Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ARTUR VARGUES | ||
Descritores: | DESPACHO DE PRONÚNCIA CRIME DE FURTO | ||
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Data do Acordão: | 11/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Constituem elementos típicos do crime de furto a subtração de coisa móvel alheia (tipo objetivo) e a ilegítima intenção de apropriação ou intencionalidade exclusivamente virada para a apropriação (enquanto elemento do tipo de ilícito, reveste esta também uma dimensão subjectiva, como alumia José de Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, págs. 33 e 46), que se tem de acopular ao dolo do tipo (integrado pelos elementos volitivo – a vontade livre de realização da conduta objetiva - e cognitivo - o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto de carácter descritivo, como de natureza normativa - a que acresce ainda o dolo integrante do tipo de culpa (onde se inclui a consciência da ilicitude). O bem jurídico protegido pela norma é, essencialmente, a propriedade, mas também se protege a “disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica”. Isto é, a “incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel”, como refere José de Faria e Costa, ob. cit. págs. 30 e segs. e 94. Existindo indícios suficientes de que a arguida praticou os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, exceptuando o segmento em que se narra que o terreno pertença da ofendida se encontrava vedado, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal, pelo que por estes factos e incriminação deve ser pronunciada. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO 1. Nos autos com o nº 86/20.1GCABF, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, foi proferido, aos 06/06/2023, despacho de não pronúncia da arguida AA, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 22º, 23º, 203º e 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal. 2. O Ministério Público não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando a sua revogação e substituição por outro que pronuncie a arguida pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do CPP. 2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição): 1. A decisão instrutória considerou estar indiciada toda a factualidade que permite preencher os elementos objectivos do tipo de crime furto (com excepção do facto qualificador – terreno vedado); 2. Mas que o elemento subjectivo do crime de furto não se encontra preenchido porque não existe prova nos autos de que a arguida fez seus os canídeos e que quis apropriar-se dos mesmos; 3. Considerou que a arguida agiu com intenção de proteger os animais, mal tratados e a carecer de ajuda. 4. A decisão instrutória errou na apreciação e subsunção jurídica dos factos já que a prova que foi carreada no inquérito e na instrução é clara no sentido de que o comportamento da arguida preencheu os elementos subjectivos e objectivos do crime de furto. 5. A subtracção é composta por dois elementos: a quebra de uma detenção originária e a constituição de uma nova detenção por parte do agente e consiste no poder de facto sobre uma coisa, através do domínio efectivo no sentido das regras da vida social. 6. Aos elementos objectivos do tipo de furto, acrescem os dois elementos subjectivos o dolo e a intenção de apropriação. 7. O dolo traduz-se no conhecimento e vontade de realização do facto típico, podendo verificar-se em qualquer das modalidade previstas no artigo 14.º do Código Penal e consistindo no conhecimento e vontade de que a coisa móvel que está a subtrair é alheia e na vontade de a subtrair. 8. Quanto à intenção de apropriação reporta-se a um elemento que não integra o tipo objectivo e basta-se com a subtracção, independentemente de se verificar ou não o resultado intencionada - crime de resultado cortado ou parcial. 9. Para além disso, a intenção de apropriação tem de ser ilegítima o que significa que tem de estar em contradição com o direito de propriedade do ofendido. 10. A apropriação implica a inversão do título da posse ou detenção, através da prática de um ou mais actos concludentes do agente, de que resulte inequivocamente a intenção do agente de fazer sua a coisa (PAULO DE ALBUQUERQUE, anotação 13º ao artº 205º do CP, CCP, 3ª ed., 2015, p. 913). 11. Assim, a intenção de apropriação pertence ao mundo interior do agente e, por isso, é através dos factos objectivos que se pode determinar essa intenção. 12. Se o agente, contra a vontade do legítimo dono, passa a comportar- se relativamente às coisas subtraídas como se fosse dono delas, integrando-as no seu património, dando-lhe designadamente o destino que entende, pode concluir-se que agiu com intenção de apropriação 13. Coisa muito diferente da intenção é a motivação com que o agente perpetra a infracção. 14. O motivo é a causa desencadeante da conduta e está quase sempre imbuído de natureza emocional — é o que nos leva a agir ou a adoptar uma atitude; 15. As motivações são absolutamente irrelevantes para a discursividade jurídico-penal. Mesmo que o agente esteja animado das mais nobres motivações, tal é totalmente irrelevante/indiferente para o direito penal. 