Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
384/21.7T8VRS-A.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Uma vez proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do julgador sobre a questão decidida (cfr. art. 613º CPC).
2 – E logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, a decisão considera-se transitada em julgado (cfr. art. 628º CPC).
3 - Ainda que sejam de âmbito meramente processual, as decisões proferidas têm nele força obrigatória, não podendo o julgador voltar a decidir diferentemente a mesma questão (cfr. art. 620º CPC).
4 – Porém, só existirá ofensa do caso julgado se pudermos concluir que o julgador decidiu de modo diferente considerando o mesmo quadro processual, jurídico e fáctico, que determinou a prolação da primeira decisão.
5 - Ocorrendo circunstância relevante, antes não apreciada, que conduza e justifique decisão diferente da anterior, não existe ofensa do caso julgado, visto que perante o novo quadro não estarão esgotados os poderes do julgador.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 384/21.7T8VRS-A.E1 (1.ª SECÇÃO Cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A - Procede-se a inventário judicial para partilha da herança indivisa aberta por óbito de AA, falecida a ../../2011, e que deixou como sucessores o seu marido, BB, requerente do inventário, e os filhos do casal, BB, que exerce as funções de cabeça de casal, e CC.
B - No decurso do processo, o cabeça de casal (que tinha sido nomeado em substituição do primitivo, seu pai) dirigiu-se ao tribunal, por requerimento de 6.03.2023, com a refª 11049581, dizendo em suma o seguinte:
“BB, interessado nos autos em referência, nomeado que foi para o exercício do cargo de cabeça de casal e para “no prazo de 10 dias, vir aos autos informar se mantém a relação de bens já junta e no caso afirmativo, proceder à junção da documentação em falta, ou se pretende proceder à junção de nova relação de bem”, vem expor e requerer o que segue:
1. O ora requerente é filho de BB.
2. Este, há longos anos, que não tem qualquer contacto com os seus filhos.
3. Sendo certo que nunca os informou que bens foram deixados pela inventariada AA.
4. Sendo certo que nem mesmo o requerente foi capaz de juntar aos autos os documentos atinentes ao prédio relacionado e de identificar o “recheio que se encontra no interior dos dois edifícios a que atribui o valor de € 7.500 (sete mil e quinhentos euros)”.
5. Ora, é o requerente que tem na sua posse o prédio urbano em apreço.
6. E será ele quem paga o IMI respectivo (sendo certo que da nota de liquidação respectiva resultará a identificação do imóvel a partilhar).
7. Assim sendo, não pode o ora designado cabeça de casal cumprir cabalmente a sua obrigação legal.
Termos em que se requer seja notificado o interessado BB para:
a) Vir aos autos informar se paga IMI referente ao imóvel relacionado e, em caso afirmativo, para juntar a respectiva notificação da Autoridade Tributária;
b) Entregar ao ora requerente as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.
Tudo com o propósito de o cabeça de casal ora designado, juntar aos autos nova relação de bens.”
C - Sobre este requerimento recaiu despacho a 28.03.2023, com a refª127845898, com o seguinte teor:
Atentos os motivos invocados, os quais se mostram atendíveis, defere-se o requerido e consequentemente determina-se a notificação do Requerente BB para, no prazo de 10 dias: Vir aos autos informar se paga IMI referente ao imóvel relacionado e, em caso afirmativo, para juntar a respectiva notificação da Autoridade Tributária;
- Entregar ao ora requerente as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.”
D - O interessado BB foi notificado deste despacho, e veio então aos autos apresentar requerimento a 11.04.2023, refª 11178345, nos termos seguintes:
“BB na qualidade de Interessado vem informar que confirma a sua incapacidade de exercer a administração da herança, em razão de sua idade avançada, reconhecendo a necessidade de nomear seu patrono como representante legal para assumir as responsabilidades do cargo de cabeça de casal.
Neste sentido, estabelece o Código Civil:
Artigo 2082 - 1. Se o cônjuge, o herdeiro ou o legatário que tiver preferência for incapaz, exercerá as funções de cabeça-de-casal o seu representante legal.
