Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1/15.4GGMMN.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INCUMPRIMENTO DO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
CONCURSO HETEROGÉNIO/HOMOGÉNEO
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - O incumprimento dos ónus de impugnação previstos no art. 412º, nº 3, do CPP, por omissão ou por deficiência, prejudica o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla ou alargada, mas não desobriga a Relação de sindicar a sentença através da análise do seu texto, designadamente perscrutando se enferma de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº2, al.c), do CPP).

II - O tratamento da problemática do concurso heterogéneo e do concurso homogéneo não pode ser desconsiderada no âmbito da violência doméstica e nos processos respeitantes ao tipo legal de crime do art. 152º do CP, supostamente por se tratar de um tripo que prevê já a reiteração (mas que, no entanto, não a exige).

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo Comum Coletivo n.º 1/15.4GGMMN, da Comarca de Évora, foi proferido acórdão a absolver AA da prática de um crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1, al. b), 2º, 4º e 5º, do CP e a condenar o mesmo arguido como autor de um crime de violência doméstica do art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2 do CP, em concurso aparente com um crime de violação, do art. 164º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

I – O Recorrente foi condenado pela prática, entre Setembro de 2016 e Março de 2017, em autoria material, e um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, em concurso aparente com m crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal.

II – O Tribunal deu como provado que:

”5º Desde Novembro de 2016 que o arguido molesta física e psicologicamente a ofendida, sendo a relação destes pautada por discussões provocadas por ciúmes e desconfianças do arguido em relação à ofendida.

6º Desde então, em quase todas as discussões que tiveram, o arguido acusava a ofendida de ter amantes e chamava-a de “puta”.

7º Nessa altura o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, obrigando a ofendida a deslocar-se consigo aos cafés da aldeia, para evitar que a mesma permanecesse em casa sozinha, por desconfiar que o iria abandonar ou encontrar-se com outros homens.

8º Em data não concretamente apurada, mas depois de Novembro de 2016, a ofendida recebeu uma chamada telefónica da sua filha que reside em Londres.

9º Como a conversa com a ofendida manteve a conversa em língua inglesa, o arguido ficou irritado e acusou-a de ter amantes.

10º À noite desse mesmo dia, pelas 23h, na residência do Monte, o arguido pediu o telemóvel à ofendida.

11º Já na posse do telemóvel, atirou-o ao chão com força, ficando este completamente destruído e gritou à ofendida: “Puta, és tal e qual como as outras, estavas a falar com os amantes a combinar onde iam ter”.

12º Em seguida, o arguido desferiu-lhe um estalo na face esquerda.

13º Como consequência de tal agressão, a ofendida ficou com um hematoma no olho e sofreu dores.

14º Nessa noite, o arguido empurrou a ofendida para fora de casa, obrigando-a a pernoitar na rua, algo que também fez noutros dias, em datas não apuradas, dizendo-lhe que ficava a guardar a porta.

15º Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, à noite, a ofendida estava deitada na cama com dores menstruais.

16º Nessas circunstâncias, o arguido insistiu manter relações sexuais com a companheira.

17º A ofendida explicou ao arguido que tinha dores e para esperar uns dias.

18º Contudo, o arguido colocou-se em cima da ofendida, agarrou-lhe os braços com força e puxou-os para trás, após tirou-lhe as cuecas e introduziu o pénis erecto na vagina da ofendida e no seu ânus, apesar de a ofendida ter dito insistentemente que não queria manter relações sexuais com o arguido.

19º Em consequência de tal conduta, a ofendida sofreu dores no ânus, mas não recebeu qualquer assistência hospitalar porque o arguido não o permitiu.

20º Pelo menos em mais duas ocasiões, em datas não apuradas, no período da noite, quando a ofendida se encontrava deitada na cama, o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula completa, contra a sua vontade, após ter agarrado as suas mãos com força, nomeadamente, prendendo-as com cordas à cama.

21º O arguido não deixava a ofendida sair de casa.

22º No dia 09 de Março de 2017, no período da noite, o arguido, após ter ingerido bebidas alcoólicas, dirigiu-se à ofendida e disse-lhe, referindo-se ao facto de a mesma ter saído de casa sem ele, “pensas que eu sou parvo, sou cego, pensas que eu não te via aqui da janela a foderes com eles”.

23º Em seguida, jogou-a contra a parede, desferiu-lhe dois estalos na cara, agarrou-a com as duas mãos pelo pescoço, apertando-o com força até esta ficar com dificuldade em respirar.

24º De seguida, o arguido dirigiu-se à cozinha e muniu-se de uma faca utilizada para matar porcos.

25º Dirigiu-se à ofendida, e empunhando a faca na sua direcção, disse-lhe “se não fosse por te amar, matava-te agora”, deixando a faca em cima da mesa.

26º Após, o arguido disse à ofendida para lhe dar o passaporte e deslocou-se ao quarto para o procurar.

27º Nessa ocasião, a ofendida acabou por fugir e abandonar a casa do arguido.

28º Na sequência das agressões sofridas, a ofendida sofreu escoriação na face anterior do braço esquerdo, que lhe causou um dia de doença sem afectação para o trabalho.

29º Sofreu ainda dores abdominais e no pescoço.

30º Durante o relacionamento, o arguido disse à ofendida “Se me deixas, eu mato-te e a seguir suicido-me.”

31º Após a separação, o arguido perseguiu a ofendida, tentando contactá-la.

32º Para o efeito, pelo menos em duas ocasiões, o arguido dirigiu-se até à residência da irmã da ofendida, na altura no Bairro do ---, forçou as persianas das janelas e introduziu a mão na caixa do correio, dizendo à
ofendida que se ia arrepender de ter nascido, que era melhor fugir.”

III – Formando a sua convicção no depoimento decisivo da testemunha, e ofendida, M., relativamente a toda a matéria provada.

IV – Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.

V – Com efeito, na sua globalidade, o depoimento da testemunha é tendenciosos, contraditório e incoerente,

VI – Desprovido da credibilidade necessária para efeitos de prova dos factos em apreço,

VII – Pelo que não poderá o mesmo servir a convicção do Tribunal para prova dos factos provados.

VIII – Por outro lado, a testemunha MC, irmã da Ofendida M, esclareceu, por conhecimento directo, o relacionamento existente entre aquela e o Recorrente,

IX – O qual, abonou a favor do arguido.

X – No entanto, o Tribunal a quo, não considerou nem valorou as declarações da testemunha na parte em que as mesmas beneficiavam ao arguido e contradiziam o discurso da Ofendida M.

XI – Por outro lado, referiu ainda MC que na única vez que se apercebeu que alguém mexia na persiana da janela de sua casa só viu a cabeça a fugir, não viu, mas pensou ser o arguido,

XII - Sendo que o douto Tribunal a quo deu como provado que a testemunha “viu que o arguido tentou abrir a persiana da janela e a porta de casa”, o que não tem sustentação no seu depoimento.

XIII - Sendo o depoimento da testemunha M o suporte de toda a matéria provada, e não podendo o mesmo ser valorado face à sua incoerência e falta de credibilidade, deverá o Recorrente ser absolvido de todas as acusações, devendo o presente recurso proceder.

XIV – Do texto do Acórdão recorrido resulta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410º do C.P.P.

XV – Não valorou ainda o Tribunal a quo a inexistência de antecedentes criminais do Recorrente quanto a crimes da natureza dos que ora lhe são imputados,

XVI – Nem considerou a sua boa inserção social e responsabilidade pessoal do Recorrente.

