Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1983/15.1T8PTM-A.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
NULIDADE
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Os arts. 27.º do Código de Processo do Trabalho e 411.º do Código de Processo Civil impõem ao juiz um poder-dever de agir oficiosamente, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer.
II – Porém, a consagração do princípio do inquisitório no Código de Processo do Trabalho, complementado com o que consta sobre esse princípio no Código de Processo Civil, não pode ser analisado isoladamente, devendo, pelo contrário, ser interpretado de acordo com as limitações inerentes aos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes, razão pela qual aquele apenas deve operar no âmbito em que estes não sejam de aplicar.
III – Assim, o juiz apenas deve recorrer ao princípio do inquisitório, quanto a meios de provas, se os mesmos se afigurarem necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, mas apenas quanto a factos de que lhe seja lícito conhecer, e se, de algum modo, a não apresentação ou solicitação desses meios de prova pela parte que deles beneficia não resulte de um comportamento grosseira ou indesculpavelmente negligente dessa parte.
IV – Verificando-se que se impunha ao julgador, ainda que oficiosamente, ordenar a pratica de determinada diligência de prova (por tal diligência ser fundamental para o apuramento da verdade dos factos, se reportar a facto alegado e a sua não solicitação pela parte que dela beneficia não representar um ato de grosseira e indesculpável negligência), a omissão desse poder-dever de indagação oficiosa, constitui uma nulidade, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por influir manifestamente na decisão da causa.
V – Essa nulidade, por ter sido sancionada pela decisão recorrida, é impugnável através de recurso e não da reclamação prevista no n.º 1 do art. 199.º do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1983/15.1T8PTM-A.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A requerente “Fidelidade – Companhia de Seguros, SA.”, entidade responsável nos autos emergentes de acidente de trabalho (que constitui o processo principal, do qual este é apenso), veio, nos termos do art. 152.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, deduzir incidente de caducidade do direito a pensão da beneficiária AA, solicitando, a final, que seja declarada extinta por caducidade do direito à pensão anual e vitalícia da requerida, viúva da vítima de acidente de trabalho, em razão da união de facto, retroagindo os respetivos efeitos à data do evento extintivo ocorrido, se não antes, pelo menos ao mês de janeiro de 2017.
Para o efeito, e em síntese, alegou que a beneficiária AA vive, desde janeiro de 2017, em união de facto com BB, tendo constituído morada comum na Rua ..., Edifício ..., ..., em ..., onde vivem permanentemente em comunhão de mesa, leito e habitação, tendo a mesma morada fiscal, sendo a morada da segurança social coincidente, apresentando-se ambos juntos em diversos locais públicos, à vista de todos, como uma família e um verdadeiro casal, sendo conhecidos como tal na vizinhança e restante comunidade.
A requerida veio apresentar contestação, pugnando pela improcedência do incidente, por não provado, sendo a requerida absolvida do pedido.
Alegou, em síntese, que não vive em união de facto com BB, visto que não vive em comunhão de mesa, leito e habitação com o mesmo, não tendo ambos nem a mesma morada fiscal, nem a mesma morada junto da segurança social.
Referiu ainda que confirmava o facto de o referido BB ser seu namorado.
