Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
168/05.0TBVVC-N.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INABILITAÇÃO
ANOMALIA PSÍQUICA
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes preconizada no artigo 611.º do CPC opera-se a partir dos factos supervenientemente alegados pelas partes, observado que seja o disposto no artigo 588.º do CPC, cabendo ainda considerar outros factos, conforme dispõe o artigo 5.º, n.º 2, do CPC, cumprido que seja o contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerente: (…)
Recorrido / Requerido: (…), que veio a falecer na pendência da causa.

Os presentes autos consistem em ação de inabilitação, por anomalia psíquica.


II – O Objeto do Recurso
Designada que estava data para a audiência final, apresentou a Requerente um articulado superveniente fazendo apelo ao teor dos arts. 588.º, n.ºs 1 e 3, al. b) e 611.º, n.ºs 1 a 3, do CPC. Relativamente à admissibilidade de tal articulado, foi esgrimida a seguinte fundamentação:
«1. O Artº 588º, nº 3, al. b), do NCPC aplicável, prescreve que o novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido nos dez dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia.
2. Por sua vez, o regime processual da audiência prévia, não existia na data do primeiro julgamento (que foi anulado e que foi tramitado anteriormente à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho) pelo que em 11-2-2015 foi proferido despacho a dispensar a realização da audiência prévia, nos termos do novo Artº 593.º, n.º 1, do N.C.P.C.
3. Donde, o presente articulado é admissível, pois o Acórdão de fls. 1398 a 1451 que anulou o julgamento, fez os autos recuarem ao articulado superveniente de 27 de abril de 2007, ou seja, urge atualizar o processo, artigo 611.º, n.º 1, in fine, do CPC, e analisar os negócios e pelos factos praticados pelo requerido durante 10 anos de processo, que culminaram na morte do requerido ocorrida em 14 de abril de 2012 (cfr. fls. 1235).
4. Não obstante já ter sido ordenado o prosseguimento dos autos nos termos de artº 957º, nº 1, do C.P.C., por despacho de fls. 1235, que não foi objeto do recurso pelo representante do requerido, o presente Articulado Superveniente tem por finalidade o prosseguimento dos autos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 904.º, n.º 1 e 2, do N.C.P.Civil, para que seja verificada a incapacidade do requerido e determinada a data da mesma.
5. Com efeito, estando apenas em julgamento a matéria constante da base instrutória de fls. 568 a 576 e o aditamento à mesma de fls. 845 a 848, apenas foram adicionados a esta matéria os temas de prova do articulado superveniente que remontam a 2007 (e que constam do despacho de 11-2-2015), pelo que nos termos do artº 611.º, nº 1 e 3, os factos agora alegados neste articulado (elaboração de testamento, doação e vendas) são factos que segundo o direito substantivo têm influência direta no conteúdo da relação controvertida, pois demonstram prodigalidade e gestão ruinosa do património.
6. Por outro lado tratando-se de factos ocorridos em data muito posterior aos articulados, e também posteriores ao articulado superveniente apresentado em 27-4-2007, não podiam ter sido alegados nos termos do então em vigor artigo 506.º, n.º 1, do C.P.Civil (até porque o referido articulado de 27-4-2007 foi indeferido em primeira instância).
7. Pelo exposto, deverá o presente articulado superveniente ser admitido e os factos constantes no mesmo serem incluídos, nos termos de prova e nos factos assentes nos termos e para os efeitos dos artigos 588.º e 611.º, n.º 1 a 3, ambos N.C.P.Civil, uma vez que a decisão tem de corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão.»
No âmbito de tal articulado, a Requerente invocou a prática dos seguintes atos pelo Requerido, em estado de dependência física e psíquica, denotando incapacidade e ostensiva prodigalidade:
- a outorga de testamento a 17/11/2005, sem que a Requerente soubesse;
- levantamentos de quantias bancárias durante o ano de 2005, um deles (no valor de € 14.000,00) sem o conhecimento da Requerente;
- levantamentos de quantias bancárias no ano de 2006, provenientes da venda da Herdade da (…);
- doação de imóveis e de direitos outorgada em 28/02/2007;
- venda da Herdade do (…) em 13/12/2010.
