Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1804/20.3T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
FACTO IMPEDITIVO
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. São requisitos do direito real de preferência previsto no artigo 1380º do Código Civil, a existência de dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, que ambos sejam aptos para cultura, que um deles tenha sido vendido ou dado em cumprimento, que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado, e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante ou, sendo-o, na hipótese de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, não se tratando de um caso de alienação de prédio encravado, aquele que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
II. Em cumprimento da obrigação de comunicação ao preferente está o vendedor obrigado a transmitir o projecto de venda, como exigido pelo n.º 1 do artigo 416º do Código Civil (aplicável por remissão do n.º 4 do artigo 1380º), dando-lhe a conhecer as condições da venda, o preço, a data prevista para a venda e até quem são os compradores, se esta indicação for relevante, de modo a que os preferentes possam exercer o seu direito informada e tempestivamente.
III. Para que o facto impeditivo do direito de preferência, aludido no artigo 1381º, alínea a), 2ª parte, do Código Civil, opere os seus efeitos é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afectação ou um outro destino que não a cultura, mas também que essa projectada mudança de destino é permitida por lei.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:

Recurso de Apelação n.º 1804/20.3T8FAR.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA, menor, representado pelos seus pais BB e CC, propôs acção com processo comum contra DD e mulher, EE, pedindo que:
a) Seja reconhecido ao Autor o direito de haver para si o prédio rústico vendido por FF aos Réus;
b) Seja ordenado junto da Conservatória do Registo Predial o cancelamento da inscrição a favor dos RR do referido prédio;
c) Sejam os RR. condenados a demolirem a construção efectuada no prédio em causa, no prazo de um mês, após a decisão em que seja reconhecido aos AA o direito de preferência; e
d) Caso não o façam, seja essa demolição feita pelo Autor, recaindo sobre os RR. a responsabilidade dos custos inerentes.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que: - é proprietário de um prédio rústico, com 2480m2, que confina pelo lado Norte com o prédio rústico, com 1240m2, vendido em 29/01/2020, por FF aos RR., pelo preço de 5.000,00€; - ambos os prédios estão integrados em REN; - o vendedor não comunicou ao Autor o projecto da venda e este só veio a ter conhecimento da venda em 28/02/2020, e só em Março teve conhecimento da identidade do comprador; e - os compradores não eram proprietários de prédio confinante.
Mais alegou que os RR./compradores estão a edificar no prédio em causa, pelo o Autor lhes enviou uma carta em 20/07/2020 e um mail em 23/07/2020, a informar que pretendia exercer o direito de preferência e que deviam parar a obra; não obstante, os RR prosseguiram com a obra, sendo tal construção ilegal, pelo que deverá ser demolida.

3. Citados, vieram os RR. DD e EE contestar, pugnando pela improcedência da acção, alegando que o Autor, em 26/01/2020, declinou a proposta de compra do prédio em causa, renunciando ao direito de preferência, e que o A. tomou conhecimento que os RR. pretendiam o prédio para edificar um abrigo/cobertura para a sua autocaravana, tendo sido marcado um encontro no prédio com o A., na pessoa dos seus pais, para definição da linha divisória.
Os RR. deduziram reconvenção para, em caso de procedência da acção, ser o A. condenado no pagamento dos custos dos investimentos e benfeitorias realizadas pelos RR. no prédio, que computam em € 35.099,88.

4. Na réplica, o A. negou ter tido conhecimento da venda antes desta ser realizada e negou ter renunciado ao direito de preferência, pugnando pela improcedência da reconvenção por os RR. terem conhecimento desde 01/03/2020 que o A. pretendia exercer a preferência, e terminaram pedindo a condenação dos RR. como litigantes de má-fé.
A convite do tribunal, o A. suscitou a intervenção do vendedor do prédio, FF, tendo este sido citado e apresentado articulado próprio no qual aderiu à contestação dos RR., invocando ainda que o A. renunciou à preferência e que não há direito de preferência por o prédio vendido não se destinar a cultura.
O A. respondeu à matéria de excepção invocada pelo Chamado, pugnando pela sua improcedência.

5. Findos os articulados, foi realizada a audiência prévia, tendo aí sido proferido despacho saneador, nos termos constantes da acta de 10/12/2021, no qual foi relegado para final o conhecimento da factualidade susceptível de configurar matéria de excepção, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

6. Realizada a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu:
«I- Julgar procedente a acção proposta por AA e, em consequência:
a. Reconhecer o direito do Autor preferir aos RR. DD e EE na compra do prédio rústico, composto por cultura arvense e amendoeiras, sito em ..., na União de Freguesias ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27 e inscrito na matriz sob o artigo ...7 da secção O, com o valor patrimonial de 108,42€, com a área de 1240m2, e de, pelo preço de 5.000,00€, depositado à ordem dos autos, haver para si o referido prédio em substituição dos RR compradores;
b. Ordenar o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27, da União de Freguesias ..., a favor dos RR DD e mulher EE feita pela Ap. ...66 de 2020/01/29;
c. Condenar os RR DD e mulher EE na demolição da construção (armazém) efectuada no prédio identificado em a., no prazo de 1 mês contado do trânsito desta sentença, sob pena de, não o fazendo nesse prazo, ser aquela
d. demolição feita pelo Autor correndo pelos RR a responsabilidade pelos custos inerentes.
II- Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido e, em consequência, condenar o Autor/reconvindo AA a pagar aos RR/reconvintes DD e EE a quantia de 5.452,63€, absolvendo-se o reconvindo do demais peticionado.
III- Julgar improcedente o incidente de litigância de má-fé deduzido contra os RR. (…)»

7. Inconformados vieram os RR., DD e EE, interpor recurso, o qual motivaram concluindo do seguinte modo:
1.ª Ao decidir como decidiu, o julgador da causa produziu uma decisão que, salvo melhor entendimento, é manifestamente iniqua.
2.ª Tal decisão assentou em matéria de facto incorrectamente julgada.
3.ª Dentre esses factos – incorrectamente julgados – destacam-se os pontos 23, 24, 25, 26 e 34 dos factos provados, bem como os constantes das líneas b), c), d), e), f), g), h) e i) dos factos não provados.
4.ª Todas as declarações e testemunhos (prestadas pelos ora recorrentes e pelas testemunhas por si arroladas) são coerentes e unânimes em apoiar a tese de que os pais do autor tiveram tempestivo conhecimento do objecto e dos termos do negócio imobiliário celebrado entre o chamado GG e ora recorrentes e que, em inúmeras ocasiões, verbalizaram não estar interessados nesse negócio.
5.ª A partir delas é possível sustentar a evidência factual de que os ora recorrentes só compraram aquele imóvel (e nele despenderam uma quantia considerável com a sua vedação e a edificação de um armazém) por estarem convictos de que aqueles não queriam preferir.
6.ª Se assim não tivesse sido, não teriam os ora recorrentes (não seguros da sua aquisição) avançado, logo no início de Fevereiro de 2020, com realização de obras na sua propriedade.
7.ª A apresentação da petição em juízo no dia 24 de Julho de 2020 evidencia que os pais do autor tiveram conhecimento integral das condições e termos do supra aludido negócio imobiliário no dia 26 de Janeiro, porquanto, só assim, conseguiriam obviar à invocação (e declaração) do decurso do prazo de caducidade (6 meses) para o exercício do seu direito a preferir.
8.ª Não estando o julgador da causa provido documentalmente com uma decisão camarária a confirmar que tal edificação, naquele prédio em concreto, não é permitida, não poderia este ordenar a demolição do edificado.
9.ª Por tal, dever-se-á revogar a sentença, ora colocada em crise, substituindo-a por uma outra que conceda pleno acolhimento à pretensão dos ora recorrentes.
Termos em que, atento o mérito da censura formulada nestas Alegações contra a sentença proferida pelo tribunal a quo, far-se-á justiça concedendo-se integral provimento ao presente recurso.