XVII - Sendo de aplicar ao Recorrente uma pena que não exceda os quatro anos de prisão e que deve ser suspensa na sua execução.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1. Os factos provados, descritos nos nºs. 3 e segs., da matéria julgada assente no Acórdão integram, todos os elementos objectivos subjectivos do tipo do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2 do Código Penal, em concurso aparente com um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, n.º 1 al. a) do mesmo diploma legal, pelo qual o arguido foi condenado, pelo que não se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a), do nº 2, do art. 410º, do C.P.P.

2. Nem o arguido em momento algum indica, ainda que de forma imperfeita, qual o elemento em falta.

3. O Recorrente invoca a existência de erro de julgamento, tal como este se encontra previsto no artº 412º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, sem contudo cumprir, seja na motivação seja nas conclusões, as obrigações impostas no nº 3, do artº 412º, do Cód. Penal, circunstância que impede que o tribunal «ad quem» atenda à prova gravada.

4. Não indica, sequer quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados nem as provas que, em concreto, na sua perspectiva impõem decisão diversa sobre a matéria de facto julgada provada.

5. Essa omissão não constitui um mero incumprimento dos deveres impostos nos nºs. 3 e 4 do artº 412º, do C.P.P. mas antes a confissão da bondade da decisão do Tribunal recorrido quanto à factualidade julgada provada.

6. O Tribunal Colectivo fundamentou de modo bastante expressivo e exaustivo a factualidade que julgou assente, com articulação dos diversos meios de prova, em cumprimento da obrigação de realização do exame crítico da prova, nos termos do disposto no artº 374º, nº 2, do Cód. Proc. Penal.

7. Procedeu ao exame minucioso das provas produzidas, de todas elas, relacionando-as entre si, destacando e apreciando todo o comportamento do arguido, avaliando-o ainda num quadro de normalidade e de racionalidade, a tudo procedendo de acordo com regras de lógica e de experiência comum.

8. Com recurso a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”

9. O Tribunal bem apreendeu e devidamente valorou as declarações das testemunhas (em parte alguma da motivação do recurso interposto pelo arguido se lê que alguma das testemunhas tenham dito algo diferente do que efectivamente disseram, ou que o tribunal tenha esquecido ou ignorado os excertos em causa).

10. Declarações que o Tribunal Colectivo articulou com as restantes provas produzidas, nos termos explanados no Acórdão, procedendo a um verdadeiro exame crítico da prova, como lhe impõem as normas e processuais penais, que se mostram integralmente cumpridos.

11. Não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais e Tribunal justificou cabalmente no Acórdão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo-lhes valor positivo ou negativo de modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do “in dubio pro reo”, impondo-se de forma evidente a valoração da prova realizada pelo Tribunal Colectivo à incipiente fundamentação que dela faz o arguido, ora recorrente.

12. A pena de 5 anos e 6 meses de prisão situa-se abaixo do limite médio da moldura penal aplicável pelo que não ultrapassa a culpa apresentada pelo arguido.

13. Atentos tais elementos e os demais indicados no Acórdão recorrido, a pena aplicada mostra-se ajustada à actividade por este desenvolvida, à sua culpa e às exigências de prevenção geral e especial e, consequentemente, está conforme aos critérios legalmente fixados no art. 71º, nºs. 1 e 2, do Cód. Penal, para a determinação da medida concreta da pena.

14. A pena de cinco anos e seis meses de prisão aplicada pelo tribunal colectivo não pode ser a sua execução suspensa por impossibilidade legal, nos termos do artº 50º, nº 1, do Cód. Penal.

15. Ainda que assim não fosse, a circunstância do arguido já possuir registados diversos antecedentes criminais, nomeadamente em penas de prisão suspensas na sua execução, no decurso da qual praticou os factos que lhe são imputados nos presentes autos, mostra que não é fundado o juízo de que a simples censura do facto e a ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição, como exige o nº 1, do Art. 50º, do Cód. Penal, pelo que nunca a pena poderia ser suspensa na sua execução.

16. Por tudo o exposto, o Acórdão recorrido não merece censura.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto disse acompanhar a resposta do Ministério Público em primeira instância. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão, consideraram-se os seguintes factos provados:

NUIPC 1/15.4GGMMN

“1º AG e o arguido AA viveram em condições análogas às dos cônjuges, em comunhão de leito, mesa e habitação, durante pelo menos três anos, até finais do mês de Agosto de 2016, … em Cabrela, Vendas Novas.

2º Em finais de Agosto de 2016, na esplanada do Café “X” em Cabrela, o arguido disse à ofendida “puta, vaca”, tendo de seguida desferido um estalo na face desta.

NUIPC ---/17.7GCMMN
3º M. viveu em condições análogas às dos cônjuges com o arguido AA entre meados de Setembro de 2016 a 9 de Março de 2017.

4º Viveram nas residências do Monte da Casa Branca e na Rua…, ambas em Cabrela.

5º Desde Novembro de 2016 que o arguido molesta física e psicologicamente a ofendida, sendo a relação destes pautada por discussões provocadas por ciúmes e desconfianças do arguido em relação à ofendida.

6º Desde então, em quase todas as discussões que tiveram, o arguido acusava a ofendida de ter amantes e chamava-a de “puta”.

7º Nessa altura o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, obrigando a ofendida a deslocar-se consigo aos cafés da aldeia, para evitar que a mesma permanecesse em casa sozinha, por desconfiar que o iria abandonar ou encontrar-se com outros homens.

8º Em data não concretamente apurada, mas depois de Novembro de 2016, a ofendida recebeu uma chamada telefónica da sua filha que reside em Londres.

9º Como a conversa com a ofendida manteve a conversa em língua inglesa, o arguido ficou irritado e acusou-a de ter amantes.

10º À noite desse mesmo dia, pelas 23h, na residência do Monte, o arguido pediu o telemóvel à ofendida.

11º Já na posse do telemóvel, atirou-o ao chão com força, ficando este completamente destruído e gritou à ofendida: “Puta, és tal e qual como as outras, estavas a falar com os amantes a combinar onde iam ter”.

12º Em seguida, o arguido desferiu-lhe um estalo na face esquerda.

13º Como consequência de tal agressão, a ofendida ficou com um hematoma no olho e sofreu dores.

14º Nessa noite, o arguido empurrou a ofendida para fora de casa, obrigando-a a pernoitar na rua, algo que também fez noutros dias, em datas não apuradas, dizendo-lhe que ficava a guardar a porta.

15º Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, à noite, a ofendida estava deitada na cama com dores menstruais.

16º Nessas circunstâncias, o arguido insistiu em manter relações sexuais com a companheira.

17º A ofendida explicou ao arguido que tinha dores e para esperar uns dias.

18º Contudo, o arguido colocou-se em cima da ofendida, agarrou-lhe os braços com força e puxou-os para trás, após tirou-lhe as cuecas e introduziu o pénis erecto na vagina da ofendida e no seu ânus, apesar de a ofendida ter dito insistentemente que não queria manter relações sexuais com o arguido.

19º Em consequência de tal conduta, a ofendida sofreu dores no ânus, mas não recebeu qualquer assistência hospitalar porque o arguido não o permitiu.

20º Pelo menos em mais duas ocasiões, em datas não apuradas, no período da noite, quando a ofendida se encontrava deitada na cama, o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula completa, contra a sua vontade, após ter agarrado as suas mãos com força, nomeadamente, prendendo-as com cordas à cama.

21º O arguido não deixava a ofendida sair de casa.

22º No dia 09 de Março de 2017, no período da noite, o arguido, após ter ingerido bebidas alcoólicas, dirigiu-se à ofendida e disse-lhe, referindo-se ao facto de a mesma ter saído de casa sem ele, “pensas que eu sou parvo, sou cego, pensas que eu não te via aqui da janela a foderes com eles”.