Ademais, em atendimento ao despacho datado de 28/03/2023 (Referência nº 11049581), o peticionante ressalta que sempre exerceu as responsabilidades financeiras/fiscais do imóvel com prudência e zelo.
Convém salientar sobre o impedimento da entrega das chaves do imóvel, considerando que o referido prédio é morada fixa e domicílio fiscal de BB, consequentemente, encontrando-se no local todos seus pertences pessoais.
Por fim, diante do exposto, requer o prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado aos autos, a respectiva procuração com poderes especiais em favor do representante legal, e, posteriormente, seja marcada a vistoria no imóvel, na presença de todos os envolvidos, visando identificar e relacionar os móveis guardados no local e assim proceder o consequente prosseguimento processual.”
E – Perante este requerimento, foi proferido novo despacho a 12.04.2023 (refª 127987714):
“Notificado para vir aos autos informar se paga IMI referente ao imóvel relacionado e, em caso afirmativo, para juntar a respectiva notificação da Autoridade Tributária e entregar ao novo Cabeça-de-Casal as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, veio o Requerente BB requerer o prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado aos autos, uma procuração com poderes especiais em favor do seu representante legal.
Invoca, em suma, que se encontra incapacitado de exercer a administração da herança, em razão de sua idade avançada, reconhecendo a necessidade de nomear seu patrono como representante legal para assumir as responsabilidades do cargo de cabeça de casal.
Em primeiro lugar, importa referir que o Requerente BB, foi escusado do cargo de Cabeça-de-Casal, nos termos do art. 1339º, do CPC e do art. 2085º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Civil, por despacho datado de 08.02.2023, do qual foi notificado (cfr. ref.ª 127388187).
Ou seja, não carece o Requerente BB de qualquer representante legal para exercer, em seu nome, funções que já não assume desde há mais de dois meses.
Por outro lado, importa esclarecer que, mesmo que o Requerente BB se mantivesse no cargo de cabeça-de-casal, para que o exercício dessas funções passasse a ser feito por um representante legal, nos termos do art. 2082º, do Código Civil, não bastava que aquele declarasse a sua incapacidade “de facto”. Sempre essa eventual incapacidade teria que ser reconhecida e declarada formalmente por decisão judicial, o que não aconteceu no caso do Requerente BB.
Por fim, importa também chamar a atenção para o facto de a eventual incapacidade do Requerente o inviabilizar para a outorga de “uma procuração com poderes especiais em favor do seu representante legal”.
Face ao exposto, por falta de cabimento legal, indefere-se o requerido pelo Requerente BB e reitera-se o já anteriormente decidido, ou seja, determina-se a sua notificação para, no prazo de 10 dias, conceder o acesso ao novo Cabeça-de-Casal nomeado nos autos (ainda que na presença dos ilustres mandatários) ao interior do imóvel relacionado, de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.”
F – Notificado deste despacho o cabeça de casal de imediato apresentou novo requerimento, a 18-04-2023 REFª: 45328829:
“BB, ..., cabeça de casal nos presentes autos, notificado do teor do presente despacho de 12.04.2023, vem, ao abrigo do disposto 614º nº 1 do C.P.C., requerer o que segue:
1 - Por despacho de 28.03.2023 foi decidido notificar o “Requerente BB para, no prazo de 10 dias, entregar ao ora requerente (o cabeça de casal) as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.”
2. Ocorre que no despacho ora em apreço (de 12.04.2023) foi decidido notificar o referido BB para “no prazo de 10 dias, conceder acesso ao novo cabeça-de-casal nomeado nos autos (ainda que na presença dos restantes mandatários) ao imóvel ao interior do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.”
3. Salvo mais esclarecida leitura, o presente despacho parece contrariar (ainda que parcialmente) a anterior decisão (que ordenou a entrega das chaves ao cabeça-de-casal para que este administrasse o imóvel pertencente ao acervo hereditário).