8. Contra-alegou o A., pugnando pela rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, e pela confirmação da sentença recorrida.

9. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da impugnação da matéria de facto; e
(ii) Da reapreciação jurídica da causa, em caso de alteração da matéria de facto, com relevância para o exercício do direito de preferência, e quanto à questão da demolição do edificado na propriedade.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos [em destaque os factos impugnados no recurso]:
1. Pela ap. ...45 de 2019/09/02, mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor do Autor AA do prédio rústico sito em ..., união das freguesias ... e ..., concelho ..., com 2480m2, composto de terrenos de cultura arvense, com alfarrobeiras, amendoeiras e oliveiras, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...08 da freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...8 da Secção O, com o valor patrimonial de 119,11€.
2. O prédio referido em 1 foi adquirido pelo Autor, por escritura de 2.09.2019, a HH e II.
3. Por Título de Compra e Venda emitido por Casa Pronta e outorgado em 29 de Janeiro de 2020, FF declarou vender a DD, casado com EE sob o regime da comunhão de adquiridos, pelo preço de 5.000,00€, que o vendedor declarou ter recebido, o prédio rústico, composto por cultura arvense e amendoeiras, sito em ..., na União de Freguesias ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27 e inscrito na matriz sob o artigo ...7 da secção O, com o valor patrimonial de 108,42€, com a área de 1240m2 . [data rectificada no recurso]
4. O prédio referido em 1 confina pelo lado Norte com o prédio referido em 3.
5. Pela Ap. ...66 de 29.01.2020, foi registada a favor dos Réus DD e EE a aquisição referida em 3.
6. Pela Ap. ...0 de 27.10.2018 mostra-se registada a aquisição, por compra a II e HH, do prédio referido em 3 a favor de FF.
7. A propósito da venda referida em 2, por escrito denominado “... de preferência”, II comunicou aos proprietários de prédios confinantes com o referido em 1, entre os quais a FF, que «é sua intenção alienar (vender) o prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...8, secção O, com a área de 2480m2,união das freguesias .../..., concelho ..., a ..., solteiro, maior (…), e AA, menor, (…), residentes em (…). A compra e venda concretizar-se-á através da respectiva escritura pública de compra e venda e de acordo com os seguintes termos e condições:
1. O preço a pagar pelo Adquirente pela compra e venda do imóvel é de 12.000€ (…);
2. Prédio será vendido livre de ónus e encargos.
A escritura será outorgara no de 26 de Agosto de 2019, pelas 11.30 horas, no Cartório Dra. JJ, em ....
Nestes termos, solicitamos a V. Exas. Que se pronunciem se pretendem ou não exercer o direito de preferência que V. assiste no prazo máximo de 8 dias, conforme nos termos indicados, sob pena de caducidade do referido direito de preferência, nos termos do disposto no nº2 do artigo 416º do Código Civil. (…)»
8. Em resposta ao comunicado no referido escrito, FF declarou não pretender exercer o direito de preferência.
9. Os prédios referidos em 1 e 3 estão inseridos em área de Reserva Ecológica Nacional.
10. Em 28 de Fevereiro de 2020 os pais do A. falaram com o vendedor FF.
11. Na data referida em 3, os RR DD e EE não tinham inscrito em seu nome qualquer prédio confinante com o prédio referido em 3.
12. Os RR edificaram no prédio referido em 3 uma construção com mais de 30m2.
13. Por carta registada com aviso de recepção, expedida em 20.07.2020, os pais do Autor, em nome deste, comunicaram ao Réu DD que «pretendemos exercer judicialmente o direito de preferência em relação ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo nº ...7, Secção O, da união das freguesias ... e .... Verificamos que procedeu ao início de uma construção nesse prédio pelo que requeremos que a respectiva obra pare de imediato e se abstenha de realizar quaisquer trabalhos na obra em questão.»
14. A carta foi entregue na morada do Réu.
15. Por email de 23.07.2020, endereçado ao Réu e remetido para o endereço electrónico ..........@....., os pais do Autor, em nome deste, procederam a comunicação idêntica à antes referida.
16. Por causa da aquisição referida em 3, os RR despenderam as seguintes quantias: 202,50€ com emolumentos do Registo Predial (Casa Pronta), 40,00€ em imposto de selo e 250,00€ em IMT.
17. Os RR pagaram a quantia de 8,13€ à Direcção-Geral do Território pela emissão de documento referente ao prédio em causa.
18. Entre 12.02.2020 e 27.07.2020, KK, a solicitação dos RR, procedeu à limpeza do terreno e dos muros de pedra, executou a base de implantação da edificação referida em 12, vedou o prédio com rede metálica, colocou um portão e construiu a edificação/armazém em chapa metálica.
19. Com referência aos trabalhos antes descritos, KK emitiu a factura nº ...72..., de 21.08.2020, no valor de 27.798,00€, que os RR pagaram, tendo-lhes sido emitido o correspondente recibo.
20. Em 20.02.2020, os RR pagaram à sociedade S... e LL a quantia de 15,42€ pela aquisição de areia, tijolos e cimento, que foram aplicados na construção de um quadro eléctrico para permitir o fornecimento de energia eléctrica ao prédio.
21. Em 20.02.2020, os RR pagaram à sociedade E... a quantia de 57,77€ pela aquisição de materiais de instalação eléctrica que foram aplicados no prédio referido em 3.
22. Em 5 de Junho e 7 de Agosto de 2020, a sociedade A..., Lda., executou trabalhos de electricidade no prédio referido em 3, pelos quais os RR pagaram a quantia de 1.728,06€.
23. Em 28.02.2020, os pais do Autor, constatando que alguém estava a trabalhar no prédio referido em 3, solicitaram a MM, funcionária da empresa que vendera o prédio referido em 1 ao Autor, o contacto telefónico do Chamado e nessa sequência telefonaram a este para agendar uma reunião no prédio.
24. Nesse telefonema, o Chamado informou a mãe do Autor que havia procedido à venda do prédio referido em 3.
25. No dia 1 de Março de 2020, pelas 10h00, os pais do Autor, o Chamado FF e os RR encontraram-se no ..., em ..., e daí seguiram todos juntos, no veículo do pai do Autor, para o prédio referido em 3.
26. Já no prédio, os pais do A. referiram estarem interessados na aquisição do prédio ao que o Chamado FF lhes disse que não tinham direito de preferência, tendo-lhes exibido uma folha que disse ser um extracto da lei.
27. Da descrição predial do prédio referido em 3 consta que o mesmo confina a Norte com NN.
28. Após o referido em 13 e 14, MM telefonou aos pais do Autor relatando-lhes que II lhe havia telefonado, muito preocupada, dizendo-lhe que o Chamado, FF, se deslocara a casa de II solicitando-lhe que esta assinasse um documento relacionado com o prédio que lhe vendera e que aquela assinara o documento mas estava arrependida.
29. Perante isso, em 11.08.2020, MM remeteu email a FF comunicando-lhe «Não se esqueça que a carta que a D. II assinou este fim de semana não é válida, você pode ser acusado de litigância de má fé, por forjar documentos que não tinha na devida altura».
30. A vedação do terreno referida em 18 decorreu em Fevereiro/Março de 2020.
31. A edificação do armazém referida em 18 decorreu em meados de Julho de 2020 e ao longo de 3 semanas e os RR utilizam-no para guardar a sua autocaravana.
32. Depois do envio da carta e email referidos em 13 e 15, a mãe do Autor deslocou-se ao terreno para falar com o Réu DD, que aí se encontrava, para lhe pedir novamente que parasse a obra, tendo o Réu a mandado embora dizendo-lhe que não pretendia falar com ela.
33. Depois do envio da carta e email referidos em 13 e 15, a mãe do Autor telefonou à GNR ... solicitando que se deslocassem ao prédio e notificassem os RR para pararem os trabalhos.
34. Pelo PDM ..., o prédio referido em 3 localiza-se em espaço natural/área de protecção e valorização.
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A.2. E foram considerados como não provados os seguintes factos:
a) Em 3.03.2020, os pais do A. tenham obtido cópia do Título de Compra e Venda referido em 3;
b) Entre 9 de Março e 1 de Junho de 2020, os RR tenham permanecido em França, onde também possuem residência;
c) Em 26.01.2020, os RR DD e EE, o Chamado FF e os pais do Autor se tenham reunido no prédio referido em 3;
d) Nessa data, os pais do Autor tenham dito que não pretendiam exercer o direito de preferência em representação do Autor por não disporem de dinheiro para custear a aquisição;
e) Nessa altura, tenha sido dito aos pais do Autor que com a aquisição referida em 3, os RR pretendessem edificar no prédio um abrigo/cobertura para guardar a sua autocaravana;
f) Cerca de dois dias depois da data referida em c), os pais do autor tenham solicitado novo encontro com o Chamado vendedor e os RR compradores para sugerirem uma ligeira alteração na linha divisória anteriormente estabelecida;
g) Dessa vez, também na presença de KK e OO, os pais do Autor apenas sugeriram uma alteração na linha divisória, que foi aceite pelos futuros compradores;
h) Na altura referida em c), o Chamado tenha comunicado aos pais do Autor que ia vender aos RR o prédio referido em 3 e que lhes tenha dito a data, local e preço da venda;
i) O Chamado tenha contactado o Autor e irmão via Messenger para averiguar quem seriam os proprietários do imóvel;
j) Os pais do Autor tenham transmitido aos RR e Chamado que tinham adquirido o prédio referido em 1 para aí edificarem uma moradia;
k) Na situação referida em 28, o Chamado tenha entregue a II um documento no qual esta declarava não pretender exercer a preferência na venda do prédio referido em 3;
l) Para além da carta e email referidos em 14 e 16, em 23.07.2020, os pais do A tenham telefonado ao Réu DD pedindo-lhe que parasse a obra por o Autor pretender adquirir o prédio.
m) O armazém referido em 18 não possa ser desmontado e reutilizado noutro sítio.
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B) – O Direito
1. Os RR./Recorrentes discordam da decisão proferida, começando por impugnar a matéria de facto, concretamente a constante dos pontos 23, 24, 25, 26 e 34 dos factos provados, e a das alíneas b), c), d), f), g), h) e i) dos factos não provados, que consideram incorrectamente julgados, referindo que “a valoração dos meios probatórios (no sentido supra ressalvado) impunha decisão diversa daquela que foi proferida”.
O A./Recorrido, nas contra-alegações pede a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, referindo que os recorrentes não referenciaram temporalmente o início e o fim dos excertos dos depoimentos que invocam em prol da sua pretensão, que também não os transcreveram, e que não indicam qual o sentido da decisão a ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, não cumprindo assim com os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil.