23º Em seguida, jogou-a contra a parede, desferiu-lhe dois estalos na cara, agarrou-a com as duas mãos pelo pescoço, apertando-o com força até esta ficar com dificuldade em respirar.

24º De seguida, o arguido dirigiu-se à cozinha e muniu-se de uma faca utilizada para matar porcos.

25º Dirigiu-se à ofendida, e empunhando a faca na sua direcção, disse-lhe “se não fosse por te amar, matava-te agora”, deixando a faca em cima da mesa.

26º Após, o arguido disse à ofendida para lhe dar o passaporte e deslocou-se ao quarto para o procurar.

27º Nessa ocasião, a ofendida acabou por fugir e abandonar a casa do arguido.

28º Na sequência das agressões sofridas, a ofendida sofreu escoriação na face anterior do braço esquerdo, que lhe causou 1 dia de doença sem afectação para o trabalho.

29º Sofreu ainda dores abdominais e no pescoço.

30º Durante o relacionamento, o arguido disse à ofendida “Se me deixas, eu mato-te e a seguir suicido-me.”

31º Após a separação, o arguido perseguiu a ofendida, tentando contactá-la.

32º Para o efeito, pelo menos em duas ocasiões, o arguido dirigiu-se até à residência da irmã da ofendida, na altura no Bairro ----, forçou as persianas das janelas e introduziu a mão na caixa do correio, dizendo à ofendida que se ia arrepender de ter nascido, que era melhor fugir.

33º O arguido ao proferir as expressões injuriosas acima descritas, dirigidas à ofendida, sabia que a atingia na sua honra e consideração pessoal, o que quis e logrou alcançar.

34º Agiu com o propósito, concretizado, de agredir física e psicologicamente a ofendida, sua companheira, bem sabendo que lhe causava dores no corpo, que a humilhava, a intimidava e lhe provocava medo, atingindo-a na sua dignidade, enquanto mulher e ser.

35º Ainda com as condutas descritas, o arguido pretendia que a ofendida ficasse privada da sua liberdade pessoal e com medo que aquele a voltasse a agredir e até a matar, o que quis e representou.

36º Mais sabia o arguido que, ao consumar actos sexuais contra a vontade da ofendida nos termos descritos, a intimidava e atentava contra a sua autodeterminação e liberdade sexual, desrespeitando a sua vontade e subjugando-a à sua vontade.

37º Em consequência das condutas do arguido, a ofendida sentiu humilhação, ansiedade e medo permanentes, na medida em que não sabia o que esperar do arguido, nomeadamente, se iria recomeçar a sequência das agressões, ameaças e insultos.

38º O arguido quis actuar do modo descrito, com o propósito concretizado de molestar física, moral e psicologicamente a sua companheira, com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder e de controlo, sabendo que o fazia a coberto da privacidade da residência onde habitavam.

39º O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

40º AA é oriundo de um meio socio familiar de origem rural, empobrecido a nível económico. O sistema familiar, embora seja referido como coeso em termos afetivos, transmissor de normas de vida positivas, centradas na valorização da família, parece ter-se focalizado na aquisição de hábitos de trabalho que contribuíssem para o sustento doméstico e autonomia individual.

Assim, AA não chegou a frequentar o espaço escolar, não sabe ler, nem escrever, começando a trabalhar com seis anos de idade em atividades agrícolas/pecuárias em conjunto com os familiares.

Neste contexto vivencial AA terá iniciado o consumo de álcool, muito precocemente, num processo de socialização, à época muito característico do meio rural em que sempre viveu.

Do trajeto de vida de AA destaca-se o casamento que contraiu aos dezoito anos. Desta união que perdurou cerca de 12 anos, tem três filhos, um dos quais ainda menor. Após a separação o filho mais velho ainda ficou uns anos com o pai, juntando-se posteriormente aos irmãos a cargo da mãe. AA manteve relação com os filhos e contribuiu com as prestações de alimentos. No presente só presta 50€ mensais a título de alimentos ao filho menor.

Após a separação o arguido agravou os consumos de bebidas alcoólicas, registando forte perturbação emocional.

AA conta com a vertente laboral como factor de proteção e de gratificação pessoal permitindo-lhe o seu sustento e o das companheiras que com ele têm vivido. O arguido trabalha desde há cerca de 12 anos, como tratador de animais, para a mesma entidade patronal.

Subsiste com base no seu vencimento, de pelo menos € 512,00 mensais, beneficiando ainda de casa de função e de alguns produtos de consumo doméstico, por inerência da atividade laboral, nomeadamente produtos agrícolas.

Com M., o arguido arrendou uma habitação por 150€ mensais, na morada constante nos autos.

No presente o arguido dedica-se à sua atividade laboral e ao tratamento que efetua através do CRI, com consultas no centro de saúde de Vendas Novas, onde a terapeuta se desloca, para o efeito.

AA denota baixa capacidade de apreciação crítica face ao seu trajeto de vida pessoal, nomeadamente no que concerne as ligações afetivas. Todavia, denota consciência do normativo social.

AA perceciona a desestruturação causada pela problemática aditiva, com prejuízo a todos os níveis da sua vida pessoal, reconhecendo a sua incapacidade em manter uma conduta normativa quando sob efeito do álcool.

41º O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

- Por sentença transitada em julgado em 1.04.2008, foi condenado no processo nº --/08.4GBMMN de Montemor-O-Novo, pela prática em 12.03.2008 de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena única de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

- Por sentença transitada em julgado em 14.07.2008, foi condenado no processo nº ---/08.0GTBJA do Juízo de Beja, pela prática em 4.06.2008 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de condução pelo período de 8 meses.

- Por sentença transitada em julgado em 15.10.2008, foi condenado no processo nº ---/08.9GELSB do Juízo de Setúbal, pela prática em 8.08.2008 de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena única de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e subordinada à obrigação de pagar € 500,00 ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, no prazo de 60 dias e na pena acessória de proibição de condução pelo período de 1 ano.

- Por sentença transitada em julgado em 16.02.2009, foi condenado no processo nº ---/07.9GGMMN de Montemor-O-Novo, pela prática em 12.09.2007 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

- Por sentença transitada em julgado em 6.03.2013, foi condenado no processo nº ---/11.1GGMMN de Montemor-O-Novo, pela prática em 4.10.2011 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 5 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

- Por acórdão transitado em julgado em 9.07.2015, proferido no processo nº --/11.6GGMMN do Juízo Central Criminal de Évora, foi condenado pela prática em 6.06.2011 de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada do artigo 190º, nºs 1 e 3 do CP, de um crime de incêndio agravado do artigo 272º, nº 1, al. a) e 202º, al. a) do CP, de um crime de furto simples do artigo 203º do CP, de um crime de dano simples do artigo 212º do CP, na pena única de única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período sujeita à condição de o arguido pagar aos demandantes a quantia de € 37.876,40, em prestações mensais de € 100,00.

- Por sentença transitada em julgado em 5.05.2015, foi condenado no processo nº ---/12.3GCMMN de Montemor-O-Novo, pela prática em 16.09.2012 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita à condição de o arguido entregar num prazo de 8 meses a quantia de € 800,00 a instituições.

- Por sentença transitada em julgado em 10.02.2016, foi condenado no processo nº ---/14.5GGMMN de Montemor-O-Novo, pela prática em 2014 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 100 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita à condição de o arguido se inscrever e submeter-se a exame de condução, submetendo-se a prova teórica e prática.”

Foram considerados não provados os seguintes factos:

“- Cerca de uma semana após o início do relacionamento com AG, o arguido, fazendo uso da sua superioridade física e de uma ascendência autoritária, começou a exercer violência física, a ameaçar, a perseguir, a controlar, a ofender verbalmente a ofendida AG, o que fez, por diversas vezes, quer no interior da residência onde coabitam quer noutros locais.