4. De facto, só a entrega das chaves do imóvel ao cabeça-de-casal o habilita a administrá-lo (v.g. arrendá-lo a terceiros) em benefício da herança (cf. artigos 2079º e 2088º do Código Civil).
5. A inexatidão do despacho ora em apreciação resulta de lapso manifesto.
Termos em que se requer seja retificado o despacho de 12.04.2023 em consonância com o teor do despacho de 28.03.2023.”
G – A este requerimento respondeu o Tribunal por novo despacho, de 19.04.2023 (refª 128083662), mantendo o anterior despacho de 14-03-2023:
“Vem o Cabeça-de-Casal BB requer a rectificação do despacho de 12.04.2023, em consonância com o teor do despacho de 28.03.2023.
Alega, em suma, que o actual despacho parece contrariar a anterior decisão (que ordenou a entrega das chaves ao cabeça-de-casal para que ste administrasse o imóvel pertencente ao acervo hereditário), uma vez que só a entrega das chaves do imóvel ao cabeça-de-casal o habilita a administrá-lo (v.g. arrendá-lo a terceiros) em benefício da herança (cf. artigos 2079º e 2088º do Código Civil).
Cumpre apreciar e decidir.
É facto que no despacho datado de 28.03.2023, o Tribunal ordenou «a notificação do Requerente BB para, no prazo de 10 dias (…) entregar ao ora requerente as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel».
Mas fê-lo, no pressuposto que não vivia lá ninguém.
Contudo, por requerimento datado de 11.04.2023, o Interessado BB veio informar, entre o mais, o Tribunal que «convém salientar sobre o impedimento da entrega das chaves do imóvel, considerando que o referido prédio é morada fixa e domicílio fiscal de BB, consequentemente, encontrando-se no local todos seus pertences pessoais».
Foi com base nesta informação que o Tribunal proferiu o despacho de 12.04.2023, no qual ordenou «a sua (de BB) notificação para, no prazo de 10 dias, conceder o acesso ao novo Cabeça-de-Casal nomeado nos autos (ainda que na presença dos ilustres mandatários) ao interior do imóvel relacionado, de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.»
Salvo melhor opinião, a administração pelo Cabeça-de-Casal de um imóvel que integre o acervo hereditário e que se encontre habitado por um dos interessados, deve fazer-se sem pôr em causa a privacidade e a reserva da vida privada do mesmo e tal não pode ser garantido se lhe for entregue uma cópia das chaves com o fim de arrendá-lo a terceiros.
Estando garantido ao Cabeça-de-Casal e sempre que assim se mostre necessário – nem que seja por ordem judicial – o acesso ao interior do dito imóvel, de maneira que aquele possa tomar conhecimento dos bens móveis que aí se encontrem e que compõem a herança e para bem administrar os mesmos, julga-se desproporcionada também a entrega ao Cabeça-de-Casal a entrega de uma cópia das chaves do prédio.
Nessa medida, indefere-se o requerido pelo Cabeça-de-Casal e decide-se manter o despacho anteriormente proferido.”
H – Em face deste despacho, o cabeça de casal instaurou o presente recurso de apelação, o qual foi depois admitido e mandado subir a este Tribunal da Relação.
*
II – O RECURSO
A terminar as suas alegações de recurso, o cabeça de casal apresenta as seguintes conclusões:
1. O despacho em crise (despacho de 12.04.2023, com a refª 127987714) alterou/retificou uma anterior decisão (despacho de 28.03.2023, com a refª 127845898) por si proferida sobre a mesma questão e já transitada em julgado.
2. Violou assim o disposto nos artigos 613º, 614º e 619º do CPC.
3. Pelo que deve ser revogada a decisão recorrida (mantendo-se em vigor ou repristinando-se o despacho de 28.03.2023, com a refª 127845898), no que tange à entrega pelo requerido ao requerente, cabeça de casal nos autos, das chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
III – DA FACTUALIDADE A CONSIDERAR
A decisão a proferir sobre o recurso depende exclusivamente da aplicação do Direito, tendo em conta as incidências processuais expostas no relatório inicial, para o qual remetemos.