Em tal articulado, mais vêm invocadas as patologias, debilidades físicas e psíquicas de que padecia, desde 2005, o Requerido, o que é considerado como causa dos atos de disposição de bens do seu património, atuando de forma pródiga, dissipando o seu património em prejuízo da sua pessoa.
(...), em representação do Requerido entretanto falecido, deduziu oposição à admissão do articulado superveniente invocando o seguinte:
«1 – A pertinência, justificação e suporte legal para o referido articulado advém de “factos ocorridos em data muito posterior aos articulados e também posteriores ao articulado superveniente apresentado em 27-04-2007”, segundo refere a A. – cfr. artigo 6.º.
2 – Porém, a análise do referido articulado, permite concluir algo diverso, o mesmo é, em verdade, uma nova e pretensa p.i., quiçá aperfeiçoada, na qual são repetitivamente alegados factos ocorridos em datas anteriores a todos os articulados e ao próprio articulado superveniente agora apresentado pela A. (em 27-04-2007), contrariamente ao por si anunciado.
3 – E por assim suceder, sob pena de preterição de dispositivo legal expresso, não deverá o mesmo ser sequer admitido em juízo, devendo, outrossim, ser rejeitado, como se impõe – cfr. artigo 588.º do C.P.C.»
Foi proferido o seguinte despacho:
«De acordo com o disposto no art.º 588.º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Civil, quando é alegada a superveniência subjetiva deve produzir-se prova dessa superveniência.
Assim, e antes do mais, notifique a Autora para, no prazo de 10 dias, vir requerer e/ou informar do que tiver por conveniente, designadamente, se do requerimento probatório que efetuou no final do articulado em causa, faz parte algum meio de prova que tenha esse escopo.
Notifique.»
A Requerente apresentou-se a requerer esclarecimento ao teor do referido despacho, reiterando que o articulado superveniente deve ser admitido, renovando a fundamentação nela apresentada. Não indicou se algum meio de prova apresentado se destina a comprovar a superveniência subjetiva, invocando que «tais factos apresentados no articulado superveniente não podem ser agora omitidos na prova a levar a julgamento, pois a sua superveniência resulta da própria tramitação dos autos e também da marcha implacável do tempo, e além do mais não se trata aqui de um mero Processo Cível, mas sim de uma Ação de Interdição com relevante interesse público, na qual o Ministério Público tem intervenção pois razões óbvias de realização da Justiça e do direito e de descoberta da verdade material, pelo nos termos do artigo 602.º, n.º 1 e 607.º, n.º 1, in fine, o Tribunal deve usar os seus poderes oficiosos para que se possa cumprir o disposto no artigo 611.º do CPC.»
Foi proferido o seguinte despacho:
«A fls. 1955 e segs. a requerente veio apresentar um novo articulado superveniente ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 588.º, n.º 3, alínea b) e 611.º, n.º 1, ambos do CPC.
Regularmente notificado o requerido, na pessoa do seu defensor, para exercício do contraditório, o mesmo pugnou pela sua inadmissibilidade legal.
A requerente foi então notificada para, em prazo, apresentar prova da superveniência subjetiva do articulado por si apresentado, convite ao qual a mesma entendeu não responder, por considerar não ser aplicável ao caso concreto a exigência de superveniência subjetiva.
Apreciando.
De harmonia com o n.º 2 do artigo 588.º do CPC, «dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os atos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência».
Como é sabido, o articulado superveniente destina-se a carrear para os autos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, quer esses factos sejam objetivamente supervenientes, isto é, ocorridos historicamente em data posterior à apresentação dos articulados ditos “normais” previstos no CPC; quer factos que embora tenham ocorrido historicamente em data anterior à apresentação dos ditos articulados “normais”, a parte apresentante do articulado superveniente apenas deles teve conhecimento após o momento da apresentação desses articulados ditos “normais” – superveniência subjetiva.