2. Como decorre do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão da matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a)); - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b)); e – a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1, alínea c)).
Acresce que, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte respectiva, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (cf. n.º 2, alínea a)).
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/10/2015 (proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1), disponível, como os demais citado sem outra referência, em www.dgsi.pt: «Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n°1 do art. 640° do CPC; e um ónus secundário - tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do artigo 640°, n°2, al. a) do CPC).»
Relativamente ao sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, veja-se a síntese jurisprudencial que nos é dada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2016 (proc. n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1).
Assim, como se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2020 (proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1):
«III- O art. 640.º do CPC estabelece que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação.
IV - Nesse conspecto tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art. 640.º do CPC devem constar do corpo das alegações.» [sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/05/sumarios_civel_2020.pdf]
Neste sentido, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/11/2020 (proc. n.º 294/08.3TBTND.C3.S1), «…, se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, entende-se facilmente que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, importa que os pontos de facto por si considerados incorrectamente julgados sejam devidamente identificados nas conclusões, pois só assim se coloca ao tribunal ad quem uma questão concreta e objectiva para apreciar, sendo que, via de regra, apenas sobre estas se poderá pronunciar. Assim, se nas conclusões não forem indicados os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles [Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil. Novo regime, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 141-146; Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra, Almedina, 2005, p. 466; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2007 (Pinto Hespanhol), proc.06...; de 13 de Julho de 2006 (Fernandes Cadilha), proc.06S1079; de 8 de Março de 2006 (Sousa Peixoto), proc.05S3823 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt].» (sublinhado nosso).
Importa ainda reter, no que se reporta ao cumprimentos do ónus da alínea c) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, que, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/10/2023, proferido no proc. nº 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 (recurso para uniformização de jurisprudência) foi uniformizada a jurisprudência no sentido de que «… o recorrente que impugna a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
E, como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/01/2022 (proc. n.º 701/19.0T8EVR.E1.S1): «[o] Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se, de forma consistente e reiterada, no sentido de que o cumprimento dos ónus previstos no art. 640.º do CPC deve ser analisado à luz de um critério de proporcionalidade e de razoabilidade. Considerando que esses ónus visam assegurar uma inteligibilidade adequada do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido, a rejeição do recurso deve ser uma consequência proporcionada e razoável, ponderando a gravidade da falta do recorrente [cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e 8 de Julho de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1.3]. Assim, “a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco” [ cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2020 (Rijo Ferreira), proc. n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1. Vide, inter alia, no mesmo sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 3920/14.1TCLRS.S1; de 8 de Julho de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1; de 10 de Dezembro de 2020 (Ilídio Sacarrão Martins), proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1; de 16 de Dezembro de 2020 (Bernardo Domingos), proc. n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1; de 9 de Fevereiro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1; de 11 de Fevereiro de 2021 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 4279/17.0T8GMR.G1.S1. Neste mesmo sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 199 e ss.].»

3. No caso em apreço, não subsistem dúvidas que os recorrentes deram cumprimento ao ónus primário previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, pois indicam nas conclusões do recurso quais os concretos pontos da matéria de facto que pretendem impugnar, que se reconduzem aos pontos 23, 24, 25, 26 e 34 dos factos provados, e a das alíneas b), c), d), f), g), h) e i) dos factos não provados (cf. conclusão 3ª).
Quanto ao ónus da alínea b) do nº 1 do mesmo artigo, embora não haja uma alegação expressa, facilmente se conclui que pretendem que a factualidade impugnada seja julgada em sentido inverso, pois invocam o erro na apreciação de tais factos e, nas alegações são claros em afirmar que as provas que invocam impunham decisão diversa da proferida, resultando do alegado que pretendem que seja dada como provada a versão dos factos que alegaram e não a que o tribunal recorrido deu como assente, correspondente à alegação do A..
Assim, e verificando-se que o recorrido bem entendeu o sentido da pretensão dos recorrentes, considera-se suficientemente cumprido o referido ónus.
E o mesmo sucede em relação à indicação das concretas passagens das gravações em que os recorrentes fundam as alterações pretendidas em relação à matéria de facto impugnada, considerando-se suficientemente cumprido o ónus da alínea a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, pois os recorrentes, ainda que por palavras suas, indicam o que de relevante retiram da prova oral produzida em audiência, com indicação das declarações/depoimentos em causa, referenciando temporalmente os pontos da gravação em que se fundamentam.
É certo que não fizeram transcrição das passagens da gravação e, em relação a cada afirmação que dizem ter sido feita pelo declarante e testemunhas que invocam, apenas indicam uma referência temporal, correspondente ao início do trecho que referem, mas, como resulta do que acima dissemos, a rejeição do recurso por falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude a alínea a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, só deverá ocorrer nos casos em que essa omissão ou inexactidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.
E tal não ocorre no caso em apreço, pois a indicação feita pelos recorrentes é suficiente para se localizar os as passagens gravações das declarações/depoimentos que contêm as afirmações que invocam, não impedindo, como não impediu, a parte contrária de contraditar, nem impede este tribunal ad quem de as localizar e apreciar o mérito das pretensões em causa.
Deste modo, considerando-se suficientemente cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, conhece-se do recurso de impugnação da matéria de facto.