Em resposta, a requerente veio requerer as seguintes diligências de prova:
a) Notificação da NOS Comunicações S.A[2] (com sede na Rua Actor António Silva, 9, 1600-404 Lisboa), da Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais S.A (com sede na Av. D. João II, n.º36, 8º, Parque das Nações, 1998-017 Lisboa, da MEO – Serviços de Comunicações e Multimédia S.A (com sede na Av. Fontes Pereira de Melo, n.º40, 1069-300 Lisboa) da Nowo Communications S.A (com sede na Alameda dos Oceanos, Lt 2.11.01 E, 1998-035 Lisboa) para que venham aos autos informar se celebraram algum contrato de telecomunicações com a Requerida AA (NIF ...96) e/ou com o seu companheiro BB, a fim de apurar a morada associada aos respectivos contratos;
b) Notificação da Águas do Algarve S.A com sede na Rua do Repouso, n.º10, 8000-302 Faro, para que venha aos autos informar se celebrou algum contrato de abastecimento de água com a Requerida AA (NIF ...96) e/ou com o seu companheiro BB, a fim de apurar a morada associada aos respectivos contratos;
c) Notificação da Endesa Energia S.A – Sucursal em Portugal (com sede na Quinta da Fone, Edifico D. Manuel I, Piso 0, Ala B; 2770-203 Paço de Arcos) e E-Redes Distribuição de Eletrecidade S.A. (Rua Camilo Castelo Branco, n.ç43, 1050-044 Lisboa) para que venham aos autos informar se celebrou algum contrato de fornecimento de energia elétrica, com a Requerida AA (NIF ...96) e/ou com o seu companheiro BB, a fim de apurar a morada associada aos respectivos contratos.
O Ministério Público promoveu, para além das diligências já solicitadas pela requerente, ainda:
- a pesquisa na base de dados do Tribunal, de modo a apurar informação sobre a morada da Requerida (AA, portadora do NIF ...96) e de BB;
- a requisição à Autoridade Tributária para juntar aos autos informação sobre a morada fiscal da Requerida (AA, portadora do NIF ...96) e de BB e a data a partir da qual consta tal morada;
- a requisição ao Instituto da Segurança Social para juntar aos autos informação sobre a morada da Requerida (AA, portadora do NIF ...96) e de BB e a data a partir da qual consta tal morada;
O tribunal a quo deferiu as diligências promovidas.
Em face da informação da “NOS” de que o tribunal tinha, pelos seus próprios meios, acesso à informação requerida, em 06-12-2023, foi junto pelo tribunal ao processo a informação da “NOS” a indicar existir, nessa data, um contrato em nome de BB, cujo local de fornecimento é na Rua ..., Edifício ..., ..., ... ....
Esta informação foi notificada à requerente e à requerida nada tendo sido requerido.
Efetuado o julgamento, foi proferido despacho final em 08-01-2024 com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, julga-se improcedente o incidente deduzido por “Fidelidade – Companhia de Seguros S.A.” contra AA.
Custas pela requerente/seguradora, por ter ficado vencida.
Registe e notifique.
Inconformada com o despacho final proferido, veio a requerente interpor recurso, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
1 - Tendo tomado conhecimento de que a Recorrida, beneficiária de pensão por morte do sinistrado falecido nos autos principais, vive em união de facto com o companheiro BB com quem mantém uma relação amorosa, desde Dezembro 2016, a ora Recorrente deduziu o incidente de caducidade do direito à pensão nos termos do disposto no artigo 152º do CPT.
2 - Não obstante a prova produzida e que aponta, inequivocamente, no sentido de que a Recorrida há muito que vive em união de facto com BB, pelo menos, desde 2020, o douto Tribunal “a quo” entendeu que não ficou demonstrado que a comunhão de leito, mesa e habitação entre aqueles, começou há mais de dois anos, tendo, por isso, declarado improcedente o incidente deduzido.
3 - A ora Recorrente não se pode conformar com a Decisão proferida, porquanto, salvo o devido respeito, toda a prova carreada nos autos, assim como o sentido normal das coisas, as regras de experiência comum e os depoimentos contraditórios e incongruentes da Recorrida e de BB, deveriam ter sido suficientes para que o Meritíssimo Juiz “a quo” considerasse, sem margem para dúvidas, que a Recorrida vive em união de facto com BB, namorado de longa data, desde, pelo menos, 2020.
4 – Ficou provado na Decisão em crise, mormente nos pontos 1.4 e 1.5 dos Factos provados, a seguinte factualidade:
“1.4 Desde data não apurada, mas pelo menos a partir de Dezembro de 2016, a requerida AA apresenta-se publicamente como tendo uma relação amorosa com BB.
