Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
113/24.3T8ADV.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: VEÍCULO DE CIRCULAÇÃO TERRESTRE
MATRÍCULA
FALSIDADE
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo formulado o pedido de declaração de nulidade do registo de matrícula com fundamento na falsidade do documento que instruiu o processo de regularização fiscal e de atribuição de matrícula (por a data nele constante como sendo a da 1.ª matrícula não corresponder à realidade), não se verifica o vício de falta de causa de pedir, tal como não se verifica o vício da contradição entre o pedido e a causa de pedir.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: Ministério Público
Recorrida / Ré: (…) – Transporte de Passageiros, Lda.

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o Ministério Público peticionou seja declarada a nulidade do registo automóvel de matrícula (…), nos termos dos artigos 16.º-B, n.ºs 3 e 5, do Código do Reg. Predial, para efeitos dos n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito legal, aplicável ex vi do artigo 29.º do DL n.º 54/75, de 12/02.
Para tanto, invocou o seguinte:
- o veículo de matrícula (…) é um autocarro de passageiros da R. que foi adquirido a (…), S.A., com sede em Trujillo, em Espanha;
- o referido veículo detinha a matrícula (…) Espanhola;
- no dia 10 de Outubro de 2013, foi apresentada na Alfândega do (…) documentação para dar início ao processo de regularização fiscal do referido veículo em Portugal;
- os documentos que instruíram o processo de regularização fiscal apresentam como data do registo da primeira matrícula 12 de Janeiro de 2005;
- o que implicou que, na declaração aduaneira e no documento único automóvel do veículo, conste como data da primeira matrícula a de 12 de Janeiro de 2005;
- apurou-se junto da Autoridades Espanholas que a primeira matriculação do veículo é datada de 17 de janeiro de 2001;
- o veículo é utilizado para o transporte coletivo de crianças e a data da primeira matrícula releva para efeitos de licenciamento para esse fim pelo IMT.
O M.º P.º atribuiu à ação, no formulário[1], o valor de € 30.000,10.
A R. contestou a ação pugnando pela respetiva improcedência, sustentando que não existe substrato probatório do alegado e que só no âmbito de um processo administrativo poderia ser caçada a licença da R.
O A. foi notificado para responder. Reiterou, então, a falsidade dos documentos que instruíram o registo, salientando que a ação visa a declaração de nulidade e consequente retificação do registo automóvel no que respeita à data da primeira matriculação do veículo.
O Ministério Público foi notificado para aperfeiçoar a petição inicial, para indicar quais os concretos atos de registo que estão, a seu ver, feridos de nulidade (relação registral que está ferida de nulidade, ou qual a decisão registral do conservador posta em causa nos autos), e para esclarecer se já foi efetuado algum ato em conformidade com o artigo 16.º-B, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
Em resposta, o Ministério Público indicou pretender seja declarada a nulidade do registo da data de 1ª matrícula, com n.º de ordem/ap. (…), em 19/10/2013, do veículo de matrícula (…). Mais esclareceu que, por despacho datado de 21/12/2023, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 16.º-B, n.ºs 1 e 2, do Código do Registo Predial e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro (registo da propriedade automóvel) e ordenada a anotação ao registo do veículo automóvel de matrícula (…).
Adiantando a ineptidão da petição inicial, nos termos previstos no artigo 186.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC e, bem assim, o erro na forma do processo, nos termos previstos no artigo 193.º, n.º 1, do CPC, as partes foram notificadas para se pronunciarem.
Respondeu o Ministério Público alinhando argumentos para que a ação prossiga até final, enquanto a R. sustentou verificar-se a ineptidão da petição inicial já que o pedido na presente ação é a declaração de nulidade do registo automóvel de matrícula (…), e não a retificação do registo automóvel no que concerne à data de primeira matriculação do veículo.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida decisão absolvendo a R. da instância com fundamento na nulidade do processo por ineptidão da petição inicial que, por sua vez, assenta na inexistência de causa de pedir e na contradição entre os fundamentos invocados e o pedido formulado – a retificação do registo.
O A. foi condenado em custas.
Foi fixado o valor à ação conforme segue:
«Fixa-se o valor da causa conforma indicado pela Autora: € 29.000,00 – artigo 301.º, n.º 1, do CPC.»