Na superveniência subjetiva, conforme decorre do n.º 2 do artigo 588º, não basta ao apresentante alegar que apenas teve conhecimento dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que aduz no articulado superveniente em momento posterior à apresentação do seu articulado dito “normal”, como terá de fazer prova desse seu conhecimento posterior – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17.05.18, processo n.º 1644/15.1T8CHV.G2, in www.dgsi.pt.
Em consequência da referida alusão e restrição reportada especificamente para a superveniência subjetiva, tem a doutrina vindo a sustentar que, pretendendo a parte lançar mão de um articulado superveniente, e quando em causa esteja um facto apenas subjetivamente superveniente, carece a mesma de alegar e provar que não lhe é a mesma – a superveniência – imputável – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.05.18, processo n.º 1951/07.7TBTVD-A.L1-6, in www.dgsi.pt.
Descendo ao caso concreto, constata-se que a requerente havia apresentado um articulado superveniente com data de 26.04.07, o qual foi rejeitado, por intempestivo, por despacho proferido em 15.07.07.
Posteriormente, o Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão em 22 de maio de 2014, tendo sido superiormente decidido revogar-se, entre outros, o despacho que não admitiu o articulado superveniente da requerente, e, consequentemente, procedeu à anulação de todos os atos processuais subsequentes ao mesmo, nomeadamente, o julgamento e sentença final proferida.
Aqui chegados, invoca a requerente no presente articulado superveniente, com data de 26.04.17, que estando apenas em julgamento a matéria constante da base instrutória, à qual foram aditados os temas da prova relativos ao articulado superveniente apresentado em 2007, importa tomar em consideração todos os factos posteriores àquela data que poderão ter relevância para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material.
Sucede, porém, que, analisado o teor do respetivo articulado superveniente, constata-se que, com exceção dos factos alegados nos artigos 83º a 87º, todos os demais se reportam a períodos ocorridos em datas anteriores a todos os articulados e ao próprio articulado superveniente apresentado pela autora a 26.04.07, cuja matéria já integra o objeto da presente ação de interdição/ inabilitação.
Como tal, tendo a maioria dos factos ocorrido historicamente em data anterior à apresentação do último articulado admitido – o articulado superveniente com data de 26.04.07 – a sua admissibilidade estaria naturalmente condicionada à demonstração, por parte da requerente, do seu conhecimento posterior, nos termos do supra mencionado art. 588.º, n.º 2 (parte final) do CPC, sob pena de, se assim não se entendesse, se estar a abrir uma porta a uma nova petição inicial aperfeiçoada, intentada ao arrepio da regular tramitação processual.
Ora, não tendo feito prova do conhecimento superveniente dos novos factos por si alegados, mesmo após ter sido convidada para o efeito, constata-se ser o referido articulado inadmissível à luz dos preceitos legais supra citados, na medida em que se reporta a factos anteriores aos articulados que instruem os presentes autos, sem que a requerente tenha logrado demonstrar a respetiva superveniência subjetiva.
Em face do exposto, decide-se indeferir o articulado superveniente intentado pela requerente a 26.04.17.»
Inconformada, a Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que «admita o articulado superveniente e designe data para julgamento dos meios de prova testemunhal arrolados no mesmo e se for o caso, para prova da superveniência dos factos». Conclui a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. O despacho recorrido está errado no fundamento principal, ao dizer que a Recorrente não respondeu ao convite para provar a superveniência, pois basta ver a sequência dos pedidos sucessivos de articulados supervenientes desde 2017, para se perceber que o Tribunal só tinha de ouvir as testemunhas arroladas pela Recorrente nos articulados supervenientes apresentados 10 dias após a marcação do julgamento de 2017 e 10 dias após a marcação julgamento de 2018, conforme se pode ver no infra transcrito.
