Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
1. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de contraordenação em referência, por decisão de 14/12/2022, da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), foi a arguida C, Ld.ª condenada, pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. pelo artigo 31º, n.º 1, do Regulamento n.º 1907/2006, de 18 de dezembro e pelo artigo 11º, n.º 1 alínea j) do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13 de outubro, a título de negligência, nos termos do artigo 22º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29 de outubro (Lei Quadro das Contraordenações ambientais), por aplicação do disposto no artigo 23º-B da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, numa coima de €12.000,00 (doze mil euros).
1.2. A arguida impugnou judicialmente esta decisão administrativa.
1.3. Com a anuência da arguida não se realizou audiência de julgamento, sendo proferido despacho, nos termos do disposto no artigo 64º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO), em 02/05/2024, julgando improcedentes as nulidades invocadas pela arguida no recurso de impugnação judicial, e consequentemente, mantendo a decisão administrativa recorrida.
1.4. Inconformada com o assim decidido, a arguida interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«A. A douta sentença “a quo” violou, entre outros, os artigos 374º, n.º 2 e 379.º do Código de Processo Penal, artigo 1º do Código Penal e os princípios contraordenacional, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da nulla poena sine culpa, da adequação e da proporcionalidade.
B. O Tribunal “a quo” entendeu não julgar procedente a invocada nulidade da decisão administrativa por insuficiência dos factos provados para fundamentar a decisão proferida e por insuficiência dos factos acusados para aplicação da sanção.
C. Sucede que, depois de lida a matéria de facto constante da decisão administrativa, não se entolha a presença de uma descrição factual suficiente que permita formular um juízo de subsunção à norma que prevê a infração no que respeita ao seu elemento subjetivo, porquanto não resulta especificamente da matéria de facto dada como provada, facto que permita concluir que a arguida atuou com culpa ou sequer com negligência.
D. E pese embora não se ignore que o dever de fundamentação no âmbito dos processos contraordenacionais não seja tão exigente quanto o é nos processos de natureza criminal, a realidade é que isso não pode equivaler a uma ausência da indicação dos factos.
E. Não se pode olvidar que apesar de a impugnação judicial da decisão do artigo 58º do RGCO dar origem a um julgamento em primeira instância, não sendo, por isso, um recurso em sentido estrito, é indispensável que aquela decisão seja devidamente fundamentada de facto, desde logo para que seja idónea para cumprir uma das suas funções primordiais na fase judicial, que é a de delimitar o objeto do processo.
F. Ora, apesar de na respetiva fundamentação a autoridade administrativa ter aduzido argumentos para justificar a imputação da respetiva conduta à arguida/recorrente, designadamente os constantes das alíneas e) e f) da decisão administrativa, certo é que tais asserções são, com o devido respeito, conclusivas, porquanto a autoridade administrativa parte da afirmação de que “A arguida exerce atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu o Regulamento REACH, relativo à elaboração de FDS”, para logo de seguida concluir e afirmar, sem qualquer outra explicação, que “não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz…”.
G. Pois bem, estas conclusões que assentam exclusivamente no facto de a arguida/recorrente exercer uma atividade regulada por lei, não permitem, sem mais, asseverar a existência de factos suficientes para considerar preenchido o elemento subjetivo.
H. Por outro lado, a decisão administrativa não permite saber em que meios probatórios é que a autoridade administrativa se estribou para dar como provados aqueles concretos “factos”, designadamente para concluir que a arguida/recorrente não agiu com a diligência necessária e de era capaz.
I. Ora, o dizer-se que se fez uma análise crítica de toda a prova não significa que se tenha feito essa mesma análise, porquanto da decisão não consta que essa análise tenha sido feita, em ordem a perceber porque razão é que foram dados como provados os “factos” acima elencados.
J. Impunha-se, salvo o devido respeito, que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que a arguida não atuou com a diligência necessária e de que era capaz.
K. Por outro lado, mas não menos relevante, neste tipo de situações em que está em causa a condenação de uma pessoa coletiva, impõe-se também apurar o tipo de atuação da pessoa ou pessoas singulares responsáveis pela pessoa coletiva, para saber se a pessoa coletiva agiu com dolo ou a título de negligência, na medida em que existe uma incontornável e inevitável conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa singular responsável por esta.
L. Ainda que fosse essa a sua intenção, o douto Tribunal “a quo” não pode colmatar a nulidade constante da decisão administrativa, assim o ditando o artigo 283º do Código de Processo Penal.
M. Por outro lado, no ponto V da decisão administrativa, respeitante ao “Benefício económico”, consta que “No caso vertente considera-se não ter existido benefício económico uma vez que a Arguida não, originalmente, responsável pela correção da FDS”.
N. Ora, o Regulamento n.º 1907/2006, alterado pelo Regulamento 2015/830, de 28 de maio, ao referir-se a “fornecedor” do produto, pretende dirigir-se ao fabricante. Isto porque, este e só este, consegue fazer alterações à Ficha de Segurança.
O. Tal como consta da decisão administrativa e é reconhecido pela sentença a quo, a Recorrente, por não ser o fabricante do produto, não pode nem alterar os elementos constantes da ficha de segurança, tal como não é e não foi responsável pela sua elaboração.
P. O fabricante do produto é espanhol, estando representado em Portugal através de um revendedor (a R, Lda.), e só é possível comercializá-lo no nosso país, em virtude de estar devidamente autorizado pela Direção-geral de Veterinária, entidade competente para validar todos os elementos legais que a isso conduzem, designadamente, a FDS.
Q. Como bem refere a sentença a quo, “a sua autorização de venda, tem naturalmente como pressuposto, o cumprimento das regras de segurança do mesmo.”
R. Então se assim é, e sendo a Recorrente uma mera vendedora do produto, não lhe compete a si, pôr em causa elementos da ficha de segurança que estão garantidos pelo fabricante e revendedor, e validados pelas autoridades portuguesas.
S. Veja-se que, o que aqui está em causa, não é o facto de não ter sido fornecida a FDS ao consumidor do produto (aos Aviário da Q), o que foi e isso resulta dos autos, mas antes a falta de requisitos dessa mesma Ficha de Segurança, que não compete – nem pode – à Recorrente alterar, aditar, manipular.
T. A Recorrente tudo fez e diligenciou no sentido de comunicar a situação e ver alterada a FDS de acordo com as indicações dadas pela IGAMAOT, mas mais do que isso não podia fazer.
U. O Tribunal a quo ignorou totalmente, a prova feita nos autos, tal como fez errada interpretação da norma punitiva, acabando por punir uma entidade a quem não pode ser imputada a responsabilidade pelos elementos constantes da Ficha de Segurança do produto.
V. Mais ainda, pese embora a forte convicção de que não infringiu qualquer dispositivo legal, ainda assim, a Recorrente até equacionou a possibilidade de condenação.
W. Porém, dadas as circunstâncias, isto é, a manifesta impossibilidade de adaptar um documento que foi elaborado pelo fabricante e que apenas por este pode ser manuseado, que a Direção-geral de Veterinária conhecia a Ficha de Segurança e validou-a por forma a autorizar a comercialização do produto em Portugal, o facto de ter sido apenas uma a venda em causa nos autos, todas as diligências que fez no sentido de obter esclarecimento e resolução da situação, quando muito, e mesmo assim gravosa, a recorrente ponderou a aplicação de uma coima, porém, suspensa na sua execução.
X. Entendeu o douto Tribunal a quo não acolher este pedido da Recorrente, por entender que as finalidades da punição não comportam a aplicação deste instituto, porquanto “foi descoberta a desconformidade no âmbito de uma outra ação de fiscalização e a ficha de dados de segurança manteve a sua desconformidade”
Y. Reitera-se, uma vez mais, que a Recorrente não pode manipular um documento que é feita pelo fabricante do produto, e que só este pode modificá-lo, alterá-lo, atualizá-lo, de acordo com as normas europeias.
Z. Sucede, no entanto, que a Recorrente suspendeu a venda do produto, até que se encontrasse clarificada a situação, através da declaração do fabricante (junta aos autos).
AA. Portanto, ainda que a obrigação não esteja na dependência direta da Recorrente, a verdade é que ela foi sendo reposta, e por si feita a insistência junto do distribuidor nacional, com vista a obter os devidos esclarecimentos do fabricante, sobre a situação.
BB. Presumindo-se assim, a questão totalmente regularizada, ainda em data anterior à prolação da sentença e mesmo da decisão administrativa.
CC. Pelo que, também aqui, mal andou o Tribunal “a quo”, fazendo uma incorreta aplicação da lei.
DD. Acresce que o douto Tribunal conclui na aplicação de uma coima cujo valor é manifestamente superior aos rendimentos anuais da arguida, fazendo com que se conclua pela total ausência de avaliação de um dos requisitos de aplicação da coima, e que é, precisamente, a situação económica.
EE. A falta de clareza na descrição dos factos torna a decisão e a sentença recorrida nulas por violação do disposto nos artigos 58º, n.º 1 do RGCO e artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41º, n.º 1 do RGCO.
FF. Além de que, os factos mencionados não se subsumem na conduta típica constitutiva da contraordenação.