- No quadro do descrito comportamento, em diversas ocasiões, com uma frequência quase diária, no interior da residência onde coabitavam, o arguido desferiu socos, bofetadas e pontapés na cabeça e corpo de AG.

- Igualmente em diversas ocasiões, no interior da residência onde coabitam, o arguido dirigiu-se à ofendida AG e, entre outras expressões, disse à mesma “dou-te um tiro nos cornos”, “eu mato-te”, “puta”, “vaca”, “não vales nada”, “não prestas para nada”.

- Por diversas vezes, o arguido acorrentou a ofendida, deixando-a imobilizada no chão por largos períodos de tempo.

- Por outro lado, sempre que AG apresentava queixa contra o arguido este pressionou-a a desistir e a remeter-se ao silêncio, dizendo “eu mato-te”, “da próxima vez que fizeres queixa de mim à GNR, mato-te à porta do Posto”.

– Uma semana após o início da coabitação, o arguido, após discutir com a ofendida, desferiu-lhe vários pontapés e socos pelo corpo e apertou-lhe o pescoço.

– Uma semana depois deste episódio, quando chegavam a casa, ainda no exterior da residência, na sequência de uma discussão, o arguido desferiu um murro no nariz da ofendida, tendo esta caído ao chão, começando a sangrar do nariz.

– Após, o arguido disse à ofendida “Levanta-te daí sua pura, vaca, não chegas aos calcanhares da minha ex-mulher.”

– De seguida desferiu vários pontapés nas costas da ofendida e na sua perna direita.

– Após, entraram em casa e dirigindo-se à sala, o arguido continuou a desferir vários murros e pontapés pelo corpo da ofendida.

– Em seguida, o arguido agarrou-a pelos cabelos e puxou-a até ao quarto, atirou-a para cima da cama e disse “tens de me dar, eu quero”, tendo a ofendida referido que não queria ter relações sexuais naquele dia.

– Irritado, o arguido disse “as putas dão sempre”, após colocou-se em cima da ofendida, imobilizando-a e manteve com esta, contra a sua vontade, sexo oral, vaginal e anal, com cópula completa.

– No Inverno de 2013/2014, em data não concretamente apurada, cerca das 03h00, o arguido chegou a casa, alcoolizado, e iniciou discussão com a ofendida.

– Em seguida, o arguido muniu-se de umas correntes e com elas prendeu-lhe os pés e as mãos, imobilizando-a no chão do quarto e aí permaneceu acorrentada até às 08h00 do mesmo dia.

– Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, o arguido imobilizou novamente a ofendida, utilizando as correntes para lhe prender os pés e as mãos e após, manteve com esta, contra a sua vontade, relações sexuais de cópula completa, coito oral e coito anal, ficando a ofendida com dores e hematomas nas zonas genitais.

– Em data não concretamente apurada do Verão de 2014, o arguido e a ofendida vinham da localidade dos Baldios, num tractor, estando a ofendida sentada na caixa do tractor.

– Quando chegaram à entrada do Monte onde residiam, o arguido munido de uma moca, que estava junto ao assento do tractor, e virando-se para trás desferiu várias pancadas com a moca na cara, ombros, pescoço e cabeça da ofendida, até esta perder os sentidos, provocando-lhe vários ferimentos.

– Após, o arguido transportou a ofendida até o sofá da residência de ambos e limpou-lhe o sangue.

- Quando acordou, e por sentir muitas dores, a ofendida pediu ao arguido que a transportasse ao Hospital, tendo este recusado dizendo “se fores, vais fazer queixa de mim”.

– No dia 09/07/2015, pelas 19h30, o arguido chegou a casa e dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe “não vales nada, vaca, puta, sacarrabos, não és mulher para mim” e, em seguida, desferiu-lhe duas chapadas na face, tendo esta caído ao chão.

– Acto contínuo, e estando a ofendida no chão, o arguido desferiu-lhe vários pontapés nas pernas”.

– Em consequência directa e necessária da descrita conduta, a ofendida sofreu de hematomas nas pernas, de dores físicas e de mal-estar psicológico, o que lhe causou 8 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.

– No dia 12/07/2015, pelas 20h30m, o arguido desferiu-lhe vários estalos na face e puxões de cabelos, tendo-lhe desferido dois pontapés nas pernas, chamando-lhe “puta e vaca”.

– Em data não concretamente apurada de Maio de 2015, o arguido chegou a casa, embriagado, agarrou a ofendida pelos braços sentou-a no sofá e mostrou-lhe um papel relativo a uma multa para pagar.

– Após, agarrou as mãos da ofendida e desferiu-lhe várias bofetadas na face, apertando-lhe o pescoço e disse-lhe “puta, vaca, não prestas, não és mulher para mim”.

– Sempre que a ofendida verbalizava que queria terminar o relacionamento, o arguido dizia-lhe “se algum dia te fores embora, eu vou à tua procura e mato-te, se não fores minha não és de mais ninguém”.

– Em 22 de Agosto de 2015, o arguido e a ofendida circulavam de motorizada para a sua residência, vindos de Montemor-o-Novo, quando caíram do veículo.

– Irritado, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe “puta, vaca, os teus filhos têm nojo de ti, tu não prestas para homem nenhum, andas com comichões, eu não te chego”.

– No dia 31/12/2015, quando o arguido e a ofendida se encontravam a jantar em casa do sobrinho desta, em Vendas Novas, e após se ter embriagado, o arguido disse à ofendida “Se arranjares outro homem, mato-te a ti e a ele”.

– No dia 19/01/2016, pelas 14h, o arguido e a ofendida dirigiram-se ao Intermarché e ao Continente de Vendas Novas para fazerem compras.

– Nessa ocasião, o arguido obrigou a ofendida a entregar-lhe metade do seu rendimento, cerca de €90,00, e começou naqueles estabelecimentos a consumir bebidas alcoólicas.

– Nessa sequência, o arguido disse à ofendida “ eu mato-te sua puta, vaca, vai para o caralho, arranjo-te uma lata para te sentares à berma da estrada para foderes com os outros”.

– Temendo pela sua integridade física, a ofendida refugiou-se em casa de um sobrinho.

- No dia 08/05/2016, pelas 20h, junto ao “Café X”, em Cabrela, o arguido disse, na via pública, à ofendida “és uma puta, és uma vaca, não vales nada, vai para o caralho, vai foder para a estrada como as putas”.

– No dia 08/06/2016, pelas 22h, na sequência de uma discussão, o arguido disse à ofendida “és uma puta, uma vaca, vais para a rua”.

– Acto, contínuo, agarrou-a pelo ombro direito e arrastou a ofendida para fora de casa, atirando-a contra umas silvas, onde veio a cair.

– Após levantar-se a ofendida tentou regressar a casa; todavia, o arguido disse “hoje dormes na rua”, e fechou a porta.

– Nessa noite, a ofendida dormiu ao relento.

– Cerca das 08h00 do dia seguinte, o arguido ao encontrar a ofendida na rua, disse-lhe “vai-te embora minha puta, minha vaca, não te quero aqui, se vieres aqui eu mato-te”.

- Em consequência directa e necessária da descrita conduta, a ofendida sofreu várias equimoses na perna direita, escoriações na mão direita, dores físicas e de mal-estar psicológico, o que lhe causou 15 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.

– No dia 18/08/2016, o arguido disse à ofendida “da próxima vez que fizeres queixa de mim à GNR mato-te à porta do Posto, és uma puta, és uma vaca, não vales nada, andas a foder com outros.

- Que na situação descrita em 2º dos factos provados, o arguido tenha dito à ofendida “eu mato-te”.