*
IV – DO OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, tendo em conta as conclusões apresentadas, a questão colocada ao tribunal de recurso traduz-se em saber se a decisão constante do despacho proferido a 28.03.2023 constitui caso julgado, daí resultando a invalidade do despacho proferido a 12.04.2023 na parte referida pelo recorrente.
*
V – APRECIANDO E DECIDINDO
Passamos então a decidir do objecto do recurso, tal como ficou delimitado nas conclusões acima transcritas.
Como se verifica, no despacho de 28.03.2023, na parte relevante para os efeitos deste recurso, o tribunal determinou a notificação do interessado BB para no prazo de dez dias “entregar ao ora requerente (o cabeça de casal) as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel”.
Trata-se da verba n.º 1 da relação de bens apresentada (ainda pelo anterior cabeça de casal, precisamente o interessado BB), sendo que a verba n.º 2 é genericamente indicada como sendo constituída pelos bens móveis que integram o recheio desse imóvel e que aí se encontram.
Tal determinação judicial surgia no seguimento de requerimento do cabeça de casal, que alertava para o facto de não poder cumprir cabalmente as suas funções legais, nomeadamente apresentando relação de bens onde se identificasse o recheio que se encontra no interior do imóvel, recheio mencionado na relação de bens original como tendo o valor global de € 7.500 (sete mil e quinhentos euros), uma vez que esse imóvel estava na posse do interessado BB.
Na sequência da sua notificação, o interessado em causa não recorreu de tal decisão, apresentando no entanto requerimento em que alegava ser esse imóvel sua residência pessoal e, embora não expressamente, manifestou discordar da determinação da entrega das chaves: “Convém salientar sobre o impedimento da entrega das chaves do imóvel, considerando que o referido prédio é morada fixa e domicílio fiscal de BB, consequentemente, encontrando-se no local todos seus pertences pessoais.
E foi então que foi proferido o despacho recorrido, no qual o juiz do processo conclui, em resposta ao interessado BB, dizendo que “reitera-se o já anteriormente decidido, ou seja, determina-se a sua notificação para, no prazo de 10 dias, conceder o acesso ao novo Cabeça-de-Casal nomeado nos autos (ainda que na presença dos ilustres mandatários) ao interior do imóvel relacionado, de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel.
Notificado disto, o cabeça de casal entendeu que este dispositivo contrariava o decidido anteriormente, ao menos em parte, pelo que requereu a sua rectificação, tendo no entanto o tribunal mantido a segunda decisão, declarando que a entrega das chaves se apresentava desproporcionada, atenta a necessidade de respeitar a privacidade do residente, e explicando que ao determinar a entrega das chaves o tinha feito num pressuposto errado: “fê-lo, no pressuposto que não vivia lá ninguém”.
Ora, garantindo o acesso do cabeça de casal da forma como consta do segundo despacho, estavam satisfeitas as finalidades em vista, sendo desnecessária a entrega das chaves.
É contra a possibilidade legal deste segundo entendimento que reage o recorrente, pretendendo que deve prevalecer a primeira decisão, já que a esse respeito ficou esgotado o poder jurisdicional do julgador.
Entende o recorrente que o segundo despacho “violou assim o disposto nos artigos 613º, 614º e 619º do CPC.
Verificando as aludidas disposições legais, temos que o art. 613º, referente à extinção do poder jurisdicional do julgador, estabelece que “1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa” e que tal estatuição aplica-se também aos despachos (cfr. o n.º 3).
Por seu turno, o art. 614º, limitando os efeitos do artigo anterior, prevê a possibilidade de rectificação de erros materiais, o que não será obviamente o caso.
De seguida, o art. 619º vem estabelecer, quanto aos efeitos do trânsito em julgado, que uma vez transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele.