16. No caso do crime de furto os fins determinados pelo agente e os motivos que o tenham impelido a agir não são considerados como elementos integrantes do dolo. 17. Quando muito podem influir na escolha e medida da pena [Relembra- se os motivos do famoso “Zé do Telhado”, de tirar aos ricos para dar aos pobres, não descaracterizam os ilícitos, embora façam dele um assaltante (historicamente) “simpático”.] 18. Resulta, desde logo das declarações prestadas pela arguida perante o Mm.º JIC que nos 2 dias anteriores aos factos já havia passado no local e visto os cães referidos na acusação, presos. 19. Na manhã do dia 31.08.2020, quando passeava, acompanhada do namorado, no mesmo local, a arguida tornou a ver os cães presos, abeirou-se deles e decidiu regressar a casa dos pais do namorado a pé e regressar de carro para dali levar os animais. 20. Assim fez, depois de tirar as correntes com que estavam presos, levou os dois cães pertencentes à denunciante consigo para casa; 21. A arguida afirmou perentoriamente que não chamou as autoridades ao local porque “conhece a polícia portuguesa e sabe que não iam fazer nada!” 22. Mais esclareceu que no dia seguinte levou os cães à veterinária, que passou a declaração que consta de fls. 22 dos autos e regressou com os cães para casa. 23. Passado mais um dia foi entregar os cães à Associação ….. 24. Da consulta da declaração junta a fls. 22 constata-se que a veterinária observou os cães no dia 02.09.2020 e da análise do email da … junto a fls. 104 verifica-se que receberam os cães “das mãos” da arguida no dia 03.09.2020 e iniciaram os procedimentos que têm estabelecidos com vista à adopção dos canídeos. 25. Dos referidos elementos de prova, conjugados com os restantes constantes do inquérito, afigura-se-nos que a decisão recorrida é fruto de uma errada apreciação da prova e de incorrecta interpretação jurídica. 26. O afastamento da intenção de apropriação efectuado na D. decisão recorrida baseia-se na motivação da arguida – salvar os cães. 27. Ora tal motivação, como supra se referiu, distinta da intenção exigida pelo tipo de crime de que a arguida estava acusada, não assume qualquer relevância jurídico-penal. 28. De facto, mesmo se apenas atentarmos nas declarações da própria arguida, concluímos que agiu com dolo directo e clara intenção de se apropriar dos cães que sabia não serem seus, terem proprietário(s) e que agiu contra a vontade destes. 29. Ao contrário do afirmado na decisão instrutória - “nem tão pouco a arguida representou a possibilidade de estar a cometer um crime. Não olvidemos que não tem nacionalidade portuguesa, não sendo obrigada a conhecer os concretos trâmites administrativos que se lhe impunham numa situação destas” – das suas declarações resultou que já conhecia a situação há pelo menos 2 dias e que optou conscientemente por não chamar as autoridades porque “a polícia Portuguesa não faz nada”. 30. Agiu com total desprezo pelos proprietários e pelas mais elementares regras sociais, optando por fazer “a sua justiça”, com as próprias mãos. 31. Adonou-se dos cães, agindo como se fosse sua proprietária na medida em que fez com eles o que entendeu, nos timings que quis. 32. O facto de ter levado os cães à veterinária e entregue a uma Associação de protecção de animais para adopção não afasta a intenção de os subtrair ou deles se apropriar, ao contrário do defendido na d. decisão recorrida. 33. Esses factos ocorreram após a consumação do crime de furto e são o sustento da afirmação de que a arguida agiu como se deles fosse proprietária. 34. Discorda-se do fundamento avançado na decisão instrutória de que a arguida “não actuou com intenção de se apropriar dos animais, de os fazer seus, de se comportar como sua proprietária, tanto que os canídeos não ficaram a residir consigo (…)”. 35. Uma “subtracção com intenção de apropriação” é aquela que nos permite afirmar que o crime se consuma quando a coisa sai da esfera de domínio do titular inicial e o agente adquire um mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente ao seu empossamento, uma estabilidade que lhe assegure uma possibilidade plausível, ainda que não absoluta (posse pacífica), de fruição e disposição da coisa subtraída. 36. Foi o que sucedeu quando a arguida levou os cães consigo, decidindo daí por diante o que lhes fazer, com claro animus de um proprietário. 37. O facto de ter dado/entregue os cães à Associação é irrelevante uma vez que, nesse momento, já estava estabelecida pacificamente a relação fáctica de poder entre a arguida e os animais “uti dominus”. 38. A partir do momento em que foi buscar o veículo a casa dos pais do namorado, soltou os cães e os levou consigo no carro, a arguida adquiriu o domínio do facto dos animais que sabia serem alheios. 39. Tal aconteceu, no seguimento da pré-intencionada vontade apropriativa, sabendo que não tinha sobre os cães qualquer direito e que os retirava da esfera patrimonial do(s) proprietário(s), o que aconteceu e se manteve mesmo depois de ter sido por eles contactada para os devolver (conforme resulta do relatório de serviço da GNR, junto a fls. 56 e 57, auto de inquirição de BB, junto a fls. 70 e confirmado pela arguida nas declarações prestadas nesta fase de instrução), fazendo-os coisa sua. 40. Estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto deve a arguida ser por ele pronunciada. 