Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | EXECUÇÃO DE COIMAS E CUSTAS COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAL AUTORIDADE TRIBUTÁRIA IRRECORRIBILIDADE | ||
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Data do Acordão: | 11/29/2023 | ||
Votação: | DECISÃO SUMÁRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Sendo a coima uma sanção pecuniária aplicada num procedimento administrativo, nem por isso pode considerar-se prevista na al. c) do § 2.º do artigo 148.º CPPT, por não constituir mera «sanção pecuniária», na medida em que o Ilícito de Mera Ordenação Social integra o perímetro do direito penal (direito penal administrativo). II. Por tal razão a cobrança de coima não paga voluntariamente pode e deve ser executada nos tribunais comuns. III. Já a cobrança das custas dos processos contraordenacionais deve executar-se através da autoridade tributária, em conformidade com o que preveem os artigos 35.º do Regulamento das Custas Processuais, conjugado com os artigos 148.º CPPT, 61.º, 88.º e 89.º do Regime Geral das Contraordenações (RGC - (DL n.º 433/82, de 27 de outubro) e 64.º do CPC. IV. Os recursos das decisões judiciais proferidas nos processos contraordenacionais são apenas os previstos no artigo 73.º do RGC. V. Não sendo admissível recurso do despacho judicial em que se declara a incompetência material do Juízo respetivo para a execução da coima de 45€ e das custas que não foram pagas voluntariamente. | ||
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Decisão Texto Integral: | DECISÃO SUMÁRIA I – Nota preliminar (artigo 420.º, § 1.º, al. b) CPP) No exame preliminar constata-se que o recurso deve ser rejeitado, por o despacho judicial que se impugna, pelo qual o Juízo de Olhão se declarou incompetente em razão da matéria para a execução que se requeria, ser irrecorrível, nos termos que resultam dos artigos 73.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGC) e 417.º, § 6.º e 420.º, § 1.º, al. b) do Código de Processo Penal (CPP). II – Da tramitação processual a) O Ministério Público apresentou requerimento executivo visando a cobrança de coima e custas processuais que é devida ao Município de Olhão. b) A Mm.a Juíza do Juízo de Olhão declarou a incompetência absoluta daquele Juízo para tramitar a intentada ação executiva, considerando competente para aquele efeito a Autoridade Tributária, em conformidade com o que decorre do artigo 35.º do Regulamento das Custas Processuais (após as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março. Tal decisão tem o seguinte teor: «Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima devida ao Município de Olhão. Estabelece o actual art.° 35.° do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.° 27/2019, de 28/03) o seguinte: 1. Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial. 2. Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas. 3. Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu. 4. A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. 5. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil. Com a atual redacção da sobredita norma, o Ministério Publico no âmbito da jurisdição criminal junto dos Juízos Locais criminais tem competência unicamente para instaurar execução por multa devida nos processos e indemnizações arbitradas aos ofendidos/vitimas dos processos criminais. Todos os demais valores são cobrados pela A.T. após emissão da competente certidão de divida no processo. É aliás este o entendimento vertido no parecer n.º 27/2020, de 04-10 do Ministério Publico. Fazendo, como se entende, todo o sentido que se o Ministério Publico junto do tribunal não tem competência para cobrar as custas devidas no próprio processo, não poderá executar custas ou coimas devidas em qualquer outro processo de natureza administrativa, junto de qualquer outra entidade. Em face do exposto, e tendo em conta o objeto da presente execução, constatamos que este Tribunal é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar e a presente acção executiva, a qual entendemos ser da Autoridade Tributária. A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, al. a) do Código de Processo Civil. Registe e Notifique.» c) Inconformado, o exequente apresentou recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 74.º, § 4.º, 88.º e 89.º do RGC, no qual formulou as seguintes conclusões: «1. O Ministério Público promoveu a execução da coima e custas da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente liquidados os valores em dívida por parte do executado. 2. Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos. 3. Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT. 4. O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.°, 88.° e 89.°, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais. 5. Perante a actual redação do artigo 35.°, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à AT. 6. Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.°, 88.°, e 89.°, do RGCO, 35.°, do RCP, e 64.°, do CPC, por força do disposto no artigo 4.°, do CPP. 7. Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido nunca se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos. 8. Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa e, eventualmente, relativamente às custas aplicadas pela entidade administrativa, caso se entenda que o Tribunal recorrido é igualmente competente para a sua execução.» e) O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido. f) Subidos os autos, na vista prevista no artigo 416.º CPP, pronunciou-se o Ministério Público junto desta instância de recurso através de douto parecer, no qual manifestou o entendimento de dever negar-se provimento ao recurso, por o mesmo contrariar a Diretiva n.º 3/ 2021 da P.G.R., sequente ao Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R. n.º 27/2020 de 15abr2021. Devendo, consequentemente, manter-se o douto despacho recorrido. g) As decisões dos tribunais de 1.ª instância sobre a admissão dos recursos não vinculam os tribunais superiores (artigo 414.º, § 3.º CPP). III – Da competência para a execução A certidão de dívida que dá origem à execução recusada foi extraída do processo de contraordenação n.º 014329662, da Polícia Municipal de Olhão, respeitando a uma coima de 45€ e custas de 52,50€. Tal significando que a coima aplicada e as custas exequendas respeitam ao processo de contraordenação respetivo. A questão colocada é, pois, a de saber se a competência para a execução de coimas e custas de processo contraordenacional pertence aos Tribunais Judiciais ou cabe à Autoridade Tributária. Este Tribunal da Relação já enfrentou esta questão pelo menos cinco vezes, perante recursos congéneres, todos com a mesma proveniência (Juízo de Competência Genérica de Olhão). Nas três primeiras decisões o Tribunal atribuiu a competência para tal execução ao Juízo de Olhão[1], revogando o despacho recorrido. Num quarto[2] afirmou a competência da Autoridade Tributária para tais execuções; e o quinto, reconhecendo as inarredáveis insuficiências da lei para afirmar a competência do Juízo recorrido relativamente à execução da coima (mas já não das custas), concluiu que a decisão judicial recorrida não é suscetível de recurso[3]. Acompanhamos, em toda a linha, o que se decidiu neste último aresto. Vejamos, brevemente, como se articulam as normas jurídicas pertinentes. No concernente ao não pagamento de custas e à respetiva execução no caso de não pagamento voluntário (custas dos processos judiciais e dos processos contraordenacionais), é apodítico referir que a Lei n.º 27/2019 de 20 de março, ao alterar a redação do artigo 469.º CPP, retirou ao Ministério Público a legitimidade para tal requerer.[4] Sendo justamente nessa sequência que a Procuradoria-Geral da República emitiu a Diretiva 3/2021[5], na qual determinou aos seus magistrados que: «Se as entidades administrativas remeterem ao Ministério Público expediente destinado à cobrança de custas fixadas em processo de contraordenação, tal expediente deverá, por mera economia de meios, ser reencaminhado diretamente à Autoridade Tributária, com conhecimento ao remetente.» Já no respeitante ao não pagamento voluntário da coima, decorre do artigo 89.º do RGC, que: «Da execução 1. O não pagamento em conformidade com o disposto no artigo anterior dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o artigo 61.º, salvo quando a decisão que dá lugar à execução tiver sido proferida pela relação, caso em que a execução poderá também promover-se perante o tribunal da comarca do domicílio do executado.2. A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa.» Atente-se que no § 2.º deste retábulo se remete para o artigo 510.º CPP, no qual se preceitua que em tudo o que nesse código não esteja especialmente previsto, a execução de bens se rege pelo disposto no CPC e no Regulamento das Custas Processuais (RCP), neste conspecto confluindo para o regulado no artigo 35.º do RCP, que preceitua: «1. Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.» Contudo no artigo 148.º CPPT, onde se prevê o âmbito da execução fiscal (da execução levada a cabo pela Autoridade Tributária), dispõe-se que: «1 – O processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: a) Tributos, incluindo impostos aduaneiros, especiais e extrafiscais, taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais; b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contraordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns. c) Coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infrações Tributárias. 