1.5 A partir de data não apurada, a requerida passou a coabitar com BB na Rua ..., em ... em comunhão de mesa, leito e habitação. “
5 – Ora, não obstante considerar que a Recorrida tem uma relação amorosa com BB e que vivem ambos em comunhão de mesa, leito e habitação na Rua ..., o Tribunal a “quo”, não deu como provado que tal comunhão da Recorrida com o companheiro, perdura desde, pelo menos, 2020!
6 - Para além dos factos dados como provados que, do ponto de vista da ora Recorrente, já seriam, por si, suficientes para se concluir pela união de facto, existem vários elementos nos autos que, quiçá, não foram devidamente apreciados e ponderados.
7 - Na página da rede social Facebook da Recorrida, foi publicado a 05 de Novembro de 2020 (por isso, há bem mais de 2 anos) uma fotografia em que a Recorrida refere que nesse dia seria o companheiro BB, a fazer o jantar (nesse sentido vide documento n.º3 junto com o requerimento inicial – o qual não foi impugnado pela Recorrida).
Ora atendendo a esta declaração pública feita pela Requerida, é por demais óbvio que ambos vivem em comunhão, pelo menos, de mesa, o que de forma objetiva, remonta a Novembro de 2020.
8 - Contrariamente a esta factualidade, veio o companheiro da Recorrida, na audiência do passado dia 23.11.2023, referir, sob juramento, que nunca fez refeições habituais em casa da Requerida! Em que ficamos afinal? Parece óbvio que tanto a Requerida como o companheiro, pretendem tapar o sol com a peneira e pintar um cenário, que de todo, não existe.
9 – Em sede de audiência, o companheiro da Recorrida logrou referir que ao longo de mais de 7 anos de relação com a Requerida, apenas uma vez ou outra dormiu na casa daquela. Ora, a ser assim e chamando à colação o depoimento do CC da Recorrida, testemunha DD que referiu que viu roupas e sapatos de BB em casa da Recorrida, questiona-se, para que precisaria este de ter roupas na casa da Recorrida, se apenas uma vez ou outra durante 7 anos, pernoitou com a Recorrida naquele local?
10 - Resulta igualmente dos autos, mormente do documento número sete junto com o requerimento inicial (o qual não foi igualmente impugnado pela Recorrida) de que já a 21 de Agosto de 2020, o carro pessoal de BB, de matrícula ..-NJ-.. encontrava-se estacionado junto à residência da Requerida, denotando que há muito não havia sido retirado daquele lugar, o que, atesta, desde logo, que desde, pelo menos, àquela data, Recorrida e companheiro já viviam juntos em comunhão de mesa, leito e habitação na residência da Recorrida.
11 – A Recorrida e o seu companheiro não vieram ao Tribunal contar a verdade, porquanto afirmaram em sede de audiência, que não viviam juntos, não obstante nos termos do contrato de fornecimento de comunicações que BB celebrou com a “NOS” a morada associada ao mesmo, é a morada onde reside a Recorrida.
12 - Poderia e deveria o douto Tribunal “a quo”, ao abrigo dos princípios da oficiosidade e descoberta da verdade material, ter ordenado a notificação da operadora “NOS” para que viesse aos autos informar desde quando é que no contrato que comunicações celebrado com BB, está associada a morada da Recorrida, isto é, a Rua ... em ...-
13 - Não obstante o ónus da prova da verificação dos requisitos da união de facto, pertencer à Recorrente, a verdade é que não faz sentido impor sobre esta uma autêntica prova impossível ou diabólica, até porque admitir isto, seria exigir que a Recorrente produzisse prova testemunhal que entrasse na residência comum e referisse desde que data efetiva é que Recorrida e Companheiro, vivem em comunhão de mesa, leito e habitação.