Terá razão o recorrente?
Constata-se que na realidade a decisão proferida no despacho de 28.03.2023, tendo presente o conceito definido pelo art. 628º do CPC, transitou em julgado, visto que nunca sobre ela recaiu recurso ordinário ou reclamação, e há muito passou o momento para tal.
O trânsito em julgado, conforme decorre do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário.
Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
Ora, nesse despacho, transitado, o juiz determinou a notificação do interessado BB para no prazo de dez dias “entregar ao ora requerente (o cabeça de casal) as chaves do imóvel relacionado de forma a que este possa identificar os bens móveis a relacionar, bem assim como administrar o referido imóvel”.
O notificado BB não recorreu desse despacho, tal como agora não contra-alegou no recurso.
Mas estaremos perante caso julgado material? As disposições legais invocadas pelo recorrente apontariam para esse entendimento, visto que o art. 619º do CPC prevê precisamente a figura do caso julgado material.
Recorde-se que o caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.
Porém, como é patente da simples leitura do art. 619º do CPC, o caso julgado material diz respeito ao conhecimento da causa, a decisões sobre a matéria que é objecto do processo, pressupõe uma qualquer decisão de mérito, que se impõe dentro e fora do processo em que é proferida.
Ora, como é intuitivo, esta decisão aqui em análise não versou sobre a matéria da causa – na realidade estamos perante um inventário, que tem por objecto o relacionamento e a partilha de um património indiviso.
A decisão proferida tem natureza instrumental, adjectiva, visa criar as condições para que as finalidades do processo sejam atingidas, tendo por isso eficácia apenas no âmbito do processo em que foi proferida.
Deste modo, conclui-se que não estamos perante decisão que possa constituir caso julgado material, visto que não incide sobre qualquer questão que tenha a ver com o mérito da causa.
Todavia, ao lado do caso julgado material, assente sobre uma decisão de mérito, regulada no artigo 619.º do CPC, existe a figura do caso julgado formal, baseada em decisão proferida apenas para o âmbito do processo, sobre questões processuais, e que tenha transitado em julgado (questões que serão, em termos simples, por exclusão de partes, todas as que não se reconduzam a questões de mérito e ainda as que não sejam susceptíveis de recurso, nos termos do art. 630º CPC).
Esta segunda figura, o “caso julgado formal”, está regulada no artigo 620.º do CPC. Efectivamente, dispõe o art. 620º, n.º 1, do Código de Processo Civil, prevendo a figura do caso julgado formal, que:
“1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Tanto o caso julgado material como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão, sendo certo que o primeiro também pressupõe a existência do segundo.
Mas estaremos então perante uma situação de caso julgado formal, já que lhe negamos a natureza de caso julgado material?
Afigura-se que sim, uma vez que estamos inegavelmente perante uma decisão destinada a regular questões processuais e que não sofreu qualquer recurso ou reclamação (sendo certo que sempre admitiria apelação autónoma, ao abrigo do art. 644º, n.º 2, al. h), do CPC, visto que a relegar-se para final a sua impugnação esta, de forma evidente, seria absolutamente inútil – a entrega das chaves estaria consumada).
Assim sendo, concordamos com o recorrente quando este alega que a decisão contida no primeiro despacho assumiu a natureza de caso julgado, na modalidade de caso julgado formal.
Contudo, importa ter presentes os limites à eficácia do caso julgado, tendo presente nomeadamente o disposto no art. 621º do CPC.
Como se sublinha no Acórdão da Relação de Lisboa de 30-03-2023 no processo n.º 9421/20.1T8SNT.L1-2, relator Vaz Gomes (in www.dgsi.pt), “importa notar que qualquer decisão transitada em julgado – de mérito ou de forma – durará rebus sic stantibus: enquanto não sobrevierem alterações subjetivas ou objetivas aos direitos declarados na sentença ou na situação processual que foi objeto de despacho. Em termos simples: uma decisão produz efeitos enquanto não se modificarem as circunstâncias que foram determinantes para o seu teor e sentido. Que modificações são relevantes? Aquelas que sejam jurídica ou fisicamente incompatíveis tanto com a parte dispositiva, como com os fundamentos da decisão.”