2 – Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) Outras dívidas ao Estado e a outras pessoas coletivas de direito público que devam ser pagas por força do ato administrativo; b) Reembolsos ou reposições. c) Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.» Na interpretação jurídica das leis o elemento literal concorre com outros para a fixação do seu sentido. E sabemos que o direito surge apenas com a decisão humana, que liga as fontes ao caso concreto[6]. Neste exato contexto referia Rudolf Stammler que «quando se aplica um parágrafo de um código, não só se aplica todo o código, como se faz intervir o pensamento do Direito em si mesmo». No binómio problema-solução, a procura da resposta começará na norma com a linguagem pré-conhecida do intérprete-aplicador, ponderando as consequências da decisão, para aferir se ela corresponde à realização do Direito. Justamente por assim ser, o direito não está nem na norma nem no caso, mas na relação entre eles. E na dúvida «o preceito da lei deve ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura (…) tendo em conta uma interpretação teleológica, atual e razoável.»[7] Por certo temos que a interpretação não pode lograr solução que seja diretamente contra legem. Será útil recordar que sendo a coima uma sanção pecuniária aplicada num procedimento administrativo, nem por isso pode considerar-se prevista na al. c) do § 2.º do artigo 148.º CPPT, dada a sua inquestionável natureza penal. Não sendo, pois, mera «sanção pecuniária», na medida em que o Ilícito de Mera Ordenação Social (IMOS) ou direito das contraordenações, conforme refere Jorge de Figueiredo Dias[8], integra o perímetro do direito penal (direito penal administrativo). Isto mesmo vem sendo reafirmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (referindo que aos procedimentos concernentes a tais ilícitos é aplicável o conceito de processo equitativo previsto no artigo 6.º da CEDH)[9] e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que assinala a vigência do princípio ne bis in idem entre as sanções administrativas desse tipo e as sanções penais[10]. Relativamente à distinção entre a sanção administrativa e a pena criminal, refere também Inês Ferreira Leite, que ambas têm um caráter e função punitiva, diferenciando-se aquela face a esta «na já referida inexistência de uma forte censurabilidade ética. Assim, a coima é uma sanção punitiva – simboliza o castigo (ou consequência intrínseca) pela prática da infração, contribui para o reforço da validade da norma e serve de prevenção no que respeita à prática de novas infrações.»[11] Efetivamente, pese embora o IMOS constitua direito administrativo sancionatório, com autonomia dogmática face ao direito penal[12], nem por isso prescinde de critérios de responsabilização subjetiva, o que logo nos remete para o princípio da pessoalidade das penas, expressamente previsto no § 3.º do artigo 30.º da Constituição. Deste decorrendo a proibição de a pena/a sanção contraordenacional recair «sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento».[13] Daí que a pena/coima e o procedimento executivo se extingam com a morte do agente, sendo proibida a transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros, sendo do mesmo passo proibida a sub-rogação no cumprimento da mesma.[14] Do que se deixou dito decorrem as especificidades que distinguem a coima e a execução desta, da execução de custas processuais, de multas processuais e de outras sanções pecuniárias não penais (cf. artigo 148.º, § 2.º, al. c) CPPT). Daí que, concluindo: ainda que num plano inicial do legislador tivesse ponderado integrar as coimas no «pacote» a remeter à Administração Tributária para cobrança (conforme se descortina no Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei n.º 149/XIII/4.ª GOV enviado em 24out2018), a verdade é que as alterações legislativas que efetivamente vieram a ser introduzidas, acabaram por as não incluir, conforme é patente na atual redação do artigo 148.º do CPPT. Isto mesmo é reconhecido no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no DR-II, de 20out2021, por a concatenação das normas que se deixaram extratadas não permitir – queira-se ou não - ultrapassar a literalidade normativa, que se exprime numa clareza inarredável. Feitas que se deixaram estas considerações, para enquadrar devidamente as capilaridades que subjazem ao recurso interposto, emerge - noutra dimensão e de caráter necessariamente prévio - a questão da admissibilidade do recurso para esta instância superior. IV – Da inadmissibilidade do recurso Comecemos por lembrar que a certidão de dívida que dá origem à execução recusada, foi extraída do processo de contraordenação n.