14 – Atendendo a toda a prova produzida, as regras da experiência comum e o sentido normal das coisas impunham decisão diferente, ou seja, a declaração da união de facto da Recorrida com BB, (pelo menos, desde 2020) e, consequentemente, a procedência do Incidente.
15 – Caso V/Exas. assim não entendam, o que por mera hipótese de patrocínio se admite, a ora Recorrente vem, muito respeitosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662º n.º1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1º n.º2 a) do Código de Processo do Trabalho, requer a baixa do presente processo à 1ª instância, a fim de ser reaberta a audiência de inquirição de testemunhas, para que a operadora NOS Comunicações S.A (com sede na Rua Actor António Silva, 9, 1600-404 Lisboa) venha aos autos informar desde que data é que ao contrato de telecomunicações celebrado com BB, consta como morada associada a Rua ..., em ..., isto é, o domicilio da Recorrida, factualidade que permitiu ao Tribunal “a quo” dar como provado o ponto 1.5 da Decisão em crise.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser concedido provimento ao presente Recurso de Apelação, devendo a Decisão recorrida ser revogada e:
a) Ser declarada a união de facto e, por isso, julgado procedente o incidente de caducidade do direito à pensão da Recorrida;
ou
b) Caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, ao abrigo do disposto no artigo 662º n.º1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1º n.º2 a) do Código de Processo do Trabalho, deverão os autos ser devolvidos à 1ª instância, a fim de ser reaberta a audiência de inquirição de testemunhas, para que a operadora NOS Comunicações S.A (com sede na Rua Actor António Silva, 9, 1600-404 Lisboa) venha aos autos informar desde que data é que ao contrato de telecomunicações celebrado com BB, consta como morada associada a Rua ..., em ..., isto é, o domicilio da Recorrida, factualidade que permitiu ao Tribunal “a quo” dar como provado o ponto 1.5 da Decisão em crise
Fazendo-se, assim, a tão acostumada JUSTIÇA!
A beneficiária não apresentou contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, e, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, tendo a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer, pugnando pela rejeição do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
A recorrente veio responder, pugnando pela procedência do recurso.
O recurso foi admitido nos seus precisos termos, e, após a ida dos autos aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Impugnação da matéria de facto; e
2) Violação do princípio do inquisitório.
III – Matéria de Facto
O tribunal da 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1.1 Por acordo judicialmente homologado de 7/10/2016 ficou a ora requerente “Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A.” obrigada a pagar à ora requerida AA, enquanto beneficiária por morte de EE com quem vivia em união de facto há mais de dois anos, uma pensão anual e vitalícia no montante de €2.699,59, devida desde 29/07/2015, até perfazer a idade de reforma por velhice, actualizável a partir de data, ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho.
1.2 A requerida AA nasceu no dia ../../1991.
1.3 A requerida AA reside na Rua ..., em ..., onde tem morada fiscal e onde está inscrita como beneficiária da Segurança Social.
1.4 Desde data não apurada, mas pelo menos a partir de Dezembro de 2016, a requerida AA apresenta-se publicamente como tendo uma relação amorosa com BB.
1.5 A partir de data não apurada, a requerida passou a coabitar com BB na Rua ..., em ... em comunhão de mesa, leito e habitação.
E deu como não provados os seguintes factos:
2.1 Desde Janeiro de 2017 a requerida vive permanentemente com BB, em comunhão de mesa, leito e habitação.
2.2 Têm a mesma morada fiscal.
2.3 Na Segurança Social a morada de ambos é coincidente.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso são as questões supra elencadas.
1 – Impugnação da matéria de facto
Considera a recorrente que o facto provado 1.5 deveria ser alterado,[3] passando a constar que “Desde, pelo menos, 2020, a requerida passou a coabitar com BB na Rua ..., em ... em comunhão de mesa, leito e habitação”, em face do depoimento da testemunha DD e dos documentos 3 e 7 juntos com o requerimento inicial.