Ou seja, o caso julgado formal mantém a sua eficácia enquanto e se não ocorrerem modificações no quadro que determinou a decisão, no que se refere aos pressupostos jurídicos e fácticos que o determinaram.
Recapitulando, agora citando a explicação exposta no Acórdão do STJ de 17-10-2023, no processo n.º 3372/18.7T8VNF.G2.S1, relator Ricardo Costa (in www.dgsi.pt):
“O art. 620º, 1, do CPC estatui:
«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»
Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:
i. as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);
ii. o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.
Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida”.
Quer dizer, a impugnação deduzida pelo recorrente depende da demonstração de que o despacho contra o qual se insurge constitui ofensa do caso julgado, mas só existirá ofensa do caso julgado se pudermos concluir que o julgador decidiu de modo diferente considerando o mesmo quadro, jurídico e fáctico, que determinou a prolação da primeira decisão.
A determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da decisão, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.
Ocorrendo circunstância relevante, antes não apreciada, que conduza e justifique decisão diferente da anterior, então não existe ofensa do caso julgado. Não estarão esgotados os poderes do julgador a respeito da questão de novo colocada, nos novos termos.
Ora na situação em apreço o julgador apontou a circunstância que considerou relevante para o efeito, e que efectivamente altera por completo as razões para decidir.
No primeiro momento, deparou-se com a necessidade de facultar o acesso do cabeça de casal, para o exercício dos deveres próprios da sua função, a um imóvel que, de acordo com os dados fornecidos pelo requerimento a que respondia, estava na posse de um determinado interessado. E nesse condicionalismo o julgador não descortinou obstáculo legal a que fossem fornecidas as chaves respectivas ao cabeça de casal.
No segundo momento o julgador foi colocado perante o facto (assente, face às posições dos contendores) de tal imóvel constituir o domicílio do referido interessado. Não podia o julgador deixar de ter em conta esta nova razão para decidir, não considerada, por desconhecida, no primitivo despacho, e que assume obviamente a maior relevância jurídica.
Na realidade a Constituição da República Portuguesa proclama com ênfase princípios tendentes a consagrar a reserva da intimidade da vida privada e a inviolabilidade do domicílio (cfr. arts. 26º e 34º da CRP). Estamos perante direitos fundamentais, incompatíveis com uma decisão que, em rigor e tal como se perfila, permitia o acesso livre de outrem ao domicílio do interessado, não só para relacionamento dos bens que ali se encontrassem como até para administrar o imóvel e quiçá arrendá-lo (!).
Consequentemente, confrontado com esse dado novo, o tribunal procurou por um lado assegurar as finalidades próprias do inventário, ordenando ao interessado que permitisse o acesso ao local, mas retirou a determinação da entrega das chaves, com o inerente livre acesso do cabeça de casal.
Cremos que agiu bem o juiz do processo, e não ofendeu o anterior caso julgado, pois que o quadro determinativo da decisão, os pressupostos desta, jurídicos e fácticos, são diferentes. Podia e devia o julgador substituir a primeira disposição por uma nova, mais consentânea com as razões que agora se perfilavam.
Deste modo, conclui-se que improcede o recurso interposto pelo cabeça de casal, devendo manter-se o decidido no despacho proferido a 12.04.2023 com a refª 127987714 e não o despacho de 28.03.2023, com a refª127845898, como era pretensão do recorrente.
E, visto que estão assim decididas as questões suscitadas no recurso, resta-nos concluir, terminando de acordo com toda a fundamentação que ficou exposta.
*
VI - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação em apreço, mantendo a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, dado o seu decaimento (cfr. art. 527º, n.º 1, parte final, do CPC).
*
Évora, 23 de Maio de 2024
José Lúcio
Graça Araújo
Elisabete Valente