2. Contrariamente ao que consta do despacho, e na sequência da recusa do Tribunal em tomar uma decisão final, só agora é que a Recorrente ficou a saber que os seus meios de prova da superveniência foram rejeitados, pois indicou 7 testemunhas.
3. As testemunhas podiam ter sido ouvidas à matéria da superveniência dos Embargos, mas com os sucessivos adiamentos do julgamento até à sentença final de extinção notificada em 12-2-2019, o Tribunal, violou o seu poder-dever de gestão processual previsto no artigo 6.º do CPC, e não ouviu as testemunhas arroladas no articulado superveniente.
4. O Tribunal permitiu-se adiar o julgamento de maio de 2017, depois para Maio de 2018, depois para Setembro de 2018 e finalmente para o dia de hoje, 18 de Fevereiro de 2019, mas ironicamente, o Tribunal de Vila Viçosa, extinguiu o processo em 12 de Fevereiro de 2019 sem a Autora saber se as testemunhas arroladas podiam ou não justificar a superveniência dos factos.
5. O referido articulado, foi apresentado em Abril de 2017 (no prazo de 10 dias após a primeira marcação) e reiterado em 22-2-2018, ou seja nos 10 dias posteriores à marcação do julgamento, que foi marcado por despacho de 9-2-2018, mas foi agora indeferido liminarmente, mesmo após o Tribunal da Relação de Évora ter mandado apreciar o articulado superveniente.
6. Ao indeferir o articulado superveniente no despacho recorrido de 29-1-2019, o Tribunal impede a Autora de demonstrar o ANTES e o DEPOIS, do património que pertencia ao requerido na data do seu falecimento.
7. Deve ser revogado o despacho recorrido e ser designada data para audição das 7 testemunhas indicadas articulado, pois podiam ser inquiridas à superveniência dos factos.
8. A omissão de data para inquirição das testemunhas indicadas no articulado superveniente no despacho recorrido, constitui uma verdadeira “neutralização” ou “desaparecimento” de meios de prova, pelo que não colhe a interpretação do despacho recorrido no sentido que a Autora recorrente não respondeu ao convite de provar a superveniência.
9. O despacho impugnado deixa o processo, num “limbo” de meios de prova e neutraliza caso julgado formado nos despachos de 11-02-2015 que admitiu o articulado de 2007 e que admitiu o rol respeitante ao articulado superveniente de 2007 e ainda o despacho de que admitiu a alteração de 17-4-2017.
10. A não audição dos meios de prova, do articulado superveniente não faz sentido, pois não se trata de repetição do rol, trata-se de um direito que a Autora tem de inquirir mais 7 testemunhas aos novos factos da base instrutória nem que seja para provar a superveniência.
11. Em obediência ao princípio da economia processual e oficiosidade, o Tribunal deveria ter ouvido as testemunhas antes de indeferir o articulado superveniente, pelo que deve o presente recurso, ser julgado com o recurso que vier a ser interposto na decisão final.
12. É evidente que o despacho recorrido causa grave prejuízo à prova da Apelante, pois amputa ao julgamento 10 anos de factualidade, aos autos.
13. A decisão recorrida, viola de forma reiterada o princípio da atualidade e o caso julgado, vertido na decisão do Tribunal da Relação de Évora de 23-5-2014, que ordenou novo julgamento, com as mesmas partes, sendo o requerido apesar de falecido em 2012, já devidamente representado por sentença transitada em julgado, nos termos dos artigos 1174.º, 1175.º, 1176.º do C.Civil e artigo 16.º e 19.º do CPC na redação da Lei 49/2018.
14. A Autora tem interesse no recurso, pois caso seja interposto recurso da sentença final, o Tribunal terá de analisar a questão prévia de análise da admissão do articulado superveniente.
15. Caso isso, não aconteça o processo será julgado apenas a factos respeitantes ao ano de 2006 ou seja, até à venda da Herdade da (…) pelo falecido requerido, omitindo pronúncia sobre o testamento, doações e movimentação de contas bancárias durante a pendência.