º 014329662, da Polícia Municipal de Olhão, respeitando a uma coima de 45€ e custas no valor de 52,50€. Tal significando que a coima aplicada e as custas exequendas respeitam ao processo de contraordenação respetivo. E, como assim, está o recurso concernente à respetiva ação executiva sujeito às regras previstas no RGC - conforme aliás o recorrente reconhece (quando expressamente indica o artigo 73.º do RGC da peça recursiva). Dispõe o artigo 73.º do RGC: «Decisões judiciais que admitem recurso 1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 249,40€; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 249,40€ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal. 2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. 3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.» Contrariamente à regra geral vigente no processo penal (artigo 399.º CPP) - onde é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei -, no âmbito do RGC o regime regra é o inverso: a regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo excecionais as normas habilitadoras de recurso das decisões – id est, não comportando estas analogia (artigo 11.º Código Civil). O Tribunal Constitucional tem repetidamente assinalado, não haver equiparação do direito contraordenacional ao direito penal e processual penal, no concernente ao «direito fundamental ao recurso», por o § 10.º do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa apenas exigir, em sede contraordenacional, que sejam garantidos os “direitos de audiência e de defesa”.[15] Quer-se dizer: salvo em processo penal, inexiste um direito fundamental ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador, nomeadamente em sede contraordenacional restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais. Ora o artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, elencando as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação - não as sendo as demais. E como se pode ver no extratado artigo 73.º, ali se não prevê o recurso dos despachos jurisdicionais que nesta fase menor do processo (menor apenas por não estar já em causa a condenação ou a absolvição referente ao ilícito) declarem a incompetência absoluta do Tribunal. E porque assim é, deverá o mesmo ser rejeitado (artigo 420.º, § 1.º, al. b) CPP). V - Dispositivo Destarte e por todo o exposto: a) Decide-se rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público. b) Sem custas (artigos 420.º, § 3.º e 522.º, § 1.º CPP). c) Notifique-se. Évora, 29 de novembro de 2023 J. F. Moreira das Neves __________________________ [1] Acórdãos de 10out2023, proc. 109/23.2T9OLH.E1 (relator João Carrola); de 7nov2023, proc. 107/23.6T9OLH.E1 (Relator Jorge Antunes); e decisão sumária de 15nov2023, proc. 57/23.6T9OLH.E1, Desemb. Maria Margarida Bacelar). [2] Acórdão de 7nov2023, proc. 319/23.2T9OLH.E1 (relator Carlos de Campos Lobo). [3] Acórdão de 21nov2023, proc. 202/23.1T9OLH.E1 (relator Gomes de Sousa). [4] Competência essa que anteriormente a tal alteração ali era conferida. Neste sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação, de 7nov2023, proc. 319/23.2T9OLH.E1 (relator Carlos de Campos Lobo). [5] Publicada no DR, II, de 1out2021. [6] António Menezes Cordeiro, Tendências atuais da interpretação da lei: do juiz-autómato aos modelos de decisão jurídica, 1985, Revista Jurídica, pp. 7 ss. [7] Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, 2008, 11.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 12. [8] Direito penal, Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, pp. 178 ss. [9] Cf., por todos, o acórdão do TEDH, 23nov2006, Lauko Jussila v. Finlândia. [10] Cf. acórdão de 20mar2018, Di Puma, C-596/16 e C-597/16, EU:C:2018:192 555; acórdão de 20mar2018, Garlsson Real Estate e o., C-537/16, Conclusões do Advogado Geral, EU:C:2017:668, n.º 1, 24 e 26-28. Sobre este temário cf. Yasmin Marques Lutebark, O conceito de sanção penal para aplicação do ne bis in idem na Europa, julho 2018, Universidade de Coimbra. [11] Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 40/41. [12] Sobre a autonomia do direito contraordenacional cf. Tiago Lopes de Azevedo, Lições de Direito das Contraordenações, Almedina, 2020, pp. 87 ss. [13] Cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 337/2003, de 7jul2003, relator Gil Galvão; e acórdão 297/2013, de 28mai2013, relator José da Cunha Barbosa. [14] Neste sentido cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª ed. revista, 2007, Coimbra em anotação ao artigo 30.º, ponto IV, p. 504. Tb. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pp. 118 ss. [15] Cf. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 508/2016, de 21set2016, 355/2012, de 5jul2012 e 659/2006, de 28nov2006. |