4. Como acima se referiu, os factos impugnados são os seguintes:
Factos provados:
23. Em 28.02.2020, os pais do Autor, constatando que alguém estava a trabalhar no prédio referido em 3, solicitaram a MM, funcionária da empresa que vendera o prédio referido em 1 ao Autor, o contacto telefónico do Chamado e nessa sequência telefonaram a este para agendar uma reunião no prédio.
24. Nesse telefonema, o Chamado informou a mãe do Autor que havia procedido à venda do prédio referido em 3.
25. No dia 1 de Março de 2020, pelas 10h00, os pais do Autor, o Chamado FF e os RR encontraram-se no ..., em ..., e daí seguiram todos juntos, no veículo do pai do Autor, para o prédio referido em 3.
26. Já no prédio, os pais do A. referiram estarem interessados na aquisição do prédio ao que o Chamado FF lhes disse que não tinham direito de preferência, tendo-lhes exibido uma folha que disse ser um extracto da lei.
34. Pelo PDM ..., o prédio referido em 3 localiza-se em espaço natural/área de protecção e valorização.
Factos não provados:
b) Entre 9 de Março e 1 de Junho de 2020, os RR tenham permanecido em França, onde também possuem residência;
c) Em 26.01.2020, os RR DD e EE, o Chamado FF e os pais do Autor se tenham reunido no prédio referido em 3;
d) Nessa data, os pais do Autor tenham dito que não pretendiam exercer o direito de preferência em representação do Autor por não disporem de dinheiro para custear a aquisição;
e) Nessa altura, tenha sido dito aos pais do Autor que com a aquisição referida em 3, os RR pretendessem edificar no prédio um abrigo/cobertura para guardar a sua autocaravana;
f) Cerca de dois dias depois da data referida em c), os pais do autor tenham solicitado novo encontro com o Chamado vendedor e os RR compradores para sugerirem uma ligeira alteração na linha divisória anteriormente estabelecida;
g) Dessa vez, também na presença de KK e OO, os pais do Autor apenas sugeriram uma alteração na linha divisória, que foi aceite pelos futuros compradores;
h) Na altura referida em c), o Chamado tenha comunicado aos pais do Autor que ia vender aos RR o prédio referido em 3 e que lhes tenha dito a data, local e preço da venda;
i) O Chamado tenha contactado o Autor e irmão via Messenger para averiguar quem seriam os proprietários do imóvel;

5. Como resulta das alegações do recurso, no essencial, os recorrentes pretendem que sejam dados como provados os factos que alegaram na contestação, respeitantes aos encontros mantidos com os pais do A., em que dizem ter sido dado conhecimento aos mesmos da intenção de venda do prédio e do fim para o qual os adquirentes pretendiam o mesmo, bem como da renúncia por aqueles ao direito de preferência, e, nessa medida, pretendem que os factos não provados sejam considerados como provados e os que o tribunal deu como provados venham a ser decididos em sentido contrário.
Para tanto invocam que:
«O chamado GG declarou: que o encontro ocorreu no dia 26 de Janeiro de 2020; que se recordava do dia por ainda ter as mensagens consigo (5’53; 5’13; 8’08); que este encontro ocorreu a pedido da mãe do autor (14´43); que durante esse encontro lhes disse quem eram os compradores e qual o preço (16´08); que estes lhe disseram que não estavam interessados em comprar (21´29).
O ora recorrente DD confirmou que o encontro ocorreu no dia 26 de Janeiro (1´20); e asseverou que: os pais do autor disseram que não estavam interessados em comprar o terreno e que só queriam acertar a divisão do terreno (4´09; 41´45); que, por essa razão, ficou descansado e decidiu então avançar com a compra e com a vedação (6´28; 20´19; 21´15); que, no dia 1 de Março, já estava em França (18´04) – declaração esta que poderia ser corroborada pelo documento que atestava que, no dia 3 de Março, o ora recorrente compareceu numa consulta médica em Estrasburgo.
A ora recorrente EE sustentou: que estiveram no terreno no dia 26 de Janeiro (4´14); que então os pais do autor disseram que não queriam comprar por já terem a terra ao lado e não terem dinheiro (7´22); que em Março de 2020 foram a França, pois têm lá os médicos (15´08); que lá tinham consulta a 3 ou a 4 e partiram na madrugada do dia 1 (22´55); que só pela carta recebida pelo filho ficou a saber que eles queriam comprar o terreno (19´18; 40´50).
A testemunha KK declarou que, quando foram fazer as marcações para colocar os postes de vedação, ouviu os pais do Autor expressarem que se tivessem dinheiro tinham comprado aquele terreno (8´30).
A testemunha OO assegurou que, nalgumas das ocasiões em que conversaram, o pai do autor disse que se tivesse dinheiro comprava aquela fazenda (5´01).
Por fim, a testemunha PP sustentou ter presenciado uma conversa entre a mãe do autor e o recorrente DD em que esta disse que se tivesse dinheiro naquela altura fazia o negócio (4´27).»

6. De facto, resulta das declarações e depoimentos prestados, que se auditaram, que foram feitas as afirmações que os recorrentes invocam, mas daí não se segue que tais declarações se mostrem convincentes, em face da análise crítica da prova e das regras da experiência, e que imponham a alteração do decidido.
Efectivamente, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (Remédio Marques, Acção Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641).
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
E, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25/01/2016 (processo n.º 05P3460), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “(…) VII - O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
VIII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. (…)”
Deste modo, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.