16. Perante a sentença final de inutilidade dos autos, notificada em 12-02-2019, todos os motivos do indeferimento caem pela base com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, artigo 26.º, nºs 1 e 2, onde se constata e se reforça o cariz de Jurisdição Voluntária do atual procedimento.
17. O novo regime impõe que nos artigos 902.º e 903.º do CPC que atos praticados que não estejam em consonância com as medidas de acompanhamento são anuláveis, quando posteriores ao registo do acompanhamento, ou depois de anunciado o início do processo desde que haja decisão final nesse sentido e os atos sejam prejudiciais ao acompanhado.
18. A 14 de agosto de 2018 foi publicado o Regime Jurídico do Maior Acompanhado (Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), que substitui os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação previstos no Código Civil, prevendo um novo conjunto de medidas aplicáveis a adultos que, por doença, deficiência ou pelo seu comportamento, estejam impossibilitados de plena, pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres.
19. Neste sentido, a Lei n.º 49/2018 veio alterar, entre outros, o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código de Registo Civil e o Código de Processo Penal, entrando em vigor em fevereiro de 2018 (180 dias após a sua publicação) sendo que entrou em vigor no dia 10 de Fevereiro de 2019.
20. Ora, no caso concreto, caso seja revogada a sentença notificada em 12-2-2019, o Tribunal, tem o poder-dever de averiguar a fundo e oficiosamente, todos os atos prejudiciais ao acompanhado (ex-interditando/inabilitando) – cfr. 902.º e 903.º onde se exige a relação de bens e a anulação de todos os atos que prejudicaram o acompanhado (in casu, o requerido).
21. O Tribunal tinha e tem, em face da nova lei, o poder-dever de pelo menos, analisar os factos constantes do articulado superveniente, facilmente constataria o “rasto de destruição” do património do requerido, com doações (após deixas testamentárias) e “vendas” que deram origem a outro processo pendentes na Comarca do Redondo, porque o Requerido prometeu a uns e vendeu a outros, demonstrando prodigalidade de gestão danosa do seu património com prejuízo para o próprio como se constata pelo falecimento ocorrido.
22. O Tribunal da 1ª Instância não podia estar mais errado na sua decisão de indeferimento que se impugna, pois basta ver a sequência dos pedidos sucessivos de articulados supervenientes desde 2017, para se perceber que a apresentação da peça processual foi atempada por nunca ter sido marcada audiência prévia, e além disso se tinha dúvidas sobre a superveniência, o Tribunal só tinha de ouvir as testemunhas arroladas pela Recorrente nos articulados supervenientes, apresentados atempadamente, ou seja, nos 10 dias após a marcação do julgamento de 2017 e nos 10 dias após a marcação julgamento de 2018.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se o articulado superveniente apresentado a 19/04/2017 é admissível.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar, para além daqueles reportados supra:
1 - Os presentes autos de interdição/ inabilitação foram instaurados a de 18 de abril de 2005.
2 - A 10 de Abril de 2007 foi selecionada a matéria de facto assente e elencados os factos levados à base instrutória.
3 - A 26 de Abril de 2007 a Requerente apresentou articulado superveniente invocando a venda da Herdade da (…) pelo Requerido por valor muito inferior ao valor real, o que se deveu à debilidade física e mental de que padecia.
4 – Tal articulado foi rejeitado, por intempestivo.
5 - A requerente interpôs recurso do despacho que indeferiu a admissão do articulado superveniente por si apresentado.
6 - Foram aditados factos à base instrutória, tendo tido lugar a audiência de julgamento.
7 - O Requerido (…) faleceu a 14 de abril de 2012.
8 - Foi determinado o prosseguimento do processo, conforme requerido.
9 - A ação foi julgada improcedente.
10 - A requerente interpôs recurso da sentença proferida.
11 - O Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão em 22 de maio de 2014 revogando, para além do mais, o despacho que não admitiu o articulado superveniente e, consequentemente, anulando todos os atos processuais subsequentes ao mesmo, nomeadamente, o julgamento e sentença final proferida.
