Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS PENHORA | ||
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Data do Acordão: | 05/16/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - os privilégios imobiliários gerais, que têm natureza excecionalíssima, não constituem direitos reais de garantia, pois não incidem sobre bens determinados; - os direitos de crédito de que são titulares as instituições da segurança social, que gozam de privilégio imobiliário geral, não prevalecem sobre os direitos de crédito garantidos por hipoteca; - no respetivo e exclusivo confronto, os direitos de crédito de que são titulares as instituições da segurança social, que gozam de privilégio imobiliário geral, prevalecem sobre os direitos de crédito garantidos por penhora; - uma vez que o crédito exequendo, garantido pela penhora, beneficia, em relação ao crédito reclamado garantido por hipoteca, de prioridade do registo, a graduação entre estes e o crédito reclamado pela Segurança Social opera-se pela ordem seguinte: 1.º - o crédito exequendo, 2.º - o crédito garantido por hipoteca, 3.º - o crédito da segurança Social. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Exequente: (…), Lda. Recorridos / Reclamantes: Centro Distrital de Santarém da Segurança Social CCAM de (…), CRL No âmbito da ação executiva que (…), Lda. move a (…) – Investimentos Imobiliários, Lda., tendo-se operado a conversão do arresto em penhora com referência a 06/10/2015, foram deduzidas as seguintes reclamações de créditos: - pelo Centro Distrital de Santarém da Segurança Social, crédito decorrente de contribuições referentes aos meses de Agosto a Novembro de 2015, acrescidas de juros de mora, pelo valor global de € 2.502,00; - pela CCAM de (…), CRL, crédito decorrente de empréstimo garantido por hipoteca levada a registo a 09/10/2015, pelo valor global de € 433.476,80. II – O Objeto do Recurso Foi proferida sentença julgando reconhecidos os créditos reclamados e graduando-os, para efeitos de pagamento pelo produto do bem imóvel penhorado (fração autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé com o n.º …), conforme segue: «1) Créditos reclamados pela CCAM…, CRL, e respetivos juros, vencidos e vincendos; 2) Créditos reclamados pela Segurança Social, e respetivos juros, vencidos e vincendos, com o limite previsto no art. 796.º, n.º 3, do NCPC; 3) Créditos exequendos, e respetivos juros, vencidos e vincendos.» Inconformada, a Exequente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que gradue em primeiro lugar o crédito exequendo, seguindo-se o crédito hipotecário e por fim os créditos da segurança social. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos: «a) Recorre-se da douta Sentença nos autos referenciados, na parte em que se pronunciou sobre as reclamações de créditos apresentadas e a consequente graduação dos mesmos. b) A graduação efetuada ofende a prioridade determinada pelas inscrições de registo predial, efetuadas sobre a fração objeto de penhora. c) Resulta da descrição da fração registada na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n. º (…), que o Credor ora Recorrente procedeu ao registo de Procedimento Cautelar de Arresto, pela AP (…), de 2015/10/06, ou seja, antes do registo da hipoteca do credor que foi graduado em primeiro lugar, o qual só se verificou pela AP (…), de 2015/10/09. d) A Penhora registada sobre a fração AA, pela AP (…), de 2017/04/28, retroage os seus efeitos à data do registo do – 2015/10/06. e) O crédito hipotecário graduado na sentença recorrida em primeiro lugar, tem por base uma hipoteca que foi registada posteriormente ao registo da penhora a favor do ora Recorrente. f) O Artigo 6º, n.º 1, do C.R.Predial estabelece a prioridade do registo, estipulando que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data de registos. g) O Artigo 822º, n.º 1, do C.Civil determina que o Exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior. h) O Recorrente tem pois legítimo direito a ser pago com preferência sobre qualquer outro credor, mesmo que hipotecário. i) O crédito exequendo do ora Recorrente tem assim prevalência de pagamento, ao se seguirá o credito hipotecário e por último o crédito da Segurança Social. j) Devendo assim ser dado provimento ao Recurso, e consequentemente, revogando-se a douta Sentença no que à graduação de créditos respeita, sendo determinado que o crédito do Recorrente é graduado em primeiro lugar, em segundo o crédito hipotecário da CCAM…, CRL e por fim, os créditos da Segurança Social.» Não foram apresentadas contra-alegações. Cumpre apreciar o modo de graduação dos concretos créditos aqui em confronto, a saber, o crédito exequendo, o crédito reclamado pela CCAM…, CRL e o crédito reclamado pelo CDSS. III – Fundamentos A – Dados a considerar 1 – Sobre a fração autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé com o n.º (…) incide penhora resultante da conversão de arresto com data de 06/10/2015. 2 – O crédito reclamado pelo Centro Distrital de Santarém da Segurança Social, respeita a contribuições referentes aos meses de Agosto a Novembro de 2015, acrescidas de juros de mora, ascendendo ao valor global de € 2.502,00. 