7. Ora, no caso concreto, os recorrentes limitam-se a invocar as declarações do Chamado e deles Recorrentes, bem como das testemunhas que invocam, sem ter em conta os demais depoimentos e outras provas produzidas, as quais foram tidas em conta e sujeitas a apreciação e análise crítica do julgador em primeira instância, que bem explicou as razões porque deu como provada a versão do A. quanto aos factos em causa, afastando a versão transmitida pelos RR. e Chamado, bem como das testemunhas que os recorrentes invocam, com as quais concordamos.
Como se diz na decisão recorrida, no que se reporta aos encontros ocorridos entre as partes e às conversas mantidas, concretamente, a respeito da motivação dos factos provados enunciados em 10 (não impugnado), 23, 24, 25 e 26, e dos factos não provados enunciados em c), d) e h):
«Os pontos 10, 23, 24 e 25 resultaram da conjugação dos depoimentos prestados pelos pais do Autor e pela testemunha QQ com as mensagens de whatsapp juntas como documento 5 da resposta (fls. 88). Na verdade, o Chamado FF confirmou ter recebido um telefonema da mãe do Autor a propósito do prédio referido em 3 e também confirmou que desse telefonema resultou o agendamento, para o Domingo seguinte, de uma reunião no prédio entre os pais do Autor, o Chamado e os RR e confirmou também que no Domingo se encontraram todos de manhã, no ..., em ..., e daí seguiram todos juntos, num único veículo, para o terreno. O Chamado e os RR apenas divergem da versão sustentada pelos pais do Autor quanto à data em que aquele telefonema da mãe do Autor e o subsequente encontro/reunião no terreno ocorreram.
Efectivamente, os pais do Autor explicaram que em 28.02.2020 se aperceberam que andava alguém no prédio referido em 3 a proceder a trabalhos de limpeza do terreno e que haviam colocado lixo e feito queimadas na entrada do terreno do Autor e, nessa sequência e para perceberem o que se passava, solicitaram o número de telefone do Chamado à testemunha MM, para o contactarem enquanto proprietário do terreno onde estavam a decorrer os trabalhos, pelo que afirmam que o telefonema para o Chamado ocorreu no dia 28.02.2020 e o encontro no terreno no Domingo, dia 1.03.2020. Por sua vez, o Chamado e os RR defendem que o telefonema ocorreu em 24.01.2020 e o encontro no Domingo, dia 26.01.2020. A corroborar a versão dos pais do Autor temos o depoimento da testemunha QQ e as mensagens juntas como doc. 5 da réplica (fls. 88), que a testemunha confirmou ter trocado com a mãe do Autor e que datam de 28.02.2020. De facto, os pais do Autor, de forma circunstanciada e socorrendo-se dos extractos da localização Google associada aos telemóveis de ambos e que juntaram como documentos 1, 2, 3, 4 e 6 da réplica (fls. 81 e ss), explicaram que o encontro/reunião com os RR e Chamado no ... seguido de deslocação ao terreno ocorreu no dia 1.03.2020, como o demonstra o itinerário visível no extracto de localização que constitui o doc. 6 do referido articulado. Por seu turno, o Chamado afirma que recebeu o telefonema da mãe do Autor no dia 24.01.2020 e a reunião no terreno ocorreu no Domingo seguinte (26.01.2020). A corroborar a versão do Chamado temos apenas as declarações dos RR. Ora, tal versão não nos mereceu credibilidade por entendermos não fazer sentido que, tendo a mãe do Autor telefonado ao Chamado no dia 24.01.2020 (na versão sustentada por este), solicitasse o número de telefone deste à testemunha MM no dia 28.02.2020. Para além de que, os RR, para infirmar a versão dos pais do Autor quanto à data da reunião do terreno, afirmaram que em Março se deslocaram a França, mas não conseguiram esclarecer de forma clara e segura a data exacta em que realizaram tal viagem e apresentaram contradições nas suas declarações, já que o Réu disse que permaneceram em França de Março a Junho e a Ré, por sua vez, diz que se deslocaram a França nos inícios de Março e regressaram a Portugal em meados de Março e aqui permaneceram até Junho e logo a seguir admite não estar segura das datas. Assim, pela forma estruturada e circunstanciada com que os pais do Autor prestaram os seus depoimentos, a versão por estes sustentada mereceu-nos maior credibilidade do que a versão sustentada pelo Chamado e pelos RR.
(…)
Conforme já referimos a propósito da motivação do ponto 10, os pais do Autor, o Chamado e os RR descreveram de forma essencialmente coincidente a forma como ocorreu e decorreu a reunião que tiveram no terreno, apenas divergindo quanto à data em que esta teve lugar. Assim, tanto os pais do Autor como o Chamado e os RR confirmaram que nessa reunião foram discutidas as estremas dos prédios e linha divisória entre os mesmos. Contudo, os pais do Autor afirmam que em tal reunião também se falou na venda que já ocorrera e que o Chamado lhes exibiu uma folha e explicou que se tratava da “lei” e que segundo esta o Autor não tinha direito de preferência, sendo que o Chamado e os RR afirmam que o encontro ocorreu antes da venda, tendo o Chamado admitido, porém, que a questão da venda foi igualmente abordada, mas que os pais do Autor disseram que não queriam exercer a preferência e que proferiram a seguinte expressão «não queremos problemas, queremos viver em paz», sendo que o Chamado não soube explicar o enquadramento em que a mesma foi proferida, já que, na sua óptica, toda a reunião decorreu em ambiente tranquilo. Já os Réus referiram que a questão do direito de preferência não chegou sequer a ser abordada porque, espontaneamente, os pais do Autor disseram que não tinham dinheiro para comprar o terreno e por isso, no terreno, foi apenas discutida a linha divisória dos prédios. Repetindo o que já dissemos a propósito da motivação do ponto 10, a versão dos factos veiculada pelos pais do Autor mereceu-nos maior credibilidade. Na verdade, BB, mãe do Autor, descreveu de forma minuciosa que logo no telefonema de 28.02.2020, o Chamado lhe disse que já tinha vendido o terreno e por isso desconhecia os trabalhos que ali estavam a ser executados ou se contendiam com a linha divisória entre os prédios e daí que tenham agendado a reunião no terreno, com os RR, para, em conjunto, confirmarem a localização dos marcos. Também RR, pai do Autor, confirmou essa versão dos factos. A mãe do Autor afirmou ainda ter dito ao Chamado, logo ao telefone e depois no terreno, que estavam interessados em adquirir o terreno e questionou-o porque não tinha dado preferência ao Autor e acrescentou que ao telefone o Chamado limitou-se a dizer que “isso agora não me convinha nada”, mas que no terreno aquele disse que se tinha informado junto de um advogado e que o Autor não tinha preferência e exibiu-lhe uma folha de papel, que a testemunha leu e percebeu tratar-se de um artigo da lei e que perante isso proferiu uma expressão do género «não quero entrar em discussão com ninguém, nem ter problemas com ninguém, mas vamo-nos informar sobre a preferência». Ou seja, existem muitos pontos coincidentes entre a versão da testemunha BB e a do Chamado, sublinhando-se a semelhança entre a expressão que o Chamado atribuiu à mãe do Autor e a que esta referiu ter proferido. Acontece que a versão sustentada pela mãe do Autor mostra-se muito mais coerente e consentânea com a normalidade do acontecer. Efectivamente, o enquadramento que a testemunha dá para contextualizar a expressão que proferiu mostra-se perfeitamente adequado e aceitável, ao contrário do que ocorre com o depoimento do Chamado que, não omitindo que a testemunha proferiu a expressão em causa, não a consegue contextualizar e realça o ambiente tranquilo em que decorreu a reunião. Não nos parece aceitável. Acresce que, se os trabalhos de limpeza, vedação e construção no prédio referido em 3 só se iniciaram em Fevereiro (como os próprios RR o afirmam), o que é que justificaria o telefonema que a mãe do Autor fez ao Chamado em 24.01.2020 (na versão dos RR e do Chamado)? Nem este nem os RR o souberam explicar, mas o Chamado confirmou ter recebido um telefonema da mãe do Autor a propósito da linha que divide o prédio referido em 3 do prédio referido em 1 e que foi nessa sequência que foi marcado encontro no terreno. Mais, o Réu referiu que no dia em que se reuniram no terreno (em 26.01.2020, segundo o Chamado e os RR) ele ainda não tinha dado ao Chamado a sua decisão definitiva quanto à compra do terreno, que foi a primeira vez que viu o dito terreno e que só no fim da reunião, e perante a afirmação dos pais do Autor quanto a não estarem interessados (por não terem condições financeiras) na compra do terreno (em exercerem a preferência), é que comunicou ao Chamado que lhe comprava o prédio. Atendendo a que o título de compra do prédio foi outorgado no dia 29.01.2020, não nos parece curial que em 26.01.2020 já não estivesse agendada a escritura ou pelo menos tomada a decisão de compra. Aliás, a Ré afirmou de forma clara que no dia 26.01 já tinham dito ao Chamado que queriam comprar o terreno. Por fim, a versão dos factos sustentada pelos pais do Autor é corroborada quer pelos extractos de localização extraídos do Google, designadamente o que constitui o documento 6 da réplica (fls. 89-mais visível a fls. 160vº), que se reporta ao dia 1 de Março de 2020 e demonstra a deslocação nesse dia do endereço electrónico associado à localização (do pai do Autor) entre a cidade ... e o local onde se situam os prédios, ao contrário do extracto que constitui o documento 1 (fls. 81 e 82, mais visível a fls. 156vº e 157), que se reporta ao dia 26.01.2020, que não demonstra itinerário idêntico; quer pelas mensagens trocadas entre o pai do Autor e a testemunha MM no dia 28.02 (doc. 5 da réplica – fls. 88); quer ainda pelos depoimentos das testemunhas MM - que confirmou a troca das mensagens e que pela mesma altura o pai do Autor lhe telefonou manifestando-se desagradado com o facto de ter sabido que o prédio referido em 3 tinha sido vendido e a testemunha não lhe ter dito nada, já que ela sabia que ele estava interessado no mesmo, tendo a testemunha acrescentado ter sido ela que mediou a venda do prédio referido em 1 ao Autor (representado pelos pais) e que já nessa altura os pais deste tinham manifestado interesse no prédio identificado em 3, que havia sido vendido pouco tempo antes ao Chamado-, da testemunha SS - amiga da mãe do Autor e que em Janeiro e Março de 2020 trabalhava como cabeleireira no ..., em ..., que confirmou ter-se cruzado com os pais do Autor naquele centro comercial no dia 1.03.2020, acompanhados por outras 3 pessoas (que a testemunha não conhecia), e que eles disseram que iam ao terreno e por isso não podiam ficar ali a conversar com ela, tendo a testemunha se limitado a combinar com a mãe do Autor encontrarem-se no dia 8.03 (Dia da Mulher)- e da testemunha TT, primo do pai do Autor – que referiu ter programada uma viagem com o pai do Autor à ... no dia 1.03 e que tinham previsto sair de manhã e acabaram por iniciar viagem só depois do almoço por o pai do Autor estar ocupado a resolver uns assuntos no terreno segundo este lhe disse ao telefone, sendo que o pai do Autor explicou que do extracto de localização que constitui o doc. 6 da réplica (fls. 89 e 160vº) é possível ver-se o percurso efectuado nesse dia (...-prédio e prédio-...) e que o traço que parte de ... para a direita indica a trajectória a caminho de Espanha. Acresce que os depoimentos das testemunhas UU e VV corroboram igualmente a versão dada pelos pais do Autor, quando estes negam categoricamente que o encontro no centro comercial de ... e a reunião no terreno ocorreram no dia 26.01.2020 e afirmam que nesse dia não se deslocaram ao terreno já que participaram na festa do primeiro aniversário do filho da testemunha UU, na qual a testemunha VV também esteve presente, e que teve lugar no dia 25.01, tendo pernoitado na casa da testemunha e regressado a casa apenas no dia 26.01 pela hora do almoço. Da conjugação de todos os elementos de prova que acabamos de expor, temos que a versão dos factos que nos é dada pelos pais do Autor (e que confirmam a versão que este sustenta nos articulados) mostra-se alicerçada e corroborada, de forma coerente e credível, por vários elementos de prova, ao contrário do que ocorre com a versão veiculada pelos RR e Chamado que apresenta contradições, falhas e explicações pouco credíveis e coerentes e assenta exclusivamente no depoimento do Chamado e nas declarações dos RR, sendo que estes reconhecem não estarem seguros quanto às datas exacta em que os acontecimentos ocorreram. (…)»

