Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2138/23.7T8PTM-A.E1
Relator: ROSA BARROSO
Descritores: DIVÓRCIO
DECLARAÇÕES DE PARTE
CONFISSÃO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
DEPOIMENTO DE PARTE
RECONVENÇÃO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA EM PARTE A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Em acção de divórcio, as declarações de uma das partes que sejam contrárias ao seu interesse não podem ser atendidas como confissão, por respeitarem a factos relativos a direitos indisponíveis; podem, no entanto, ser valoradas livremente pelo tribunal.
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação n.º 2138/23.7T8PTM-A.E1

Acordam neste Tribunal da Relação de Évora

1 – Relatório
O Autor veio requerer o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, alegando factos que em seu entender consubstanciavam a rutura definitiva do casamento, conforme previsto na alínea d), do artigo 1781, do Código Civil, pedindo ainda a retroação dos efeitos do divórcio a Novembro de 2022.
Na pendência do divórcio e assim que se completou um ano sobre a data da separação de facto do casal, veio o Autor em articulado superveniente apresentado em 1/02/2024, requerer a ampliação da causa de pedir e do pedido, no sentido de o divórcio ser decretado também com fundamento na separação de facto entre A. e R. por mais de um ano consecutivo, nos termos da alínea a), do art. 1781º, do CC.
Antes de proferido despacho sobre a admissibilidade do articulado superveniente, a Ré contestou e reconveio, alegando entre outros, o facto de o Autor ter saído de casa em novembro de 2022, não mais havendo desde então partilha de vida entre os cônjuges.
No despacho saneador foi, além do mais, proferido o seguinte:
- “Ao abrigo do disposto no art.º266.º, n.º1 e 2, al. d), do Cod. Proc. Civil, admite-se o pedido reconvencional deduzido.”

- “O autor pede o depoimento de parte da ré e, por sua vez, a ré, pede o depoimento de parte do autor.
Cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também, o dos seus compartes - cfr. art. 453°, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Porém, no caso concreto, o depoimento de parte não poderá ser admitido, na verdade, estamos no âmbito das ações sobre o estado das pessoas, as quais versam sobre relações subtraídas ao domínio da vontade das partes, portanto, sobre relações jurídicas indisponíveis.
Resulta, assim, claramente que a presente ação versa sobre direitos indisponíveis, sobre os quais não pode haver confissão (art. 289º CPC).
Termos em que indefiro o requerido depoimento de parte da ré e do autor.”

-“Do valor da causa:
Considerando o disposto no art. 303.º, n.º1 e 306, n.º 1, ambos do CPC, fixo à presente causa o valor de 60.000,02 – sessenta mil euros e dois cêntimos (sendo 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) o valor atribuído à acção e 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) o valor atribuído à reconvenção – art.299, n.º 1CPC).
O Autor interpôs recurso desta decisão.
Apresentou alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
«A) Na ação de divórcio em que na reconvenção a Ré se limita a pedir o divórcio, o valor da ação deve ser fixado em Euros 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), não havendo lugar à soma dos valores atribuídos pelas partes na ação e reconvenção, sempre que o Réu/Reconvinte pretenda obter, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico pretendido pelo Autor.
B) Ao fixar o valor da ação em Euros 60.000,02 (sessenta mil euros e dois cêntimos), montante correspondente ao somatório do valor atribuído pelo Autor na petição inicial e ao valor atribuído pela Ré/Reconvinte no seu articulado, fez a Mmº Juiz a quo uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente do disposto nos artigos 299º nº 2 e art. 530º nº 2 e 3 do CPC.
C) Apesar de na ação de divórcio estarem em causa direitos indisponíveis e por isso insuscetíveis de confissão, não decorre do Código de Processo Civil, nem do Código Civil, que nestas ações o depoimento de parte seja inadmissível como meio de prova.
D) O depoimento de parte e a confissão são realidades distintas, constituindo o primeiro apenas uma das vias processuais para obter a confissão, e se é certo que quando estejam em causa direitos indisponíveis, o depoimento de parte desfavorável a quem o presta, não pode ter o valor de uma confissão, nada impede que tal depoimento possa ser requerido pela contraparte com vista não à confissão, mas à aquisição de factos pertinentes para verdade material e boa decisão da causa e que seja livremente apreciado pelo tribunal, sendo este, de resto, o entendimento que deflui do artigo 361º do Código Civil.
E) A relevância do depoimento de parte, no sentido acima preconizado, assume especial importância quando estejam em causa, como sucede in casu, factos de natureza estritamente doméstica e pessoal, normalmente não percecionados por terceiros de forma direta, como ocorre usualmente em ações de divórcio.
F) Requerido pelo Autor o depoimento de parte de Ré em momento temporalmente adequado e com a indicação discriminada sobre os factos em que deveria recair tal depoimento, não podia tal meio de prova ser liminarmente indeferido pela Mmª Juiz.
G) Ao indeferir tal meio probatório, com o fundamento de o mesmo não ser admissível nas ações em que estejam em causa direitos indisponíveis, fez o Tribunal errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente dos arts. 452º nº2 e 454º do CPC e 361º do Código Civil.
H) Não obstante ser abstratamente admissível a formulação de reconvenção em ação de divórcio, nos casos em que a Ré se limita na reconvenção a pedir que seja decretado o divórcio, a Reconvinte está a assentir que o casamento deve ser dissolvido, sendo certo que tal pedido já se encontra formulado na petição inicial, pelo que não deveria o pedido reconvencional ter sido admitido pelo Tribunal.
I) Nestes casos, não faz sentido fazer o julgamento para aferir se o casamento deve ou não cessar ou para apurar as causas ou culpa do divórcio, arredada que está do quadro legal atual a figura do divórcio-sanção e a culpa dos cônjuges, devendo os autos prosseguir para julgamento tão-só com vista ao apuramento da data da separação de facto, uma vez que tal fixação foi pedida pelo Autor.
NESTES TERMOS, deverá o presente recurso proceder, revogando-se o despacho saneador na parte em que fixou o valor da ação, o despacho que indeferiu o depoimento de parte requerido pelo Autor e o despacho que admitiu o pedido reconvencional formulado pela Ré, assim se fazendo a costumada Justiça!»
Não se encontram juntas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Os Factos
Os factos são os que constam do relatório e que aqui se dão por reproduzidos.
III – O Direito
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4, 639.º e 608.º, n.º 2, in fine, todos do Código de Processo Civil.
Importa apreciar o valor da causa, a prova que não foi admitida, requerida pelo Autor e a admissão da reconvenção.
Vejamos:
Entendemos que o Recorrente tem razão quando defende que na ação de divórcio em que na reconvenção a Ré se limita a pedir o divórcio, o valor da ação deve ser fixado em Euros 30.000,01, não havendo lugar à soma dos valores atribuídos pelas partes na ação e reconvenção, sempre que o Réu/Reconvinte pretenda obter, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico pretendido pelo Autor.
O nº 2 do artigo 299º, do CPC, dispõe que o valor do pedido formulado pelo Réu só é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor quando os pedidos sejam distintos.
Esclarece ainda o nº 3, do artigo 530º, do CPC, que não se considera distinto o pedido quando a parte pretenda conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o Autor pretende obter.
Ora, é precisamente esta a situação dos presentes autos, já que como cuidou de se referir, na sua reconvenção, a Ré limitou-se a pedir o divórcio.
O Autor pede o depoimento de parte da Ré.
Estamos numa acção de divórcio.
O depoimento de parte desfavorável a quem o presta, não pode ter o valor de uma confissão, mas nada impede que tal depoimento possa ser requerido pela contraparte com vista não à confissão, mas à aquisição de factos pertinentes para verdade material e boa decisão da causa e que seja livremente apreciado pelo tribunal, sendo este, de resto, o entendimento que deflui do artigo 361º, do Código Civil.
O autor pede o depoimento de parte da ré.
Cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também, o dos seus compartes - cfr. art. 453°, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Em acção de divórcio, as declarações de uma das partes que sejam contrárias ao seu interesse não podem ser atendidas como confissão, por respeitarem a factos relativos a direitos indisponíveis; podem, no entanto, ser valoradas livremente pelo tribunal.
Deve, portanto, julgar-se perfeitamente admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal, como sempre sucederá, de resto, no caso de acção relativa a direitos indisponíveis em que a confissão se tem por inadmissível (artº 354 b) do Código Civil).
Cremos ser este o entendimento dominante na jurisprudência.
Em acção de divórcio, as declarações de uma das partes que sejam contrárias ao seu interesse não podem ser atendidas como confissão, por respeitarem a factos relativos a direitos indisponíveis; podem, no entanto, ser valoradas livremente pelo tribunal, neste sentido vd Acórdão do TRC de 06.04.2022.
E no TRP de 26.09.2019 (ambos visitáveis in www.dgsi.pt) sumariou-se:
“I – No processo civil moderno, como princípio geral deverá sempre privilegiar-se a opção maximalista de recolha de todos as provas que se revelem pertinentes ao apuramento da realidade fáctica sob escrutínio.
II – Por isso, ainda que estejam em causa direitos indisponíveis insusceptíveis de confissão, não se nos afigura justificável a proibição de um depoimento de parte que, sem prejuízo da evidente parcialidade, tem necessariamente um conhecimento directo dos factos essenciais em litígio.
III – A mera circunstância de um dado meio de prova não poder vir a ter o valor probatório da confissão não implica que não deva ser livremente avaliado. Neste pressuposto, tal avaliação deve poder ser requerida por uma parte em relação à outra, independentemente de o tribunal igualmente também a poder determinar.
IV – Deste modo, numa acção de divórcio, desde que requerida em momento temporalmente adequado, é admissível o depoimento de parte requerido pela contraparte.”
Seguindo este entendimento vai admitido o requerido depoimento, com as limitações acabadas de referir.
No que diz respeito à admissão da reconvenção, não assiste razão ao Recorrente.
Nesta acção a Ré pode também pedir o divórcio, como pediu em reconvenção
Na altura em que foi apresentada e pelas razoes aduzidas fazia todo o sentido a sua apreciação.
Bem andou o Tribunal ao admitir a reconvenção.
As vicissitudes processuais e que venham a ocorrer no decurso dos autos, são questões a apreciar em momento próprio.
Por tais razões nenhum reparo merece a decisão proferida, nesta parte.
Sumário:
(…)
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, o valor da acção – com reconvenção, é de € 30.000.01 (trinta mil euros e um cêntimo), admite-se o depoimento de parte requerido pelo A. e fica nos autos a Reconvenção.
Custas pela parte vencida a final.

Évora, 10 de Julho de 2025
Rosa Barroso
Carla Francisco
Maria Beatriz Borges