3 – O crédito reclamado pela CCAM de (…), CRL decorre de empréstimo garantido por hipoteca levada a registo a 09/10/2015, pelo valor global de € 433.476,80. B – O Direito Da graduação dos créditos A questão que constitui objeto do presente recurso consiste em saber como devem graduar-se os créditos que aqui estão em confronto. Desde logo, o crédito exequendo goza da garantia dada pela penhora. Ao exequente assiste o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, sendo que a anterioridade da penhora se reporta à data do arresto – cfr. art. 822.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Donde, a penhora configura uma garantia real cuja prioridade é aferida pelo registo; a preferência de pagamento em face de outras penhoras, hipotecas ou consignação de rendimentos depende da data do respetivo registo. O crédito reclamado pela CCAM está garantido por hipoteca com registo em data posterior ao do arresto/penhora. Este credor reclamante deve ser pago pelo valor do bem imóvel hipotecado com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – cfr. art. 686.º, n.º 1, do CC. Atentando-se nestes dois créditos em confronto, é manifesto que se impõe o pagamento do crédito exequendo com preferência sobre o crédito hipotecário. O crédito reclamado pelo CDSS goza de privilégio imobiliário geral, estatuindo o art. 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social que gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil. Ou seja, em atenção à causa do crédito, goza da faculdade de, independentemente do registo, ser pago com preferência a outros credores (cfr. art. 733.º do CC), e gradua-se logo a seguir aos créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações (cfr. al. a) do art. 748.º do CC) e aos créditos das autarquias locais, pela contribuição predial (cfr. al. b) do art. 748.º do CC). Importa, no entanto, compaginar o regime decorrente do citado art. 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social com aquele que resulta das disposições conjugadas dos arts. 686.º, n.º 1, 749.º e 751.º do CC, na versão ora em vigor.[1] É que, por via do regime consagrado no CC, a hipoteca tem preferência sobre credores que não gozem de privilégio especial (art. 686.º, n.º 1, do CC), o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente (art. 749.º, n.º 1, do CC), sendo que só os privilégios especiais preferem à hipoteca, e não já os privilégios gerais (art. 751.º do CC). Uma vez que os privilégios imobiliários gerais tem natureza excecionalíssima, não incidem sobre bens determinados nem estão sujeitos a registo, afetando gravemente direitos de terceiros, consubstanciam meras preferências de pagamento só suscetíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns.[2] Por via do exposto, no respetivo confronto, o crédito garantido por hipoteca deve ser graduado com preferência sobre o crédito reclamado pelo CDSS. No caso que temos em mãos, o crédito exequendo, garantido pela penhora, precede o crédito garantido pela hipoteca. Tal crédito deve preceder também o crédito reclamado pelo CDSS, que goza de privilégio imobiliário geral? Estando em confronto apenas estes dois credores, deve ter preferência a segurança social. Desde logo, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado reiteradamente no sentido de não se verificar inconstitucionalidade do regime legal quando interpretado no sentido de o privilégio creditório geral conferido às instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da penhora sobre determinado imóvel.[3] Os argumentos avançados são essencialmente os seguintes[4]: - o direito executivo português orienta-se pelo princípio da prioridade, embora tal princípio beneficie não só o exequente, como qualquer credor com garantia real sobre os bens penhorados; por isso, a regra da par condicio creditorum (que exprime a condição de equivalência em que se encontram os credores) tem mais relevância como critério de distribuição das perdas na ação falimentar do que como critério de satisfação dos vários credores na ação executiva singular; - a situação do credor comum que obteve a preferência resultante do registo da penhora tem uma garantia fortemente limitada, pois todo e qualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir pagamentos, mostrando que foi requerido processo especial de recuperação da empresa ou da falência do executado, não sendo atendida na graduação de créditos a preferência resultante da penhora; - só excecionalmente a penhora ocorrerá antes da existência do crédito da Segurança Social; - pela própria natureza da penhora, que não resulta de um específico negócio jurídico, não se verifica lesão desproporcionada do comércio jurídico; - não estamos perante um desproporcionado privilégio da segurança social, afetando um direito real de garantia plena que incide ab origine sobre determinado imóvel e em que a dívida exequenda resulta de um negócio jurídico celebrado no pressuposto da constituição desse mesmo direito real de garantia; pelo contrário, a garantia dos credores comuns é todo o património do devedor, mas não qualquer bem específico, sendo sobretudo função da penhora a individualização desses bens que hão de responder pela dívida; - não se revela “arbitrária, irrazoável ou infundada” a consagração do privilégio a favor da Segurança Social, não se verificando uma afetação “inadmissível, arbitrária ou excessivamente onerosa” da confiança, já que a preferência resultante da penhora é de, algum modo, temporariamente aleatória. Por via do disposto nos arts. 205.º do CRCSPSS e 748.º do CC, o crédito da Segurança Social prevalece sobre a penhora. Além disso, o n.º 1 do art. 749.