GG. Pelo que, se o Tribunal recorrido tivesse feito uma boa interpretação e aplicação da lei, a única decisão a extrair seria a absolvição da arguida da presente contraordenação ou, eventualmente, a aplicação de uma coima, embora suspensa na sua execução por um determinado período de tempo, assim ficando cumpridas as finalidades da punição.
Termos em que e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim, a acostumada JUSTIÇA!»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, formulado, a final, as seguintes conclusões:
«1.ª A decisão administrativa em apreço contém os elementos previstos no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, pelo que, como concluí a sentença recorrida, não padece de nulidade por falta daqueles elementos.
2.ª Os factos que consubstanciam a prática da contraordenação, p. e p. nos termos do art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento n.º 1907/2006, de 18 de Dezembro, e pelo artigo 11.º, n.º 1 alínea j) do Decreto-Lei n.º 293/2009, são geradores da responsabilidade coletiva nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, em que se integram os trabalhadores ao seu serviço, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, não implicando a necessidade de apurar a responsabilidade de uma pessoa singular.
3.ª A ora recorrente assume a qualidade de “fornecedor”, estabelecida no Regulamento n.º 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de Dezembro de 2006 para os efeitos do artigo 3.º ponto 32 e artigo 31.º, bem como para o Decreto-Lei n.º 293/2009 de 13 de Outubro.
4.ª A coima aplicada à ora recorrente não merece reparo, por se mostrar proporcional à gravidade dos factos, a conduta negligente mantida e às condições económicas da arguida.
Porém, Vossas Excelências não deixarão de fazer a habitual JUSTIÇA.»
1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não dever obter provimento, aderindo à argumentação expendida, pelo Ministério Público, em 1.ª instância, na resposta ao recurso.
1.8. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do CPP, não tendo a arguida/recorrente exercido o direito de resposta.
1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. art.º 412º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto nos artigos 41º, n.º 1 e 74º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
Tal não exclui o conhecimento oficioso dos vícios enumerados no artigo 410º, n.º 2, do CPP, quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou em sua conjugação com as regras da experiência comum, bem como das nulidades principais ou insanáveis, como tal tipificadas por lei.
In casu, atentas as conclusões extraídas da motivação do recurso, são suscitadas as seguintes questões:
- Nulidade da decisão administrativa por dela não constarem factos provados passíveis de integrarem os elementos subjetivos do ilícito contraordenacional imputado à arguida;
- Nulidade da decisão administrativa e do despacho recorrido, por insuficiência de fundamentação;
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não podendo ser dispensada a imputação de factos às pessoas físicas que conformaram a vontade da pessoa coletiva e determinaram a sua atuação;
- Erro de direito na interpretação do Regulamento n.º 1907/2006, alterado pelo Regulamento 2015/830, de 28 de maio, ao qualificar a arguida como “fornecedor”, posto que só pode ser qualificado como tal o “fabricante” e, consequentemente, ao imputar à arguida/recorrente a prática da contraordenação por que foi condenada;
- Suspensão da execução da coima aplicada.
2.2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«I – RELATÓRIO
C, LDA., NIPC 510853056, com sede na Rua (…..), veio
Impugnar judicialmente a decisão administrativa,
Proferida pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território,
Que a condenou no pagamento:
«da coima de €12.000,00 (doze mil euros), pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. nos termos do art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento n.º 1907/2006, de 18/12, e pelo artigo 11.º, n.º 1 alínea j) do DL n.º 293/2009, sancionável a titulo de negligência, nos termos do art.º 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29/08 ( Lei Quadro das Contraordenações ambientais), por aplicação do disposto no art.º 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29/08. e no pagamento das custas do processo no montante de €75,00 ao abrigo do art.º 58.º da Lei n.º 50/2006 de 29/08.
Alega para o efeito que, a decisão é completamente omissa quanto ao elemento subjetivo. A imputação de factos tem que ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar, e deve conter os elementos subjetivos do tipo do ilícito contraordenacional. No caso, a autoridade administrativa dá como provado que a FDS foi fornecida aos Aviários Q, mas que a mesma não estava conforme o disposto no n.º 1 do artigo 31.º do Regulamento REACH. Só que a situação é completamente diferente, sendo merecedora de outro enquadramento legal, daquela pela qual a recorrente vem acusada, e que é a de não ter fornecido a FDS.
Entende assim que, deve concluir-se pela nulidade da decisão recorrida, e nulidade do ato de acusação, por insuficiência dos factos provados para fundamentar a decisão proferida ou por insuficiência dos factos acusados para aplicação da sanção.
Por outro lado, ainda que se entendesse que a recorrente tem alguma responsabilidade, a decisão é nula por violação do princípio da proporcionalidade, atenta a coima aplicada. Isto porque, da decisão administrativa não resulta a verificação de qualquer dano ambiental decorrente das condutas.
Entende que, não é a recorrente, como vendedora de um medicamento, a quem compete avaliar se a FDS está ou não conforme, ou mandar corrigir o que quer que seja, quando a entidade que tutela a autorização de venda destes medicamentos, a Direção Geral da Alimentação e Veterinária, o não faz. De resto a venda do medicamento, “YODO,SP”, está autorizada em Portugal, logo e consequentemente, a FDS que a acompanha também. A recorrente como vendedor retalhista, comercializa aquele produto, porque está devidamente autorizado a faze-lo, e assegura apenas que a sua venda está permitida pela DGAV. Logo a recorrente, em momento algum, colocou em causa algum componente ambiente, cometeu grave dano ou colocou em risco pessoas ou bens.
Acrescenta que, sem prejuízo, a recorrente é apenas distribuidora do produto. Adquire junto dos fornecedores ou representantes das marcas, produtos previamente fabricados, embalados e prontos a comercializar, e que estejam devidamente autorizados a circular no mercado, como o “YODO,SP”. A FDS que a recorrente entregou aos Aviários Q no ato da venda do produto, estava atualizada, e devidamente autorizada pela DGAV. A recorrente é uma empresa autorizada pela DGAV, a vender a retalho medicamentos veterinários. Só o fabricante pode fazer atualizações necessárias e legais. A responsabilidade pela elaboração da ficha recai sobre quem fabrica e comercializa a substância. Pelo que, a responsabilidade não é da recorrente.
No limite e caso se apurasse a existência de algum comportamento menos diligente por parte da recorrente, dado que a situação não causou nenhum dano ambiental, e que em si mesma, não assume gravidade, sempre seria de equacionar a aplicação do instituto da suspensão da execução da coima, previsto no artigo 20-A da Lei quadro das Contraordenações Ambientais.
Requer assim a sua absolvição.
O Ministério Público remeteu os autos à distribuição.
O recurso foi admitido.
Notificado o Ministério Público e a Recorrente, ambos declararam que não se opõe a que a decisão seja proferida por mero despacho.
*** Da invocada nulidade da decisão administrativa:
A decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar. Como tal, no que respeita aos seus requisitos releva considerar o que dispõe o art.º 58.º do RGCO, que visa claramente assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso, sublinham os Consº Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58° “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercido desses direitos” - Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 3° ed., Lisboa, 2006, pág. 387.
Assim, a decisão administrativa deve obedecer ao disposto no art.º 58.º do RGCO. Não se prevê, nesta disposição legal a consequência processual da falta de requisitos da decisão, pelo que, a propósito devem aplicar-se os preceitos do processo criminal, relativos às decisões condenatórias, em consonância com o art.º 41.º, n.º 1 daquele diploma. Assim, a falta dos requisitos previstos no n.º 1 constitui a nulidade da decisão de harmonia com o preceituado nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 378.º, n.º 1 alínea a) do CPP.
Entende a recorrente ser nula a decisão administrativa por ser totalmente omissa no que respeita à factualidade que integra o elemento subjetivo da infração. Por outro lado, refere que a decisão não contem os factos dos quais possa resultar a prática, pela arguida da contraordenação.
Efetivamente, a decisão administrativa tem que conter a descrição dos factos imputados. – cf. art.º 58.º, n.º 1 alínea b) do RGCO. E o que é facto, é que, contrariamente ao alegado, estes constam da decisão proferida.
Dos factos com relevo para a decisão da causa, e que resultaram provados, começa por ser feita, nas alíneas a) a d), uma descrição dos factos, que se referem ao que resultou da ação inspetiva, e ao contacto, que se seguiu, com a arguida, pelo facto da Ficha de Dados de Segurança do produto químico de designação comercial YODO S.P., pela mesma fornecido, não se encontrar em conformidade com o n.º 1 do artigo 31.º do Regulamento REACH, sendo descritas estas desconformidades. Por fim, e em concreto nas alíneas e) e f), é descrito o elemento subjetivo, referindo-se que, exercendo a arguida uma atividade industrial, tinha obrigação de cumprir o que consta do regulamento, relativo à elaboração da FDS, e não o tendo feito, não agiu com a diligencia necessária e de que era capaz. Assim se enquadrando o comportamento da arguida na negligência.
Como resulta evidente das referidas alíneas dos factos provados, são descritos factos concretos, e não genéricos. Por outro lado, contrariamente ao alegado, os referidos factos enquadram-se na desconformidade da FDS, e não com o facto de não a ter fornecido. Efetivamente o Aviário tinha a ficha na sua posse, e a questão centra-se na desconformidade da mesma, sendo este o enquadramento legal que foi feito pela autoridade administrativa.
Alega também a recorrente que, os critérios de fixação foram mal apreciados, e não se encontram fundamentados, o que gera a nulidade da decisão administrativa.
Não se vislumbra também a que falta de fundamentação a recorrente se pretende referir. Como claramente resulta da decisão administrativa, foi considerado o disposto no art.º 22.º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto, e consequentemente apreciada a culpa do agente, a gravidade da contraordenação, a sua condição económica e os benefícios obtidos com a prática.
Pelo que, improcede aqui também a referida omissão.
O estabelecimento dos requisitos constantes do art.º 58.º do RGCO, prendem-se com a necessidade de, em observância do comando previsto no nº 10 do art.º. 32º da Constituição da República Portuguesa, assegurar ao coimado o exercício efetivo do direito de defesa. Por isso, devem ter-se por verificados estes requisitos quando as indicações constantes da decisão bastem para permitir ao arguido o exercício da defesa (cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 5ª Edição, 2009, Vislis, Editores, pág. 454). O exercício do direito de defesa pressupõe, desde logo e além do mais, o conhecimento pelo visado dos factos que lhe são imputados, aqui se incluindo quer os factos objetivos ou exteriores, quer os factos subjetivos ou interiores. Todos eles devem, portanto, constar da decisão sob pena de nela [decisão] não ser imputada ao arguido, uma ‘completa’ contraordenação.
A decisão é clara e encontra-se exaustivamente fundamentada.
Face ao exposto, concluímos que a autoridade administrativa cumpriu integralmente o disposto no art.º 58.º do RGCO, assim, improcedendo a nulidade invocada.
Não existem outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que cumpra conhecer.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Os Factos
Factos provados da decisão administrativa:
1. Na sequência da ação de inspeção realizada pelo IGAMAOT, à instalação Aviário da Q, em 08.05.2019, que teve como objetivo a verificação do cumprimento das condições impostas pela Licença ambiental n.º 344/2009 e das obrigações previstas na restante legislação ambiental, foi solicitada a disponibilização da Ficha de Dados de Segurança (FDS) do produto químico de designação comercial “YODO S.P.” (FDS Versão 1, datada de 2015-03-05), adquirido à empresa C, Lda., ora arguida.
2. Analisado o FDS a arguida foi notificada para que evidenciasse os documentos infra:
- Versão FDS da mistura YODO, S.P, de acordo com as observações referidas no ofício com a referência S/06618/AMB/19, e dando integral cumprimento às disposições constantes do anexo II do Regulamento relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição dos produtos químicos (REACH), na sua atual redação e comprovativo de envio da nova versão da FDS à instalação Aviário da Q, ou comprovativo de compra do produto químico YODO SP e comprovativo de pedido de correção da FDS em análise ao fornecedor, nos moldes identificados na notificação, caso não fosse responsável pela elaboração da FDS.
3. A arguida apresentou resposta escrita em 08.10.2019.
4. Porém a arguida colocou no mercado a mistura de designação comercial “YODO S.P.”, classificada como perigosa “H314: Provoca queimaduras na pele e lesões oculares graves” e “H 318: Provoca lesões oculares graves”.
5. A arguida evidenciou a Ficha de Dados de Segurança (FDS) da mistura “YODO S.P.”, revisão 3, de 2016-07-14, sendo que continuam a não ser cumpridas as disposições do regulamento e legislação conexa: subsecção 19, na FDS indica-se, para um conjunto de propriedades, “Não disponível”, sem que seja apresentada qualquer justificação para essa referencia; subsecção 13.1.: neste campo deveriam ter sido identificadas as disposições da EU pertinentes em matéria de resíduos ou legislação nacional em vigor considerada relevante; secção 16: na medida em que se trata de uma mistura, deveria ter sido indicado o método de avaliação usado para efeitos de classificação.
6. A arguida enquanto responsável pela colocação no mercado de uma mistura classificada como perigosa, não assegurou o cumprimento da obrigação de fornecer a FDS ao destinatário da mistura “YODO, S.P.”, elaborada em conformidade com o Regulamento.
7. A arguida exerce a atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito, para o exercício da mesma, in casu, o Regulamento REACH, relativo à elaboração de FDS.
8. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.
9. A arguida, no ano de 2019, obteve um lucro tributável de €2.371,96.
Factos não provados da decisão administrativa:
Não resultaram factos não provados.
Motivação da decisão de facto
Na impugnação apresentada a recorrente não sindicou os factos dados como provados, não se opondo a que a decisão fosse proferida por despacho.
Assim, a convicção do Tribunal quanto aos factos provados resulta da prova documental junta aos autos, em concreto, a notificação para atualização da ficha de dados, a ficha de dados de segurança, com data de revisão de 05.03.2015, fatura de venda do produto à OVO D`OURO, a resposta da recorrente, a informação n.º I/01983/AMB/20 elaborada pelo IGMAOT, que aprecia a resposta à referida notificação e a ficha de dados de segurança com data de revisão de 14.07.2016. Mais se considerou a declaração de IRC, Modelo 22, da arguida referente a 2019.
O Direito
O thema decidendum que cumpre solucionar será o de apurar se os factos provados são subsumíveis na prática das contraordenações imputadas à sociedade arguida e, bem assim, se devem proceder os seus argumentos apresentados que, porventura, possam excluir a sua responsabilidade pela prática de mesma.
O artigo 10 do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) estatui que “constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”. E o artigo 80, n.º 1 do RGCO que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos, com negligência”.
A recorrente foi condenada pela prática, a título negligente, de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. nos termos do art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento n.º 1907/2006, de 18/12, e pelo artigo 11.º, n.º 1 alínea j) do DL n.º 293/2009, sancionável a titulo de negligência, nos termos do art.º 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29/08 (Lei Quadro das Contraordenações ambientais), por aplicação do disposto no art.º 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29/08.
Sob a epigrafe requisitos aplicáveis à Ficha de Segurança, prevê o art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, que: “1. O fornecedor de uma substância ou preparação deve fornecer ao destinatário da substância ou preparação uma ficha de dados de segurança elaborada em conformidade com o Anexo II se:
a) A substância ou preparação em causa cumprir os critérios para a sua classificação como perigosa nos termos das Diretivas 67/548/CEE ou 1999/45/CE; ou
b) A substância em causa for persistente, bioacumulável e tóxica ou muito persistente e muito bioacumulável de acordo com os critérios estabelecidos no Anexo XIII; ou
c) A substância estiver incluída na lista estabelecida nos termos do n.º 1 do artigo 59.º, por outros motivos que não os invocados nas alíneas a) e b).”
Cumpre referir que, os requisitos para a elaboração das fichas de dados de segurança, estabelecidos no Anexo II, foram alterados pelo Regulamento 2015/830 de 28 de Maio de 2015, prevendo o artigo 2.º que as referidas fichas fornecidas a qualquer destinatário antes de 1 de Junho de 2015, se podiam manter e não tinham que cumprir o referido neste anexo, até 31 de Maio de 2017.
Retomando o disposto no Regulamento n.º 1907/2006, importa considerar que, no que respeita à definição de fornecedor, prevê o art.º 3, ponto 32 que para efeitos do mesmo, entende-se por: “Fornecedor de uma substância ou preparação: qualquer fabricante, importador, utilizador a jusante ou distribuidor que coloque no mercado uma substância — estreme ou contida numa preparação — ou uma preparação;” Por sua vez, por distribuidor entende-se qualquer pessoa singular ou coletiva estabelecida na Comunidade, incluindo um retalhista, que apenas armazene e coloque no mercado uma substância, estreme ou contida numa preparação, para utilização por terceiros.
Ainda, e em conformidade com:
- o ponto 13 do referido artigo 3.º, deve entender-se por utilizador a jusante: “qualquer pessoa singular ou coletiva estabelecida na Comunidade, que não seja o fabricante nem o importador, e que utilize uma substância, estreme ou contida numa preparação, no exercício das suas atividades industriais ou profissionais. Os distribuidores e os consumidores não são utilizadores a jusante. Os reimportadores isentos nos termos da alínea c) do n.º 7 do artigo 2.º são considerados utilizadores a jusante;”
- o ponto 34 como “Destinatário de uma substância ou preparação: um utilizador a jusante ou um distribuidor ao qual seja fornecida uma substância ou uma preparação;”
O DL n.º 293/2009, de 13 de Outubro, veio assegurar a execução das obrigações decorrentes do referido Regulamento, na ordem jurídica interna.
Com efeito, no art.º 11, sob a epigrafe “Contraordenações”, estipula que: “1 - Constitui contraordenação ambiental muito grave, punível nos termos da lei quadro das contraordenações ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, a prática dos seguintes atos: (…) j) O não cumprimento, pelo fornecedor de substância ou mistura, da obrigação de fornecer a ficha de dados de segurança ao destinatário da substância ou mistura, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro;”
Da conjugação das disposições transcritas, resulta que, sobre o fornecedor de uma substância ou preparação recai a obrigação de fornecer ao destinatário uma ficha de dados de segurança, elaborada em conformidade com o Anexo II, quando a referida substância ou preparação se enquadrar nas alíneas a) ou b) da referida disposição legal. A não conformidade da ficha de dados com o referido anexo, constitui o elemento objetivo do ilícito contraordenacional.
No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, pode o ilícito ser praticado a título doloso ou negligente.
No caso, resultou provado que, na decorrência de uma ação de inspeção realizada pelo IGAMAOT, à instalação Aviário da Quintinha, em 08.05.2019, foi solicitada a disponibilização da Ficha de Dados de Segurança (FDS) do produto químico de designação comercial “YODO S.P.” (FDS Versão 1, datada de 2015-03-05), adquirido à empresa C Lda., ora arguida. Verificadas desconformidades a recorrente foi notificada para as suprir.
A arguida colocou no mercado a mistura de designação comercial “YODO S.P.”, classificada como perigosa “H314: Provoca queimaduras na pele e lesões oculares graves” e “H 318: Provoca lesões oculares graves”. Após a notificação a arguida apresentou Ficha de Dados de Segurança (FDS) da mistura “ YODO S.P.”, revisão 3, de 2016-07-14, sendo que continuam a não ser cumpridas as disposições do regulamento e legislação conexa: subsecção 19, na FDS indica-se, para um conjunto de propriedades, “Não disponível”, sem que seja apresentada qualquer justificação para essa referencia; subsecção 13.1.: neste campo deveriam ter sido identificadas as disposições da EU pertinentes em matéria de resíduos ou legislação nacional em vigor considerada relevante; secção 16: na medida em que se trata de uma mistura, deveria ter sido indicado o método de avaliação usado para efeitos de classificação.
Com efeito as desconformidades com o anexo II ao Regulamento 2015/830, de 28 de Maio de 2015, mantiveram-se.
Destes factos resulta que, a Aviário da Quintinha, adquiriu à arguida/recorrente, o referido produto químico de designação comercial “YODO S.P”. Nesta relação a arguida/recorrente é fornecedora do referido produto. Recordando as referidas definições, para efeitos do mencionado Regulamento, fornecedor é também o distribuidor que coloque no mercado uma substância para utilização por terceiros. E enquanto fornecedor, é responsável pela sua colocação no mercado, tratando-se esta de uma mistura classificada como perigosa. Como tal, o art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, obriga a que forneça ao destinatário da substância uma ficha de dados de segurança elaborada em conformidade com o Anexo II.
Sucede que, resultou provado que a Ficha de Dados de Segurança (FDS) da mistura “YODO S.P.”, revisão 3, de 2016-07-14, continuava a não cumprir as disposições do regulamento e legislação conexa: subsecção 19, na FDS indica-se, para um conjunto de propriedades, “Não disponível”, sem que seja apresentada qualquer justificação para essa referencia; subsecção 13.1.: neste campo deveriam ter sido identificadas as disposições da EU pertinentes em matéria de resíduos ou legislação nacional em vigor considerada relevante; secção 16: na medida em que se trata de uma mistura, deveria ter sido indicado o método de avaliação usado para efeitos de classificação.
Pelo que assim se verificam os elementos objetivos do tipo: enquanto fornecedora, não forneceu ao utilizador do produto uma ficha de dados de segurança do produto - mistura perigosa - em conformidade com o referido anexo.
E mais se diga que, enquanto vendedora, e exatamente porque coloca no mercado o produto, é responsável pela entrega do FDS em conformidade com a legislação. Nada tem que ver com a Direção Geral da Alimentação Veterinária, pois não está em causa a autorização de venda do produto, mas antes o cumprimento das condições de segurança na venda do mesmo. Aliás, a sua autorização de venda, tem naturalmente como pressuposto, o cumprimento das regras de segurança do mesmo.
Verifica-se também o elemento subjetivo, a arguida enquanto responsável pela colocação no mercado de uma mistura classificada como perigosa, não assegurou o cumprimento da obrigação de fornecer a FDS ao destinatário da mistura “YODO, S.P.”, elaborada em conformidade com o Regulamento. A arguida exerce a atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito, para o exercício da mesma, in casu, o Regulamento REACH, relativo à elaboração de FDS. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, agindo assim de modo negligente.
Face ao exposto, atendendo à factualidade dada como provada, conclui-se estarem preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo da infração contraordenacional, qualificada como muito grave, imputada à arguida recorrente. - cf. art.º 11.º, n.º 1 alínea j) do DL 293/2009 de 13/10. *** III. MEDIDA DA COIMA:
Pela prática da referida contraordenação, foi aplicada à arguida, pela autoridade administrativa, uma coima no montante de €12.000,00.
Na verdade, a contraordenação ambiental muito grave, imputada à arguida recorrente, é punível, de acordo com o artigo 22º, n.º 4 alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, com coima, para as pessoas coletivas, de 24.000,00€ a 144.000,00€, em caso de negligência (e de 240.000,00€ a 5.000000,00€ em caso de dolo).
Entendeu a autoridade administrativa ser de atenuar especialmente a coima, em conformidade com o disposto no art.º 23.º A e B da referida Lei, por entender que a arguida demonstrou ter realizado diligências para assegurar o cumprimento dos requisitos legais da FDS, passando assim o montante mínimo para €12.000,00 e o máximo para €72.000,00.
A propósito da medida da coima, prevê o art.º 22.º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto: “1 - A determinação da coima e das sanções acessórias faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto. 2 - Na determinação da sanção aplicável são ainda tomadas em conta a conduta anterior e posterior do agente e as exigências de prevenção. (…)”
Cumprindo esta disposição legal, a autoridade administrativa apreciou a gravidade da contraordenação, referindo que é classificada como muito grave, assim assumindo um elevado grau de gravidade. A culpa, considerando que agiu de modo negligente, sendo esta consciente; situação económica atendeu ao lucro tributável no ano de 2019, de €2.317,96; e no que respeita ao benefício económico, considerou que a arguida não é originariamente responsável pela correção do FDS.
Apreciados estes elementos, como o impõe a referida disposição legal, fixou a coima em €12.000,00, ou seja, pelo mínimo.
Alega a recorrente que, ao aplicar-se a coima, foi violado o princípio da proporcionalidade, porque não se verifica qualquer dano ambiental decorrente das condutas.
Assegurar a promoção do bem-estar e da qualidade de vida, a efetivação dos direitos ambientais; a defesa da natureza e do ambiente e a preservação dos recursos naturais, constitui uma das tarefas fundamentais do Estado - cf. artigo 9.º, alíneas d) e e), da Constituição da República Portuguesa -, onde se inscreve a necessidade de tutela penal e contraordenacional, para proteção do bem jurídico ambiente, assente na ideia de prevenção dos perigos imediatos e concretos das agressões ao meio ambiente de causa natural e humana.
Consequentemente, a defesa do ambiente é, essencialmente, de índole preventiva que, para ser eficaz, reclama a intervenção de um direito de carácter repressivo ao serviço própria administração, como o é o direito de mera ordenação social.
A contraordenação praticada pela arguida, não exige a produção de dano ambiental, bastando, para a sua consumação, o perigo efetivo ou presumido de lesão do bem jurídico, pois é a situação de perigo que merece tutela, em ordem a evitar o resultado indissoluvelmente ligado ao bem jurídico que aquela visa proteger. Significando que, a ausência de dano, não exclui a ilicitude do facto.
Qualquer sanção só cumpre eficazmente as suas finalidades de orientação de condutas e de eliminação de infrações, quando há proporcionalidade entre a gravidade do facto e a sanção – cf. neste sentido, Oliveira Mendes e Santos Cabral in RGCOC, anotação ao art.º. 18. A classificação desta contraordenação como muito grave, e a ocorrência da infração no caso concreto, justifica a aplicação da referida coima, não se enquadrando na violação do referido principio da proporcionalidade.
Aliás, a presente situação nada tem que ver com o Acórdão que refere, no qual se menciona um comportamento contraordenacional sem gravidade ou de gravidade bagatelar ou insignificante.
Requer a arguida/recorrente que, a coima seja suspensa nos termos do art.º 20 A da mesma Lei.
Apreciando:
O art.º 29º da já citada Lei dispõe que “A lei pode, simultaneamente com a coima, determinar, relativamente às infrações graves e muito graves, a aplicação de sanções acessórias, nos termos previstos nos artigos seguintes e no regime geral das contraordenações”.
A este propósito, sob a epigrafe “suspensão da sanção”, prevê o art.º 20 A da Lei 50/2006, de 29 de Agosto (aditado pela Lei n.º 114/2015, de 28 de Agosto): “1 - Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas:
a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma; b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente.
2 - Nas situações em que a autoridade administrativa não suspenda a coima, nos termos do número anterior, pode suspender, total ou parcialmente, a execução da sanção acessória.
3 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.
4 - O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória. (…)”
Este é o regime atualmente em vigor quanto à suspensão da execução da coima em contraordenações ambientais.
No caso dos autos, a arguida atuou com negligência. Contudo, não podemos olvidar que, o produto foi vendido, foi descoberta a desconformidade no âmbito de uma outra ação de fiscalização e a ficha de dados de segurança manteve a sua desconformidade. Esta factualidade acentua a ilicitude da conduta e as exigências de prevenção geral, que já por si são significativas, considerando que o ambiente, é património de toda a comunidade.
Desta forma, entendemos que as finalidades da punição que não permitem a suspensão da execução da coima aplicada à Arguida/Recorrente.
Com efeito, bem andou a autoridade administrativa na decisão que proferiu, condenando a arguida/recorrente na coima de €12.000,00.
Face ao exposto, decide-se manter a decisão administrativa.*** Vencida no recurso de contraordenação, é a arguida responsável pelo pagamento das custas e demais encargos do processo - artigos 93º, nº 3 e 94º, nº 3 do Regime Geral das Contraordenações. *** IV. Dispositivo
Pelo exposto:
- Julgo improcedentes as nulidades invocadas.
- Decido manter a decisão administrativa e, consequentemente:
- Condenar a C, LDA., numa coima, especialmente atenuada, de €12.000,00 (doze mil euros), pela prática da uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. nos termos do art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento n.º 1907/2006, de 18/12, e pelo artigo 11.º, n.º 1 alínea j) do DL n.º 293/2009, sancionável a titulo de negligência, nos termos do art.º 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29/08 (Lei Quadro das Contraordenações ambientais).
Custas pela arguida que se fixam em 3 UC (art.º8.º n.º 7 e tabela III, do RCP).
(…).»
2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Da nulidade da decisão administrativa
Invoca a recorrente que a decisão administrativa enferma de nulidade, por dela não constarem factos provados passíveis de integrarem os elementos subjetivos do ilícito contraordenacional imputado à arguida/recorrente, nada constando da matéria de facto provada que permita concluir que a arguida atuou “com culpa ou sequer com negligência”.
Manifesta, ainda, a recorrente que tal decisão parede de nulidade, por falta de fundamentação, no respeitante aos meios probatórios em que aquela autoridade administrativa se estribou para concluir que a arguida/recorrente não agiu com a diligência necessária e de era capaz, sendo que a circunstância de a arguida/recorrente exercer uma atividade regulada por lei, não permite, sem mais, asseverar a existência de factos suficientes para considerar preenchido o elemento subjetivo.
Nessa conformidade, sustenta a recorrente que mal andou o Tribunal a quo, ao julgar improcedente a invocada nulidade da decisão administrativa e que, ao assim decidir, violou o disposto nos artigos 58º do RGCO, 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do CPP (aplicáveis ex vi do artigo 41º do RGCO).
Vejamos:
Está em causa nos autos, a imputação à arguida/recorrente de uma contraordenação, p. e p. pelo artigo 31º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, de 18 de dezembro[1] e pelo artigo 11º, n.º 1 alínea j) do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13 de outubro[2], a título de negligência, nos termos do artigo 22º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29 de outubro (Lei Quadro das Contraordenações Ambientais), aplicável ex vi do disposto no artigo 23º-B do mesmo diploma legal.
Dispõe o artigo 31º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, de 18 de dezembro, que: «O fornecedor de uma substância ou preparação deve fornecer ao destinatário da substância ou preparação uma ficha de dados de segurança elaborada em conformidade com o Anexo II se: a) A substância ou preparação em causa cumprir os critérios para a sua classificação como perigosa nos termos das Directivas 67/548/CEE ou 1999/45/CE; (…)
Por sua vez, preceitua o artigo 11º, n.º 1, al. j), do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 29 de outubro (doravante designado por LQCA), que: «Constitui contra-ordenação ambiental muito grave, punível nos termos da lei quadro das contra-ordenações ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, a prática dos seguintes actos: O não cumprimento, pelo fornecedor de substância ou mistura, da obrigação de fornecer a ficha de dados de segurança ao destinatário da substância ou mistura, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro;»
Por último, estatui o artigo 59º, n.º 8, da LQCA que a negligência punível.
Volvendo ao caso concreto e reportando-nos à questão suscitada pela recorrente agora em apreciação, analisada a decisão administrativa em apreço, valendo esta como acusação, na fase de impugnação judicial, tendo os autos sido apresentados, pelo Ministério Público, ao juiz – cf. artigo 62º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 17 de outubro, doravante designado por RGCO –, afigura-se-nos não assistir razão à recorrente.
Com efeito, entendemos que a decisão administrativa contém a descrição de factos bastantes para preencher o elemento subjetivo da contraordenação por cuja prática a arguida/recorrente, foi condenada, estando em causa a imputação, a título de negligência.
Concretamente, nos factos provados, no ponto 5, e) e f), consta que:
«5. A arguida enquanto responsável pela colocação no mercado de uma mistura classificada como perigosa, não assegurou o cumprimento da obrigação de fornecer a FDS ao destinatário da mistura “YODO, S.P.”, elaborada em conformidade com o Regulamento.
e) A arguida exerce a atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito, para o exercício da mesma, in casu, o Regulamento REACH, relativo à elaboração de FDS.
f) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.»
Importará ter-se presente que, como se refere no Acórdão da RL de 07/02/2023[3]:
«I - A decisão administrativa que aplica uma coima em processo de contraordenação, ainda que apresente “alguma homologia” com a sentença penal condenatória, não consubstancia uma verdadeira e própria sentença, nem é qualificada como tal pela lei, razão pela qual não tem que obedecer ao mesmo grau de formalismo exigido para aquela última.
II - Sendo que o correspondente dever de fundamentação terá também que ser perspetivado em função da natureza do respetivo tipo de ilícito, a fase em que a referida decisão se insere, e as caraterísticas de celeridade e simplicidade que caracterizam o correspondente processo.
III - Não se exige, pois, da entidade administrativa, uma concretização factual modelar e profundamente detalhada, sendo bastante, a esse nível, uma alegação de factos minimamente escorreita, passível de compreensão e alcance ao homem médio, quanto às condutas adotadas ou omitidas, circunstanciadas e contextualizadas no tempo, lugar e espaço, e o respetivo tipo de imputação subjetiva.»
Por outro lado, como se faz notar no Acórdão da RG de 26/02/2020[4] «Está suficientemente descrito o elemento subjectivo quando a decisão condenatória pela prática de contraordenação menciona que a arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir as suas obrigações legais, sendo certo que, quem exerce uma determinada actividade encontra-se obrigado a diligenciar pelo conhecimento das regras quer tutelam a mesma, uma vez que tal informação ou autoformação é pressuposto ou exigível a um normal e diligente empresarial, e a conclusão de facto de que a arguida agiu negligentemente, modalidade de culpa legalmente admitida para a infracção em questão.»
Secundando-se este entendimento e tendo em conta o teor da decisão administrativa, nos segmentos supra transcritos, forçoso será concluir que nela se encontram suficientemente descritos os factos necessários ao preenchimento do elemento subjetivo da contraordenação, por cuja prática a arguida/recorrente foi condenada, sendo a respetiva imputação feita, a título de negligência.
Na motivação da decisão de facto exarada na decisão administrativa são enunciadas as provas a que se atendeu para dar como assente a matéria factual elencada, referindo-se terem aquelas sido sujeitas a análise crítica, conjugada com as regras da experiência comum.
Neste contexto, atentos os factos enunciados da decisão administrativa, no ponto 5, e) e f), entendemos serem os mesmos suficientes para integrarem os elementos subjetivos do ilícito contraordenacional imputado à arguida/recorrente, a título de negligência.
Dito de outro modo, a descrição factual constante da decisão administrativa revela-se bastante para suportar a asserção de que a arguida/recorrente agiu com negligência.
Em matéria de contraordenações, a negligência terá de ser inferida/extraída dos factos que integram o comportamento objetivo em que se consubstancia a infração ou de outra factualidade coadjuvante[5].
Assim sendo, no caso em apreço, ante a factualidade descrita na decisão administrativa, a imputação da negligência e culpa, à arguida/recorrente, é resultante da omissão de um dever geral de cuidado ínsito à violação de norma ínsita no artigo 31º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, de 18 de dezembro, posto ser exigível, ao fornecedor/distribuidor das substâncias e misturas aí mencionadas, o conhecimento e o acatamento das regras legais vigentes, nesse domínio, dada a concreta atividade comercial exercida, no caso, o comércio a retalho de produtos e medicamentos veterinários.
Pelo exposto, concluindo-se não se verificar a ausência de descrição, na decisão administrativa, do elemento subjetivo, da contraordenação, cuja prática é imputada à arguida/recorrente, não ocorre a invocada nulidade dessa decisão, nem da acusação, por força da “equivalência” a que alude o artigo 62º, n.º 1, do RGCO, nem, com base nesse fundamento, a nulidade da sentença recorrida.
Improcede, pois, esta vertente, do recurso.
2.3.2. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Sustenta a recorrente que a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida não é suficiente para poder sustentar a sua condenação pela prática da contraordenação que lhe é imputada.
Neste enfoque, alega a arguida/recorrente que sendo uma pessoa coletiva impunha-se também apurar o tipo de atuação da pessoa ou pessoas singulares responsáveis por aquela, para que se pudesse aquilatar se a pessoa coletiva agiu com dolo ou a título de negligência. Na ótica da recorrente «existe uma incontornável e inevitável conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa singular responsável por esta».
Apreciando:
A enunciada questão, suscitada pela recorrente não foi colocada, na 1.ª instância, como poderia tê-lo sido, posto que, na decisão administrativa objeto de impugnação, a apontada omissão do não apuramento da pessoa ou pessoas singulares responsáveis pela sociedade arguida/ recorrente e da atuação da(s) mesma(s), já se verificava.
Tratando-se de uma questão nova, estaria, em princípio, vedado, a este Tribunal da Relação, que funciona como tribunal de revista, conhecer da mesma.
Sucede que a enunciada questão é suscitada sob a veste da arguição da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Por outro lado, há que atender à jurisprudência fixada pelo STJ, no Acórdão n.º 3/2019[6], no sentido de que «Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.»
Deve, pois, esta Relação conhecer da enunciada questão suscitada pela recorrente.
Vejamos, então:
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 410º do CPP, ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena (no domínio contraordenacional, da coima e/ou da sanção acessória), circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência.
O cerne da questão em apreciação, na vertente colocada pela recorrente, prende-se com a problemática da responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas e, concretamente, com a (des)necessidade da identificação da(s) pessoa(s) singular(es) que praticou(aram), por ação ou omissão, o facto típico, para que a pessoa coletiva possa ser responsabilizada.
Está em causa o modelo de imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva, previsto no artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
Dispõe o enunciado preceito legal que «As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.»
Esta matéria está longe de ser consensual, na doutrina e jurisprudência, sendo antes objeto de acesa controvérsia.
Com efeito, enquanto uns defendem que para haver responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva não é necessário que se identifique a pessoa física que praticou, por ação ou omissão, o facto típico, bastando que se prove ter esse facto sido praticado no âmbito da pessoa coletiva e não se prove a exclusão da sua responsabilidade, a qual se verificará quando tenha ocorrido violação de ordens ou instruções expressas de quem de direito, v.g., do legal representante da pessoa coletiva (artigo 11º, n.º 6, do CP, aplicável ex vi do disposto no artigo 32º do RGCO), ou o ato haja sido praticado no interesse exclusivo do agente que o perpetrou.
Em sentido contrário, defendem outros que a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva pressupõe necessariamente, uma conduta de um seu órgão ou representante, no exercício das suas funções, sendo, por isso, necessária a identificação da(s) pessoas físicas que praticaram o facto típico.
Sufragamos o primeiro dos enunciados entendimentos, o qual, atualmente, se afirma como maioritário, na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
Neste sentido, vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos, cujos sumários, nos segmentos que aqui relevam, se transcrevem:
- Acórdão da RL de 10/11/2020[7]:
«- Como resulta dos nºs 2 e 3 do artigo 46º, da Lei nº 25/2008, de 05/06, em vigor à data da prática dos factos e que constituía norma especial relativamente ao artigo 7º, nº 2, do RGCOC, está consagrada a responsabilidade directa da pessoa colectiva, não se condicionando a sua responsabilidade contra-ordenacional a prévia ou paralela responsabilização de pessoa singular, de onde não existir qualquer deficiência da decisão administrativa quando omite a identificação desta pessoa ou pessoas.
- A responsabilidade da pessoa colectiva só será excluída quando o agente actue, por iniciativa individual e autónoma, (que não em nome e interesse do ente colectivo), contra ordens ou instruções expressas daquela, como até expressamente veio a estabelecer-se no nº 2, do artigo 162º, da Lei nº 83/2017, de 18/08, que revogou a Lei nº 25/2008 (a responsabilidade da pessoa coletiva ou entidade equiparada a pessoa coletiva apenas é excluída quando o agente atue contra ordens ou instruções expressas daquela).
- A não identificação da pessoa física que perpetrou o facto ilícito ou o conjunto de pessoas que para ele contribuiu, na estrita medida em que tal não é elemento necessário à existência de responsabilidade de uma pessoa colectiva (por acção ou omissão) é irrelevante, bastando para tal que se estabeleça um nexo causal entre si e o acto ilícito e se não prove a exclusão da sua responsabilidade. Isto é, tudo se reconduz a uma questão de facto, no constatar que é possível imputar a ilicitude e a culpa a uma conduta da recorrente, qualquer que tenha sido o ator ou atores individuais. (…)»
- Acórdão da RC de 13/12/2023[8]:
«I - O modo de expressão da pessoa colectiva traduz uma verdadeira vontade colectiva capaz de dolo ou culpa, visto que é susceptível de ser dirigida tanto para actividades lícitas como para actividades ilícitas.
II - Por isso não carecem de ser identificadas as pessoas concretas que, agindo ou deixando de agir, foram responsáveis pela infracção imputada à pessoa colectiva.»
- Ac. da RC de 08/05/2024[9]:
«Para a responsabilização da arguida pelo cometimento de uma contraordenação por omissão, não se exige a identificação da pessoa física que concretamente cometeu a infração, já que a responsabilidade da pessoa coletiva não é uma imputação reflexa ou indireta, mas sim autónoma.»
- Acórdão desta RE de 05/03/2024[10]:
«(…)
II - No artigo 7º do RGCO consagra-se um modelo de imputação direta, autónoma e funcional da infração à pessoa coletiva, pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a contraordenação para que a mesma seja imputável àquela. E, assim sendo, as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações, não têm que ser indicadas na decisão condenatória proferida na fase administrativa do processo – entendimento que mereceu já a chancela do Tribunal Constitucional no que diz respeito à sua conformidade com a CRP – nem, consequentemente, na decisão judicial que a confirma. (…).»
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a questão, decidiu, no Acórdão n.º 566/2018, de 07/11/2018[11], «não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e artigo 45º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e dos artigos 50.º e 58º do citado Decreto-Lei n.º 433/82, igualmente aplicáveis por força do referido artigo 45.º, segundo a qual «em decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional não carecem de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações».
Como se escreve na fundamentação exarada no aludido aresto do TC «A questão de inconstitucionalidade suscitada é indissociável de uma alegada «deficiente imputação de responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva, face à falta de concretização de pessoas singulares que agiram em sua representação» (…)
Por ser assim, a mesma questão assenta num certo entendimento quanto ao modelo de imputação consagrado no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO – preceito segundo o qual as pessoas coletivas «serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções». O referido entendimento é o de que este último preceito prevê uma imputação autónoma ou direta da infração à pessoa coletiva, pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável à pessoa coletiva. E, assim sendo, «as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações» não têm de ser indicadas na decisão condenatória proferida na fase administrativa do processo.
«(…), sem prejuízo da discussão doutrinária no plano infraconstitucional, inexistem razões para questionar a interpretação extensiva do artigo 7.º, n.º 2, do RGCO realizada pelo tribunal a quo.
Na verdade, a mesma filia-se na orientação preconizada pelo Parecer n.º 11/2013 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 16 de setembro de 2013, pp. 28814 e ss.) – o qual, por sua vez, se baseia em anteriores decisões dos tribunais. Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais – a uma realidade institucional ou estatutária (…). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (v., a título meramente exemplificativo: o artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo – «centros institucionalizados de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva» –; e o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal - «entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código»).
Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva –, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade.
Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo; …).
Sufragando-se o enunciado entendimento quanto à imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva, como o é a arguida/recorrente, tratando-se de uma sociedade unipessoal, não sendo necessária a identificação da(s) pessoa(s) singular(es) que praticaram, por ação ou omissão, os factos típicos integrantes da contraordenação, para que possa ser responsabilizada e em face dos factos dados como provados na sentença recorrida, forçoso é concluir não se verificar, neste conspecto, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.
2.3.3. Do erro de direito
Alega a recorrente existir erro na interpretação do Regulamento n.º 1907/2006, alterado pelo Regulamento 2015/830, de 28 de maio, ao qualificar-se a arguida como “fornecedor”, posto que, no seu entender – estando em causa uma contraordenação por a Ficha de Dados de Segurança (FDS) fornecida ao consumidor do produto ter em falta requisitos que dela teriam de constar, em observância do disposto no artigo 31º, n.º 1, do referenciado Regulamento –, apenas pode ser qualificado como tal, o “fabricante”.
Em ordem a sustentar o entendimento preconizado, aduz a recorrente que, por não ser o fabricante do produto de que se trata, não pode alterar, aditar ou manipular, os elementos constantes da respetiva ficha de segurança, não sendo responsável pela sua elaboração.
O fabricante do produto é espanhol, estando representado em Portugal através de um revendedor (a R, Lda.) e só é possível comercializá-lo no nosso país, em virtude de estar devidamente autorizado pela Direção Geral de Veterinária, entidade competente para validar todos os elementos legais que a isso conduzem, designadamente, a FDS.
Conclui a recorrente que sendo uma mera vendedora do produto, não lhe compete a si, pôr em causa elementos da ficha de segurança que estão garantidos pelo fabricante e revendedor e validados pelas autoridades portuguesas e, consequentemente, não lhe poder ser imputada a prática da contraordenação por que foi condenada.
Salvo o devido respeito não assiste razão à recorrente.
Como se refere na sentença recorrida, para efeitos do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, atenta a definição de fornecedor constante do seu artigo 3º, ponto 32., sendo considerado como tal «qualquer fabricante, importador, utilizador a jusante ou distribuidor que coloque no mercado uma substância — estreme ou contida numa preparação — ou uma preparação», a arguida/recorrente, comercializando a substância em apreço, sob a designação comercial “YODO S.P.”, tem de ser qualificada como fornecedor, abrangendo esse conceito, designadamente, o distribuidor, cuja definição consta no ponto 14. do referenciado artigo 3º, como sendo, «qualquer pessoa singular ou colectiva estabelecida na Comunidade, incluindo um retalhista, que apenas armazene e coloque no mercado uma substância, estreme ou contida numa preparação, para utilização por terceiros.»
Por conseguinte, conquanto a arguida/recorrente não seja fabricante da substância de que se trata, mas comercializando-a, distribuindo-a, para utilização por terceiros, integra-se no conceito de fornecedor para os efeitos previstos no Regulamento n.º 1907/2006, alterado pelo Regulamento 2015/830, de 28 de maio,
Assim sendo, mostra-se correto o enquadramento jurídico-contraordenacional efetuado, merecendo-nos concordância as considerações expendidas na sentença recorrida, a esse propósito, que se transcrevem:
Resulta dos factos provados que «a Aviário da Q, adquiriu à arguida/recorrente, o referido produto químico de designação comercial “YODO S.P”. Nesta relação a arguida/recorrente é fornecedora do referido produto. Recordando as referidas definições, para efeitos do mencionado Regulamento, fornecedor é também o distribuidor que coloque no mercado uma substância para utilização por terceiros. E enquanto fornecedor, é responsável pela sua colocação no mercado, tratando-se esta de uma mistura classificada como perigosa. Como tal, o art.º 31.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, obriga a que forneça ao destinatário da substância uma ficha de dados de segurança elaborada em conformidade com o Anexo II.
Sucede que, resultou provado que a Ficha de Dados de Segurança (FDS) da mistura “YODO S.P.”, revisão 3, de 2016-07-14, continuava a não cumprir as disposições do regulamento e legislação conexa: subsecção 19, na FDS indica-se, para um conjunto de propriedades, “Não disponível”, sem que seja apresentada qualquer justificação para essa referencia; subsecção 13.1.: neste campo deveriam ter sido identificadas as disposições da EU pertinentes em matéria de resíduos ou legislação nacional em vigor considerada relevante; secção 16: na medida em que se trata de uma mistura, deveria ter sido indicado o método de avaliação usado para efeitos de classificação.
Pelo que assim se verificam os elementos objetivos do tipo: enquanto fornecedora, não forneceu ao utilizador do produto uma ficha de dados de segurança do produto - mistura perigosa - em conformidade com o referido anexo.
E mais se diga que, enquanto vendedora, e exatamente porque coloca no mercado o produto, é responsável pela entrega do FDS em conformidade com a legislação. Nada tem que ver com a Direção Geral da Alimentação Veterinária, pois não está em causa a autorização de venda do produto, mas antes o cumprimento das condições de segurança na venda do mesmo. Aliás, a sua autorização de venda, tem naturalmente como pressuposto, o cumprimento das regras de segurança do mesmo.
Verifica-se também o elemento subjetivo, a arguida enquanto responsável pela colocação no mercado de uma mistura classificada como perigosa, não assegurou o cumprimento da obrigação de fornecer a FDS ao destinatário da mistura “YODO, S.P.”, elaborada em conformidade com o Regulamento. A arguida exerce a atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito, para o exercício da mesma, in casu, o Regulamento REACH, relativo à elaboração de FDS. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, agindo assim de modo negligente.
Face ao exposto, atendendo à factualidade dada como provada, conclui-se estarem preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo da infração contraordenacional, qualificada como muito grave, imputada à arguida recorrente. - cf. art.º 11.º, n.º 1 alínea j) do DL 293/2009 de 13/10.»
Ressalvado o devido respeito, não pode proceder a argumentação da recorrente no sentido de que não sendo ela a fabricante do produto em causa não podia alterar a respetiva FDS, designadamente, aditando-lhe os assinalados requisitos em falta, fazendo notar que tal FDS foi aceite pela DGAV, autoridade que regula a comercialização dos produtos em questão, sem nunca ter sido levantada qualquer advertência sobre as omissões e/ou inexatidões que tal FDS pudesse conter.
À Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), no âmbito das suas competências – respeitantes à saúde e proteção animal, à sanidade vegetal e à regulamentação e coordenação do controlo alimentar –, entre elas, a de proceder à autorização, controlo e inspeção do fabrico, da comercialização e da utilização dos medicamentos veterinários, biocidas de uso veterinário e alimentos medicamentosos para animais, não cabe proceder à certificação, validação ou homologação das FDS, quando exigidas, em termos de aquilatar se observam, ou não, todos os requisitos legalmente previstos.
Por outro lado, verificando-se a falta de algum dos requisitos, que devem constar da ficha de dados de segurança de uma determinada substância ou mistura, em conformidade com o Anexo II, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro e se, por qualquer razão, não for possível ao fornecedor colmatar essa omissão, por forma a poder cumprir a obrigação de fornecer tal ficha ao destinatário da substância ou mistura, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, não lhe restará outra alternativa que não seja a de não distribuir/fornecer essa substância ou mistura a terceiros, pois que, de outro modo, se frustrariam as finalidades tidas em vista com a imposição da obrigação de fornecimento da FDS ao destinatário dessa substância ou mistura, estando em causa a proteção da saúde humana e do ambiente contra os riscos das substâncias e misturas químicas perigosas.
Poderia colocar-se a questão da existência de erro por parte da arguida/recorrente, relativamente à conformidade da FDS de que se trata. Contudo, a recorrente não o invoca e, como tal, nada há a apreciar nesse conspecto.
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.
2.3.4. Da suspensão da execução da coima
Sustenta a recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao não acolher a pretensão que formulou de suspensão da execução da coima, por entender que as finalidades da punição não comportam a aplicação deste instituto, porquanto “foi descoberta a desconformidade no âmbito de uma ação de fiscalização e a ficha de dados de segurança manteve a sua desconformidade.”
Enfatizando não poder manipular um documento (FDS) elaborado pelo fabricante do produto, sendo que apenas este pode alterá-lo, atualizá-lo, de acordo com as normas europeias, aduz a recorrente que suspendeu a venda do produto em causa, até que se encontrasse clarificada a situação, através da declaração do fabricante, que fez juntar aos autos, presumindo-se a situação regularizada, ainda em data anterior à prolação da sentença recorrida e mesmo da decisão administrativa.
Apreciando:
Desde logo, importará referir que o montante da coima em que a arguida/recorrente foi condenada, €12.000,00 (doze mil euros), sendo a coima especialmente atenuada e aplicada pelo mínimo (cf. artigos 22º, n.º 4, al. b), 23º-A, n.º 1 e 23º-B, todos da LQCA), a ponderação da situação económica da arguida/recorrente – apenas se tendo provado que, no ano de 2019, obteve um lucro tributável de €2.371.96 –, nunca poderia conduzir à redução do quantitativo da coima fixado.
Relativamente à suspensão da execução da sanção, preceitua o artigo 20º da LQCA, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que:
«1 - Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas:
a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma;
b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente.
2 - Nas situações em que a autoridade administrativa não suspenda a coima, nos termos do número anterior, pode suspender, total ou parcialmente, a execução da sanção acessória.
3 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.
4 - O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória.
(…).»
O Tribunal a quo fundamentou a decisão de não suspensão da aplicação da coima, nos seguintes termos:
«(…) a arguida atuou com negligência. Contudo, não podemos olvidar que, o produto foi vendido, foi descoberta a desconformidade no âmbito de uma outra ação de fiscalização e a ficha de dados de segurança manteve a sua desconformidade. Esta factualidade acentua a ilicitude da conduta e as exigências de prevenção geral, que já por si são significativas, considerando que o ambiente, é património de toda a comunidade.
Desta forma, entendemos que as finalidades da punição que não permitem a suspensão da execução da coima aplicada à Arguida/Recorrente.»
Que dizer?
A questão de saber se a aplicação pela autoridade administrativa de uma sanção acessória constitui condição necessária/imprescindível para que possa haver lugar à suspensão da aplicação/execução da coima, nos termos previstos no artigo 20º da LQCA, é objeto de controvérsia jurisprudencial.
Certo setor da jurisprudência defende que a suspensão da aplicação/execução da coima só é admissível nos casos em que seja também aplicada e executada, em simultâneo, uma sanção acessória, sob pena de se esvaziar o artigo 20.º-A da LQCA de conteúdo útil, redundando numa solução que o legislador pretendeu afastar[12].
Outra corrente jurisprudencial entende que a circunstância de não ter sido aplicada pela autoridade administrativa uma sanção acessória, não é impeditiva de que o tribunal, em sede de apreciação da impugnação judicial, ao apreciar a pretensão do(a) arguido(a) de suspensão da execução da coima, possa equacionar e aplicar sanção dessa natureza, enquanto condição necessária para suspender a execução da coima[13].
Dentro desta orientação jurisprudencial, defendem alguns que nas situações, em que esteja em causa uma conduta que não haja causado dano ou perigo concreto para a saúde e em termos de impacto ambiental e em que o lesante, motu proprio, sanou ou repôs a situação anterior ainda antes da decisão que constatou a infração, não se tornando, por isso, necessário aplicar qualquer sanção acessória de reposição da situação anterior, nos termos previstos no artigo 31º, n.º 1, al. a), da LQCA e sendo esta a única sanção acessória como condição que se mostraria adequava a ser aplicada, é de admitir a suspensão da execução da coima, posto que «não faria sentido que não pudesse suspender-se a execução da coima, por se mostrar já cumprida e sem qualquer prejuízo ou risco de saúde e a relativa perturbação ambiental ter sido sanada.[14]»
Propendemos para a acolher a última posição.
Secundamos o entendimento acolhido na decisão sumária do TRL, de 19/02/2024[15], no sentido de que a ratio legis subjacente ao artigo 20º da LQCA, ao permitir a suspensão de uma coima, mediante a imposição de sanções acessórias, tem por único propósito alcançar-se o objetivo de, por via de uma ação do próprio transgressor, se proceder à reparação dos danos por si causados, dando-lhe um incentivo substancial (não pagamento da coima, no todo ou em parte), repondo-se, assim, a situação existente antes da prática da infração, à custa do próprio infrator.
Por conseguinte, como se refere nessa mesma decisão sumária «(…) sendo possível alcançar-se o juízo de prognose que a norma sindicada exige, só haverá lugar à necessidade de imposição de condições, em termos de sanção acessória, se a situação de reparação, à data da decisão, ainda não tiver ocorrido. O que não pode, de todo, é um cidadão, que até se esforçou por emendar a sua infracção, ser privado da possibilidade da sua coima ser suspensa, por não lhe poder ser aplicada uma sanção acessória, porque … já cumpriu o que lhe iria ser imposto.
O que a Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto (alterada pela Lei nº 114/2015, de 28 de Agosto que introduziu o art.º 20º-A) estabelece, no âmbito deste novo dispositivo, é a possibilidade da suspensão de execução da coima, desde que se verifiquem cumulativamente as condições previstas no nº 1, alíneas a) e b), do referido preceito.
Esse é o escopo da lei.
O mecanismo previsto para os casos em que tais requisitos se mostrem reunidos e a situação ainda não reparada, será através da imposição de uma sanção acessória, condicionada.
Mas não há que confundir instâncias – a imposição, repete-se da sanção acessória, é apenas um meio para alcançar um fim, reunidos que se mostrem os seus requisitos. Não é um fim em si mesmo, nem é a imposição da sanção o objectivo que o legislador pretendeu alcançar. (…).»
Tendo presentes as considerações expendidas e volvendo ao caso dos autos:
Resulta da factualidade provada que a Ficha de Dados de Segurança (FDS) da mistura “YODO S.P.”, revisão 3, de 2016-07-14, disponibilizada pela arguida/recorrente, não cumpria todos os requisitos previstos no referenciado Regulamento (CE) e legislação conexa. Concretamente, nassa FDS, subsecção 19, indica-se, para um conjunto de propriedades, “Não disponível”, sem que seja apresentada qualquer justificação para essa referencia; na subsecção 13.1.: neste campo deveriam ter sido identificadas as disposições da EU pertinentes em matéria de resíduos ou legislação nacional em vigor considerada relevante e secção 16, tratando-se de uma mistura, deveria ter sido indicado o método de avaliação usado para efeitos de classificação.
Vem a recorrente alegar, como já havia feito na impugnação judicial da decisão administrativa, ter suspendido a venda do produto «YODO S.P.» até que se encontrasse clarificada a situação, através da declaração do fabricante, que fez juntar aos autos, presumindo-se a situação regularizada, ainda em data anterior à prolação da sentença recorrida e mesmo da decisão administrativa.
Com a impugnação judicial da decisão administrativa, recorrente fez juntar aos autos, diversos documentos, entre os quais, a Ficha de Dados de Segurança, com data de revisão de 11/01/2023.
Sucede, que não constam da sentença recorrida quaisquer factos relativos ao alegado pela arguida/recorrente, nesse conspecto, não tendo sido emitido juízo probatório sobre os aludidos documentos juntos pela arguida/recorrente com a impugnação judicial.
Estando em causa matéria relevante para a decisão da causa, concretamente, para se poder aferir se deve ou não haver lugar à suspensão da execução/aplicação da coima, ao não emitir juízo probatório sobre os documentos juntos pela arguida/recorrente, com a impugnação judicial da decisão administrativa, entre os quais, uma FDS, com data de revisão de 11/01/2023, tendente a fazer prova do alegado em tal impugnação, no sentido de que a situação foi regularizada, ainda em data anterior à prolação da sentença recorrida e a consequente omissão, nesta última, da referência a essa factualidade, fazendo-a constar do elenco dos factos provados ou não provados, redunda em que a sentença recorrida enferme, nessa parte, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada[16], nos termos previstos no artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP.
Tratando-se de um vício de conhecimento oficioso, mas não estando este Tribunal da Relação, em condições de sanar esse vício, já que terá de ser o Tribunal a quo a emitir juízo probatório sobre os documentos juntos pela arguida/recorrente com a impugnação judicial, impõe-se, ao abrigo do disposto nos artigos 426º e 426º-A, ambos do CPP (aplicáveis no processo contraordenacional por força do disposto no artigo 41º, n.º 1, do RGCO), determinar o reenvio do processo, para novo julgamento, restrito à questão de facto enunciada, sem prejuízo de deverem ser extraídas as pertinentes consequências jurídicas da modificação da matéria de facto a que proceda, (re)ponderando-se se deve, ou não, ser decretada a suspensão da aplicação/execução da coima em que a arguida/recorrente é condenada, proferindo-se nova sentença, em conformidade.
Perante o acabado de decidir, fica inviabilizada a apreciação da questão da suspensão da aplicação/execução da coima.
3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas que compõem a Secção Criminal (2.ª Subsecção) deste Tribunal da Relação de Évora em:
a) Negar provimento ao recurso interposto pela arguida C, Ld.ª, na parte relativa à arguição de nulidades da decisão administrativa e da sentença recorrida e do erro de direito/subsunção jurídica dos factos provados e, em consequência, manter/confirmar a condenação da arguida/recorrente C, Ld.ª pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. pelo artigo 31º, n.º 1, do Regulamento n.º 1907/2006, de 18 de dezembro e pelo artigo 11º, n.º 1 alínea j) do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13 de outubro, a título de negligência, na coima (especialmente atenuada, nos termos do artigo 22º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29 de outubro, ex vi do disposto no artigo 23º-B da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto) de €12.000,00 (doze mil euros);
b) Julgar verificado, na sentença recorrida, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos sobreditos e determinar o reenvio do processo para novo julgamento, limitado à questão e finalidades enumeradas supra.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 14 de janeiro de 2025
Fátima Bernardes
Filipa Valentim
Renata Whytton da Terra
__________________________________________________
[1] Regulamento (CE) n.º 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH), que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, que altera a Directiva 1999/45/CE e revoga o Regulamento (CEE) n.º 793/93 do Conselho e o Regulamento (CE) n.º 1488/94 da Comissão, bem como a Directiva 76/769/CEE do Conselho e as Directivas 91/155/CEE, 93/67/CEE, 93/105/CE e 2000/21/CE da Comissão. Tal Regulamento teve em vista melhorar a proteção da saúde humana e do ambiente contra os riscos das substâncias e misturas químicas.
[2] Diploma que «Assegura a execução, na ordem jurídica nacional, das obrigações decorrentes do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição dos produtos químicos (REACH) e que procede à criação da Agência Europeia dos Produtos Químicos»
[3] Proferido no proc. n.º 118/22.9T8VLS.L1-5, in www.dgsi.pt.
[4] Proferido no proc. n.º 453/18.0T8VLN.G2, in www.dgsi.pt.
[5] Cf., entre outros, Ac. da RG, de 19/01/2023, proc. 1426/22.4T8VCT.G1, in www.dgsi.pt, que, embora respeitando a contraordenação laboral é válido estando em causa outras contraordenações, por via do regime geral contraordenacional aplicável
[6] Publicado no DR-124, Série I, de 02/07/2019.
[7] Proferido no proc. n.º 3638/18.6T8CSC.L1-5, in www.dgsi.pt.
[8] Proferido no proc. n.º 705/23.8T8GRD.C1, in www.dgsi.pt.
[9] Proferido no proc. n.º 1079/22.0T8GRD.C1, in www.dgsi.pt.
[10] Proferido no proc. n.º 2597/23.8T8FAR.E1, in www.dgsi.pt.
[11] Proferido no proc. n.º 336/18, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180566.html
[12] Neste sentido, cf., entre outros, Acórdãos da RP de 08/1/2020, proc. 1101/19.7Y2VNG.P1 e de 06/03/2024, proc. 361/21.0T9AVR.P2 e Ac. da RC de 13/9/2023, proc. 3612/22.8T9LRA.C1, in www.dgsi.pt.
[13] Cf., entre outros, Acórdãos da RC de 15/12/2016, proc. 121/16.8T8CDN.C1 e de 22/02/2023, proc. 1422/22.1T8GRD.C1 e Ac. da RG de 05/11/2018, proc. 291/17.8T8PVL.G1, in www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, cf., entre outos, Ac. da RP de 02/03/2022, proc. 2154/20.0T8GDM.P1
[15] Proferido no proc. 2638/23.9T9SNT.L1-3, in www.dgsi.pt.
[16] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. desta RE de 26/05/2020, proc. 94/18.2T8NIS.E1, in www.dggsi.pt. |