Inconformado, o Ministério Público apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine o prosseguimento dos autos, que fixe o valor da causa em € 30.000,01 e que o isente do pagamento de custas. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«i. O objeto do presente recurso reconduz-se às seguintes questões: I - Da não ineptidão da petição inicial; da contradição entre a fundamentação e a decisão – artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C.; e da omissão de pronúncia sobre uma questão que é dever do Tribunal a quo apreciar – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C.; II - Da nulidade da condenação do Ministério Público em custas; III - Da fixação do valor da causa em desconformidade com os critérios legais.
ii. Na Douta sentença recorrida decidiu-se estar verificada a ineptidão da petição inicial “(…) Assim, verifica-se uma verdadeira inexistência de causa de pedir (…)”.
iii. Contudo, na fundamentação da mesma sentença recorrida infere-se ter sido percepcionada pelo Tribunal a quo a causa de pedir: “(…) Mas será que a presente acção é apta a repor a fé pública aparentemente em desconformidade relativamente à 1.ª data de matrícula do veículo? Entende o tribunal que não. (…)”
iv. Os argumentos em que se alicerçou o Tribunal a quo para defender a pretensa desconformidade da causa de pedir e do pedido - “(…) Assim, verifica-se uma verdadeira inexistência de causa de pedir, e uma contradição intrínseca ou substancial entre o invocado e o pedido – invocada rectificação do registo. (…)” - não corresponde ao efectivo pedido constante da petição inicial que citamos:
“Pelo exposto, requer-se a V. Exa. a declaração de nulidade do registo automóvel de matrícula (…), nos termos dos artigos 16.º-B, n.ºs 3 e 5, do Código do Registo Predial e para os efeitos do artigo 16.º-B, n.ºs 1 e 2, do Código do Registo Predial e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro”.
v. Pelo que, no pedido da própria petição inicial não existe a contradição invocada pelo Tribunal para alicerçar a ineptidão.
vi. A este propósito, citamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo 81/14.0TBORQ.E1, de 22-03-2018, do Relator Tomé Ramião:
“3. Sendo pedida a declaração de nulidade, e não a retificação, do registo, será em função deste pedido que se deve aferir da competência do tribunal, ainda que eventualmente não se trate de nulidade mas de inexatidão do registo, sob pena de se conhecer do mérito da pretensão, em vez de questão processual prévia, a competência do tribunal, pois esse julgamento pressupõe a necessária competência para o efeito.”
vii. O que está aqui em causa é a validade do registo, competência dos Tribunais Judiciais, e não a validade do acto administrativo, pelo que, não concordamos com o Tribunal a quo quando refere:
“(…) Ora, partindo do pressuposto que pode existir a desconformidade invocada pelo Ministério Público, não sendo peticionada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira a rectificação da decisão administrativa que deu origem à matrícula portuguesa do referido veículo, e onde constam as enunciadas características de tal veículo, nomeadamente o 1.º ano de matrícula, nunca se mostrará resposta a fé pública dos registos oficiais, mesmo obtida uma eventual e hipotética rectificação do registo junto da Conservatória. (…)”
viii. Verificando-se que, efectivamente, existe uma falsidade dos documentos que deram origem à decisão administrativa, verifica-se que a mesma se encontra também desconforme com realidade.
Ora, sendo esse documento essencial ao registo automóvel realizado, o mesmo, baseia-se em documento falseado.
ix. Não é verdade que não tenha sido invocado pelo Ministério Público o documento falso aqui em causa, por o mesmo ter sido identificado no facto 5º da petição inicial: “Devido à informação constante nos referidos documentos instrutórios, na declaração aduaneira e no documento único automóvel do veículo versa como data da primeira matrícula 12 de Janeiro de 2005”.
x. Ora, a partir do momento em que se conheça que o conteúdo do documento no qual se baseou o registo é falso, este, independentemente de qualquer decisão subsequente por parte da autoridade administrativa, baseia-se em documento falso, sendo esse o motivo da nulidade do registo.
xi. Perante o exposto, não se compreende a lógica do seguinte parágrafo da Douta sentença recorrida: “(…) Em nenhuma parte da petição inicial o Autor se insurge contra o registo do direito de propriedade a favor da Ré, invocando desconformidades que não são susceptíveis sequer de ser tidas como causa para fazer operar uma nulidade do registo de propriedade. (…)”, por tal contender com o preceituado nos artigos 16.º-B, n.ºs 1, 2, 3 e 5, do Código do Registo Predial e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (registo da propriedade automóvel).