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a recorrente, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016:[4]
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Por sua vez, e quanto às exigências previstas no art. 640.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, importa referir que a jurisprudência tem vindo a entender que mesmo que não se mostre indicada com exatidão as passagens da gravação do depoimento da testemunha que a recorrente considera relevantes para a impugnação fáctica que peticiona, ou mesmo quando não procede sequer à indicação do início e do termo dessa gravação, é de admitir a impugnação da matéria de facto desde que a recorrente tenha procedido à transcrição das partes que considera relevantes no depoimento invocado.
Cita-se, a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 23-05-2018:[5]
I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, enuncie a decisão alternativa que propõe e, tratando-se de prova gravada, que indique com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido.
II – Tendo a recorrente omitido a indicação precisa do início e do termo das concretas passagens da gravação visadas, mas tendo no corpo das alegações procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados, cumpriu suficientemente o ónus imposto pelo art. 640º, nºs 1, al. b) e 2, al. a) do Código de Processo Civil.

Na realidade, aquilo que releva é que, quer a parte contrária quer o tribunal consigam identificar, com precisão, aquilo que a testemunha disse e que, no entender da recorrente, pode fundamental determinada alteração fáctica.[6]
No caso em apreço, a recorrente, para além de não ter indicado onde se encontravam gravadas as partes relevantes do depoimento da testemunha DD, nem o início e o termo de tal gravação, também não procedeu a qualquer transcrição desse depoimento, limitando-se a referir genericamente que tal testemunha referiu ter visto roupa e sapatos de BB em casa da recorrida. Afigura-se-nos, portanto, que tal menção genérica não cumpre os requisitos mínimos para admitir que a invocada impugnação fáctica possa recorrer à audição de tal depoimento, pelo que se rejeita a impugnação fáctica na parte que se reporta à gravação do julgamento.
Diga-se, no entanto, que estando em causa na alteração fáctica pretendida apenas a data em que a coabitação entre a requerida e BB se iniciou, a referência, não datada, à existência de roupa e sapatos deste em casa daquela em nada alteraria o facto provado 1.5.
Assim, passaremos a analisar a pretendida alteração fáctica, no que aos documentos 3 e 7, juntos com o requerimento inicial, diz respeito.
Pretende a recorrente que se dê como provado que a coabitação de mesa, leito e habitação entre a requerida e BB existe, pelo menos, desde 2020.
Ora, para além dos documentos indicados não terem força probatória plena, resultando, por isso, a sua contextualização dos depoimentos ocorridos em sede de julgamento, cujos requisitos para a respetiva audição não se mostram cumpridos, sempre se dirá, que tais documentos, por si só, nada provam relativamente à data do início da coabitação entre a requerida e o referido BB.
Efetivamente, resultando dos autos, no facto provado 1.4 que, pelo menos, a partir de dezembro de 2016, a requerida e o referido BB têm uma relação amorosa, não é de estranhar que, no dia 5 de novembro de 2020, este tenha feito o jantar para os dois (conforme consta na página de facebook da requerida – documento 3 junto com o requerimento inicial).
De igual modo, em face da circunstância de ambos terem uma relação amorosa, também não é de estranhar que a viatura automóvel, com a matrícula ..-NJ-.., cuja apólice de seguro esteve em nome de BB, se encontrasse, em 21-08-2020, estacionado à porta da residência da requerida (conforme fotografia que consta como documento 7 junto com o requerimento inicial).
Pelo exposto, não procede a impugnação fáctica pretendida pela recorrente.
2 – Violação do princípio do inquisitório
Refere a recorrente que o tribunal a quo poderia e deveria, ao abrigo dos princípios da oficiosidade e descoberta da verdade material, ter ordenado a notificação da operadora “NOS” para que viesse aos autos informar desde quando é que no contrato que comunicações, celebrado com BB, está associada a morada da Recorrida.
Mais referiu que, não obstante o ónus da prova da verificação dos requisitos da união de facto recair sobre si, verdade é que não lhe pode ser imposta uma autêntica prova impossível ou diabólica, ou seja, exigir que a recorrente produzisse prova testemunhal que entrasse na residência comum e referisse desde que data efetiva é que recorrida e companheiro, vivem em comunhão de mesa, leito e habitação.
Dispõe o art. 27.º do Código de Processo do Trabalho que:
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz deve, até à audiência final:
a) Mandar intervir na ação qualquer pessoa e determinar a realização dos atos necessários ao suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação;
b) Convidar as partes a completar e a corrigir os articulados, quando no decurso do processo reconheça que deixaram de ser articulados factos que podem interessar à decisão da causa, sem prejuízo de tais factos ficarem sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.

Dispõe, por sua vez, o art. 411.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral,[7] que:
Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Na realidade, os arts. 27.º do Código de Processo do Trabalho e 411.º do Código de Processo Civil impõem ao juiz um poder-dever de agir oficiosamente, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer. Porém, a consagração do princípio do inquisitório no Código de Processo do Trabalho, complementado com o que consta sobre esse princípio no Código de Processo Civil, não pode ser analisado isoladamente, devendo, pelo contrário, ser interpretado de acordo com as limitações inerentes aos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes, razão pela qual aquele apenas deve operar no âmbito em que estes não sejam de aplicar. Assim, o juiz apenas deve recorrer ao princípio do inquisitório, quanto a meios de provas, se os mesmos se afigurarem necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, mas apenas quanto a factos de que lhe seja lícito conhecer, e se, de algum modo, a não apresentação ou solicitação desses meios de prova pela parte que deles beneficia não resulte de um comportamento grosseira ou indesculpavelmente negligente dessa parte.
Conforme bem refere Lopes do Rego em Comentários ao Código de Processo Civil:[8]
O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes.

Em igual sentido, cita-se o sumário do acórdão proferido em 26-10-2021, no âmbito do processo n.º 852/20.8T8FIG-A.C1:[9]
1. Desde a fase da instrução do processo (art.ºs 410º e seguintes do CPC) até à sentença (art.º 607º, n.º 1 do CPC), o juiz poderá/deverá realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.º 411º do CPC).
2. Salvaguardado o dever de imparcialidade (equidistância), tal poder-dever, inerente ao indeclinável compromisso do juiz com a verdade material, emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e da tempestividade dessa iniciativa).
3. Ponderados os princípios do dispositivo, do inquisitório e da auto-responsabilidade das partes, situações de conduta grosseira e indesculpavelmente negligente da parte (v. g., na junção tempestiva dos documentos) poderão ditar a inobservância daquela regra.

Efetuada esta apreciação jurídica, importa, então, verificar o caso concreto.
Na situação que ora nos ocupa, a recorrente solicitou, aquando da apresentação do requerimento inicial, entre outros elementos de prova, a notificação da “NOS” para informar se celebraram algum contrato de telecomunicações com a Requerida e/ou com o seu companheiro BB, a fim de apurar a morada associada aos respetivos contratos.
Essa diligência foi deferida e apurou-se, em 06-12-2023, que existia um contrato em nome de BB, cujo local de fornecimento era a morada da requerida. Esta informação foi notificada às partes, designadamente à requerente, e nada mais foi requerido.
Em face de tal documento, o tribunal a quo considerou provada a existência de coabitação de BB com a requerida, na morada desta, desde data não apurada. De igual modo, perante a exigência constante do art. 1.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11-05, que determina que apenas há união de facto quando “duas pessoas, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”, por não ter sido apurada a data do início da coabitação, julgou improcedente o presente incidente.
É, por isso, incontestável que a data a partir da qual a requerida e BB vivem em condições análogas às dos cônjuges é fundamental para a apreciação da situação de união de facto, não bastando, por isso, que se prove que, em determinado momento, viveram ou vivem em condições análogas às dos cônjuges.[10]
No requerimento inicial a recorrente alegou que a requerida vivia em união de facto com o referido BB pelo menos desde janeiro de 2017, pelo que o requisito de dois anos se mostrava cumprido.
É verdade que o tribunal a quo considerou, e bem, que os elementos de prova carreados para os autos não permitiam determinar desde quando é que tal coabitação existia, porém, não era essa a convicção da requerente, pelo que, inclusive, resulta das alegações de recurso.
Deste modo, reconhecendo-se a existência de alguma negligência por parte da recorrente, ao não ter solicitado que o tribunal a quo requeresse junto da “NOS” informação sobre a data do início do contrato celebrado com o referido BB, afigura-se-nos que tal negligência não se revela nem grosseira nem indesculpável, tanto mais que era convicção da requerente que a prova existente nos autos era suficiente para que se desse como provada a coabitação pelo menos a partir de 2020.
Acresce que a referida diligência revela-se, não só fundamental ao apuramento da verdade dos factos e à justa composição do litígio, como também se insere no âmbito dos factos que foram colocados à apreciação do julgador (pois se o requerimento inicial indicava janeiro de 2017 como a data do início da coabitação, é lícito ao julgado conhecer a data do início dessa coabitação, ainda que a mesma se revele diversa).
Verifica-se, assim, que se impunha ao julgador, ainda que oficiosamente, proceder à indagação sobre a data da celebração do contrato do referido BB com a “NOS”, por tal informação ser fundamental para o apuramento da verdade dos factos, tendo sido o facto relativo ao início da relação conjugal alegado pela recorrente. Esta omissão do poder-dever de indagação oficiosa, prevista nos arts. 27.º do Código de Processo do Trabalho e 411.º do Código de Processo Civil, constitui uma nulidade, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por influir manifestamente na decisão da causa. Acresce que esta nulidade por omissão de ato processual que se impunha ao tribunal foi sancionada pela decisão recorrida, pelo que o meio correto para a invocar é o recurso e não a reclamação nos termos e prazos previstos no n.º 1 do art. 199.º do Código de Processo Civil.[11]
Pelo exposto, apenas nos resta concluir que, nesta parte, é de proceder a pretensão da recorrente, devendo, em consequência, ser anulada a decisão recorrida, por violação do disposto nos arts. 27.º do Código de Processo do Trabalho e 411.º do Código de Processo Civil, a qual deverá ser substituída por outra em que seja determinada a notificação da “NOS” para indicar a data em que foi celebrado o contrato em nome de BB, cujo local de fornecimento é na Rua ..., Edifício ..., ..., ... ..., bem como a eventual realização de quaisquer outras diligências que a 1.ª instância considere oportunas.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em anular a decisão recorrida, devendo a 1.ª instância determinar a notificação da “NOS” para indicar a data em que foi celebrado o contrato em nome de BB, cujo local de fornecimento é na Rua ..., Edifício ..., ..., ... ..., bem como a eventual realização de quaisquer outras diligências que a 1.ª instância considere oportunas, após o que proferirá novo despacho final.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 9 de maio de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
João Luís Nunes
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: João Luís Nunes.
[2] Doravante “NOS”.
[3] Ainda que tal alteração não se mostre expressamente peticionada, é o que resulta do teor das conclusões recursivas.
[4] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] No âmbito do processo n.º 27/14.5T8CSC.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Veja-se o acórdão do STJ, proferido em 03-11-2020, no âmbito do processo n.º 294/08.3TBTND.C3.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho.
[8] Almedina, 1999, p. 425.
[9] Consultável em www.dgsi.pt.
[10] Ver acórdão do TRE proferido em 13-12-2018 no âmbito do processo n.º 38/05.1TTPTM-A.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Veja-se o acórdão do TRC proferido em 14-10-2014 no âmbito do processo n.º 507/10.1T2AVR-C.C1, consultável em www.dgsi.pt.