º do CC não estabelece qualquer hierarquização entre o crédito com privilégio creditório geral e o crédito garantido por penhora, limitando-se a proteger direitos de terceiro que, sendo oponíveis ao exequente, recaiam sobre as coisas do devedor (executado) abrangidas pelo privilégio (e eventualmente pela penhora). Os direitos em causa (oponíveis ao credor exequente) são aqueles que não podem ser atingidos pela penhora, neles se integrando, não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, mas também os direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído, registados em data anterior à penhora.[5] Diversamente, pois, do crédito hipotecário, o crédito garantido por penhora é precedido pelo crédito da Segurança Social, no confronto entre ambos.[6] A questão assume, neste caso, complexidade decorrente da circunstância de a penhora ter prevalência sobre a hipoteca, dada a prioridade de inscrição no registo. O crédito exequendo prevalece sobre o crédito hipotecário que, por sua vez, prevalece sobre o crédito da Segurança Social; porém, este prevalece sobre o crédito exequendo… Neste quadro circunstancial, a aparente contradição insanável há de desbloquear-se, no nosso entender, levando-se em conta o caráter excecional do art. 205.º do CRCSPSS que, por via disso, deve ser interpretado restritivamente: o direito de crédito garantido pela penhora só é preterido pelo direito de crédito da Segurança Social garantido por privilégio imobiliário geral no confronto concursal exclusivo entre eles.[7] Na verdade, conforme tem vindo a ser evidenciado na jurisprudência e na doutrina, designadamente na aqui citada, os privilégios creditórios em geral assumem uma natureza excecional, pois que, à margem do princípio da autonomia privada, afetam o princípio da igualdade entre os credores – cfr. art. 604.º, n.º 1, CC. As sucessivas alterações legislativas em matéria de privilégios creditórios e graduação de créditos em geral, relativamente a entidades públicas, fazem pressupor um Estado atento e atuante, no objetivo louvável da sustentabilidade do Estado Social, não um Estado que tira proveito de eventual violação, a seu favor, dos princípios da igualdade e da confiança entre os credores – art. 604.º, n.º 1, CC. Esta linha de orientação tem sido adotada na jurisprudência mais recente, em casos de aparente contradição na graduação de créditos, evidenciando-se o Ac. TRE de 05/11/2015 (Mário Serrano), Ac. TRG de 31/03/2016 (António Santos), Ac. TRP de 11/09/2018 (Vieira e Cunha). Por via do exposto, a graduação dos créditos aqui em confronto opera-se pela ordem seguinte[8]: - crédito exequendo; - crédito reclamado pela CCAM; - crédito reclamado pelo CDSS. Termos em que procedem as conclusões da alegação do presente recurso. Sem custas, por no caso não serem devidas. Concluindo: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida no que respeita à graduação dos créditos reconhecidos, que vão graduados conforme segue: 1.º - o crédito exequendo; 2.º o crédito reclamado pela CCAM…, CRL; 3.º o crédito reclamado pelo CDSISS. Sem custas. Évora, 16 de Maio de 2019 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Maria Domingas Simões Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] As alterações legislativas foram impulsionadas pela jurisprudência emanada do Tribunal Constitucional, citada na sentença recorrida, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do art. 205.º do CRCSPSS por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à segurança social preferia à hipoteca nos termos do art. 751.º do CC. Ultrapassada está, pois, a referida questão de inconstitucionalidade. [2] Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 2.ª edição, pág. 249. [3] Acórdão n.º 193/03, de 9.4.2003 (Processo nº 527/02 da 1ª Secção), relatado pelo Conselheiro Luís Nunes de Almeida, publicado na II Série do D. R. de 2.7.03, pág. 9864; Acórdão n.º 697/04, de 15.12.2004 (Processo n.º 350/03, 3.ª Secção), relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, publicado na II Série do D. R. de 11.2.05, pág. 1994; e Acórdão n.º 231/07, de 28.3.2007 (Processo nº 119/2007, 2ª Secção), relatado pela Conselheira Fernanda Palma, publicado na II Série do D. R. de 23.5.07, pág. 13801. [4] Assim devidamente elencados no Ac. TRG de 03/11/2016 (Pedro Damião e Cunha). [5] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, pág. 769. [6] Entre muitos outros, cfr. Ac. TRG citado, Ac. TRE de 18/04/2013 (Maria Alexandra Santos), Ac. TRP de 21/06/2016 (Eduardo Petersen Silva), Ac. TRL de 07/02/2019 (Arlindo Crua). Cfr., ainda, Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, pág. 398, nota 1121, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 253. [7] Cfr. Salvador da Costa, ob. cit. pág. 250 a 252, visando o concurso entre crédito garantido por penhor, crédito do Estado ou de autarquias locais e crédito da Segurança Social com privilégio mobiliário geral. [8] O que não implica em inconstitucionalidade, como se refere na decisão recorrida, pois da declaração do TC no sentido de não se verificar inconstitucionalidade do regime legal quando interpretado no sentido de o privilégio creditório geral conferido às instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da penhora não resulta que seja inconstitucional, neste concreto circunstancialismo, a prevalência da penhora sobre o referido privilégio creditório geral. E, manifestamente, não resulta violado (antes resulta acautelado) o princípio da confiança consagrado no art. 2.º da CRP. |