xii. O registo existe para dar fé pública da veracidade do que nele consta. Se a base desse registo é falsa, cai por terra qualquer fé pública no mesmo. Não é uma decisão administrativa referente à “declaração aduaneira do veículo” que fundamenta a nulidade do registo, mas sim a falsidade da informação da data da primeira matrícula que consta no documento em si.
xiii. A questão administrativa é independente da questão registal. Não está na presente acção em causa a decisão de emissão da declaração aduaneira do veículo, mas sim, o seu conteúdo, que se conhece ser falso, e no qual se alicerçou o registo.
xiv. A competência em matéria de nulidade do registo automóvel, com fundamento em falsidade dos documentos que lhe deram origem, é da exclusiva competência dos Tribunais Judiciais Cíveis, pelo que, temos muitas dúvidas da legalidade da decisão do Tribunal a quo, que liminarmente, relega a resolução da questão para as entidades administrativas ou para a Conservatória, deixando assim de se pronunciar sobre uma questão que é seu dever apreciar, sendo tal omissão, uma causa de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C..
xv. Vide, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 1769/17.9T8STR.E1, de 28-03-2019, Relatora Maria João Sousa e Faro:
II- O facto de tais nulidades do registo (alíneas b) e d) do artigo 16.º) serem passíveis de sanação através desse processo de rectificação não significa que não possam ser apreciadas num processo judicial de declaração de nulidade do registo.
III- O sistema contempla dois modos de remediar os vícios do registo, conforme a natureza deste: através de um processo particular, um meio intrassistemático, com regras próprias, o processo de rectificação levado a efeito pelo conservador e, outro, através da acção judicial de declaração de nulidade.
“Em suma: ainda que o processo em apreciação revista carácter eminentemente registral [6]não existe processualmente qualquer obstáculo a que o interessado, ora apelante, tenha proposto uma acção de declaração de nulidade do registo tanto mais quando a via da rectificação não é adequada à sanação das restantes causas de nulidade, designadamente da enunciada na alínea e) do artigo 16.º do Código do Registo Predial [7], aqui também invocada.
É certo que o elenco das excepções dilatórias constante do artigo 577.º do CPC é meramente exemplificativo mas a invocada pelo Tribunal – “a inadmissibilidade da presente acção” – não tem, como se viu, fundamento. Por isso, a decisão recorrida não pode subsistir.”
xvi. Assim, a competência dos Conservadores para sanar as causas de nulidade do registo não obstam a que as mesmas possam ser apreciadas num processo judicial de declaração de nulidade do registo. Ainda assim, o objecto dos presentes autos, excede a competência dos Conservadores.
xvii. Acresce ainda que, se na Douta sentença recorrida, se logrou efectuar uma apreciação material liminar do pedido, infere-se que a petição inicial não é inepta, nem o seu propósito incompreensível aos olhos do Tribunal, uma vez que o teor da sentença recorrida incide correctamente sobre o objecto da petição inicial, verificando-se neste ponto, a nosso ver, uma nulidade da sentença recorrida por contradição entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C..
xviii. Pelo exposto, consideramos que a petição inicial não é inepta e que deverá a presente acção seguir os seus termos até final.
xix. A Douta sentença recorrida padece de nulidade quando condenou o Ministério Público em custas, por violação do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
xx. O Ministério Público encontra-se isento de custas por a presente acção ter sido interposta em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, nos termos das disposições conjugadas do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais, dos artigos 16.º-B, n.ºs 1, 2, 3 e 5, do Código do Registo Predial e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (registo da propriedade automóvel) e dos artigos 4.º, n.º 1, alínea r) e 9.º, n.º 1, alínea g), do Estatuto do Ministério Público.
xxi. Na Douta sentença recorrida decidiu-se fixar o valor da causa e € 29.000,00 com fundamento de que tal valor foi indicado pela Autora: “(…) Fixa-se o valor da causa conforme indicado pela Autora (€ 29.000,00) – cfr. artigo 301.º, n.º 1, do CPC. (…)”.
Contudo, na Petição Inicial consta a final: “Valor: € 30.000,01.”
Assim, entendemos que a Douta sentença recorrida deveria ter fixado o valor da causa em € 30.000,01, nos termos dos artigos 301.º n.º 2 e 305.º n.º 4, do Código de Processo Civil.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:

i) da regularidade da petição inicial;
ii) da indevida condenação em custas do Ministério Público;
iii) do valor da causa.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os acima referidos.

B – As questões do Recurso
i) Da regularidade da petição inicial
O Ministério Público sustenta que a petição inicial não é inepta.
Assiste-lhe razão.
Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CPC, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
Por via do princípio do dispositivo consagrado no artigo 5.º do CPC, “a iniciativa do processo e a conformação do respetivo objeto incumbem às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respetivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de ação proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida.”[2]
Ao demandante cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir – artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Os factos essenciais nucleares são aqueles que identificam ou individualizam o direito que se pretende exercer.
A causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão deduzida (artigo 581.º/4, do CPC), cumprindo ao autor que invoca a titularidade de um direito alegar os factos cuja prova permita concluir pela existência desse direito. Acolhida que foi, no nosso ordenamento jurídico, a teoria da substanciação, cabe ao autor “articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir. (…) A causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d) (…).”[3]
Quando a narração fáctica inserta na petição inicial não permite alcançar qual é o fundamento de facto da pretensão de tutela jurisdicional formulada, não se identificando o tipo legal em que se alicerça o pedido por ter sido omitida a alegação de factos essenciais nucleares cuja função é a de individualizar a causa de pedir, ocorre ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir. Se a alegação, embora deficiente por ter sido omitida a alegação de factos complementares ou concretizadores que relevam para a procedência da ação, permite essa identificação, resultando dela a individualização da causa de pedir, a petição inicial não enferma de ineptidão, reclamando antes a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento fáctico do articulado, conforme previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC.[4]
No caso em apreço, resulta de forma clara e evidente da petição inicial que:
- o pedido consiste na declaração de nulidade do registo da matrícula (…);
- o fundamento de facto que alicerça tal pedido consiste na falsidade do documento que instruiu o processo de regularização fiscal e de atribuição de matrícula, atenta a errada data nele constante como sendo a data da 1.ª matrícula.
Não se verifica o vício de falta de causa de pedir.
Não se verifica o vício da contradição entre a causa de pedir e o pedido.
Constando da petição inicial que o registo a declarar nulo é o registo da matrícula, todo o subsequente processado tendente ao aperfeiçoamento da petição inicial e a indagar qual o registo a declarar nulo é destituído de sentido (processado que aqui está sujeito a escrutínio, uma vez que a questão objeto do recurso é a ineptidão da petição inicial).
A afirmação feita pelo M.º P.º no articulado resposta à contestação de que a ação visa a declaração e consequente retificação do registo automóvel no que concerne à data da primeira matriculação do veículo, de que a presente ação é necessária para corrigir a data de primeira matriculação do veículo, há de ser entendida como sendo esta ação de declaração de nulidade do registo de matrícula que viabilizará a subsequente retificação do registo em conformidade com a efetiva data de primeira matrícula.
Acresce que, desde logo se alcança da p.i., que não está em causa o registo da propriedade em favor da R..
Ora, o Regulamento de Atribuição de Matrícula a Automóveis, seus Reboques e Motociclos, Ciclomotores, Triciclos e Quadriciclos encontra-se aprovado pelo DL n.º 128/2006, de 5 de julho.
Nos termos do citado Regulamento, a matrícula dos automóveis e seus reboques, motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos e tratores agrícolas ou florestais e seus reboques é requerida nos serviços regionais do IMT, I. P. – cfr. artigo 4.º/1.
O IMT, IP, é a entidade que mantém um registo nacional de matrículas, designado por Sistema de Informação de Veículos e Homologações (SIVH), onde constam as características e dados necessários à emissão do documento de identificação do veículo – cfr. artigo 29.º/1.
O que está em causa, atento o pedido formulado e o fundamento invocado, é o registo de atribuição da matrícula (…) que, alegadamente, foi realizado com base em documento falso. A questão de saber se o documento é falso ou seja, se nele (autorização de circulação / certificado de matrícula espanhol apresentado no requerimento para atribuição de matrícula[5]) consta atestado, pelas competentes autoridades espanholas, facto que não corresponde à realidade (cfr. artigo 372.º/2, do CC), já contende com a prova produzida ou a produzir na ação e com a apreciação jurídica dos factos que venham a julgar-se provados.
O DL n.º 54/75, de 12/02, por sua vez, regula o registo de veículos com a finalidade de dar publicidade à situação jurídica dos mesmos, tendo em vista a segurança do comércio jurídico – cfr. artigo 1.º, n.º 1.
Prevê, contudo, que os dados de identificação do veículo que integram a matrícula são comunicados eletronicamente pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (IMT, IP), aos serviços de registos e são integrados automaticamente na ficha de registo de cada veículo – cfr. artigo 3.º, n.º 3.
A menção inserta na p.i. relativa ao artigo 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de fevereiro (o diploma que regula o registo automóvel, distinto, como se deixou exposto, do regulamento de atribuição de matrícula automóvel) não assume relevância, atento o regime inserto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

ii) Da indevida condenação em custas do Ministério Público
Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais, o Ministério Público está, no âmbito desta ação, isento de custas.
Por conseguinte, não há lugar à respetiva condenação em custas.

iii) Do valor da causa
Uma vez que o tribunal de 1.ª Instância entendeu ser de acolher o valor indicado pelo Autor, não tendo suscitado o incidente relativo à determinação do valor da causa (cfr. artigo 308.º do CPC), deve este fixar-se na quantia de € 30.000,10 (trinta mil euros e dez cêntimos) – cfr. fls. 2, conjugado com o artigo 7.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26/08.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se, caso nenhum outro fundamento a isso obste, o ulterior prosseguimento dos autos, fixando-se o valor da causa em € 30.000,10 (trinta mil euros e dez cêntimos).
Custas pela Recorrida.
Évora, 10 de julho de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Eduarda Branquinho


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[1] Cfr. artigo 7.º/2, da Portaria n.º 280/2013, de 26/08.
[2] Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Feitas, vol. I, pág. 789.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 26.
[4] Seguindo de perto o exarado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., págs. 233 e 630.
[5] Cfr. fls. 9 verso.