12 - Volvido o processo à 1.ª Instância, em 11 de fevereiro de 2015 foi proferido o despacho alusivo aos temas da prova relativamente aos factos trazidos à colação no articulado superveniente apresentado a 26 de abril de 2007, tendo sido ordenada a produção de prova.
13 - Em 24 de Março de 2017 foi designada nova audiência de julgamento para as datas 9 e 10 de maio do mesmo ano, posteriormente desconvocada na sequência de novo articulado superveniente junto pela requerente na data de 19 de abril de 2017.

B – O Direito
Com vista a prover a economia processual e em consonância com o regime inserto no artigo 611.º do CPC, nos termos do qual deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no omento do encerramento da discussão, é admissível a apresentação de articulado superveniente nos moldes estatuídos no artigo 588.º do CPC.
Assim, até ao encerramento da discussão, pode a parte a quem aproveitem deduzir os factos supervenientes que, segundo o direito substantivo aplicável, interessam à boa decisão da causa em articulado posterior ou em novo articulado – cfr. artigo 588.º/1 e 4, do CPC. Consideram-se factos supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos dos articulados (superveniência objetiva), como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos devendo, neste caso, produzir-se prova da superveniência (superveniência subjetiva) – cfr. artigo 588.º/2, do CPC.
Decorre do citado regime legal que a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes preconizada no artigo 611.º do CPC se opera a partir dos factos supervenientemente alegados pelas partes, observado que seja o disposto no artigo 588.º do CPC, cabendo ainda considerar outros factos conforme dispõe o artigo 5.º/2, do CPC, cumprido que seja o contraditório consagrado no artigo 3.º/3, do CPC.
Temos em mãos a questão de saber se são supervenientes os factos alegados no articulado apresentado pela Requerente a 19/04/2017. Na verdade, como se colhe do despacho recorrido, apenas tal aspeto está em causa, e não já a questão de saber se o articulado foi oferecido nos momentos processuais fixados no n.º 3 do artigo 588.º do CPC.
Importa tomar em consideração o último articulado apresentado pela Requerente, o articulado superveniente de 27/04/2007; neste, teve a Requerente oportunidade de carrear para o processo os factos constitutivos do direito que alega, os factos que até aí se tinham verificado e de que tinha conhecimento.
Ora, a Requerente invocou serem os factos objetivamente supervenientes, apelando à necessidade de adequar o processo ao tempo decorrido, impondo-se considerar os factos ocorridos desde a apresentação dos articulados e do anterior articulado superveniente, a 27/04/2007 – cfr. artigos 1.º a 6.º do articulado superveniente de 19/04/2017.
Compulsado, no entanto, tal articulado, constata-se que apenas os factos atinentes à venda da Herdade do (…), em 13/12/2010, e à condição física e psíquica do Requerido nessa altura, é que constituem factos objetivamente supervenientes ou seja, factos ocorridos posteriormente a 27/04/2007. Estes são factos cuja alegação é admissível em sede de articulado superveniente, nos termos previstos no artigo 588.º do CPC. Deverão, pois, ser atendidos os factos invocados nos artigos 83.º a 87.º do articulado em causa.
Quanto ao mais:
A outorga de testamento pelo Requerido teve lugar a 17/11/2005. Trata-se de facto que não é objetivamente superveniente; será de atender como facto subjetivamente superveniente caso a Requerente tenha alegado e demonstrado que dele apenas teve conhecimento após 27/04/2007. Constata-se, porém, que a Requerente alegou tão só que teve lugar a outorga do testamento sem que a Requerente soubesse – cfr. art. 11.º do articulado e causa. Trata-se, desde logo, de uma alegação vaga; a Requerente afirma que não soube, a 17/11/2005, que teve lugar a outorga do testamento mas não afirma em que data e por que meio teve disso conhecimento, não permitindo se conclua que apenas teve conhecimento após 27/04/2007. E não havendo alegação da superveniência subjetiva, é desprovido de sentido apurar se apresentou prova a produzir quanto a essa superveniência: a prova destina-se a demonstrar a realidade dos factos (cfr. artigo 341.º do CC), factos esses que hão de constar alegados no processo.