- Em todas as referidas ocasiões, em consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido, a ofendida AG sofreu de dores físicas e de mal-estar psicológico.

- Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que molestava a saúde física da ofendida, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.

- Mais sabia o arguido que, ao consumar um acto sexual contra a vontade da ofendida, a intimidava e atentava contra a sua autodeterminação e liberdade sexual, desrespeitando a sua vontade e subjugando-a à sua vontade

- Em consequência das condutas do arguido, a ofendida sentiu humilhação, ansiedade e medo permanentes, na medida em que não sabia o que esperar do arguido, nomeadamente, se iria recomeçar a sequência das agressões, ameaças e insultos.

– O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

NUIPC --/17.7GCMMN:
- Que na circunstância descrita no artigo 10º da acusação, o arguido tenha empurrado a ofendida e lhe tenha desferido uma joelhada no abdómen.

- Após disse à ofendida: “Tu não te vaus deitar sem limpares a casa toda que a casa está suja; se não o fizeres vais dormir na rua.”

- Que o arguido tenha proferido as expressões referidas nos artigos 15º e 17º da acusação.

- Que o arguido não permitia que a ofendida saísse de casa para levar o lixo.

- Que no circunstancialismo descrito no artigo 21º da acusação, o arguido tenha proferido as expressões: “Não te vais deitar, vais fazer o jantar que eu tenho fome”; “(..) depois passaram por mim a rirem-se do cornudo, sua puta, vaca, prostituta, vendes-te aos homens de Cabrela”.

- Que no circunstancialismo descrito no artigo 22º da acusação, o arguido tenha puxado a ofendida para fora da cama e a atingido com pontapés na barriga.

- Que nessa sequência se tenha munido de uma navalha.

- Durante o relacionamento o arguido disse várias vezes à ofendida: “Se não és minha, não és de ninguém, és minha mulher”.

- Que no dia 14.03.2017 o arguido dirigiu-se à residência da ofendida e tentou abrir a porta da entrada da habitação, tentando chegar à chave através da caixa do correio.”

E a motivação da matéria de facto foi a seguinte:

“No processo de formação da sua convicção o tribunal atendeu à globalidade da prova realizada e analisada em audiência, que se valorou de acordo com a nossa livre apreciação, de forma crítica e concatenada, à luz das regras da experiência comum.

Particularizando:
Relativamente à factualidade atinente à relação que o arguido manteve com AG, em face do silêncio do arguido e das declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório judicial, o tribunal apenas pôde contar com os testemunhos de JS, TF e JG, já que a ofendida se recusou a prestar declarações, reafirmando a sua vontade em desistir do procedimento criminal movido contra o arguido, sendo que os relatórios periciais de fls. 179 a 181, 607 a 608, 483 e 484, assim com a documentação clínica de fls. 114, 117 e 644, bem como a fotografia de fls. 567, sem outros elementos que esclareçam a origem das lesões apresentadas por AG, são manifestamente insuficientes para a demonstração necessária do respectivo processo causal.

Do testemunho de JS, que conhece o arguido e a sua ex ou actual companheira AG, mas apenas por os ver passar, numa relação de vizinhança algo distante, apenas se extraiu que numa ocasião que não conseguiu localizar no tempo, AG lhe pediu boleia por ter de ir a uma consulta médica em Vendas Novas, ao que a testemunha anuiu, sem que algo de estranho tivesse constatado na mesma.

Do testemunho de TF, vizinho do arguido, foi descrita uma situação presenciada pelo mesmo no café “X” em finais de Agosto de 2016, conhecendo o arguido e AG da localidade de Cabrela, sabendo que actualmente esta reside com o arguido novamente.

Descreveu que o arguido e a sua companheira AG discutiam, que o arguido apelidou a ofendida de “Puta” e que existiram ofensas verbais recíprocas, sendo que nessa sequência o arguido deu uma chapada na cara da companheira, que lhe pedia para o mesmo se afastar, ao passo que este lhe dizia que não lhe ia fazer mal e que “quem ama, não abandona”. Foi esta testemunha quem os separou e chamou a GNR ao local, sabendo que nos dias seguintes deixou de ver a ofendida em Cabrelas, mas que depois a mesma voltou.

Por fim, elucidou que há cerca de dois meses também assistiu a um episódio de violência entre o arguido e AG. No entanto, acabou por especificar que afinal o que viu foi a ofendida a sair de casa aos gritos e a pedir ajuda, com a boca ensanguentada, após se ter apercebido de uma desavença que haviam mantido em casa.

Ora, tal relato é francamente insuficiente para se concluir que o arguido agredira a companheira, como a testemunha invocou não ter dúvidas.

Acresce que o único aditamento que os autos conhecem reporta-se a uma situação denunciada pela ofendida relativa ao dia 12 de Julho de 2017, conforme ofício junto aos autos em 19.07.2017 e que deu já origem a um inquérito autónomo.

Quanto ao depoimento de JG, sobrinho de AG, para além de confirmar o período de convivência conjugal que a sua tia manteve com o arguido e de o casal discutir, negou que alguma vez tivesse visto na tia marcas de agressões físicas, sabendo que quando existem discussões a tia passa alguns dias na casa da irmã, mãe da testemunha.

Do exposto decorre que a restante matéria imputada ao arguido, não tendo sido confirmada nem se extraindo dos meios de prova referidos, nem se podendo valorar o conhecimento da militar do NIAVE MF, proveniente apenas das inquirições que efectuou em sede de inquérito, se deu como não provada.

Quanto à factualidade do NUIPC ---/17.7GCMMN, incorporado nestes autos, o tribunal valorou o testemunho de M, a qual depôs por nítido medo do arguido e constrangimento em face da sua presença na sala de audiências, na ausência deste.

Foi espontânea e pormenorizada, na medida do que a sua memória lhe permitiu recordar com precisão, pese embora as suas limitações verbais e auditivas.

O seu relato é o de uma mulher que viveu durante cerca de 4 meses subjugada à vontade de um homem, que a aprisionava no Monte, controlava obsessivamente “para que a mesma não fosse ter com outros homens”, acusando-a de ter amantes, até com os militares da GNR, cujo posto se situa em frente à casa em Cabrela onde também residiam, e a tratava como se a mesma fosse ora um cão de guarda, quando a deixava a dormir por vezes apenas vestida de lingerie à porta da casa do Monte, ora um objecto sexual, do qual se servia, como queria, a seu belo prazer, apesar da sua companheira, a quem chamava de “puta”, expressamente lhe dizer que não queria manter relações sexuais com o mesmo, que estava com dores provenientes dos problemas de saúde que por então estava a passar que faziam com que a mesma estivesse “constantemente inchada”, com dores, pensando até em gravidez, que acabou por ser medicamente despistada, tendo-se detectado um mioma uterino. O arguido sabia dessa condição da companheira, até a acusou de estar grávida de outro homem, e, indiferente ao seu sofrimento e vontade, com recurso à sua superior força física, coarctava os movimentos de resistência da mulher, seja prendendo-lhe as mãos, rasgando as roupas que envergava, logrando assim manter com esta relações sexuais de cópula anal (como a testemunha descreveu, dizendo-lhe “se não for desse lado, é do outro”) e vaginal, pelo menos em três ocasiões distintas, pedindo-lhe depois desculpas “porque pensava que ela era como a outra”.

O arguido não queria que a ofendida falasse com a sua filha, que reside no Reino Unido e como por vezes falava com esta em inglês, tal era logo motivo para o seu ciúme a acusar de estar a combinar com o amante, como ocorreu na primeira situação em que o arguido agrediu fisicamente a companheira depois de lhe ter destruído o telemóvel, colocando-a a dormir de seguida na rua, ficando a ofendida à porta de casa.

Foi também mencionado por M, que essa situação originou a que no dia seguinte a ofendida conseguisse ficar na casa da sua irmã, alegando que era melhor separarem-se por uma semana, ao que o arguido concordou referindo que iria pensar porque lhe tinha batido.

No entanto, passados cinco dias, o arguido foi ter com a ofendida e pediu-lhe para regressar a casa, dizendo-lhe que se não a matasse se matava a ele, convencendo desta forma a ofendida a regressar.

Sucede que no dia em que a ofendida se ausentou de casa sem o arguido para ir mostrar um exame à médica, novamente o arguido, já etilizado, como era recorrente, a acusou de ter ido ter com amantes e a partir daí foi desde chapadas na face, a empurrões contra a parede, apertando-lhe ainda o pescoço com as mãos o que fez com que a ofendida, já com falta de ar, caísse ao chão. Não satisfeito, o arguido ainda foi buscar uma faca utilizada para matar porcos e exibiu-a à companheira, anunciando que a só não a matava por a amar. É então que distraído à procura do passaporte da ofendida que pretendia então apreender que M consegue fugir de casa, mesmo de chinelos e robe, refugiando-se num café, onde é chamada a patrulha da GNR. Com efeito, o militar Ivo assistiu a ofendida nessa noite, viu que a mesma tinha sinais de agressão física, na cara e pescoço e que se encontrava agarrada à barriga com dores, pedindo para ir ao Centro de Saúde, seguindo-se depois a sua assistência médica – como decorre de fls. - 50, 69 e 70, 75 a 76, sendo que do relatório pericial de fls. 79 e 80 se extraíram as lesões que a mesma na sequência e por causa da conduta do arguido apresentou.

Prosseguiu M referindo que desde essa noite nunca mais voltou para o arguido, sendo acolhida numa casa abrigo em Estremoz e que passados uns dias foi para a casa da sua irmã.

Também MC, irmã da ofendida, confirmou tal situação, apesar de ter mantido um distanciamento deliberado ao longo do seu testemunho, claramente não se pretendendo comprometer, nem comprometer ninguém (sobretudo quando afirmou que nunca viu sequer o arguido alcoolizado, quando este passava a tarde a beber álcool no café ou em casa, como M descreveu – hábitos esses que encontram apoio nos testemunhos de TF e de JG. No entanto, referiu que numa ocasião, talvez por pensar que a irmã estivesse na sua residência, viu que o arguido tentou abrir a persiana da janela e a porta de casa, algo que também a ofendida mencionou ter acontecido pelo menos em duas ocasiões distintas, vendo o arguido a rondar a casa da irmã, através da fresta da persiana da janela, que o mesmo tentou levantar, chegando à fala com a mesma através da abertura da caixa de correio situada na porta da casa, fazendo com que a ofendida receasse pela sua integridade e vida, em face das expressões que então lhe dirigiu, medo esse que ainda hoje tem do mesmo.

Note-se que nas únicas declarações que o arguido prestou em sede de primeiro interrogatório judicial relativamente ao seu relacionamento com M, invocava o arguido que apenas desferiu um estalos na sua companheira no dia em que a mesma saiu de casa mas que a mesma também lhe deu estalos e porque a sua companheira então lhe comunicou que ia deixá-lo para viver com o então cunhado ou ex-cunhado do arguido, de nome Paulo.

Ora, para além de se desconhecer tal circunstância, o que sempre a defesa poderia ter demonstrado acaso nisso visse relevância, a única testemunha que o arguido apresentou foi MN, sua “ex-cunhada”, que apenas falou do relacionamento do arguido com AG, e que ao que parece apenas foi viver com o irmão do arguido em Setembro de 2017, pelo que não se compreende a sua razão de ciência no que concerne ao relacionamento mantido, muito menos atento o modo de vida destes e a conclusão de que a testemunha chega, entre outros considerandos que apenas visam rebaixar AG, de que a D. AG tratava globalmente mal o companheiro, o que, em qualquer caso, em face da matéria fáctica que se apurou, sempre seria de considerar irrelevante.

No mais, valorou-se o relatório social, pese embora a data em que o mesmo foi elaborado, que se complementou com declarações prestadas em sede de interrogatório judicial pelo arguido, quanto à sua condição social e situação económica.

Atendeu-se ao respectivo CRC para prova dos seus antecedentes criminais.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam à impugnação da matéria de facto e à pena.

Da impugnação da matéria de facto
O recorrente pretender discutir a matéria de facto provada, referindo no essencial que “o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova”, já que o depoimento da ofendida é “tendencioso, contraditório e incoerente, desprovido da credibilidade necessária para efeitos de prova dos factos em apreço”.

O Ministério Público contrapôs que não se mostram cumpridos os ónus legais de impugnação da matéria de facto e que não é vislumbrável erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro vício da sentença.

O recorrente invocara ainda a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, mas é evidente que o fez injustificadamente, pois com isso pretendia apenas dizer que, não se tendo provado os factos considerados como tal no acórdão, então não poderia haver lugar a condenação. O que nada tem a ver com nenhum dos vícios de sentença previstos no art. 410º, nº 2 do CPP, o que se consigna.

E no que respeita à impugnação da matéria de facto, o Ministério Público tem razão: pela via ampla, foram incumpridos os ónus de impugnação; pela via mais restrita, inexiste, em concreto, qualquer vício ou nulidade de acórdão.

Na verdade, a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º, nº2, do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada (interessa agora o erro notório na apreciação da prova), e por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

O sujeito processual que discorda da “sentença de facto” e dela recorre pode, assim, optar pela invocação ou de um erro notório de facto, que é o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença podem também ser conhecidos oficiosamente, independentemente de arguição e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório (de facto) que a sentença, por si só, não demonstre. No primeiro caso, a discordância deve traduzir-se na invocação de um vício da sentença e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de se socorrer de provas produzidas ou examinadas em audiência.

Mas quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.

Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto. Mais do que de uma eventual penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma verdadeira impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

No presente caso, mesmo que se depreenda e aceite que o recorrente está a pretender impugnar todos os factos provados (já que não os especifica), não procedeu à indicação das concretas provas em que funda a impugnação, pois não transcreveu nenhuma concreta passagem, nem as indicou por referência ao consignado na acta. Limitou-se a referir as declarações da ofendida, tecendo considerações gerais sobre elas e muito pontualmente sobre outros depoimentos. Mas em caso algum, repete-se, especificou a prova do modo com a lei processual impõe e o Supremo Tribunal de justiça consolidou.

Consideram-se incumpridas as exigências formais de impugnação da matéria de facto e como esta omissão atravessa toda a peça processual, não se encontrando as indicações ou transcrições das declarações e dos depoimentos, não pode o recurso ser aperfeiçoado, já que de uma omissão total se trata. O incumprimento das especificações prejudica o conhecimento do recurso da matéria de facto, pois o ónus de impugnação “concretos factos, concretas provas” visa viabilizar o próprio recurso de facto, como se disse. E mesmo para lá de um incumprimento (formal) das exigências/regras de impugnação, incumprimento que deteriora a exequibilidade da sindicância da decisão de facto, repete-se,

Resta sindicar o acórdão por via da análise do seu texto, perscrutando se enferma de erro notório na apreciação da prova que, eventualmente, possa ter condicionado a demonstração dos factos provados.

O erro notório traduz-se sempre num erro evidente, facilmente detectado, resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. Consiste em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Da leitura do “acórdão de facto” (composto pelos factos provados, os factos não provados e o exame crítico das provas) resulta claro que todos os enunciados descritos no acórdão sentença como “factos provados” ou como “factos não provados” resultam da leitura das provas produzidas e examinadas em julgamento, correctamente avaliadas segundo um princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP).

“Liberdade de valoração” e “motivação de facto” integram uma mesma actividade processual. E sendo no cruzamento necessário de toda a informação probatória, procedente das diversas fontes, que se devem retirar os enunciados que constituem a matéria de facto, qualquer pronúncia definitiva sobre a detecção de contradições ou de erros de julgamento (de facto) exige a avaliação dos factos em conjunto com o exame crítico das provas. O acórdão evidencia que o colectivo de juízes, descreveu os factos provados que conseguiu explicar racionalmente, fazendo-o adequadamente a partir das provas, na avaliação do “real-concreto” que se impunha.

O recorrente refere que a prova se baseou essencialmente nas declarações da ofendida e que estas não deveriam ter sido consideradas credíveis.

A problematização enunciada no recurso não é nova, pois no âmbito da criminalidade que ocorre na reserva da vida privada e do lar, a prova possível consiste predominantemente no depoimento de vítimas.

Daqui não resulta, nem que esta prova deva merecer só por isso credibilidade especial, nem que uma eventual ausência de corroboração signifique sem mais a inviabilidade de demonstração dos factos probandos. E sobretudo perante provas de sinal contrário – declarações de arguido versus declarações de vítima – o tribunal não está desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas eventualmente mereçam.

No caso presente, o acórdão recorrido responde a todas as objecções colocadas no recurso à formação da convicção do colectivo, e justifica adequadamente a credibilidade que mereceram as declarações da ofendida.

Assim, o exame crítico da prova enuncia todas as provas produzidas e examinadas em audiência e avalia as particularidades dessa prova, fazendo jus à máxima de Stelle de que “a prova é particularística sempre”. Em julgamento, verdadeiramente, não foram apresentadas versões opostas dos factos, já que o arguido não prestou ali declarações. E sendo à acusação que compete sempre demonstrar os factos imputados, essa demonstração resultou essencialmente das declarações da ofendida. Mas não exclusivamente.

E embora tenha havido corroboração (das declarações da ofendida), em abstracto, nada impediria que a prova dos factos da acusação pudesse assentar nas declarações da vítima, mesmo se opostas a uma versão apresentada pelo arguido e mesmo se desacompanhadas de provas corroborantes.

A prova por depoimento de vítima é livremente valorada, também no eventual confronto com a prova por declarações de arguido. A lei não proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação

É certo que o julgador, na decisão da matéria de facto, quando se depare com provas de sinal contrário e abstractamente de igual peso probatório, deve procurar outros elementos corroborantes dos factos controvertidos da acusação. Na ausência destes (de provas corroborantes), terá conseguir de justificar de um modo especial a verosimilhança da versão da acusação, se for caso disso.

Fazendo-o, por exemplo, com base numa maior racionalidade da versão apresentada pela testemunha-vítima (de acordo com regras de lógica e de experiência comum), numa superior credibilidade (devidamente objectivada) merecida por esta, tudo sob pena de, não o alcançando, ter de fazer operar o princípio in dubio pro reo.

No caso presente, o depoimento da vítima revestiu importância assumida, à semelhança do que sucede noutros processos que tratam de criminalidade em contexto familiar, como se disse. Mas desta circunstância não derivam regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada de determinado depoimento, nem essa sobrevalorização injustificada ocorreu aqui.

Na verdade, as declarações da ofendida se revelaram objectivamente verosímeis pelas razões que o acórdão explica, designadamente por se encontrarem suficientemente corroboradas. Senão, atente-se no seguinte excerto:

“ (…) M consegue fugir de casa, mesmo de chinelos e robe, refugiando-se num café, onde é chamada a patrulha da GNR. Com efeito, o militar Ivo assistiu a ofendida nessa noite, viu que a mesma tinha sinais de agressão física, na cara e pescoço e que se encontrava agarrada à barriga com dores, pedindo para ir ao Centro de Saúde, seguindo-se depois a sua assistência médica – como decorre de fls. - 50, 69 e 70, 75 a 76, sendo que do relatório pericial de fls. 79 e 80 se extraíram as lesões que a mesma na sequência e por causa da conduta do arguido apresentou.

Prosseguiu M referindo que desde essa noite nunca mais voltou para o arguido, sendo acolhida numa casa abrigo em Estremoz e que passados uns dias foi para a casa da sua irmã.

E o tribunal atentou também no depoimento da irmã da ofendida, justificando as reservas que este lhe mereceu: “Também MC, irmã da ofendida, confirmou tal situação, apesar de ter mantido um distanciamento deliberado ao longo do seu testemunho, claramente não se pretendendo comprometer, nem comprometer ninguém (sobretudo quando afirmou que nunca viu sequer o arguido alcoolizado, quando este passava a tarde a beber álcool no café ou em casa, como M descreveu – hábitos esses que encontram apoio nos testemunhos de TF e de JG.”

Dispensa-se maior repetição da análise de provas patente no acórdão, que não sai abalada por se ter afirmado, agora em recurso e contra o que se evidencia no acórdão, que a prova se teria baseado exclusiva e injustificadamente nas declarações da ofendida. Esta alegação não coloca o tribunal de recurso na posição de ter de repetir toda a justificação dos factos efectuada em primeira instância.

O depoimento da vítima foi efectivamente confirmativo dos factos provados. E ele mostrou-se verosímil e mereceu a credibilidade que lhe foi dada pelas razões que o acórdão explica e que o recurso não consegue abalar.

Por último, reitera-se que os recursos são remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento. E constatando-se que não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, e que o tribunal justificado suficientemente as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas sempre de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão da matéria de facto.

Da impugnação da pena
O recorrente pugna pela redução da pena para quatro anos de prisão e pela aplicação de prisão suspensa.

Para tanto, limita-se a mencionar que nunca foi condenado pela prática de crime semelhante, que é pessoa bem integrada no meio onde vive, que mantém um trabalho estável há vários anos, e que o depoimento das testemunhas que abonaram a seu favor “seria indiciador de um comportamento do arguido muito diferente do descrito pela ofendida, este pautado por um discurso de claro exagero”.

Abstraindo do último considerando, que pressuporia um atendimento na impugnação da matéria de facto que não ocorreu, os restantes argumentos não têm a virtualidade de, em concreto, evidenciarem qualquer erro de decisão em matéria de pena.

Na verdade, a merecer alguma censura o acórdão, tal censura (em matéria de direito) decorreria duma prévia desconsideração do tratamento da temática da pluralidade de crime na violência doméstica. Referimo-nos à decisão tomada sobre o concurso aparente, pois os factos provados justificariam, em concreto, a ponderação do concurso efectivo entre os crimes de violência doméstica e de violação. A problemática do concurso heterogéneo e homogéneo não pode ser desconsiderada aqui (no crime de violência domestica) supostamente por se tratar de um tipo de crime que prevê a reiteração (mas que não a exige). Para maior desenvolvimento, vide http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20MAT%20CRIMINAL/Violencia%20Domestica_2014-12-01.pdf .

No entanto, atento o disposto no art. 409º do CPP, que prevê a proibição da reformatio in pejus (havendo recurso só do arguido, o tribunal superior não pode modificar a decisão em prejuízo do arguido) e face a uma inactividade do Ministério Público, que se conformou com o acórdão, nada cumpre decidir a esse propósito, por impossibilidade legal. Assim, cabe apenas determinar se a pena aplicada se revela excessiva face às razões invocadas pelo recorrente, não cabendo já determinar se ocorre a situação contrária (ou seja, se a pena é insuficiente).

E como os recursos são sempre remédios jurídicos, assim sucedendo também em matéria de pena, considerando tão só a moldura penal prevista para o crime de violação da condenação cumpre detectar o eventual erro de decisão, não cumprindo decidir da pena ex novo como se inexistisse uma decisão de primeira instância.

Para tanto, há que partir do acórdão, e a fundamentação da pena foi ali a que segue:

“Escolha e determinação da medida da pena:

O crime de violência doméstica, previsto no art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2 do Código Penal, em concurso aparente com o crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, n.º 1 al. a) do mesmo diploma legal, é punido, em abstracto, com pena de prisão de 3 (três) a 10 (dez) anos.

O Código Penal traça um sistema punitivo que arranca do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.

Do regime legal subjacente ao Código Penal resulta que o critério de escolha da pena e a determinação da respectiva medida - 70º e 71º do C. Penal -, se valida no princípio de que o legislador se encontra limitado pela exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção e que toda a pena tem de ter como suporte axiológico normativo uma culpa concreta. Princípio este que significa que não há pena sem culpa, e que a culpa decide sobre a medida da pena a aplicar a cada crime concreto, ou seja, a culpa é o pressuposto de validade e o limite da pena em relação a cada crime. Nas palavras de Figueiredo Dias - in “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, M.J., Lx., p. 78 - “A culpa (…) é o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar; até esse limite jogam então as considerações relativas à prevenção, geral e especial.” Como bem refere Gonçalves da Costa - in “A parte geral no projecto de reforma do Código Penal Português”, RPCC, III - a culpa normativo-concreta, pelo facto e pela personalidade, nele reflectida é, em nome da dignidade da pessoa humana, pressuposto - não há pena sem culpa - e limite da pena, cuja medida se determina em função das exigências de prevenção geral - protecção de bens jurídicos -, e especial - reintegração do agente na sociedade.

Formulado que ficou o juízo de culpabilidade do arguido, cumpre agora apreciar a censurabilidade jurídico-penal que lhe está inerente e determinar a respectiva pena.

Para tal concretização, há que ter em conta o preceituado no art.º 40º do C. Penal, de onde se extrai, como finalidades das penas, a protecção dos bens jurídicos violados, por um lado, e a reintegração do agente na sociedade, por outro, sendo a culpa o fundamento para a concretização da pena que, em caso algum pode ultrapassar a medida daquela.

Cumpre, neste momento, portanto, estabelecer a medida concreta da pena dentro dos limites abstractos definidos na lei, cuja determinação é realizável em função da culpa, das exigências de prevenção e – nos termos do art.º 71º, n.º2, do C. Penal – de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

In casu, relativamente às exigências de prevenção geral temos as mesmas por elevadas, no que concerne ao crime de violência doméstica e ao de violação, atenta a recorrência deste tipo de crimes e consequências desestruturantes que geram para as vítimas, causando forte alarme social e cada vez mais um sentimento de maior censura.

No tocante especificamente ao crime de violência doméstica, sublinha-se que ter-se-á em consideração que estamos perante um tipo legal de crime que pretende dar tutela a uma das formas talvez mais subliminares de escravatura humana, em que alguém é subjugada a uma vida de violência, maus tratos e humilhação, forçado a aceitar as opiniões e condições de outrem mais forte.

Práticas que deverão ser decisivamente afastadas da nossa comunidade, às quais os valores de igualdade e respeito começam agora a falar bem alto.

Note-se que os casos noticiados nos últimos tempos, relativos a crimes de violência doméstica, são exemplificativos das muito elevadas necessidades de prevenção geral: são já inúmeras as vítimas mulheres que sucumbiram às mãos de homens de quem até já se tinham separado.

Estas situações não podem, de modo algum, ser encaradas com ligeireza. Tem de se ter consciência de que este é um crime com extrema gravidade e com reflexos muitos preocupantes na nossa sociedade, para o que contribui certamente o elevado grau de iliteracia da sociedade.

Por outro lado, as características da personalidade do arguido que resultam sobremaneira dos factos dados como provados, e das quais se destaca a ausência de ressonância interior relativamente aos mesmos, no tratamento cruel a que sujeitou a sua companheira, tratando-a como se fosse dono de uma coisa, aliada a hábitos de vida centrados no abuso da ingestão do álcool, impõem igualmente acrescidas necessidades de prevenção especial e de ressocialização.

No que concerne aos elementos a atender na determinação da medida concreta da pena, elencados no art. 71º, n.º 2 do Código Penal, há ainda que considerar:

- O elevado grau de ilicitude dos factos, sendo de sobrevalorizar o período em que os factos ocorreram – durante cerca de 6 meses, entre meados de Setembro de 2016 a 9 de Março de 2017, considerando-se todo o contexto fáctico em que as suas condutas se inseriram, de grande agressividade, impulsividade, violência, desprezo e tratamento cruel que infligiu à companheira;

- No que toca à censura ético-jurídica dirigida ao arguido, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o directo (art.14º nº1 do C.P.), que presidiu a toda a sua actuação (art.71º nº2 al. b) do C.P.);

- Sublinha-se que o dolo assume aqui, por directo, uma manifestação muito intensa, sob o aspecto intelectual, enquanto conhecimento de tudo quanto era preciso para uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico da acção, como volitivo, no sentido de querer realizar o facto criminoso.

- O facto de mesmo após a separação o arguido ter procurado a vítima para a amedrontar, ameaçando-a;

- O modo de execução dos factos, alicerçado, sobretudo, na violência física e psicológica perpetrada, com consequências ao nível da integridade física e moral da mesma, bem como a sujeição a relações sexuais pautadas por violência e dor, atenta ainda a condição de saúde da ofendida e não consentidas;

- Os antecedentes criminais do arguido – para além de diversas condenações por crimes de condução influenciada pelo álcool e sem habilitação legal, à data dos factos tinha sofrido uma condenação por crime de incêndio agravado e por crimes contra o património numa pena de 5 anos de prisão, que se encontra ainda suspensa na sua execução.

- A não assunção dos factos e a não demonstração de qualquer tipo de arrependimento, nem mesmo ante o sofrimento que causou à sua companheira M. Exercendo, inquestionavelmente, um direito que tem (ao silêncio sobre os factos), ao optar por ele, acabou também, inerentemente, por optar pela não manifestação de qualquer arrependimento, juízo de auto-censura ou de interiorização do mal da sua conduta, o que, a ter sido feito, teria certamente sido considerado em benefício do mesmo pelo tribunal.

- As características da personalidade do arguido, consubstanciadas na ausência de pensamento consequencial;

- A circunstância de o arguido e de a ofendida M já não viverem como marido e mulher;

- A respetiva inserção profissional.

Assim, pelo que ficou dito, entendemos adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.”

Cotejando agora os parcos argumentos alinhados no recurso com ponderação da pena no acórdão, ressalta à evidência que a pena aplicada se mostra correcta e não é passível de censura (não é passível de censura no contexto da proibição da reformatio in pejus a que se aludiu).

Na verdade, no presente caso, razões de prevenção geral muito elevadas convivem com necessidades de prevenção especial igualmente muito elevadas. Pois não as diminuem a circunstância de inexistirem antecedentes criminais pela prática do mesmo tipo de crime, face a um comprovado quadro de repetição e de reiteração de comportamentos, de ausência de interiorização do mal do crime, e de cometimento do crime no decurso do período de suspensão de penas de prisão anteriores.

E tornando-se desnecessário repetir os fundamentos de pena que se concretizaram já adequadamente no acórdão, resta consignar que a pena aplicada se revela absolutamente necessária à protecção do bem jurídico e à garantia das finalidades (preventivas) da punição, contendo-se no limite da culpa.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

Évora, 24.05.2018

Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves