúvida de que a arguida passou a circular na Avenida, no sentido Sul / Norte e pela via da esquerda. E também não pode haver qualquer dúvida de que a mesma conduzia o seu veículo automóvel a cerca de 33 Km/ h (não só a arguida o afirmou como tal é sugerido, por plausível, pelo relatório junto aos autos – relembrando que a arguida sai de uma rotunda pronunciada e uns metros antes da passagem para peões existe uma lomba) – na ausência de outros elementos e atendendo ao principio “in dúbio pro reo” esta deve ser a velocidade de referência. Aliás, esta questão não é nada despicienda na media em que uma das traves mestras da Acusação deduzida contra a arguida assenta na circunstância de no local haver sinalização vertical com limite de velocidade de 40 Km/h. E se assim é, como compreender que se admita, no próprio texto da Acusação, que a arguida tanto podia circular a 33 Km/ como a 47 Km/h ? Parece-nos evidente que não pode ser e, se a própria Acusação admite como possível que a arguida circulasse a uma velocidade de 33 Km/ h então esta deve ser a velocidade de referência, como acima se explicitou. Segue, pois, perto do separador central (a cerca de 1,30 metros de distância). A iluminação pública é fraca. A vegetação existente no separador é alta e densa, projectando sombras no pavimento e dificultando a visibilidade. Subitamente, imprevisivelmente, surge um individuo a fazer a travessia da Avenida, trajando roupa escura. Usando a dita passagem para peões ou, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, para além desta passagem? Sobre este ponto apenas temos as declarações da arguida e o depoimento do seu marido. Vamos dar de barato que o depoimento do marido da arguida é suspeito e que, por isso, não deve ser credibilizado. É possível formar qualquer presunção a este propósito? Ou seja, é possível, por presunção, colocar o falecido a atravessar a passadeira aquando do momento do embate? É possível, em suma, ter um ponto de ancoragem que permite firmar o facto desconhecido? Não. Veja-se que não há rastos de travagem (o que abona a tese da velocidade reduzida), que o veículo se imobilizou cerca de 5 metros depois da passagem e que a vítima do embate ficou caída no solo cerca de 5 metros à frente deste veículo. A ausência de rastos de travagem sugere que a velocidade era reduzida mas, ainda, que a arguida nem sequer teve tempo de reagir á presença da vitima na estrada, ou seja, que efectivamente esta surgiu inopinadamente na via. E se surgiu subitamente na via e a arguida imprimia uma velocidade de cerca de 33 Km/ h ao seu veículo, atendendo à distância a que a vitima ficou da passagem para peões (cerca de 11 metros), é plausível que o ponto de embate se tenha verificado para além da passagem para peões. É igualmente plausível que a vítima, não obstante a linearidade entre as passagens para peões nos dois lados da Avenida, tenha sentido a necessidade, pela falta de um ponto específico de atravessamento no separador e em função dos arbustos e arvoredo existente, de usar um percurso não linear e, assim, atravessar num outro ponto que não uma que desembocasse directamente na passagem para peões. Ponto esse que, como afirmado, terá sido para além da passagem assinalada no solo. Ou seja, colocar a infeliz vítima na passadeira aquando do momento do embate, por mera presunção, é algo que não é possível. Assim sendo, haverá que credibilizar as declarações da arguida, corroboradas pelo depoimento, credível, da testemunha seu marido e porquanto tais declarações e depoimento não são, claramente, infirmados pelas regras da experiência comum. Em função destas considerações deram-se como provados e não provados os factos supra. No que respeita aos factos atinentes ás condições pessoais, familiares e económicas da arguida o Tribunal entendeu credibilizar as suas próprias declarações. Foi, ainda, tido em conta o CRC junto aos autos. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P. (cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95). João Carrola (relator) Maria Leonor Esteves Gomes de Sousa |