8. O que acabámos de transcrever, mais não é do que uma bem fundamentada análise crítica de toda prova produzida, da qual resulta que a versão dos factos dada como provada se mostra credível em detrimento da versão dos RR. que não se mostra convincente.
Os recorrentes limitam-se a invocar as ditas declarações e depoimentos, mas não dizem porque é que os mesmos se impõem em relação à demais prova produzida.
Aliás, são os próprios recorrentes que reconhecem que as declarações e testemunhos que invocam não foram o primor da clareza. No entanto dizem que são coerentes e unânimes em apoiar a tese de que os pais do A. tiveram tempestivo conhecimento do objecto e dos termos do negócio imobiliário celebrado.
Mas, na decisão recorrida, com apoio nos depoimentos prestados bem se evidencia que essa coerência não existiu, o que, aliás se verificou desde logo pela necessidade que houve de acareação entre os RR. DD e mulher WW, como verificámos pela audição da prova gravada.
Em complemento da fundamentação aduzida na sentença recorrida que impõe, em face da prova produzida, o afastamento da versão dos factos referida pelos RR. e pelo Chamado (FF), vendedor do prédio aos RR., não podemos deixar de referir que não se nos afigura plausível que, a terem estado todos no prédio no dia 26/01/2020, como dizem os RR. e o Chamado, tivesse sido dado conhecimento aos pais do A. (BB e XX), supostamente pelo Chamado, e ainda no terreno, das condições do negócio, pois é o próprio R. DD que diz que, nesse momento, não falaram de valores porque o negócio ainda não estava fechado. E acrescentou que não assistiu à conversa mantida entre o Chamado (vendedor) e a mãe do A. (a YY, como diz), em que o vendedor terá comunicado a intenção de venda do prédio, porque ainda não tinha concluído o negócio.
Assim sendo, também não se afiguram credíveis as declarações do Chamado que referiu ter dito à mãe do A. que ia vender o terreno e que já tinha negócio feito, mas não lhe disse a data da escritura, mas que crê que já estaria marcada. Ora, se o comprador disse que ainda não tinha decidido comprar porque queria ver o terreno e em 26/01 era a primeira vez que o estava a ver (na sua versão dos factos) como é que o negócio já estava feito?
Mas a afirmação do R. DD de que em 26/01 tinha sido a primeira vez que foi ao terreno foi logo desmentida pela R. WW, que, peremptoriamente disse que já lá tinham estado antes, na semana de 22-23/01, com o Chamado (o vendedor).
Acresce que a razão que invocaram para o encontro, que dizem ter ocorrido no dia 26/01, não era para dar conhecimento aos pais do A. que o terreno ia ser vendido e saber se queriam exercer a preferência, mas sim para acertarem a “questão” das estremas comuns, da linha divisória do prédio do A. e do que veio a ser vendido aos RR., que pertencia ao Chamado.
Por outro lado a depoente WW afirma que a 28/01, antes da escritura que ocorreu a 29/01, foram todos ao terreno, mas o depoente DD nega tal facto.
É verdade que a testemunha KK referiu que, nas vezes que esteve no prédio em causa nos autos, ouviu dizer aos pais do A. que se tivessem dinheiro tinham comprado, mas como não havia não compraram. Esta testemunha foi o serralheiro que executou para os RR. os trabalhos de vedação do terreno. Mas a testemunha não esteve no terreno a 28/01, como dizem os RR. na contestação, pois referiu que esteve lá em fins de Fevereiro ou já em Março, antes de começar a fazer a vedação do terreno.
Também a testemunha OO referiu que ouviu dizer que se tivessem dinheiro tinham comprado aquela terra do Sr. DD. Mas esta testemunha também não pode ter estado no prédio com os RR. e os pais do A. e a testemunha KK no dia 28/01, pois a testemunha disse que só lá viu no prédio o R., o Sr. DD, “em meados de Fevereiro”.
Quanto às datas em que os RR. permaneceram em França, com relevância para saber se estiveram com os pais do A. no prédio em 1 de Março, o R. DD disse que dia 1 de Março já estavam em França e até ao dia 9, mas na contestação os RR. invocaram que permaneceram em França de 9 de Março a 1 de Junho, e não que tinham ido para lá antes, o que é bem diferente. E adiante, quando instado, já não conseguiu precisar as datas em que ficou em França.
Assim, e tendo em conta as declarações coerentes e claras dos pais do A. e os demais elementos probatórios referidos na sentença, que se referiram, que não se reportam apenas aos dados de localização google associados aos telemóveis dos pais do A., como parece quererem dizer os recorrentes nas alegações (dados esses que nem sequer se vê que tenham sido impugnados), é de concluir que o encontro decorreu no dia 1 de Março, como referido no ponto 25 dos factos provados, e não a 26 de Janeiro, como dizem os RR. e o Chamado.
Em síntese, tudo aponta no sentido de que os factos ocorreram como relatados pelos pais do A., ou seja, que foi em finais de Fevereiro que tomaram conhecimento da existência de trabalhos no prédio vendido pelo Chamado, o que vai de encontro ao relatado pela testemunha KK quanto ao início das obras de vedação do prédio, e que foi no dia 1 de Março que se encontraram todos no prédio – os pais do A., o Chamado e os RR. – como dado como provado nos pontos 23 a 26.
Aliás, não é credível que sabendo o Chamado, como disse, da necessidade de atempadamente dar conhecimento aos pais do A. do direito legal de preferência, se lhes quisesse comunicar esse direito, viesse a informar das intenções de venda do prédio que vendeu no dia 29/01apenas no dia 26 do mesmo mês, e verbalmente.
Tudo isto é no mínimo incoerente, ainda mais perante as afirmações do R. DD que disse que ainda não se tinha decidido pela compra, e que por isso foi nesse dia ver o terreno, pois tinha 4 terrenos em vista.
Também não se nos afigura credível que o R. DD não tenha recebido o email de fls. 20, datado de 24/07/2020, remetido pela mãe do A., a informar que pretendiam exercer o direito de preferência e a pedir para pararem com a construção iniciada no prédio, nem a carta com idêntico teor, que consta de fls. 29, remetida sob registo para a morada dos RR. e ali recebida pelo filho destes, como confirmou a R. WW, a qual disse que o marido soube da carta, como reafirmou na acareação com este, mas que não deram resposta.
E do facto de a acção ter sido instaurada poucos dias antes de terminar o prazo legal para a instauração da acção de preferência, tendo em conta a data de 26/01, não decorre que nesta data tivesse sido comunicada aos pais do A. o projecto da venda e que estes tivessem dito que renunciavam à preferência, mas tão só que, à data da instauração da acção, ainda não havia decorrido o prazo legal previsto no n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil.
De resto, como se disse, o vendedor bem sabia que tinha que comunicar com antecedência o projecto da venda, com todos os elementos necessários, como bem referiu a testemunha QQ, que intermediou a venda dos prédios ao A. e ao Chamado, e este também referiu que, quando comprou o terreno que agora vendeu aos RR., recebeu uma declaração de todos os confinantes a dizer que não queriam preferir e também lhe foi dada a preferência quando o A. comprou o seu prédio.
Deste modo, e com os demais fundamentos bem expressos na decisão recorrida, com os quais concordamos, não ocorre fundamento para alteração dos impugnados pontos 23, 24, 25 e 26 dos factos provados e das alíneas c), d), f) e h) dos factos não provados.

9. No que se refere à matéria da alínea b) dos factos não provados, para além do que antes se referiu, os recorrentes não dizem quais as provas que sustentam tal facto que pretendem que seja dado como provado, e o que disseram em audiência, contrariamente ao que resulta da contestação, foi que no dia 1 já estavam em França.
De resto, este facto é inócuo para a decisão, pois ainda que os RR. tenham permanecido em França entre o dia 9 de Março e 1 de Junho (mas que não provaram), tal não impedia que não tivessem estado no prédio com os pais do A. no dia 1 de Março, como consta do ponto 25 dos factos provados.

10. Quanto à matéria da alínea e) dos factos não provados, não tendo sido dado como provado que ocorreu o encontro do dia 26/01, não se pode considerar que nessa altura tenha sido dito aos pais do A. que, com a aquisição do prédio, os RR. pretendiam edificar no prédio um abrigo/cobertura para guardar a sua caravana.
Aliás, tal intenção dos RR. nem corresponde à que o Chamado referiu na contestação para procurar demonstrar que o prédio foi adquirido para outros fins, que não a exploração agrícola, tendo a este propósito referido que os pais do A. transmitiram que adquiriram o seu prédio rústico, “não para exploração agrícola, mas sim para edificarem uma moradia” e “do mesmo modo os Réus compradores assim o fizeram, tendo sempre transmitido tal pretensão a todos os envolvidos, pretensão essa que concretizaram …” (cf. artigos 5º e 6º da contestação).
Em relação à matéria da alínea i) dos factos não provados, os recorrentes não invocaram qualquer meio de prova em prol da sua alteração.

11. No que se reporta ao ponto 34 dos factos provados, onde se consignou que, “pelo PDM ..., o prédio referido em 3 localiza-se em espaço natural/área de protecção e valorização”, os recorrentes também não indicara em que é que se baseiam para a pretendida alteração, sendo certo que está provado que o prédio se situa em zona de REN (cf. ponto 9 dos factos provados), e, como se diz na sentença, tal facto resulta apurado «… da análise do documento junto como documento 7 da pi (fls. 26/28 e 35 a 37 e novamente a fls. 163 a 168) e das explicações que do mesmo foram dadas de forma clara e objectiva pela testemunha ZZ, responsável pela revisão do PDM na Câmara Municipal ..., que confirmou que para efeitos de PDM o prédio referido em 3 se insere em espaço natural – área de valorização e protecção e que está em zona de REN, pelo que no mesmo apenas podem ser permitidas construções de apoio à actividade agrícola».

12. Deste modo, improcede na totalidade o recurso de impugnação da matéria de facto, sem prejuízo de, ao abrigo do disposto no artigo 614º do CPC, se proceder à rectificação do lapso de escrita que consta do ponto 3 dos factos provados quanto à data do título de compra e venda, pois, como se vê do documento em causa, o mesmo foi realizado em 29 de Janeiro e não em 19, como, por manifesto lapso ali consta.

