Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
469/20.7T8ENT.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: INVENTÁRIO
DOAÇÃO INOFICIOSA
REDUÇÃO
CADUCIDADE
FACTO IMPEDITIVO
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Tratando o inventário apenas de uma verba, um imóvel doado pelo inventariado a terceiro não herdeiro, a isso se resumindo a relação de bens, e havendo herdeiros legitimários, tem necessariamente que considerar-se colocada ao tribunal a questão da redução da liberalidade por inoficiosidade.
2 – Para os efeitos do prazo de caducidade previsto no art. 2178º do Código Civil, o facto impeditivo dessa caducidade é a propositura da acção, e não a citação do beneficiário da liberalidade.
3 – Sendo requerido esse inventário menos de dois anos depois do falecimento do inventariado, mesmo que se julgue aplicável ao processo de inventário a referida norma, por o donatário não ser um dos herdeiros, é forçoso concluir que não decorreu o prazo de caducidade previsto no dito art. 2178º.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
1- RELATÓRIO
A - Procede-se a inventário facultativo por óbito de AA, falecido em .../.../2018, no estado de divorciado.
No dia 19 de Outubro de 2018 foi lavrada escritura de habilitação notarial na qual foi outorgante BB, filha do falecido, que aí declarou ser a cabeça de casal na herança de seu pai e que este faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sendo seus únicos sucessores os seus quatro filhos.
Posteriormente, foi este procedimento de inventário iniciado por requerimento apresentado no Cartório Notarial a 09-04-2019, pela referida BB.
São únicos herdeiros do falecido os aludidos quatro filhos, CC, DD, EE e FF.
Exerce as funções de cabeça a própria requerente do inventário, BB.
Foi apresentada relação de bens, composta apenas por um bem imóvel, doado em vida pelo inventariado a GG (cf. requerimento de 19 de Março de 2020, e certidão de registo predial anexa), não tendo sido deduzidas reclamações, nem qualquer oposição ou impugnação.
Notificados os interessados nos termos do disposto no artigo 1110.º, n.º 1, alínea b) do CPC, a cabeça-de-casal veio aos autos referir que deveria ter sido citada, como interessada, GG, por ser donatária do único bem relacionado, pretendendo-se com o processo encontrar e reduzir eventuais inoficiosidades (requerimento de 20-09-2021).
Sendo então proferido despacho convidando a cabeça de casal a requerer incidente para redução de inoficiosidades (despacho de 27-09-2021), esta veio requerer expressamente a redução de inoficiosidades (cf. requerimento de 7 de Outubro de 2021).
Feita então a citação da donatária (cfr. carta expedida a 18-10-2021), esta apresentou requerimento, no qual, além do mais que para aqui não releva, invoca a caducidade do direito à redução de inoficiosidades por à data da sua citação estarem decorridos mais de 2 anos seja da aceitação da herança, seja da propositura do inventário.
A cabeça-de-casal exerceu o contraditório, opondo-se ao requerido pela donatária, mas veio a ser proferido despacho que julgou verificada essa caducidade e que declarou extinta a instância, por nada haver a partilhar.
B – Entendeu a primeira instância que, conforme resulta dos autos, o requerimento para redução de inoficiosidades apenas foi apresentado em 7 de Outubro de 2021, tendo a donatária sido citada em 21 de Outubro de 2021, e assim não existem dúvidas que a Requerente aceitou a herança mais de 2 anos antes dessa citação, sendo que essa aceitação retroage à data do óbito do inventariado (.../.../2018), tendo-se presente a escritura de habilitação de herdeiros que a mesma outorgou em 19 de Outubro de 2018, da qual resulta essa mesma aceitação.
Em consequência, foi julgado extinto, por caducidade, o direito à apreciação da redução de liberalidades inoficiosas exercido pela Requerente e cabeça-de-casal BB contra a donatária GG, e extinto, por impossibilidade superveniente da lide, o presente processo de inventário.
C) A cabeça de casal veio então interpor recurso de apelação, concluindo em suma que não se verifica a alegada caducidade, pelo que o processo deve prosseguir, como tinha requerido (invocando também diversas nulidades que inquinariam a decisão recorrida, designadamente as previstas nas alíneas b), c) e d) do artigo 615º do Código do Processo Civil).
D) O recurso foi admitido, correctamente, como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
E) Notificados os restantes interessados e a donatária, não foram apresentadas contra-alegações.
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2 – DA APELAÇÃO
Reagindo contra a decisão que concluiu pela caducidade referida, diz a recorrente nas suas conclusões, em resumo:
- O presente inventário foi aberto pelos herdeiros legitimários a fim de ser declarada redução por inoficiosidade de liberalidades da doação feita a terceiro;
- Na relação de bens apresentada, apenas foi relacionado, pela Cabeça-de-Casal, um imóvel que já havia sido doado em vida, pelo autor da herança, à Sra. GG;
- Conforme resulta da relação de bens apresentada, o autor da herança apenas possuía um bem que foi doado a terceiro, ofendendo a legítima dos herdeiros;
- Resulta da relação de bens apresentada, que o autor da herança apenas possuía um bem que foi doado a terceiro, ofendendo a legítima dos herdeiros;
- O instituto da inoficiosidade é de interesse e ordem pública: visa proteger com, sem ou mesmo contra a vontade do doador a legítima dos herdeiros forçados;
- Dizem-se inoficiosas quaisquer liberalidades, entre vivos (doações) ou por morte (instituições de herdeiro ou legados contidos em testamentos ou doações mortis causa), que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários, por ultrapassarem os limites da quota disponível (art.2168º);
- Tais liberalidades, quer feitas a herdeiros, que a parentes, quer a estranhos, são redutíveis em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida, a requerimento dos herdeiros legitimários ou, na falta destes, dos seus sucessores, cessando a liberalidade na medida da respetiva redução, com a consequente transmissão dos bens para os herdeiros;
- Quando a Cabeça-de-casal intentou o presente inventário, ainda não tinha decorrido o prazo de caducidade;
- Entende a recorrente que a sentença proferida sofre de nulidades, designadamente as previstas nas alíneas b), c) e d) do artigo 615º do Código do Processo Civil, e que além disso errou na aplicação do Direito, termos em que requer a sua revogação, com todas as consequências legais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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3. OBJECTO DO RECURSO.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, como resulta das disposições conjugadas nos artºs. 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do art.º 663º n.º 2 todos do Código de Processo Civil – se outra questão não se perfilar que por um lado seja de conhecimento oficioso e que por outro venha a prejudicar o conhecimento daquelas colocadas pelo recorrente.
Atentas as conclusões do presente recurso, a questão a decidir resume-se em conhecer das eventuais nulidades apontadas, e, rejeitadas estas, saber se caducou efectivamente o direito à redução de oficiosidades na esfera jurídica dos herdeiros legitimários do falecido AA, ou se não caducou e em consequência devem os autos prosseguir a sua tramitação.
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4. FUNDAMENTAÇÃO.
4.1 Os factos
A factualidade e as incidências processuais a considerar são as que constam do relatório supra, onde se deu conta da questão colocada no recurso. e para as quais se remete.
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4.2 O Direito
1 - Como se mencionou ao sintetizar as conclusões do recurso, a recorrente faz referência à existência de diversas nulidades no despacho proferido que é objecto de impugnação.
Tais nulidades seriam as previstas nas alíneas b), c) e d) do artigo 615º do Código do Processo Civil, de onde resulta que é nula a sentença quando esta:
“b) - Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) - Os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Todavia, como se pode constatar nas alegações apresentadas, a própria recorrente não explicita de que forma em concreto a decisão em causa incorreu nos vícios aludidos.
E na realidade, examinado o douto despacho proferido, verifica-se que o mesmo explanou largamente os fundamentos de facto e de direito que considerou para o efeito, e que os fundamentos utilizados não estão em contradição com a decisão, e também não se descortina qualquer questão que o tribunal tivesse apreciado indevidamente ou outra que tivesse omitido e devesse conhecer.
Deste modo, e sem necessidade de mais larga argumentação a este respeito, indeferimos a arguição das nulidades apontadas, improcedendo o recurso neste ponto.
2 – A questão essencial levantada pela recorrente, e aliás aquela em que se centrou a decisão impugnada, tem a ver com a interpretação e aplicação do disposto no art. 2178.º do Código Civil.
Estabelece este preceito que “A acção de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”.
Não especifica o legislador se a acção a que se refere é o processo de inventário ou se é uma acção comum em que seja colocado esse pedido.
E tem sido entendido por vezes que a caducidade aqui prevista refere-se apenas à acção comum, em que o beneficiário da liberalidade não tem legitimidade para o inventário, e não tem aplicação nos processos de inventário, quando o beneficiário da liberalidade inoficiosa seja ele próprio um herdeiro (cfr. entre outros o Ac. da Relação de Guimarães de 16-03-2023, no processo n.º 3594/11.1TJVNF-D.G1, relator Maria Amália Santos, in www.dgsi.pt: “podendo o processo de inventário ser instaurado a todo o tempo (art.º 2101º do CC), a caducidade não se verifica”).
No caso presente, embora a beneficiária da doação seja estranha à herança, foi utilizada a forma de processo especial de inventário, sendo certo que os herdeiros são quatro e existe apenas uma única verba, o imóvel doado em vida.
Embora não venha colocada a questão do eventual erro na forma do processo, sempre diremos que se nos afigura ser apropriada a forma processual escolhida.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 18-02-2021, no processo n.º 1095/19.9T8VIS.C1, relatora Maria João Areias, disponível em www.dgsi.pt, sobre a situação em que está relacionado um único bem que foi doado pelo inventariado:
“O inventário apenas ficará afastado no caso de existência de um único herdeiro, não obstando ao seu recurso o caso de existência de um único bem a partilhar ou de a totalidade dos bens do de cuius terem sido objeto de doação e terem já sido alienados a terceiro: ou seja, no caso em apreço, o processo de inventário, enquanto processo especialmente previsto para o efeito, é o adequado a proceder à relacionação, descrição, avaliação, e partilha pelos diversos herdeiros (legitimários), ainda que o único bem do falecido tenha sido objeto de doação em vida a um deles.”
“A discussão ronda à volta do artigo 2178º do Código Civil (CC), com o seguinte teor: “A ação de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, norma que tem suscitado a dúvida sobre qual o meio processual adequado para os herdeiros legitimários exercerem o seu direito, nomeadamente se o processo de inventário ou se é possível fazê-lo através do recurso a uma ação comum.”
Antes de mais, cumpre salientar que tal norma se limita a estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de pedir a redução de liberalidade inoficiosa, nada nos dizendo sobre o tipo de processo através do qual tal direito deverá ser exercitado, cuja determinação será de encontrar nas regras gerais do processo civil.”
Por outras palavras, haverá lugar a processo de inventário sempre que a atribuição dos bens do de cujus envolva operações de partilha, ou seja, sempre que haja mais do que um herdeiro, mesmo no caso de existência de um bem doado em vida do de cuius e, entretanto, alienado.
Aceitando esta orientação, nessa parte, temos como adequada a forma processual aqui utilizada; mas diremos então que, no tocante à caducidade em análise, uma vez que o legislador não distingue também não nos cabe distinguir: e por isso temos como certo que, sendo o beneficiário da liberalidade um terceiro estranho à herança, o referido prazo de caducidade tanto se deve aplicar nos casos em que se visa a redução de liberalidades através de acção comum como naqueles em que o mesmo objectivo seja perseguido por via de inventário, admitindo-se este como forma apropriada para tal (o que não foi questionado nos presentes autos).
Nem outra hipótese seria de aceitar, visto que a distinção teria como consequência que situações em tudo idênticas teriam tratamento inteiramente diferente (no caso de ser pedida a redução da liberalidade em acção comum, a ser possível essa via, aplicava-se o prazo de caducidade, mas no caso de ser usada a forma de inventário já não se aplicaria (e qualquer desses meios processuais tem sido utilizado para esse efeito).
A jurisprudência que limita a aplicação do mencionado preceito ao âmbito da acção declarativa comum (“o prazo de caducidade de 2 anos, apenas tem aplicação em ação declarativa comum a ser movida pelo herdeiro legitimário contra um terceiro que sendo embora donatário ou legatário, não é herdeiro legitimário”, diz-se no já citado Ac. Rel. Guimarães de 16-03-2023) fundamenta essa posição em preocupações sobre a segurança e a certeza jurídicas do donatário ou legatário, que não pode ficar eternamente na incerteza de ser ou não demandado pelos herdeiros do doador ou do testador, e ver serem-lhe eventualmente retirados os bens doados ou legados.
Porém, sendo esses os valores jurídicos que justificam a norma, então também deve estender-se o seu âmbito ao processo de inventário em que o donatário ou legatário esteja na mesma posição em relação à herança (não sendo herdeiro poderia ficar eternamente à espera que os herdeiros resolvessem proceder ao inventário, com a consequente indefinição da sua situação).
Dito isto, concluiremos, no entanto, que, ainda que se julgue aplicável no caso o prazo de caducidade estatuído no art. 2178º do Código Civil, na situação presente essa caducidade não se verifica.
Na realidade, o facto que a norma menciona como impeditivo da caducidade é muito concreto: é a propositura da acção.
Como se explica no Acórdão da Relação de Lisboa de 19-10-2017, no processo n.º 1208/13.4YXLSB.L1-6, relator António Santos, também disponível em www.dgsi.pt:
“ (…) para todos os efeitos, estando em causa um acto de natureza judicial que corresponde à propositura de uma acção [ como o refere expressis verbis o artº 2178º, do CC ], não tem lugar como pressuposto do efeito impeditivo da caducidade, nem a citação, nem a notificação do “réu"/interessado , antes se exige [ cfr. Ac. do STJ de 16/10/2002 (19) ] , para “ afastá-la, como logo se depreende do disposto no artigo 267 do Código de Processo Civil, conjugado com o preceito do artigo 331, nº. 1, do Código Civil, a proposição da acção pelo titular do direito - e não, por exemplo, o acto da citação ou da notificação do réu (artigo 323 do mesmo Código), que são actos já muito dependentes da actividade da secretaria judicial.”
Nem outra posição seria defensável, sob pena de se cair em situações em que os titulares do direito acabariam por perdê-lo por circunstâncias que não poderiam de todo controlar, como seriam as peripécias e atrasos processuais.
Constata-se, aliás, nos presentes autos, que em sede de despacho liminar deveria ter sido ordenada a citação de todos os interessados directos, como determina o art. 1100º, n.º 2, al. a), do CPC, mas também a citação da donatária, nos termos e para os efeitos referidos no art. 1104º, n.º 3, do CPC.
Recorde-se que num inventário interessados são todos os que tiverem interesse na herança, como os herdeiros, legatários, donatários e credores (cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 26-01-2017, no processo n.º 2768.13.5TBBRG.G1, relator Espinheira Baltar, in www.dgsi.pt).
Ora nessa altura não foi feita a citação da donatária, apesar de desde o início ser conhecida a sua existência, só vindo a ser ordenada essa citação depois do requerimento da cabeça de casal a apontar essa falta.
Não pode acolher-se, portanto, a posição assumida no despacho recorrido quando tomou como ponto de referência para efeitos de contagem do prazo de caducidade o momento da citação da donatária, momento este em que já teriam decorrido dois anos após a “aceitação da herança”, nos termos do art. 2178º do CC, aceitação esta que o julgador da primeira instância situa nomeadamente na escritura de habilitação de herdeiros.