Regista-se, ainda assim, que o Tribunal de 1.ª Instância, no exercício do princípio da cooperação consagrado no art. 7.º do CPC, auscultou a Requerente no sentido de saber se do requerimento probatório apresentado no final do articulado em causa faz parte algum meio de prova que tenha em vista demonstrar a superveniência subjetiva. Ao que a Requerente não respondeu afirmativamente. Ora, ainda que se considerasse ter sido invocada a superveniência subjetiva da matéria factual em causa, certo é que a Requerente não cumpriu o ónus que sobre si recaía de produzir prova da superveniência. Prova essa que, contrariamente ao sufragado pela Recorrente, não constitui objeto de atuação oficiosa.
Termos em que os factos atinentes à outorga do testamento não são de admitir a coberto do disposto no art. 588.º do CPC.
Relativamente aos levantamentos de quantias bancárias durante o ano de 2005, é manifesto que não se trata de matéria factual objetivamente superveniente. Com relevância para a superveniência subjetiva, constata-se que apenas relativamente a um deles, no valor de € 14.000,00, vem invocado que teve lugar sem o conhecimento da Requerente – cfr. artigo 29.º do articulado em causa. Ora, valem aqui os argumentos explanados supra quanto à outorga do testamento: trata-se de uma alegação vaga, que não permite aferir em que momento a Requerente teve conhecimento do levantamento de tal quantia monetária; logo, não foi alegada a superveniência subjetiva; ainda que assim não fosse, não obstante a conduta de cooperação adotado pelo Tribunal de 1.ª Instância, certo é que a Requerente não evidenciou prova a produzir no sentido da superveniência subjetiva.
Donde, os factos atinentes aos levantamentos bancários de verbas monetárias no ano de 2005 não são de admitir a coberto do disposto no artigo 588.º do CPC.
Os levantamentos de quantias bancárias no ano de 2006 provenientes da venda da Herdade da (…) e a doação de imóveis e de direitos operada em 28/02/2007 não são factos objetivamente supervenientes, pois não são factos ocorridos posteriormente à data da apresentação do anterior articulado, a 27/04/2007. E não são factos subjetivamente supervenientes pois não foi invocado, muito menos comprovado, que deles a Requerente só teve conhecimento após 27/04/2007.
Donde, os factos atinentes aos levantamentos bancários de verbas monetárias no ano de 2006 e à doação de imóveis e de direitos operada em 28/02/2007 não são de admitir a coberto do disposto no artigo 588.º do CPC.
Mais invoca a Requerente, no articulado superveniente em apreço, as patologias, as debilidades físicas e psíquicas de que padecia o Requerido, desde 2005, e que são consideradas como causa dos atos de disposição de bens do seu património, atuando de forma pródiga, dissipando o seu património em prejuízo da sua pessoa. Devem ser considerados tais factos na medida em que sejam indicados como verificados após 27/04/2007, pois são objetivamente supervenientes, já que a superveniência subjetiva, o conhecimento de tais factos apenas em momento posterior, nem sequer foi alegada.

Procedem, assim, parcialmente as conclusões da alegação do presente recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida relativamente à matéria factual atinente à venda da Herdade do (…) e às patologias, às debilidades físicas e psíquicas de que padecia, desde 27/04/2007, o Requerido.

As custas recaem sobre a Recorrente e o Recorrido (respetiva herança) na proporção de metade – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida na parte atinente à venda da Herdade do (…) e às patologias, às debilidades físicas e psíquicas de que padecia, desde 27/04/2007, o Requerido, impondo-se a consideração de tal factualidade alegada no articulado superveniente oferecido a 19/04/2017.

Custas pela Recorrente e o Recorrido (respetiva herança) na proporção de metade.

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Évora, 14 de janeiro de 2021
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos