Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1072/21.0T8FAR-A.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
AUDIÇÃO DE TESTEMUNHAS
PODERES DO JUIZ
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O exercício do poder-dever oficioso de inquirição de testemunhas no decurso do julgamento, está dependente de: existirem razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes de acordo com as plausíveis soluções de direito para a decisão do pedido formulado; haver necessidade da produção desse elemento de prova para que o tribunal fique plenamente esclarecido sobre tal factualidade; e da atinência dessa necessidade com os factos que ao juiz é lícito conhecer.
II. Tratando-se de uma actuação oficiosa, é ao tribunal que incumbe avaliar da necessidade da diligência para o seu esclarecimento, não podendo a parte substituir-se-lhe e impor o seu próprio critério de necessidade da prova.
III. Por tal razão, o recurso interposto do despacho que indefere a pretensão, formulada pela parte, de inquirição oficiosa de pessoas como testemunhas, só merecerá provimento quando for evidente a omissão de uma diligência probatória cuja essencialidade se revele indiscutível, em face dos elementos constantes do processo.
IV. Não tendo sido identificados os factos controvertidos que a pretendida inquirição se destina a provar, nem resultado da prova produzida nos autos que as indicadas pessoas tenham conhecimento pessoal dos factos constitutivos da causa de pedir, carece de fundamento o pedido de inquirição oficiosa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação 1072/21.0T8FAR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro – Juiz 3
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

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Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Maria João Sousa e Faro; e
2ª Adjunto: Manuel Bargado.
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I. RELATÓRIO
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A.
Vieram (…) e (…), na acção declarativa principal com processo comum proposta contra (…), pedir se:
I. Declare a anulação por usura, dos negócios jurídicos celebrados entre Autores e Réu, o primeiro por escritura de compra e venda celebrada a 4 de Agosto de 2015, no Cartório da Notária (…), lavrada a fls. (…) do Livro (…), tendo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização da (…), Lote A2, em Albufeira, descrita na Conservatória do Registo Predial de Albufeira, sob o n.º (…) de Albufeira e inscrita na matriz sob o artigo (…) da referida freguesia, o segundo por escrito de contrato de arrendamento com opção de compra sobre a mesma fracção, e o terceiro constituído por contrato de mútuo, bem como o cancelamento do respectivo registo de aquisição a favor do Réu;
II. Declare a anulação parcial e redução do negócio de mútuo celebrado entre as mesmas partes a 4 de Agosto de 2015, considerando ilegais as cláusulas ali contidas quanto aos juros e/ou contrapartidas económicas ou, subsidiariamente, pelos juros e/ou contrapartidas serem usurários e ilegais;
III. Condene o Réu: na restituição do bem imóvel constituído pela fracção identificada no artigo 27º da p.i.) e/ou na compensação dos montantes indevidamente prestados pelos Autores, entre Agosto de 2015 e a presente data; e na restituição / compensação das prestações vincendas que sejam indevidamente prestadas pelos Autores;
IV. Subsidiariamente, se declarem nulos por abuso de direito do Réu, os referidos negócios jurídicos celebrados entre as partes a 4 de Agosto de 2015 e cancelado o registo de aquisição a favor deste, com as consequências legais daí advenientes;
V. Subsidiariamente, se condene o Réu na restituição e/ou compensação dos montantes e/ou bens imóveis indevidamente prestados pelos Autores, por enriquecimento sem causa;
VI. Ainda subsidiariamente, se declarem nulos por contrários à lei e ofensivos dos bons costumes, os referidos negócios jurídicos celebrados entre as partes a 4 de Agosto de 2015 e cancelado o registo de aquisição a favor deste, com as legais consequências, nomeadamente a condenação dos Réus à entrega imediata do imóvel, livre de pessoas e bens aos Autores.
VII. Se condene o Réu no pagamento dos respetivos juros de mora, contados à taxa legal, sobre o valor global a restituir aos Autores, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegaram para o efeito que: atravessando desde 2015 dificuldades económicas, o A. respondeu a um anúncio de jornal para obter empréstimo de € 10.000,00, tendo disponibilizado à empresa o acesso à fracção autónoma que iria ser entregue como garantia; no dia da escritura pública não foi outorgado mútuo com hipoteca como acordado, mas a compra e venda da mesma pelo preço declarado de € 16.900,00; nesse mesmo dia, foi assinado contrato de arrendamento com opção de compra, entregando-lhe o procurador do Réu um cheque no valor de € 10.000,00; não quiseram vender o imóvel, antes pretendiam um empréstimo a ser pago em prestações, sabendo o Réu da sua falta de liquidez, acreditando que iriam entregar a fracção como garantia, o que foi contratado com a empresa Investidor Privado, e que receberam um empréstimo no valor de € 10.000,00, obrigando-se a pagar, mensal e sucessivamente 60 prestações, no valor de € 212,50, e no final do prazo obrigaram-se a entregar ao Réu o montante de € 16.900,00; contrataram um empréstimo de € 10.000,00 cujo preço de custo é de € 19.650,00, com taxa de juro líquida de 39,3% ao ano, pagaram as 60 prestações no valor global de € 12.750,00 e pretendiam cumprir o acordado e entregar ao Réu € 19.650,00, mas este intentou acção especial de despejo, sendo a causa de pedir a alegada propriedade do bem que sabe não ser dele, possuindo o imóvel um valor comercial de € 100.000,00; o R. pretende obter importância superior àquela que corresponderia ao empréstimo que lhes fizera e ao juro legalmente admissível, auferindo vantagem manifestamente desproporcionada relativamente ao empréstimo concedido, explorando a fragilidade e vulnerabilidade dos AA., decorrente da falta de liquidez e de financiamento bancário, aproveitando a inexperiência, credulidade e boa fé dos AA. que, até Agosto de 2020, data em que interpelaram o R. para restituir o imóvel, sempre acreditaram que este cumpriria o contrato de mútuo acordado, tomando consciência que este pretendia apropriar-se do mesmo quendo, nessa data, o R. lhes comunicou que não era sua intenção fazê-lo.
B.
Contestou o Réu, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Excepcionou:
- a nulidade, por ineptidão da petição inicial, por não serem alegados factos que sustentem os pedidos de declaração de nulidade destes negócios por abuso de direito e por serem contrários à lei e ofensivos dos bons costumes;
- a caducidade do direito de arguição da anulabilidade do contrato de compra e venda e do contrato de arrendamento com opção de compra, por decurso do prazo de um ano desde a data da sua celebração, alegando a confirmação deste último negócio jurídico, porquanto os autores usufruíram do imóvel, pagaram as rendas e comportaram-se como arrendatários, não colocando em causa estes negócios jurídicos na acção de despejo que foi intentada;
- que os AA. deixaram de pagar as rendas, incumprindo o contrato de arrendamento, o que inviabilizou a opção de compra prevista. Efectuada a resolução do contrato de arrendamento, aqueles recusam-se a abandonar o locado e, vislumbrando o desfecho de acção de despejo, intentaram a presente acção;
- a prescrição do direito à restituição ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, por decurso do prazo de três anos a contar da celebração da escritura de compra e venda.
Impugnou na generalidade os factos invocados, alegando a inexistência de contrato de mútuo, que os AA. confirmaram a vigência do contrato de arrendamento na acção de despejo e não puseram em causa a validade dos contratos celebrados, sendo que a Autora mulher outorgou a favor do Autor marido procuração, na qual conferiu poderes para este celebrar escritura de compra e venda.
Pediu a condenação dos AA. como litigantes de má-fé, por deduzirem pretensão cuja falta de fundamento não ignoravam constituindo a presente acção expediente dilatório.
C.
Responderam os AA. pugnando pela improcedência das excepções invocadas e do pedido de condenação como litigantes de má-fé, dirigindo contra o Réu pedido da mesma natureza, em multa e indemnização, no mínimo de € 1.500,00, por não ignorar a falta de fundamento da defesa e alterar a verdade dos factos com o intuito de se locupletar à custa deles.
D.
Na data designada para realização da audiência prévia, o R. apresentou articulado superveniente, no qual invocou a verificação da excepção de abuso do direito, na vertente de “venire contra factum proprium” e a verificação da excepção dilatória da autoridade de caso julgado, em virtude do trânsito em julgado da decisão proferida na acção de despejo que intentou contra os AA., na qual se reconheceu a validade do contrato de arrendamento e titularidade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma.
Cumprido o contraditório, foi admitido o articulado superveniente e, após debate da matéria de facto invocada e das excepções em audiência prévia, foram as partes notificadas que os autos reuniam elementos para conhecer do mérito da causa, “…nomeadamente, por procedência da excepção da autoridade de caso julgado e também do princípio da preclusão dos meios de defesa, em face do decidido no âmbito da acção de despejo n.º 1787/19.2YLPRT …”, e para se pronunciarem, o que fizeram.
E.
Foi proferido saneador-sentença, no qual se julgou improcedente a excepção da ineptidão da petição inicial e, considerando ocorrer a excepção da autoridade de caso julgado inerente à sentença proferida no âmbito do processo n.º 1787/19.2YLPRT, se julgou:
“a) Improcedente, por não provada, a acção e, em consequência, absolver o réu do pedido;
b) Improcedentes, por não provados, os pedidos de condenação como litigantes de má-fé e, em consequência, absolver os autores e a ré destes pedidos reciprocamente deduzidos.
F.
Inconformados, os AA. interpuseram recurso, apreciado por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.11.2022 que julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida na parte em que absolveu o R. dos pedidos decorrentes da apreciação das questões de invalidade do negócio de compra e venda do imóvel referenciado nos autos, determinando o prosseguimento dos autos.
G.
Realizada a continuação da audiência prévia, foi proferido despacho-saneador que, entre outras coisas, identificou o objecto do litígio, descreveu os temas da prova e apreciou os requerimentos de prova indicados pelas partes.
H.
Designada data para o efeito, deu-se início à audiência de julgamento com a inquirição de testemunhas e tomada de declarações de parte.
No dia 04.07.2024 (referência Citius 12652091), vieram os Autores requerer a inquirição das testemunhas (…), (…), (…), (…) e (…), ao abrigo do disposto no artigo 526.º do CPC, sustentando que do teor dos documentos entretanto juntos aos autos por determinação do tribunal, resulta serem pessoas com conhecimento directo do objecto dos autos e “…com certeza, de factos importantes para a boa decisão da causa…” que não foram oferecidas como testemunhas, mostrando-se, por isso, essencial e imprescindível para a boa decisão da causa, a sua inquirição.
A Ré contraditou a 15.07.2024 (referência Citius 12694198), pugnando pelo indeferimento da inquirição requerida.
No final da audiência de julgamento, sessão do dia 14.03.2025, foi pela sra. Juíza de 1ª instância proferido o seguinte despacho:
“Os autores vieram requerer a inquirição das testemunhas (…, …, …, … e …), na sequência da comunicação junta a fls. 337.
A parte contrária opôs-se nos fundamentos constantes do requerimento de fls. 344 a 345.
Apreciando.
Efetivamente, nos termos do artigo 526.º do C.P.Civil, o Tribunal pode determinar oficiosamente a inquirição de testemunhas quando tenham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa e as mesmas não tenham sido oferecidas nessa qualidade.
No caso em concreto, as testemunhas não foram antes indicadas por qualquer umas das Partes, nem dos respetivos depoimentos/declarações resultam identificadas como tendo tido intervenção no processo negocial aqui em discussão.
Razão pela qual, não existe elementos que nos permitam afirmar que tenham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, nomeadamente, e em concreto, acerca do que entre as Partes foi acordado, efetivamente, e quanto assim aos termos dos negócios identificados nos autos, motivo pelo qual entende-se que a sua inquirição nenhum esclarecimento adicional para os factos iria trazer .
Pelo exposto, indefere-se o requerido pedido de inquirição, nos termos em que se encontra formulado.”
D.
Inconformados com o teor do despacho, os Autores interpuseram recurso de apelação.
Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição, sem negrito e sublinhado da origem):
“(…)
2) Nos presentes autos é peticionado pelos Autores, ora Recorrentes, a anulação dos negócios jurídicos celebrados entre as partes, Autores e Réu, em 04 de Agosto de 2015, designadamente, a escritura de compra e venda outorgada a 4 de Agosto de 2015 no Cartório Notarial da Notária (…), lavrada a fls. (…) do Livro (…) e, (consequentemente, que seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor do Réu), (…).
3) Ou seja, no essencial está em causa a apreciação da validade e subsistência dos negócios jurídicos celebrados entre as partes, Autores e Réu, em 04 de Agosto de 2015, designadamente, a escritura de compra e venda outorgada a 4 de Agosto de 2015 no Cartório Notarial da Notária (…), lavrada a fls. (…) do Livro (…).
4) Na sequência do depoimento da testemunha (…), Notária (Cartório Notarial em Alverca do Ribatejo), foi ordenado e bem pelo Tribunal a quo a junção aos autos de toda a informação relacionada com a marcação da dita escritura designadamente, quem marcou, quais os documentos apresentados e o contato que foi deixado aquando dessa marcação: - Durante o depoimento da testemunha, pela Mma. Juiz foi proferido o seguinte:- Despacho:- “Determino que a testemunha junto da sua agenda e na sua conta de email, pesquise e informe o Tribunal, como foi marcada a escritura em causa nos autos, quem marcou, quais os documentos apresentados e o contato que foi deixado aquando dessa marcação. - Notifique.”- Do anterior despacho, foram todos os presentes devidamente notificados pela forma legal – momento de Gravação inserido no depoimento da testemunha e em nome de «Testemunha – (…)».- (Cfr. com acta de fls… datada de 07 de Junho de 2024 – sessão de audiência de discussão e julgamento).
5) Tal documentação foi junta a fls. 337, referência 12631568, datada de 28 de Junho de 2024.
6) Da documentação junta resulta, sem recorrer a grandes efabulações, que:
- a escritura de compra e venda outorgada entre AA. e Réu a 4 de Agosto de 2015 no Cartório Notarial da Notária (…), lavrada a fls. (…) do Livro (…) foi agendada/marcada pela Dra. (…), Ilustre Advogada,
- sendo que, aquela Dra. (…), Ilustre Advogada o fez a pedido da sociedade anónima “(…)”, NIPC (…), com sede na Av. (…), n.º 280, 5º, esquerdo/centro, 4050-113 Porto;
- O email a solicitar o serviço de marcação de escritura no Cartório Notarial da Notária (…) em nome da sociedade anónima “(…)”, está subscrito por (…), com conhecimento a um tal (…).
7) - No mesmo email em que (…) solicita o serviço à Dra. (…), Ilustre Advogada, informa também que precisando alguma coisa do comprador, ora Réu, a pessoa a contactar seria (…).
8) Nessa sequência, e porque nunca tinham tido conhecimento daquela informação foi requerida a inquirição das testemunhas: Dr.ª (…), (…), (…), (…) e (…) na qualidade de presidente / administrador da sociedade anónima (…), NIPC (…), com sede na Av. (…), n.º 280, 5º, esquerdo/centro, 4050-113 Porto, tudo nos termos do artigo 526.º do Código de Processo Civil – (Cfr. com requerimento datado de 04 de Julho de 2024, referência 12652091 e que aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais).
9) Em sede de declarações de parte nos termos do artigo 466.º do Código de Processo Civil o Réu declara que não conhece Dra. (…), Ilustre Advogada, pessoa que foi incumbida de marcar a escritura; nem conhece (…), pessoa a contactar caso a Advogada (Dra. …, Ilustre Advogada) necessitasse de mais alguma coisa do comprador.
10) Aliás, das declarações de parte do Réu resulta que – não teve qualquer intervenção no negócio, não negociou o contrato de compra e venda – não viu o apartamento, não negociou preço, nem tão pouco negociou o contrato de arrendamento, e que se fez representar pela sua procuradora.
11) A única coisa que o Réu sabe é que: “Foi o … ou o … que disse isso. Disse os termos do negócio, que eram interessantes, e disse que sim.” (…) Não sei, não faço ideia. Já disse, eu não marquei nada, inclusive soube que estava marcada e pedi à minha companheira para ir. (…) Não acordei nada. Aquilo foi, tem um apartamento (…) custa “x”, “queres comprar?”(…) “Estás disposto a isso?”, eu disse “Sim”. A minha mulher para lá ir, com procuração, e disse-lhe com certeza “Compras isto, se for necessário também assinar o contrato de aluguer, assina”. Para mim, estava resolvido. Os termos, se lá estiver o valor que eu lhe disse, era para assinar. Ponto final. (…)
12) (…) É isso que eu estou a dizer. Depreendo que o … me tenha disto isso, não me recordo disso, mas acredito (…).
13) No mais, das declarações de parte do R. resulta que o (…) ou o (…) é que lhe apresentou um negócio muito interessante e não ele, mas alguém a mando dele apareceu na escritura ora colocada em crise para outorgar na qualidade de comprador. No mais não sabe…
14) Determina o artigo 411.º do Código de Processo Civil que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. Determina o artigo 526.º do Código de Processo Civil que “Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”.
15) Desde logo perante o que decorre do dispostos nos dois dispositivos acima transcritos [artigos 411.º e 526.º, ambos do CPC, mas não só, revelando-se o mesmo paradigma também e v.g., no artigo 436.º, n.º 1 (relativamente à requisição de documentos), artigo 452.º, n.º 1, do CPC (relativamente ao depoimento de parte), artigo 467.º, n.º 1, do CPC, relativamente à Prova Pericial) e artigo 490.º, n.º 1, do CPC (relativamente à Inspecção Judicial), de todos eles resultando claramente o Poder/Dever do Juiz de, e em prol da sobrevalorização da justiça material sobre a formal, determinar, motu proprio, diligências de prova, ordenando a sua produção, valorando-a e ajuizando em termos de facto com base nela], pacífico é que o principio do inquisitório vem ganhando cada vez mais maior preponderância no nosso direito adjectivo e em detrimento do princípio do dispositivo, sendo tal tendência [que se acentuou consideravelmente a partir da reforma de 95/96] fruto em parte da inquestionável tendência/inclinação do legislador para uma maior concepção publicista do processo [em detrimento de uma concepção privatista] e, outrossim, da busca e preponderância de uma justiça material em detrimento da meramente formal.
16) A aludida essência de efectivo Poder/Dever em sede de aquisição da prova, decorre desde logo [e no tocante designadamente ao artigo 411.º do CPC] da força do elemento literal atinente à expressão “Incumbe“ ( que não “Pode”) inserta no referido dispositivo e, ainda, da própria intenção do legislador manifestada expressis verbis no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, pois que dele consta v.g. que : “para além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
17) Ademais, ainda com referência ao artigo 411.º do CPC, revelador é que tenha a nossa jurisprudência vindo de há muito a sufragar um entendimento praticamente unânime e consensual no sentido de que “O artigo 411.º do CPC (princípio do inquisitório) estabelece um “poder-dever” do juiz que não se limita à prova de iniciativa oficiosa, incumbindo-lhe também realizar ou ordenar oficiosamente as diligências relativas aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que julgue que aquelas são necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio relativamente a factos que o Tribunal pode (e deve) conhecer”.
18) Mas, outrossim a doutrina, vem alinhando pelo mesmo entendimento, designadamente J. M. Gonçalves Sampaio vem defender que “Sendo certo que o juiz não pode, nem deve, em princípio, substituir-se à parte, atento o princípio do dispositivo, temos para nós que, após a Reforma de 1995-1996, o juiz passou a ter uma intervenção mais activa na instrução do processo, devendo fazer uso do poder-dever conferido pelo normativo do n.º 3 do artigo 265.º (princípio do inquisitório) sempre que as circunstâncias e a boa instrução do processo o aconselhem, visando, em última instância obter um melhor apuramento da verdade material e justa composição do litígio”.
19) Não obstante o acabado de expor, porque outros princípios enformam igualmente o nosso direito adjectivo, de entre eles o principio da imparcialidade (princípio este que constitui a essência de qualquer processo justo) e o da igualdade das partes, estando o julgador obrigado em manter-se indiferente e equidistante ao interesse de qualquer das partes, o difícil é manter o juiz uma posição de equilíbrio, buscando é verdade a verdade material no âmbito do cumprimento do dever de administrar justiça (artigo 152.º do CPC) e, concomitantemente, não colocar em crise a sua imparcialidade perante (aos “olhos”) qualquer das partes.
20) Como se aduz no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-2021, vem-se assinalando que o uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos:
i) a admissibilidade do meio de prova;
ii) a sua manifestação em momento processualmente adequado;
iv) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
21) In casu, e em face do disposto no artigo 526.º, n.º 1, do CPC, não se coloca a questão da admissibilidade da prova testemunhal para efeitos de apuramento da verdade material relacionada com os termos do acordo celebrado entre as partes, isto por um lado, e, por outro, não se questiona também que a inquirição por iniciativa do tribunal possa/deva ter lugar no decurso da acção e até ao efectivo julgamento dos factos, e pode inclusive ser sugerida pela parte “interessada” [aquela a quem incumbe o ónus probatório, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CPC]. O que se verificou in casu.
22) O que importa atentar em sede de aplicação do disposto no artigo 526.º do CPC, é se a audição da testemunha não indicada atempadamente pelos AA. era ou não necessária para a justa composição do litígio, saber, se existem razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
23) Ora voltando ao caso em concreto, as testemunhas cuja a inquirição foi requerida pelos AA. ao abrigo do artigo 526.º do CPC têm conhecimento directo dos factos conforme resulta da documentação junta a fls. 337.
24) Só a testemunha Dra. (…), Ilustre Advogada pode esclarecer quem lhe transmitiu os termos do acordo celebrado entre AA. e Réu e que acordo afinal foi esse (venda ou empréstimo com garantia), quem lhe solicitou que agendasse a escritura de compra e venda no Cartório Notarial da Notária (…), sito em Alverca do Ribatejo, quem redigiu a minuta da procuração para vender assinada pela esposa mulher, quem lhe transmitiu os termos/ condições/ e cláusulas que deveriam constar tanto da procuração para venda, como da própria escritura de compra e venda, só ela pode esclarecer quem redigiu o contrato de arrendamento com opção de compra, quem lhe transmitiu as cláusulas que deveriam integrar tal contrato. (relembre-se que o Réu declara que nada disso tratou). NOTAS: são factos?,
25) Também as testemunhas (…) e (…) têm conhecimento directo dos factos. A testemunha (…) foi ela, quem em nome da sociedade anónima “(…)”, NIPC (…), incumbiu a testemunha Dra. (…), Ilustre Advogada instruindo-a para agendar a referida escritura no Cartório Notarial da Notária (…), sito em Alverca do Ribatejo, numa comarca cuja pendência crime é deveras elevada. NOTAS: QUAIS FACTOS?
26) Mais, só as referidas testemunhas … e … (depois de esclarecida a relação de trabalho ou outra contratual ou não) com a sociedade anónima “(…)”, poderão esclarecer porque razão é que aquela sociedade anónima solicitou a marcação da escritura colocada em crise nos presentes autos, quem contratou aquela sociedade, e que serviços é a que a mesma prestou, que tipo de intervenção é que aquela sociedade teve no negócio, com quem negociou os termos e condições constantes tanto da escritura de compra e venda como do contrato de arrendamento com opção de compra, o que lhes foi transmitido pelas partes, e por quem é que foi contactada para intervir no negócio, pelos Autores, pelo Réu…
27) Como é do conhecimento comum, as sociedades comerciais apenas podem “falar” através dos seus legais representantes, razão pela qual, foi requerida a inquirição de (…), na qualidade de presidente / administrador da sociedade anónima (…), NIPC (…), com sede na Av. (…), n.º 280, 5º, esquerdo/centro, 4050-113 Porto, pessoa mais indicada para esclarecer as questões supra identificadas.
28) Já a testemunha (…) poderá com certeza concretizar as instruções que o Réu lhe deu para aqueles negócios em concreto, porquanto foi indicada pela sociedade anónima “(…)”, através da testemunha (…) como a pessoa a contactar caso a testemunha Dra. (…) necessitasse de mais alguma coisa do comprador – Réu.
29) É do senso comum que qualquer advogado quando redige a minuta de um qualquer contrato em que precise de dados do cliente ou orientações quanto às cláusulas que dele devam constar necessita de o contactar – se não o próprio outra pessoa no seu lugar.
30) E, repete-se, os Autores não indicaram as referidas testemunhas porque não sabiam, não conheciam, não faziam ideia acerca das pessoas que trataram da escritura e da documentação inerente à escritura.
31) Por último, desde já se diga que o requisito inserto no próprio artigo 526.º do CPC, se existem razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, está preenchido.
32) Isto porque, o conhecimento directo dos factos controvertidos por parte das testemunhas cuja inquirição foi requerida ao abrigo do artigo 526.º resulta de prova documental cuja junção foi determinada pelo Tribunal a quo.
33) Razão pela qual nos parece inusitado que o Tribunal a quo tenha concluído que: nem dos respetivos depoimentos/declarações resultam identificadas como tendo tido intervenção no processo negocial aqui em discussão.- Razão pela qual, não existe elementos que nos permitam afirmar que tenham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, nomeadamente, e em concreto, acerca do que entre as Partes foi acordado, efetivamente, e quanto assim aos termos dos negócios identificados nos autos, motivo pelo qual entende-se que a sua inquirição nenhum esclarecimento adicional para os factos iria trazer.
34) Salvo o devido e merecido respeito, se existem testemunhas com conhecimento directo dos termos dos negócios identificados nos autos são aquelas que tiveram intervenção directa na outorga/agendamento da escritura e do contrato de arrendamento com opção de compra.
35) Na verdade, se o Notário minutou uma escritura foi porque alguém o informou dos termos do negócio.
36) Se aparece um do contrato de arrendamento com opção de compra assinado por Autores e Réu foi porque alguém foi incumbido de o redigir e a alguém lhe foram comunicadas as cláusulas que dele deviam fazer parte integrante.
37) Os contratos sejam eles quais forem não aparecem do ar – a vontade das partes, tem que ser transmitida de alguma forma a alguém.
38) E do acervo documental junto aos autos a fls. 337 resulta cristalino que os Autores não comunicaram a sua vontade à Notária que outorgou a escritura ora colocada em crise.
39) Em suma, tudo visto e conjugado, em face da prova documental junta ao processo por ordem do Tribunal a quo, manifesto é que se verifica a previsão da primeira parte do n.º 1 do artigo 526.º do CPC, a saber, e aquando do encerramento da audiência tinha com segurança o julgador razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tinha conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
40) Destarte, podia e devia ter lançado mão do princípio do inquisitório, determinando a inquirição das testemunhas em causa, o que se impunha com vista à descoberta da verdade e da boa decisão da causa.
41) Acresce que, como bem avisam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, desde que haja elementos do processo que levem a crer que esse conhecimento [dos factos controvertidos nos autos] existe, tal é suficiente para que, considerada a relevância dos factos (ainda não inequivocamente esclarecidos ou suscetíveis de ser postos em causa pelo depoimento da testemunha ) para a decisão da causa, o depoimento seja ordenado. E, perante o acabado de aduzir/concluir, e ao não lançar mão do Dever de ordenar a notificação das referidas testemunhas para deporem violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 526.º e 411.º, ambos do CPC. (…)
43) Conclui-se que, tendo o tribunal a quo incorrido na omissão de um acto obrigatório susceptível de influir no exame e na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o mesmo deve ser declarado nulo, por violação dos artigos 411.º e 526.º do Código de Processo Civil, tudo com as legais consequências.
44) Ao decidir em contrário, a decisão proferida violou nomeadamente, o disposto nos artigos 411.º, 526.º e 195.º do Código de Processo Civil, pelo que deve ser revogada e, consequentemente, anulado tudo o que vier a ser processado posteriormente. (…)”.
E.
O Recorrido não respondeu às alegações dos Recorrentes.
F.
Admitido o recurso, colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
G.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
É apenas uma, a questão, exclusivamente jurídico-processual, em apreciação no presente recurso:
Se devia ter sido ordenada a inquirição oficiosa como testemunhas, durante o julgamento, das pessoas indicadas pelos Autores no requerimento apresentado a 04.07.2024.
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***
II. FUNDAMENTAÇÃO
*
A. De facto
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O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.
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B. De direito
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Vem o presente recurso interposto de despacho, proferido em julgamento, depois de produzida a prova por depoimento / declarações de parte e testemunhal, indeferindo o requerimento de inquirição oficiosa das pessoas de (…), (…), (…), (…) e (…), como testemunhas.
Sintetizando as razões da discordância apresentadas nas conclusões do recurso interposto, consideram os Autores que:
- os documentos juntos aos autos depois de iniciado o julgamento revelam a intervenção daquelas testemunhas na marcação e na transmissão à sra. Notária dos elementos que produziram o conteúdo da escritura de compra e venda outorgada entre AA. e Réu a 4 de Agosto de 2015, a pedido da sociedade anónima “(…)”;
- a Dra. (…), Ilustre Advogada, pode esclarecer quem lhe transmitiu os termos do acordo celebrado entre AA. e Réu e que acordo afinal foi esse (venda ou empréstimo com garantia), quem lhe solicitou que agendasse a escritura de compra e venda no Cartório Notarial da Notária (…), sito em Alverca do Ribatejo, quem redigiu a minuta da procuração para vender assinada pela esposa mulher, quem lhe transmitiu os termos/ condições/ e cláusulas que deveriam constar tanto da procuração para venda, como da própria escritura de compra e venda. Só ela pode esclarecer quem redigiu o contrato de arrendamento com opção de compra e quem lhe transmitiu as cláusulas que deveriam integrar tal contrato;
- a testemunha (…) foi quem, em nome da sociedade anónima “(…)”, incumbiu a testemunha (…) de agendar a referida escritura, pelo que, juntamente com (…), poderão esclarecer porque razão é que o fez (quem contratou aquela sociedade, que serviços é a que a mesma prestou, com quem negociou os termos e condições constantes tanto da escritura de compra e venda como do contrato de arrendamento com opção de compra, o que lhes foi transmitido pelas partes, e por quem é que foi contactada para intervir no negócio: se pelos Autores ou pelo Réu);
- (…), tem a qualidade de presidente/administrador da sociedade anónima (…);
- parece, assim, inusitado que o Tribunal a quo tenha concluído que não resulta dos autos que tenham tido intervenção no processo negocial aqui em discussão;
- encontram-se preenchidos os pressupostos para o tribunal ordenar a inquirição oficiosa das pessoas em apreço, nomeadamente: a admissibilidade do meio de prova; a sua manifestação em momento processualmente adequado; e a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
*
Ponderemos, por isso, as razões apresentadas pelo Recorrente, à luz das regras processuais vigentes e aplicáveis ao caso.
É sabido que o processo civil tem como estruturante o princípio do dispositivo pelo qual “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (cfr. artigo 5.º, n.º 1, do CPC).
Com José Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 465) o princípio dispositivo impõe que às partes caiba “…a formação a matéria de facto da causa, mediante a alegação nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as excepções peremptórias. Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus da alegação daqueles que têm um efeito que lhe é favorável (…) cuja inobservância dá lugar, consoante o caso, à improcedência da acção ou à improcedência da excepção…”.
O ónus de alegação, projecta-se, por seu turno, no ónus da prova dos factos constitutivos do direito arrogado por aquele que invocar o direito em juízo, assim como dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado por aquele contra quem a invocação é feita (cfr. artigo 342.º do Código Civil).
Não obstante, ainda na vigência da versão do Código de Processo Civil anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a nossa lei processual previa elementos do princípio do inquisitório, acentuados com a reforma de 1996 que lhe conferiu expressa referência no artigo 265.º (em parte correspondente ao artigo 411.º do actual CPC) e com o fito de privilegiar o aproveitamento do processo e a realização da verdade material, poderes-deveres ao juiz de que se destacam, nos planos material e probatório, realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (n.º 3 do artigo 265.º do anterior CPC, correspondente ao artigo 411.º do actual), determinar, em qualquer estado do processo, a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento sobre facto que interessem à decisão a causa (n.º 1 do artigo 552.º do anterior CPC, em parte correspondente ao artigo 452.º do actual) e ordenar por sua iniciativa a comparência de qualquer pessoa, não oferecida como testemunha, em julgamento quando haja razões para presumir que tem conhecimento de facto importantes para a boa decisão a causa (n.º 1 do artigo 645.º do anterior CPC, correspondente ao artigo 526.º do actual) (sublinhado nosso).
Com a última grande reforma do processo civil, introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, mantiveram-se algumas e aprofundaram-se outras matizes do princípio do inquisitório, sobretudo no domínio da aquisição do facto a considerar na decisão final.
Podemos, assim, concluir que, embora regido pelo princípio do dispositivo – na medida em que compete às partes definir da causa de pedir alegando os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1 do artigo 5.º do CPC), sendo também sobre estas que impende o ónus da prova dos mesmos factos –, o apuramento da verdade material e o aproveitamento do processo para realizar uma justa composição do litígio, muito presentes no espírito do legislador, proporcionam ao juiz um conjunto de poderes-deveres no domínio da aquisição do facto complementar ou concretizador que, sem alterar ou suprir o cerne da causa de pedir, se mostra necessário a uma decisão justa e efectiva da questão em apreciação, assim como no domínio da prova que se mostre imprescindível ao apuramento dos factos de que depende a decisão da lide.
*
No que respeita à prova testemunhal, o artigo 552.º, n.º 2, do CPC prevê que o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova no final da p.i. e, caso o réu conteste, pode alterá-lo na réplica ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação.
As partes podem também:
- alterar/aditar o rol já apresentado, na audiência prévia quando a esta haja lugar (cfr. artigo 598.º, n.º 1, do CPC) ou até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias (cfr. artigo 598.º, n.º 2, do CPC);
- substituir as testemunhas que estejam definitiva ou temporariamente impossibilitadas de depor, mudado de residência depois de oferecidas, não tiverem sido notificadas devendo tê-lo sido, no caso de outro impedimento legítimo ou, ainda, faltado ao julgamento sem motivo justificado e não forem encontradas para comparecer sob custódia (cfr. artigos 508.º, n.ºs 3 e 4 e 510.º, ambos do CPC).
Para além das aludidas condições, a inquirição de outra pessoa como testemunha só pode ser determinada oficiosamente, por iniciativa do tribunal, “quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa…” (cfr. artigo 526.º do CPC) (sublinhados nossos).
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, o artigo 526.º do CPC constitui “…mais um afloramento do princípio do inquisitório em matéria de direito probatório (…) ainda que o ativismo judiciário deva ser moderado pela intervenção de outros princípios (como o do dispositivo ou o da autorresponsabilidade das partes) ou de outras regras que implicam o tratamento igualitário das partes e servem para assegurar a equidistância do tribunal” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 3ª Edição Reimpressão, 2024, págs. 622 e 623, anotação 1 ao artigo 526.º).
A intervenção oficiosa do juiz ao abrigo do disposto no artigo 526.º do CPC, deve assumir um papel complementar do ónus de prova que incide sobre cada uma das partes e não para suprir a falta de iniciativa destas.
Neste sentido, a jurisprudência vem sustentando que “a investigação oficiosa de factos, mesmo que através da inquirição de testemunhas, não deve ser exercida com a finalidade contornar os condicionamentos legais existentes para as partes apresentarem os respetivos meios de prova” (sublinhado nosso) (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.02.2025, relatado pelo Desembargador João Diogo Rodrigues no processo n.º 78/22.6T8PNF-F.P1).[1]
E, sobre a mesma temática, o ponto II do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018, relatado pela Conselheira Fernanda Isabel Pereira no processo n.º 97/12.0TBPVL.L2.S1, refere que “da conjugação entre o disposto no artigo 411.º e no n.º 1 do artigo 526.º, ambos do CPC, emerge que o poder/dever de inquirição oficiosa de uma testemunha só deve ser exercido quando o tribunal não se considere suficientemente esclarecido acerca de factos relevantes e existam elementos que levem crer que a audição da pessoa em causa contribuirá para esclarecer as dúvidas que se suscitam em face da prova já produzida”[2] (sublinhados nossos).
Deste modo, o exercício do poder-dever oficioso previsto pelos artigos 411.º e 526.º do CPC, exige uma ponderação prévia que evidencie a presença dos seguintes pressupostos:
i.
Haver razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
Neste particular, a lei é clara ao determinar que os factos de que as pessoas tenham conhecimento devem ser relevantes à boa decisão da causa, o que se afere de acordo com as plausíveis soluções de direito para a decisão do pedido formulado.
ii.
A necessidade da produção desse elemento de prova para que o tribunal fique plenamente esclarecido sobre a factualidade relevante para a decisão a lide.
Para Luís Filipe Sousa (in “Prova testemunhal”, Almedina, 2013, pág. 275), “o juiz só deverá exercitar o poder-dever conferido pelo artigo 526.º quando resulte da produção de outras provas a necessidade de inquirição de outra testemunha, manifestando‑se tal necessidade em termos tais que permitam concluir que a inevitabilidade da inquirição ocorreria mesmo que a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório. A não ser assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais específicos na medida em que a parte subsidiariamente, poderia invocar o regime dos artigos 411.º e 526.º”
Como explica Nuno de Lemos Jorge (in “Os poderes instrutórios do juiz, alguns problemas”, Revista Julgar, n.º 3, 2007, pág. 74), “[h]á, aqui, uma certa assimetria entre as partes e o juiz, no sentido em que este pode, por regra, promover diligências instrutórias tendo por base, apenas, a conveniência das mesmas, enquanto que a parte não pode, sem mais, determinar o juiz a recorrer a elas. Tal diferença na posição destes sujeitos processuais não deve surpreender e espelha, de certo modo, a já referida diferente natureza jurídica do direito da parte a prova e do poder-dever do juiz na investigação dos factos. Por força deste, o juiz deve diligenciar pela prova em função do seu juízo quanto à respectiva necessidade. A parte, porém, não terá, também por regra, direito a que o juiz promova concretamente a diligência "x" ou "y", pois a consagração de tal poder jurídico faria desaparecer o fenómeno de preclusão dos seus direitos processuais probatórios. A parte tem direito a propor ela própria, a prova, no momento processualmente adequado. (…)”.
iii.
A atinência dessa necessidade com os factos que ao juiz é lícito conhecer. Tais factos, como já se aludiu, são não só os essenciais da causa de pedir, alegados pelas partes, mas também os instrumentais que resultem da discussão a causa, e os factos complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa (sujeitos a prévio exercício do contraditório) (cfr. do n.º 2 do artigo 5.º do CPC).
Isto significa que:
- por um lado, não basta haver pessoas não arroladas com conhecimento de matéria de facto relacionada com o litígio, pois se esta não for necessária para decidir a acção, a inquirição carece de justificação;
- por outro, ainda que se trate de matéria de facto relevante para a decisão, se o tribunal se considerar suficientemente esclarecido a partir da prova produzida nos autos até esse momento, não se verifica o requisito da necessidade de produção de outros meios probatórios; e
- por último, ainda que se verifiquem os dois primeiros pressupostos – o conhecimento de factos relevantes e a necessidade de os apurar -, o juiz tem a sua actividade de averiguação oficiosa limitada por lei aos supramencionados factos que lhe é lícito conhecer. Assim, não poderá determinar a produção de prova de factos essenciais da causa de pedir que não tenham sido alegados pelas partes. Tampouco poderá investigar factos complementares ou concretizadores se não forem aditados e sujeitos ao prévio exercício do contraditório.
Por isso, a bondade do despacho recorrido, deve ser indagada a partir do preenchimento destes requisitos, na concreta situação que motivou o pedido de intervenção oficiosa formulado pelos Autores ao tribunal.
No requerimento apresentado a 04.07.2024 (referência Citius 12652091), sobre o qual incidiu o despacho recorrido, os Autores visam a inquirição como testemunhas das pessoas aí identificadas, sustentando que do teor dos documentos entretanto juntos aos autos por determinação do tribunal, resulta terem conhecimento directo do objecto dos autos e “…com certeza, de factos importantes para a boa decisão da causa…”.
i.
Detendo-nos, primeiramente sobre a existência de razões para presumir que aquelas pessoas têm conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, a pretensão dos Autores, não só parte do que se afigura ser uma suposição – o que decorre do uso da expressão “com certeza” – como também nenhum facto relevante para a decisão da causa identifica como objecto de ciência das pretendidas testemunhas.
Impunha-se que os Autores indicassem quais, entre os factos controvertidos alegados nos articulados da acção, aqueles de que as mencionadas pessoas têm conhecimento e também as razões pelas quais isso acontece com um mínimo de concretização que se não basta com a mera referência aos “documentos entretanto juntos”.
O despacho judicial do qual vem interposto o presente recurso e sobre o qual incide a análise do presente acórdão, debruçou-se sobre as razões apresentadas no requerimento de 04.07.2024, não sobre as alegações de recurso agora produzidas pelos Autores.
Os Autores não lograram, por isso, evidenciar, junto do tribunal de 1ª instância, o preenchimento do primeiro pressuposto da inquirição oficiosa pretendida.
Sem embargo, sempre se dirá que a circunstância, esgrimida em sede do presente recurso – de os documentos juntos aos autos a pedido do tribunal revelarem a intervenção daquelas pessoas na marcação e na transmissão à sra. Notária dos elementos que produziram o conteúdo da escritura de compra e venda outorgada entre AA. e Réu a 4 de Agosto de 2015, a pedido da sociedade anónima “(…)” –, não evidencia que estas tenham conhecimento dos factos que, de acordo com a tese carreada aos autos pelos Autores, importa provar.
Tais factos, alegados dos artigos 15º a 24º, 35º a 40º e 54º a 61º da p.i., dizem respeito às negociações e ao acordo havido entre o Autor e a “Investidor Privado”, através da pessoa do Dr. (…) e/ou da secretária que telefonou ao Autor, à intenção dos Autores na ocasião da celebração dos actos negociais impugnados, à disparidade entre o valor real do imóvel e a contrapartida auferida pelos Autores nos negócios e ao aproveitamento da sua fragilidade, vulnerabilidade financeira e inexperiência.
Os Autores não alegam, em parte alguma, ter tido qualquer contacto com a “(…)” ou com as pessoas que pretendem ouvir como testemunhas.
E o que interessa apurar em ordem à decisão da lide é aquilo que os Autores acordaram ou pretendiam ter acordado, já que que o teor literal dos negócios impugnados consta de documentos que vêm pelos próprios descritos na petição inicial.
Deste modo, tendo noção dos factos que aos Autores incumbe provar na presente acção, não podemos deixar de acompanhar o despacho recorrido quando conclui que “…não existem elementos que nos permitam afirmar que [as pessoas indicadas no requerimento dos Autores] tenham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, nomeadamente, e em concreto, acerca do que entre as Partes foi acordado, efetivamente, e quanto assim aos termos dos negócios identificados nos autos (…)” (sublinhado nosso).
ii.
Passando agora ao segundo pressuposto, também não resulta dos autos ser necessário ao tribunal produzir mais elementos de prova para ficar plenamente esclarecido quanto à decisão a proferir sobre a factualidade relevante controvertida.
Sendo de iniciativa judicial, a produção oficiosa dos meios de prova depende de um juízo de necessidade que incumbe ao juiz do processo, não às partes.
Só ele saberá se, até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, a prova produzida lhe permite formar uma convicção clara sobre os factos relevantes à decisão.
Por isso, a disposição do artigo 526º do CPC dificilmente poderá ser utilizada pela parte para forçar o juiz a produzir, no decurso do julgamento e antes de proferida a decisão final, um meio de prova que só o próprio, na sua análise crítica da prova, está em condições de decidir se deve, ou não, ser realizado.
A este respeito, afigura-se de uma pertinência lapidar a exposição feita por Nuno de Lemos Jorge (in “Op. Cit.”, págs. 76 e 77), quando refere:
“Mais complexo é o problema do controlo da omissão do uso, pelo juiz dos poderes instrutórios que a lei lhe confere. Aqui, há que distinguir duas hipóteses (…). A primeira hipótese encontrar-se-á, normalmente, associada à sugestão por uma das partes, de realização de determinada diligência probatória, a que se seguirá um despacho do juiz negando tal pretensão. O meio processual próprio para reagir contra este despacho é o recurso. Aqui sobressai a dita assimetria entre a posição das partes e a do juiz, pois dificilmente esta omissão pode ser impugnada com sucesso, em sede de recurso, é ao tribunal que cabe avaliar da necessidade da diligência para o seu esclarecimento. A parte não pode, nesta matéria, substituir-se-lhe e impor o seu próprio critério de necessidade da prova. Não é a parte que determina se o tribunal necessita ou não de mais esclarecimentos e que estes se poderão obter por determinado meio de prova. Se o tribunal se der por esclarecido, a parte não conseguirá, por regra, demonstrar, em sede de recurso, que o não devia estar. Apenas quando for evidente a omissão de uma diligência probatória cuja essencialidade se revele indiscutível, em face dos elementos constantes do processo, é que será possível trazer à luz, para apreciação do tribunal superior, a violação do poder-dever instrutório do juiz. Serão estes os casos em que ocorre, na feliz expressão de Lopes do Rego, uma "ostensiva e injustificada omissão de diligência essencial e patentemente necessária ao apuramento da verdade dos factos".” (sublinhados nossos).
Destes considerandos com arrimo no regime processual vigente, não resulta qualquer prejuízo para a parte, na medida em que depois de proferida a decisão sobre a matéria de facto controvertida, ante a fundamentação que da mesma conste sobre a formação da convicção do tribunal, poderá demonstrar em recurso da sentença final que determinado facto cuja decisão lhe não foi favorável podia ter sido decidido de outra maneira, se o tribunal, em cumprimento do poder-dever resultante do artigo 526.º do CPC, houvesse produzido certos meios de prova que a discussão contraditória da lide revelou. É o que decorre da alínea b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, no qual se confere ao Tribunal da Relação o poder de, mesmo oficiosamente, “ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.”
Nesse momento processual, a reflexão crítica produzida pelo juiz sobre a prova produzida permitirá concluir se era, ou não, necessária a produção de outros meios de prova para além dos que foram admitidos pelo tribunal.
Ora, como decorre da exposição de motivos constante do requerimento apresentado pelos Autores a 04.07.2024 e do que se disse já sobre o possível conhecimento pelas testemunhas de factos controvertidos que aos Autores incumbe demonstrar, não estamos perante a omissão de qualquer diligência probatória essencial.
Deste modo, o pressuposto da necessidade também se não mostra evidenciado.
*
Consequentemente, nenhuma razão se encontra para proceder à revogação do despacho recorrido.
*
Custas
*
Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.
No caso vertente, os Autores foram vencidos, pelo que deverão suportar as custas do recurso.
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III. DECISÃO
*
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:
Julgar improcedente a presente apelação, confirmando o despacho recorrido.
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
*
Évora, 10 de Julho de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Maria João Sousa e Faro (1ª Adjunta)
Manuel Bargado (2º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d6a02899c4f5bac680258c4a005898e0?OpenDocument
[2] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/76f16dc8f3679537802582c10056f8c2?OpenDocument