3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. 4. Inexiste resposta à motivação de recurso. 5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “visto”. 6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Âmbito do Recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995. No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se existem indícios suficientes da prática pela arguida de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do CPP. 2. Elementos relevantes para a decisão 2.1 Por decisão de 4 de Março de 2023, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de factos integradores, em seu entender, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 203º, nº 1 e 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal. 2.2 Em 3 de Abril de 2023, a arguida requereu a abertura da instrução, aduzindo, em síntese, que os factos constantes da acusação não correspondem à realidade. 2.3 A decisão recorrida, proferida em 06/06/2023, tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição): Relatório I - Iniciaram-se os presentes autos com o auto de denúncia que é fls. 3 e seguintes dos autos e do qual consta a denúncia de factos subsumíveis ao crime de furto, praticado no dia 31/8/2020 na propriedade de CC. Desenvolvidas as diligências tidas por necessárias e adequadas em sede de inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA imputando-lhes a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1.º, f) do C.P.. Não se conformado com a dedução de acusação e no uso das faculdades que legalmente lhe são atribuídas, a arguida requereu a abertura da instrução nos termos do artigo 287.º do Código de Processo Penal alegando para o efeito que não praticou qualquer facto subsumível a tipo criminal, apenas tendo actuado com o intuito de ajudar dois cães que estavam negligenciados, não pretendendo subtrai-los ou actuar como sua proprietária. II - Foi proferida decisão a declarar aberta a fase processual de instrução. III – Foram ouvidas as testemunhas DD, EE e FF, arroladas pela arguida. Realizou-se debate instrutório, com observância do legal formalismo, findo o qual os intervenientes resumiram as suas posições. Saneamento O Tribunal é competente. O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal. Não existem nulidades, ou quaisquer questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa. Do crime imputado À arguida é imputada a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, f) ambos do C.P.. Atento o n.º 1 do artigo 203.º do Código Penal, comete um crime de furto, “quem, com ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia…”, sendo que, por força dos artigos 22.º e 23.º, n.º 1 e 2, se consigna expressamente no n.º 2 do citado preceito a punibilidade da tentativa. Ora, tendo em conta a construção sistemática do legislador, o crime de furto simples constitui o tipo de crime matricial, cujos requisitos específicos são igualmente próprios do crime de furto qualificado, previsto no artigo 204.º do mesmo Código – preceito que recorta as circunstâncias qualificativas e Hiper qualificativas do tipo matricial, isto é, acrescendo aos elementos típicos do crime de furto os elementos que determinam tal qualificação. Neste sentido, necessário se torna descortinar, em primeiro lugar, os vários elementos do tipo legal de furto simples e só posteriormente analisar criticamente a verificação de eventuais elementos qualificativos. E, sublinhe-se, quando ocorra alguma das circunstâncias típicas previstas no artigo 204.º do Código Penal, a tentativa é também punida nos termos dos artigos 203.º, n.º 2 e 22.º e 23.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal. No que concerne ao bem jurídico protegido por este crime, sistematicamente inserido no capítulo dos crimes contra a propriedade, entendemos com Faria Costa (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, p. 31 e ss) que a questão nem sempre se esgota na simples relação de propriedade que é ofendida, pois coincidindo, em geral, na vítima “as qualidades de proprietária e fruidora do gozo (posse e mera posse) atinente às qualidades da coisa” em muitos outros casos verifica-se “uma separação ou um corte, juridicamente aceite e até tutelado entre aquelas duas qualidades”. Daí que, em termos de lógica material, tutelando a detenção ou mera posse como disponibilidade material de uma coisa, o bem jurídico protegido no crime de furto simples seja a “disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica”. Conforme resulta da primeira das normas referidas, o tipo objectivo do crime de furto tem como elementos constitutivos a ilegítima intenção de apropriação, a subtracção de coisa móvel alheia, elementos expressos aos quais há ainda que acrescentar o implícito elemento do valor patrimonial da coisa (ob. Cit., p. 33). No que tange à ilegítima intenção de apropriação, é esta particular intenção do agente aquando da realização do facto típico – usualmente designada por dolo específico ou especial elemento subjectivo da ilicitude – que faz do crime de furto, quer na forma simples quer na qualificada, um crime intencional. Este elemento “deve ser visto e valorado como a vontade intencional do agente de se comportar, relativamente a coisa móvel, que sabe não ser sua, como seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem, manifestando, assim, uma intenção de (des)apropriar terceiro” (ob. Cit, p. 33), sendo também indispensável, na determinação global do elemento, um animus sibi rem habendi. Por outro lado, a subtracção caracteriza-se pela finalidade prosseguida de fazer entrar no domínio de facto do agente as utilidades derivadas da coisa, que anteriormente eram fruídas pelo sujeito que as detinha de modo legítimo. Portanto, como conditio sine qua non para a realização desta finalidade, a subtracção traduz-se num desapossamento logo seguido de outro apossamento, em virtude de uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor (ob. Cit., pág. 43). Pois bem, tal subtracção deverá incidir sobre uma coisa, entendida como “tudo o que, gozando de autonomia e utilidade, é susceptível de dominação exclusiva pelo homem” (Carlos Alegre, in Crimes Contra o Património, Revista do Ministério Público, 3.º caderno, p.23). Tal coisa, sendo móvel (elemento descritivo), deverá ainda revestir carácter alheio (conceito normativo), ou seja, pertencer a outrem que não o agente. Por fim, importa considerar o valor patrimonial da coisa, elemento implícito do tipo legal em exegese, pois o elemento “coisa” tem de “ter não só valor patrimonial como, para além disso, tem de ultrapassar um limiar mínimo de valor para que, desse jeito, a sua protecção, enquanto coisa alheia, ascenda à dignidade penal” (Faria Costa, in ob. cit. p. 44). Note-se ainda que independentemente do preenchimento de qualquer circunstância qualificativa, nos termos do n.º 4 do art. 204.º do C.P., em caso algum haverá qualificação quando a coisa furtada for de valor diminuto (que, nos termos da alínea c) do art. 202.º é aquela que não exceder uma unidade de conta, sendo que, à data dos factos, a mesma se cifrava nos €102). Estamos assim perante um contra-tipo que, uma vez verificado, impede a qualificação do crime de furto. No que respeita ao preenchimento do tipo subjectivo de ilícito, não obstante haver no crime de furto uma indesmentível dimensão subjectiva na intenção de apropriação, exige-se essencialmente uma conduta dolosa, nos termos gerais dos artigos 13.º e 14.º do Código Penal, assim acontecendo sempre que o agente tenha actuado com conhecimento (elemento intelectual do dolo) e vontade (elemento volitivo do dolo) de realização do tipo objectivo de ilícito. E para que se verifique um crime de furto qualificado, por força das alíneas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º, importa ainda que o agente tenha uma representação global e um querer que abarque os diversos elementos dessas circunstâncias agravantes. Análise crítica – Da comprovação do despacho proferido pelo Ministério Importa, portanto, apurar se os indícios existentes nos autos, conjugados com os elementos recolhidos no âmbito da instrução, são suficientes para sustentar um despacho de pronúncia. Fazendo uso das palavras de Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição. Verbo, pág. 129) «No Código Processual vigente, a instrução tem um duplo sentido: fase processual do processo preliminar e actividade de comprovação da acusação em ordem à decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento». Na verdade, o artigo 286.º, nº 1 do Código de Processo Penal, estabelece expressamente o objectivo desta fase processual, dispondo que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». «Comprovar significa confirmar, reconhecer como bem, concorrer com outras provas para demonstrar. A instrução destina-se precisamente a obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, a confirmar ou não a acusação deduzida, para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente» (GERMANO MARQUES DA SILVA, in obra citada, pág. 149). Com vista ao cumprimento deste escopo, a instrução «é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório (…)» (cfr. artigo 289º, nº 1 do CPP), terminando com a decisão instrutória, consubstanciada num despacho de pronúncia ou de não pronúncia. A este propósito importa referir o preceituado no artigo 308.º, nº 1 do Código de Processo Penal que fixa que «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Exige-se, assim, da parte do julgador, a formulação de um juízo de probabilidade, por forma a legitimar a sujeição do arguido a julgamento. Para tanto, torna-se necessário que da análise dos elementos constantes dos autos, designadamente os resultantes das diligências probatórias realizadas, resultem indícios suficientes da prática pelo arguido de factos susceptíveis de o fazer incorrer em responsabilidade criminal. Por expressa remissão do nº 2 do artigo 308.º, para o artigo 283.