Porém, abreviando, e regressando ao que mais interessa, verifica-se que a propositura da acção ocorreu bem antes de decorridos dois anos sobre o falecimento do de cujus, sendo inútil entrar em indagações sobre o momento em que tinha ocorrido a aceitação da herança (devendo notar-se, todavia, que os actos que são referidos no despacho impugnado como significando essa aceitação, ou seja a escritura de habilitação de herdeiros e a declaração no serviço de finanças, foram praticados exclusivamente pela cabeça de casal, não tendo qualquer intervenção nesses actos os outros três irmãos, aos quais não são apontados quaisquer actos de aceitação).
Ou seja, o que é seguro e temos como relevante é que no caso dos autos o inventariado faleceu em .../.../2018, e o inventário, requerido pela agora cabeça de casal, teve início a 9 de Abril de 2019 – não tinham ainda decorrido dois anos.
E logo por requerimento de 19 de Março de 2020 foi apresentada relação de bens, composta apenas por um bem imóvel, doado em vida pelo inventariado a GG (cfr. consta da certidão de registo predial anexa).
A nosso ver, quer a propositura do processo de inventário quer o conteúdo da relação de bens (com uma única verba, o imóvel que tinha sido doado em vida) traduzem necessariamente a vontade de exercer os direitos que assistem aos herdeiros, nomeadamente a redução de liberalidades inoficiosas.
Nem outra ilacção se poderia extrair dessa propositura do inventário, uma vez que se referia a um único bem e estava esclarecido que tinha sido doado pelo inventariado a uma pessoa estranha aos herdeiros legitimários.
Vem a propósito recordar que o art.º 2157º do Código Civil estabelece que são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, sendo a legítima dos filhos, cfr. o art.º 2159º, de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais.
Ora, estando em causa apenas um bem, que tinha sido doado a pessoa determinada, e perfilando-se quatro herdeiros legitimários, outro sentido não podia ter o requerimento de inventário que não fosse a pretensão de reduzir a liberalidade, para preenchimento da legítima de cada um naquilo em que se mostrava ofendida (cfr. art. 2169º do CC).
Como refere a recorrente, o instituto da inoficiosidade é de interesse e ordem pública e visa proteger a posição dos herdeiros legitimários independentemente de qual fosse a vontade do doador.
Diga-se, aliás, que o próprio tribunal pareceu entender assim ao determinar a avaliação do bem doado – essa avaliação só tem o sentido útil de possibilitar as operações de determinação da legítima, com vista à redução da liberalidade.
Embora o direito à redução de liberalidades seja um direito disponível, afigura-se que a manifestação de vontade no sentido do seu exercício estava presente e era notória desde o início do processo. A manifestação de vontade no sentido da redução da doação inoficiosa na medida do que exceder a quota da donatária e ofender as legítimas dos herdeiros legitimários, não tinha que ser verbalmente expressa logo no requerimento inicial, podendo ser tácita ou subentendida, como aconteceu neste caso – nesta situação estava necessariamente implícita na própria propositura do inventário e veio a exprimir-se formalmente no decurso deste.
Não foi apenas no momento do requerimento do incidente para redução de inoficiosidades que surgiu essa pretensão, desde o princípio subjacente à própria propositura do inventário.
Entendemos, por todo o exposto, que não existe a caducidade que foi declarada pela primeira instância, e em consequência daí decorrente também não existe qualquer impossibilidade da lide, como se concluiu.
Julgamos, assim, que deve ser revogada a decisão em análise, determinando-se o prosseguimento dos autos.
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5. DECISÃO:
Pelo que fica dito, decide-se julgar procedente o recurso, ao qual se concede provimento, revogando-se a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Évora, 18 de Dezembro de 2023
José Lúcio
Maria Adelaide Domingos
Maria José Cortes