13. Ora, não tendo havido alteração da matéria de facto é manifesto que a pretensão dos recorrentes não merece provimento.
Senão vejamos:
Com a presente acção visava o A., representado pelos seus progenitores, efectivar o direito de preferência que lhe assistia no negócio de compra e venda do prédio transaccionado entre o Chamado e os RR., ao abrigo do disposto nos artigos 1380º, nº 1, e 1410º, nº 1, do Código Civil.
Nos termos do artigo 1380º do Código Civil (Direito de preferência):
«1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
2. Sendo vários os proprietários com direito de preferência, cabe este direito:
a) No caso de alienação de prédio encravado, ao proprietário que estiver onerado com a servidão de passagem;
b) Nos outros casos, ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
3. Estando os preferentes em igualdade de circunstâncias, abrir-se-á licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante.
4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, com as necessárias adaptações.»
Como resulta do preceito, são requisitos do direito real de preferência a existência de dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, que ambos sejam aptos para cultura, que um deles tenha sido vendido ou dado em cumprimento, que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado, e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante ou, sendo-o, na hipótese de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, não se tratando de um caso de alienação de prédio encravado, aquele que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
No caso em apreço, não subsistem dúvidas que tanto o prédio do A. como o transaccionado pelo Chamado e pelos RR. são prédios rústicos (cfr. artigo 204º, nº 2, 1ª parte do Código Civil), estando assente que os prédios são confinantes e de área inferior à unidade de cultura, assim como que os RR. não tinham qualquer prédio confinante com o que detinham, pelo que estavam verificados os requisitos de que depende o direito de preferência, nos termos previsto no n.º 1 do artigo 1380º do Código Civil, o que não é sequer questionado no recurso.
O que os recorrentes entendem é que foi dado conhecimento aos pais do A. do projecto da venda no dia 26 de Janeiro de 2020, a qual veio a ser concretizada no dia 29 do mesmo mês, e que os pais do A., em representação deste renunciaram à preferência.
Porém, tal impedimento ao exercício do direito de preferência que o A. exerce por via da acção prevista no artigo 1410º não se provou, pois não foi alterada a matéria de facto no sentido pretendido pelos recorrentes, não se provando nem o alegado encontro de 26 de Janeiro, nem que nessa data tenha havido renuncia ao direito de preferência.
Aliás, ainda que tivesse ocorrido o dito encontro e tivesse sido dito pelo Chamado aos pais do A. que ia vender o prédio aos RR., era necessário ainda que tivessem sido transmitido o projecto de venda, como exigido pelo n.º 1 do artigo 416º do Código Civil (aplicável por remissão do n.º 4 do artigo 1380º), dando a conhecer as condições da venda, o preço, a data prevista para a venda e até quem eram os compradores, se esta indicação for relevante, de modo a que os preferentes pudessem exercer o seu direito informada e tempestivamente, o que não se provou. Além de que na alegada data de 26 de Janeiro a comunicação não teria sido feita em tempo, pois os preferentes teriam oito dias para decidir (cfr. nº 2 do artigo 416º do Código Civil), e a venda ocorreu antes do decurso deste prazo, logo no dia 29 do mesmo mês.
E como se diz na sentença, não ocorre o fundamento impeditivo do direito de preferência, previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 1381º do Código Civil, consistente no facto de os RR. destinarem o prédio a fim diferente da cultura.
De facto, prevê-se no referido preceito que “[n]ão gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura; (…)”.
Mas, como bem se diz na sentença, é entendimento dominante na jurisprudência que o facto impeditivo do direito de preferência terá de ser alegado e provado pelo adquirente. Pelo que este terá de alegar e provar não só a sua intenção de dar ao prédio outro destino que não a cultura, mas também que essa mudança de destino seja praticada e seja permitida por lei.
Neste sentido, concluiu-se entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/10/2019 (proc. nº 295/16.8T8VRS.E1.S2):
«III- Para que o facto impeditivo do direito de preferência, aludido no art. 1381º, al. a), 2ª parte, do CC, opere os seus efeitos é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afectação ou um outro destino que não a cultura, mas também que essa projectada mudança de destino é permitida por lei.
IV- Esta é matéria que se insere no âmbito do facto impeditivo do direito invocado pela Autora, e, por esta razão, o respectivo ónus probatório recai sobre contra quem a invocação é feita, ou seja sobre os Réus compradores.
V- Não tendo demonstrado a viabilidade legal de afectação do prédio adquirido ao concreto objectivo que lhe pretendiam dar, os Réus compradores não lograram afastar o direito de preferência da Autora.»
E, em idêntico sentido, vejam-se ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/04/2014 (proc. n.º 654/05.1TBNLS.C1), de 19/02/2013 (proc. n.º 246/05.5TBMNC.G1.S1). e de 06/05/2010 (proc. n.º 537/02.G1.S1), e, bem assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/12/2017 (proc. nº 303/16.2T8CLD.C1).
Na situação dos autos, não subsistem dúvidas que os RR. compradores lograram demonstrar que a afectação praticada no prédio é diversa da cultura (cfr ponto 12 dos factos provados), mas não lograram fazer prova de que tal afectação é permitida por lei, apurando-se precisamente o contrário.
Na verdade, não só os RR. não juntaram qualquer documento emitido pela Câmara Municipal sobre o licenciamento da edificação que construíram no terreno ou sequer da viabilidade de ali se poder erigir a mesma, nomeadamente através da apresentação de um pedido de informação prévia (PIP), como está provado que o prédio adquirido pelos RR insere-se em área de REN, com as limitações daqui decorrentes.
Como se consignou na sentença:
«A Reserva Ecológica Nacional (REN) é uma restrição de utilidade pública de âmbito nacional, inscrita nos instrumentos de gestão territorial, sujeita a um regime territorial especial estabelecido pelo DL nº 166/2008, de 22.08 (abreviadamente designado por RJEN), alterado e republicado pelo DL nº 239/2012, de 2.11, com a alteração introduzida no artigo 20º pelo DL nº 96/2013, de 19.07, nos artigos 184º a186º e no artigo 201º pelo DL nº 80/2015, de 14.05, e pelo DL nº 124/2019, de 28.08, que procedeu a nova republicação.
Nas áreas incluídas na REN são interditos os usos e as acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de urbanização, construção e ampliação, vias de comunicação, escavações e aterros e na destruição do revestimento vegetal, não incluindo as acções necessárias ao normal e regular desenvolvimento das operações culturais de aproveitamento agrícola do solo e das operações correntes de condução e exploração de espaços florestais (art. 20º, nº1, do RJREN).
Exceptuam-se daquelas interdições os usos e as acções que sejam compatíveis com os objectivos de protecção ecológica e ambiental e de prevenção e redução de riscos naturais de áreas integradas em REN (art. 20º, nº2, do RJREN).
O RJEN, no seu Anexo II, estabelece o quadro de usos e acções compatíveis com os objectivos de protecção ecológica e ambiental e de prevenção e redução de riscos naturais de áreas integradas na REN, cujas condições e requisitos de admissão são definidos no Anexo I da Portaria nº 419/2012, de 20.12.
Exposto o enquadramento jurídico e limitações legais aplicáveis a prédios inseridos em área de REN, mostra-se evidente que a afectação dada pelos Réus compradores ao prédio referido em 3 não é legalmente admissível. Na verdade, tal afectação não está englobada nos usos e acções compatíveis com os objectivos de protecção ecológica e ambiental e de prevenção e redução de riscos naturais elencados no Anexo I antes referido.
Assim, não tendo demonstrado a legalidade da afectação dada ao prédio adquirido, importa concluir que os Réus não demonstraram estarem a dar ao prédio afectação diversa da cultura e, nessa medida, não lograram afastar o direito de preferência do Autor.»

14. Deste modo, estando verificados os requisitos de que depende o reconhecimento do direito de preferência, validamente exercido pelo A., tinham que proceder os pedidos formulados pelo A. sob as alíneas a), b) e c) da petição inicial, como se decidiu.

15. Questionam, no entanto, os RR. a condenação efectuada na sentença relativamente à demolição da construção (armazém) que efectuaram no prédio, invocando apenas, que “não estando o julgador da causa provido documentalmente com a decisão camarária a confirmar que tal edificação, naquele prédio concreto, não é permitida, não poderia este ordenar a demolição do edificado.”
Mas, como é manifesto, não lhe assiste razão, pois, era aos RR. que competia demonstrar que a dita edificação estava licenciada, sendo certo que estando o prédio integrado em REN, não era permitida a construção de tal edificação que não se destina ao apoio das actividades agrícolas.
De resto, nada mais há a acrescentar aos fundamentos consignados na decisão recorrida quanto à indemnização por benfeitorias, que nem sequer é objecto de impugnação.

16. Deste modo, improcede a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
*
Évora, 23 de Maio de 2024
Francisco Xavier
Manuel Bargado
José António Penetra Lúcio
(documento com assinatura electrónica)