º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança». Tecidas as considerações prévias relativas às finalidades e âmbito da instrução, cumpre analisar a prova nesta sede produzida. Lida a prova constante do inquérito e ouvidas as testemunhas inquiridas nesta fase de instrução, a que acrescentamos a valoração das declarações da arguida, não existem dúvidas, do ponto de vista objectivo, que foi AA quem, no final de Agosto de 2020, desacorrentou dois cães, na freguesia de …. Do ponto de vista objectivo igualmente entendemos que, na fase em que os autos se encontram, não existem motivos para questionar que os canídeos estavam acorrentados num terreno sito em …, … e que os ofendidos se arrogam seus proprietários, tendo reconhecido os animais por força de uma publicação na rede social facebook e na qual constavam os mesmos para adopção. Aliás, do acervo factual constante do libelo acusatório e centrando-nos apenas e tão só nos elementos objectivos do tipo, apenas um facto não se nos afigura suficientemente indiciado, antes pelo contrário, existe prova do oposto. Com efeito, não está, de todo, indiciado que o terreno em causa fosse vedado. Aliás, aquando da denúncia, a fls. 5, a própria ofendida referiu que a entrada no terreno onde terão decorrido os factos se faz de modo bastante acessível. É certo que posteriormente veio a depor no sentido de o terreno ser vedado, mas nenhuma outra testemunha reportou a existência de qualquer vedação, sendo que inclusive BB, também ele alegado ofendido, referiu que não existia vedação, motivo pelo qual os canídeos estavam acorrentados. Nesse sentido depuseram igualmente FF, à data namorado da arguida e que esteve presente no local e a própria arguida. Afigura-se-nos assim notório que não existia qualquer vedação no terreno em causa, não se compreendendo por que motivo tal facto consta do libelo acusatório. Assim, o facto 1, parcialmente (quando se diz que o terreno era vedado) e o facto 2 não estão indiciados, não tendo nos autos qualquer sustento probatório. Mas o nó Górdio dos autos centra-se num pequeno elemento objectivo, constante do facto 5 da acusação, quando se refere que a arguida fez seus os canídeos e em todo o elemento subjectivo. Com efeito, entendemos que os elementos probatórios não apontam no sentido constante do despacho de acusação. Em primeiro lugar deve o Tribunal ter a capacidade de se colocar no lugar do agente e ter a percepção dos factos que o agente teve. Ficou o Tribunal convencido, em especial com a audição da veterinária DD e do presidente da Associação … (Associação de apoio a animais), EE, que os dois animais em causa não estavam bem tratados. Nesse sentido vai igualmente a declaração junta a fls. 34. Tendo a arguida, que habitualmente caminhava na zona, vislumbrado, já dois dias antes, os cães, acorrentados, com algumas feridas aparentes e sendo um terreno de entrada livre (como já referimos), dificilmente, para o Homem Médio, se poderia chegar à conclusão que os canídeos em causa eram tratados em condições dignas diariamente e tinham tutores próximos. Perante a prova produzida, é razoável e verosímil acreditar que para a arguida os animais estavam mal cuidados e eventualmente ali teriam sido deixados acorrentados, em pleno Agosto, sem as condições necessárias para o seu desenvolvimento. E tal perspectiva, face ao depoimento de DD, seria a perspectiva de qualquer Homem Médio colocado no lugar da arguida. É nesta esteira que o Tribunal não concorda com o M.P. quando plasma que a arguida fez seus os canídeos e que quis apropriar-se dos mesmos. Tais afirmações não têm sustento probatório. A arguida quis proteger os dois canídeos, que, na sua óptica e já vimos que essa posição é assaz razoável, estavam mal tratados e a carecer de ajuda. A situação factual assume maior esclarecimento se atentarmos no depoimento de EE, presidente da instituição que recebeu os animais e que não só atestou que a arguida apenas os quis proteger e permitir que alguém lhes desse condições normais, mas também que logo após receber os animais, no dia 3 de Setembro de 2020, foram à GNR de … com o intuito de informar que os tinham na sua posse e não lhes foi comunicada qualquer situação anómala. Estamos perante atitudes de pessoas que não pretendem subtrair bens alheios, mas tão só agir em prol da defesa dos canídeos. A versão do M.P. não corresponde à realidade, pois quem pretende subtrair um animal e comportar-se como seu proprietário, não o vai entregar a uma Associação para salvaguardar o bem-estar do animal, sabendo que essa Associação vai à GNR informar que tem o animal. Afigura-se nos que se a actuação da arguida poderia ter sido diversa, mormente chamando primeiro as autoridades policiais e de veterinária, certo é que tal erro não tem o condão de lhe conferir um dolo específico de intenção de se apropriar dos canídeos. Não foi, manifestamente, essa a intenção da arguida e como tal não praticou o crime que lhe foi imputado. Aliás, entendemos não estar verificado nenhum dos elementos do dolo: • A arguida AA não actuou com vontade de praticar um crime, o que a motivou foi a defesa dos interesses de dois canídeos, sendo que tal vontade recrudesceu face ao cenário que encontrou: dois animais acorrentados e com sinais de não serem objecto de tratamento diário cuidado; • não actuou com intenção de subtrair os canídeos a terceiro, mas sim de lhes conferir a hipótese de serem tratados e serem remetidos a uma Associação de protrecção de animais, associação essa que se deslocou à GNR para informar que tinha os animais; • não actuou com intenção de se apropriar dos animais, de os fazer seus, de se comportar como sua proprietária, tanto que os canídeos não ficaram a residir consigo, antes foram entregues, como já diversas vezes referido, a uma associação; • e nem tão pouco a arguida representou a possibilidade de estar a cometer um crime. Não olvidemos que não tem nacionalidade portuguesa, não sendo obrigada a conhecer os concretos trâmites administrativos que se lhe impunham numa situação destas. Com efeito e como explanou a testemunha FF, quer este quer a arguida (à data namorados) pretenderam agir em conformidade com a Lei e pensavam que o faziam, pois retiraram os cães de uma situação de perigo e entregaram-nos a uma Associação. Não evola dos autos que tal conduta, considerando a nacionalidade da arguida e o móbil da sua actuação, seja censurável ou convoque qualquer intenção criminosa. Pelo raciocínio que deixámos plasmado, nem tão pouco se verifica o dolo de invasão de terreno alheio. Com efeito, tal intenção não pode ser dissociada da genérica intenção de proceder de acordo com o interesse dos animais. Ao entrar na propriedade em que os dois canídeos estavam acorrentados, não pretendeu a arguida invadir propriedade alheia, não representou sequer a possibilidade de estar a cometer um crime. Do ponto de vista psicológico, estava a actuar apenas e tão só em auxílio de dois animais que se afigurava estarem negligenciados. Acresce que nem sequer constam do despacho de acusação todos os elementos do dolo no concernente ao crime de introdução em lugar vedado ao publico, nomeadamente a representação da ilicitude, pelo que não pode sequer ser ponderada a convolação da factualidade. Acresce que reiteramos que não existem elementos que atestem a intenção de praticar qualquer crime. Destarte, pelo exposto, entendemos, por reporte ao despacho de acusação que não se encontram suficientemente indiciados os factos 1 (na parte em que se refere que o terreno era vedado); 2 (não se encontra suficientemente indiciado que transpôs a vedação); 5 (na parte em que se refere que a ofendida fez seus os canídeos); 7 e 8. Decisão Pelo exposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 308.º, nº 1 do Código de Processo Penal, decide-se não pronunciar a arguida AA pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 22.º, 23.º, 203.º e 204.º, n.º 1, f) do C.P.. Apreciemos. Nos termos do artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. E, estabelece o artigo 308º, nº1, que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Por seu turno, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento do arguido. Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária, obviamente) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP. Salienta Figueiredo Dias que “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133. Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pág. 189. Assim, os indícios qualificam-se de “suficientes” quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for razoável. No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo “indícios suficientes” de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a este conceito não pode alhear-se do mencionado princípio. No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição” – e no mesmo sentido da aplicação deste princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, se perfilam, entre outros, os Acs. da Relação do Porto de 04/01/2006, Proc. nº 0513975 e de 22/10/2008, Proc. nº 0814910, bem como os da Relação de Lisboa de 02/05/2006, Proc. nº 849/2006-5 e 16/11/2010, Proc. nº 3555/09.TDLSB.L1-5, todos consultáveis em www.dgsi.pt. Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento. Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta. Regressando à matéria concreta dos autos, há, pois, que questionar se, com base nos elementos de prova indiciária recolhidos no inquérito e na instrução, é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, a arguida venha a ser condenada pelos factos e incriminação legal imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público, ainda que sem a qualificação. E, esse juízo, há-de atender para a sua formação não só à prova directa (em que o facto probatório - meio de prova - se refere imediatamente ao facto probando), como também à prova indirecta ou indiciária, que igualmente é admissível pelo nosso ordenamento jurídico – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal. A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova – presunções naturais. Vejamos então a situação sub judice. O tribunal a quo considerou não se encontrarem suficientemente indiciados os seguintes factos constantes da acusação: - Que o terreno onde se deslocou a arguida, propriedade de CC, estava vedado – ponto 1. - Que para entrar no terreno a arguida tivesse transposto a vedação – ponto 2. - Que a arguida fez seus os canídeos (pertencentes à ofendida, com que abandonou o terreno) – ponto 5. - Ao actuar do modo descrito, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de entrar no terreno vedado da ofendida e fazer seus os referidos canídeos, bem sabendo que não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização da respectiva proprietária – ponto 7. - Sabia ainda que tal conduta era proibida e punida pela lei penal – ponto 8. Mas considerou indiciariamente provado: - Que a arguida no dia 31/08/2020, pelas 07:15 horas se deslocou ao terreno de CC e nele entrou. - Dirigiu-se de seguida ao local onde se encontravam dois canídeos, fêmeas, arraçadas de “…”, com idade compreendida entre seis a oito meses. Um de cor castanha e outro de cor preta com manchas de cor castanha, os quais tinham um valor não concretamente apurado, mas não inferior a 102,00 euros. - Retirou as correntes que seguravam tais canídeos e, após, abandonou o terreno com estes, pertença de CC. - Os canídeos nunca foram recuperados por esta, em virtude de a arguida os ter entregue ao “…”, tendo já sido adoptados por terceiros. Analisemos. Os indícios suficientes terão de se reportar aos factos e à infracção criminal cujo cometimento se imputa à arguida, ou seja, de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal, uma vez que o recorrente concorda não se ter demonstrado que o terreno estava vedado. Estabelece-se no nº 1, do artigo 203º, do Código Penal, que “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido (…)”. Resulta, assim, que constituem elementos típicos do crime de furto a subtração de coisa móvel alheia (tipo objetivo) e a ilegítima intenção de apropriação ou intencionalidade exclusivamente virada para a apropriação (enquanto elemento do tipo de ilícito, reveste esta também uma dimensão subjectiva, como alumia José de Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, págs. 33 e 46), que se tem de acopular ao dolo do tipo (integrado pelos elementos volitivo – a vontade livre de realização da conduta objetiva - e cognitivo - o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto de carácter descritivo, como de natureza normativa - a que acresce ainda o dolo integrante do tipo de culpa (onde se inclui a consciência da ilicitude). O bem jurídico protegido pela norma é, essencialmente, a propriedade, mas também se protege a “disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica”. Isto é, a “incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel”, como refere José de Faria e Costa, ob. cit. págs. 30 e segs. e 94. Ora, resulta claro que a arguida entrou em terreno privado, retirou os canídeos, pertença de CC, da corrente que os retinha em espaço no interior desse terreno e levou-os consigo. Que os animais não pertenciam à arguida, nem se encontravam abandonados na via pública ou no terreno é indubitável e até reconhecido pela arguida nas declarações que prestou em instrução, ao referir que dois dias antes já os tinha avistado e se não tivessem quem deles cuidasse minimamente (pelo menos), atento o calor inerente à época do ano em causa e na região do … (freguesia de …), certamente, revelam-nos as regras da experiência comum, que estariam fortemente desnutridos e desidratados, o que não era o caso, como resulta cabalmente do depoimento da testemunha DD, médica veterinária que observou os animais em 02/09/2020 e da declaração que subscreveu nessa data e se encontra junta aos autos, de onde consta apenas quanto ao estado físico: “dois canídeos (…) com idade compreendida entre os 6 e os 8 meses (…) ambas não apresentam microchip, contradizendo a lei que obriga a colocação do mesmo após 120 dias do nascimento (…) foi também constatada ausência de pelos e lesão em pele em zona circundante do pescoço”. Temos, deste modo, verificado o carácter alheio dos canídeos em relação à arguida. Quanto à subtração, resulta das declarações da arguida que levou os canídeos consigo – pelas 07:15 horas, do dia 31/08/2020 - para a própria habitação, onde permaneceram e no dia 2 de Setembro foi com eles a uma clínica veterinária, tendo dado os cães para adopção à “…”, o que veio a acontecer. Aliás, como também revelou a própria, mesmo antes da deslocação ao veterinário fez uma publicação na rede social “Facebook” de que os canídeos se encontravam disponíveis para adopção, pelo que resulta que passou logo a dispor deles como se fossem sua pertença. Consistindo a subtracção em um acto de desapossamento, em que passa a existir um novo domínio factual sobre a coisa, passando o agente a ter, directa ou indirectamente, a disponibilidade da coisa retirada – cfr. entre outros, Ac. da Relação do Porto de 13/02/2013, Proc. nº 243/10.9GBMBR.P1; Ac. da Relação de Lisboa de 12/05/2015, Proc. nº 574/14.4GBMTJ.L1 disponíveis em www.dgsi.pt; e mais recentemente os Acs. da Relação de Évora de 10/03/2020, Proc. nº 322/16.9GBCCH.E1 e 25/10/2022, Proc. nº 355/18.9JAPTM.E1, consultáveis no mesmo sítio, podendo neste último ler-se que “a subtracção consiste na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou dispor dele e a substituição desse poder pelo do agente. A subtracção caracteriza-se, assim, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha” - não podemos deixar de concluir que face ao descrito comportamento da arguida ocorreu efectivamente (indiciariamente, claro) essa subtracção e apropriação dos canídeos. O tribunal a quo, para sustentar o seu entendimento quanto à inexistência de apropriação, aduz que a arguida quis proteger os dois canídeos, que, na sua óptica e já vimos que essa posição é assaz razoável, estavam mal tratados e a carecer de ajuda, o que se prende também com a problemática da comprovação da “ilegítima intenção de apropriação”. Ora, ensina Faria e Costa, ob. cit., pág. 34 que a motivação com que o agente perpetra a infração é irrelevante “para a discursividade jurídico-penal. Mesmo que o agente esteja animado das mais nobres intenções – por exemplo, furtar para dar a um pobre – é isso totalmente – e bem – indiferente para o direito penal”. Acrescentamos nós, que só poderá importar para a medida da pena em caso de condenação e não para efeitos de preenchimento dos elementos típicos do crime. E, quanto à intenção com que agiu a arguida, não colocamos em causa que se sentiu incomodada com a visão dos canídeos presos por corrente e em espaço descoberto, bem como com a “ausência de pelos e lesão na pele em zona circundante do pescoço” que apresentavam. Mas certo é que, ao ficar ciente dessa situação, como referiu quando em sede de instrução prestou declarações: “pensei que eles não estavam bem e vamos encontrar alguém para adoptá-los e foi isso que fiz.” Ou seja, podemos concluir que, quando levou consigo os animais do local onde se encontravam, fê-lo já com o intuito de os entregar para adopção, o que é revelado também, como se disse retro, pela publicação que gerou na rede social “Facebook” efectuada com esse desiderato, ainda antes da deslocação à clínica veterinária aos 02/09/2020. E, não se pode aceitar que a arguida, entendendo que os animais estavam mal tratados – como afirmou -, não tenha contactado as autoridades policiais para denunciar a situação, sendo que, para justificar esta omissão, expendeu o seguinte argumento: “sabia que nada iria acontecer, pensei, vou fazer eu mesma…eu pensei, se eu chamar a polícia eles não vão fazer nada”, pois trata-se de uma absoluta especulação, sem qualquer fundamento objectivo concreto que a alicerçasse e espelha que estava até ciente de que deveria fazer esse contacto. E vero é que a GNR até dispõe do Serviço de Protecção da Natureza e Ambiente, cuja missão abrange “controlos sanitários e de protecção animal”, o que não podia ser desconhecido da arguida, atento se mostrar diligente protectora do bem-estar animal e até bem conhecer as obrigações que impendem sobre os respectivos proprietários, no que concerne, nomeadamente, à implantação de “microchip” e vacina antirábica O que, sendo revelador de cidadania empenhada, indubitavelmente, não pode eximi-la da observância das normas do ordenamento jurídico nacional, como, aliás, acontece com qualquer outro cidadão. Diz-nos ainda a decisão revidenda que “nem tão pouco a arguida representou a possibilidade de estar a cometer um crime”, sustentando este entendimento em não ter a arguida nacionalidade portuguesa, “não sendo obrigada a conhecer os concretos trâmites administrativos que se lhe impunham numa situação destas”. Pois bem. Não atentou certamente o Mmº Juiz que lavrou o despacho em causa, que a arguida, pese embora tenha nascido aos …/…/1995 na …, à data dos factos já residia em Portugal há 18 anos e domina a língua portuguesa escrita e falada, exercendo até a actividade de … (com um grau de instrução, presumido, portanto, acima da média), o que declarou nos autos e, em virtude do qual, até prescindiu de intérprete nas diligências neste realizadas em que interveio. Por outro lado, não estamos perante uma situação em que ocorreu uma neo-criminalização da subtração e apropriação de bens alheios e concretamente de animais, pois há largos séculos que se sabe que tal conduta é proibida genericamente em relação a coisas móveis alheias e, especificamente, no que tange aos animais, desde a alteração introduzida ao artigo 203º, nº 1, do Código Penal, pela Lei nº 8/2017, de 03/03. Tudo conjugado, temos de concluir que não podia deixar de conhecer a proibição e cominação penal da sua conduta. Termos em que, existindo indícios suficientes de que a arguida AA praticou os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, exceptuando o segmento em que se narra que o terreno pertença de CC se encontrava vedado, se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal, pelo que por estes factos e incriminação deve ser pronunciada. Cumpre, pois, conceder provimento ao recurso. III - DISPOSITIVO Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida de não pronúncia que deve ser substituída por outra que pronuncie a arguida AA pelos factos constantes da acusação pública (com excepção do segmento onde se narra se encontrar o terreno vedado) e prática do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal. Sem tributação. Évora, 21 de Novembro de 2023 (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário) ________________________________________ (Artur Vargues) _______________________________________ (J. F. Moreira das Neves) _______________________________________ (Edgar Valente) |