Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
305/21.7T9STR.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
PRAZO PRESCRICIONAL
NULIDADE INSANÁVEL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE HIERARQUIA
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I - Sendo o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional de 3 anos, tendo havido factos interruptivos e suspensivos do mesmo, o prazo máximo de prescrição do procedimento é de 5 anos, correspondendo este ao prazo de prescrição (3 anos), acrescido de metade (1 ano e meio), acrescido do período máximo da suspensão (6 meses) e acrescido ainda do período de 159 dias em que o prazo esteve suspenso por força da legislação de combate à pandemia Covid19.
II - Conforme expressamente se estabelece no artigo 210.º da CRP, nos artigos 4.º e 42.º da LOSJ e no artigo 4.º n.º 1 do EMJ, os tribunais de hierarquia inferior devem obediência aos tribunais de hierarquia superior nas decisões que estes proferem em sede de recurso, sendo que a conjugação das referidas normas legais estabelece um sistema de hierarquização funcional dos tribunais que se revela imprescindível para a estruturação do regime recursivo.
III - A sentença de um tribunal de primeira instância proferida em desobediência a um acórdão de um Tribunal da Relação prolatado no âmbito do recurso de primitiva decisão daquele tribunal, é decretada, não apenas contra tal acórdão, mas ainda contra lei expressa, verificando-se a comissão da nulidade insanável por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, tipificada no artigo 119.°, al. e) do CPP
Decisão Texto Integral:
Decisão sumária
Constata-se existir nos autos causa extintiva do procedimento e da responsabilidade contraordenacional da recorrente que porá termo ao processo, pelo que, nos termos do disposto no artigo 417º, nº 6, alínea c) do CPP, encontra-se legitimada a prolação de decisão sumária.[1]
*
I - Da tramitação do incidente.
Por sentença datada de 22.02.2022 – prolatada após ter sido proferido acórdão que conheceu do recurso interposto da primitiva sentença, no qual foi declarada nula a sentença recorrida, nos termos do artigo 379.º, nº 1, al. a) primeira parte, por inobservância do disposto nos artigos 374.º, nº 2, ambos do CPP ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGCO, foi declarada a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. a) do CPP ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC e foi, consequentemente, determinado o reenvio dos autos para novo julgamento com vista à sanação do vício e da nulidade assinalados, nos termos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP – foi a arguida novamente condenada pelo tribunal recorrido pela prática de prática de uma contraordenação de incumprimento dos requisitos na área de serviço – instalação por forma a evitar a propagação de fumos e cheiros, prevista no n.º 1 alínea b) e n.º 2 do artigo 123º, conjugado com o n.º 3 do artigo 126º da Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, na sua redação atual, e punível pela subalínea iii) alínea a) do n.º 1 do artigo 143º do mesmo diploma na coima mínima de € 8.200,00 e pela prática de uma contraordenação de falta de sinalização, com modelo de interdição ou condicionamento de fumar, conforme modelo aprovado no Anexo I, da Lei n.º 37/2007, prevista no n.º 1 do artigo 6º, em conjugação com o nº 1 do artigo 4º, ambos da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, na sua redação atual, cometida com negligência, punível pela alínea c) do n.º 1 do artigo 25º e n.º 2 do mesmo artigo do mesmo diploma, na coima de € 1.250,00, e, em cúmulo jurídico, coima única de € 9.000,00.
Por requerimento apresentado em 04.03.2022, veio a arguida apresentar recurso da sentença.
Tal recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 07.03.2022, tendo a resposta do Ministério Público sido apresentada em 08.03.2022.
Subsequentemente, em 29.03.2022, apresentou a arguida/recorrente um requerimento solicitando se declarasse extinto por prescrição o presente procedimento contraordenacional.
Na vista a que se reporta o artigo 416.º CPP, o Exmº Procurador Geral Adjunto nesta Relação pronunciou-se pela verificação da exceção de prescrição invocada pela recorrente.
*
II - Da prescrição da responsabilidade contraordenacional
Importa apreciar a prescrição da responsabilidade contraordenacional invocada pela arguida, considerando, entre o mais, a alteração legislativa – que sinalizámos no acórdão proferido nos autos e que conheceu do primitivo recurso interposto da sentença do tribunal “a quo” - que diminuiu as molduras das coimas aplicáveis às contraordenações pelas quais aquela foi condenada.
Vejamos.
A sentença recorrida condenou a arguida pela prática das seguintes contraordenações:
- Uma contraordenação grave relativa ao incumprimento dos requisitos na área de serviço – instalação por forma a evitar a propagação de fumos e cheiros – prevista no n.º 1, al. b) e n.º 2 do artigo 123.º, conjugado com o n.º 3 do artigo 126.º do Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, na sua redação atual, e punível nos termos da subalínea iii) da alínea a), do n.º 1 do artigo 143.º do mesmo diploma legal;
- Uma contraordenação grave relativa à de falta de sinalização, com modelo de interdição ou condicionamento de fumar, conforme modelo aprovado no Anexo I, da Lei n.º 37/2007, prevista no n.º 1 do artigo 6.º, em conjugação com o n.º 1 do artigo 4.º, ambos da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, na sua redação atual, e punível pela alínea c), do n.º 1 e n.º 2 do artigo 25.º do mesmo diploma.
Conforme fizemos constar da parte final do acórdão proferido em 16.12.2021, na elaboração da nova decisão, que agora constitui o objeto do presente recurso, deveria o tribunal recorrido ter tido em conta a nova redação das mencionadas normas jurídicas, redação que lhes foi conferida pelo Decreto-Lei nº 9/2021, de 29 de Janeiro, diploma que – tendo entrado em vigor 180 dias após a sua publicação, nos termos do seu artigo 183º – expressamente consigna, no seu artigo 182º, que “1 - Aos processos de contraordenação pendentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei aplica-se o regime que, em concreto, se afigure mais favorável ao arguido.”
Ora, confrontadas as redações de tais normas em vigor à datada prática dos factos e atualmente em vigor, facilmente constatamos que o regime atual se mostra francamente mais favorável à arguida em virtude de terem sido reduzidas as molduras abstratas das coimas “in casu” aplicáveis.
Assim, a contraordenação grave relativa ao incumprimento dos requisitos na área de serviço – instalação por forma a evitar a propagação de fumos e cheiros – prevista no n.º 1, al. b) e n.º 2 do artigo 123.º, conjugado com o n.º 3 do artigo 126.º do Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro e punível nos termos da subalínea iii) da alínea a), do n.º 1 do artigo 143.º do mesmo diploma legal, após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 9/2021, de 29 de Janeiro, passou a ser punível, nos termos do artigo 18º, alínea iii) e 8º do RJCE, com a coima máxima de € 4.000,00, em virtude de a arguida ser classificada como “pequena empresa” por empregar entre 10 e 49 trabalhadores. Também a contraordenação grave relativa à falta de sinalização, com modelo de interdição ou condicionamento de fumar, conforme modelo aprovado no Anexo I, da Lei n.º 37/2007, prevista no n.º 1 do artigo 6.º, em conjugação com o n.º 1 do artigo 4.º, ambos da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto e punível pela alínea c), do n.º 1 e n.º 2 do artigo 25.º do mesmo diploma após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 9/2021, de 29 de Janeiro, passou a ser punível, nos termos do artigo 18º, alínea iii) e 8º do RJCE, com a coima máxima de € 4.000,00, em virtude de a arguida ser classificada como “pequena empresa” por empregar entre 10 e 49 trabalhadores.
*
Com relevo para a apreciação da exceção de prescrição invocada pela recorrente, importa convocar as disposições legais reguladoras dos prazos prescricionais, respetivas contagens, suspensões e interrupções.
Quanto aos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional, dispõe o artigo 27º do RGCO que:
“Artigo 27.º
Prescrição do procedimento
O procedimento por contraordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contraordenação hajam decorrido os seguintes prazos:
a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a (euro) 49879,79;
b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a (euro) 2493,99 e inferior a (euro) 49879,79;
c) Um ano, nos restantes casos.
Relativamente à suspensão do prazo prescricional, preceitua o artigo 27º-A do RGCO nos seguintes termos:
“Artigo 27.º-A
Suspensão da prescrição
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.”
Relativamente à interrupção da prescrição, estabelece o artigo 28º do RGCO que:
“Artigo 28.º
(Interrupção da prescrição)
1 - A prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infrações, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contraordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.”
*
No que diz respeito à suspensão do prazo prescricional, e como bem sinaliza a recorrente no requerimento em análise, assume ainda relevância na situação que nos ocupa a legislação aprovada em contexto de combate à pandemia COVID 19, concretamente o disposto nos artigos 7º, n.ºs 3 e 4 e 6º-B, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, nos termos dos quais os prazos de prescrição em vigor estiveram suspensos, acrescendo ao prazos em curso o período de tempo em que vigorou a respetiva suspensão. Assim, nos termos estatuídos em tais preceitos legais, o prazo de prescrição do presente procedimento contraordenacional esteve suspenso entre o dia 09.03.2020 e o dia 03.06.2020, o que perfez 86 dias de suspensão e voltou a estar suspenso entre o dia 22.01.2021 e o dia 05.04.2021, o que perfez 73 dias de suspensão.
*
Tendo em conta as disposições reguladoras da prescrição do procedimento contraordenacional acima transcritas, as normas excecionais de suspensão de prazos aprovadas em contexto de pandemia a que também nos reportámos, e em face das molduras abstratas das coimas aplicáveis às contraordenações imputadas à recorrente decorrentes da referida sucessão legislativa, verificamos que:
a) O prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativamente a ambas as contraordenações é de três anos, nos termos do artigo 27.º, al. b) do RGCO.
b) A prescrição do presente procedimento contraordenacional suspendeu-se a partir da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplicou as coimas, não podendo tal suspensão ultrapassar seis meses, nos termos do artigo 27.º-A, nº 1, al. c) e nº 2 do RGCO.
c) Os factos imputados à arguida ocorreram em 19.10.2016.
d) - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, nos termos do artigo 28.º nº 3 do RGCO.
e) Ao prazo máximo de prescrição acrescem 159 dias (86 +73), nos termos dos artigos 7º, n.ºs 3 e 4 e 6º-B, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Resulta do exposto que, na situação dos autos, sendo o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional de 3 anos, tendo havido factos interruptivos e suspensivos do mesmo, o prazo máximo de prescrição do procedimento é de 5 anos, correspondendo este ao prazo de prescrição (3 anos), acrescido de metade (1 ano e meio) e acrescido do período máximo da suspensão (6 meses). A tal prazo acrescerá ainda o período de 159 dias em que o prazo esteve suspenso por força da legislação de combate à pandemia, pelo que, computando-se o prazo máximo de prescrição em 5 anos e 159 dias, contados desde a data da prática dos factos, 19.10.2016, o prazo de prescrição decorreu integralmente no dia 27.03.2022.
Nesta conformidade, somos a concluir que assiste razão à recorrente, procedendo a exceção de prescrição como causa de extinção da sua responsabilidade contraordenacional, o que determinará a extinção do presente procedimento contraordenacional, o que se decidirá.
***
Pese embora, pelas razões expostas, proceda a exceção de prescrição, o que, necessariamente, conduzirá à extinção do presente procedimento contraordenacional por via desta decisão sumária, não poderemos deixar de nos reportar – com a brevidade que se impõe pela atual irrelevância da questão decorrente da verificação da prescrição – ao incumprimento do acórdão proferido nos presentes autos por esta Relação e às consequências legalmente previstas para tal incumprimento, matéria, aliás, trazida pelo recorrente como primeira questão a apreciar no recurso.

III - Do incumprimento pelo tribunal de primeira instância do acórdão proferido nos presentes autos por esta Relação e das consequências de tal incumprimento
De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 118.º, nº 1 do CPP, “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato, quando esta for expressamente cominada na lei.” As nulidades insanáveis, encontram-se consignadas no artigo 119º do CPP e são de conhecimento oficioso, conforme decorre do corpo do artigo. Entre elas, inclui-se a nulidade decorrente da “violação das regras de competência do tribunal”, prevista na alínea e), nulidade que, manifestamente, ocorre na situação que agora nos ocupa. Vejamos.
Por acórdão datado de 16.12.2021, proferido no âmbito do recurso interposto pela arguida da primitiva sentença prolatada pelo “juiz a quo”, foi decidido:
“(…) Pelo exposto, somos a concluir pela existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. a) do CPP, o que determina o reenvio dos autos ao tribunal recorrido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP, aplicáveis ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC.
Atendendo à verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da nulidade que inquinam a sentença recorrida, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso e acima elencadas.
Assim, nos termos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP, impõe-se determinar o reenvio do processo para apuramento dos factos acima enunciados, com vista ao suprimento do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e com vista à elaboração de nova decisão com sanação do aludido vício e da nulidade de que enferma a sentença recorrida.
(…)
III – Decisão
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
A) Declarar nula a sentença recorrida nos termos do artigo 379.º, nº 1, al. a) primeira parte, por inobservância do disposto nos artigos 374.º, nº 2, ambos do CPP ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC;
B) Declarar a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. a) do CPP ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC.
C) Determinar o reenvio dos autos ao tribunal “a quo” para se apurar, com a precisão possível, as condutas, por ação ou por omissão, que possam ser atribuídos à pessoa coletiva, a título de dolo ou de negligência, devendo, subsequentemente, ser proferida nova decisão na qual deverão suprir-se o vício e a nulidade assinalados.”
***
Remetidos os autos à primeira instância, incompreensivelmente, o juiz “a quo”, em absoluto desrespeito do decidido no aludido acórdão e do regime processual estabelecido nos artigos 426º e 426º-A do CPP para as situações, como a dos autos, de reenvio do processo para novo julgamento com vista à sanação dos vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, procedeu, ele próprio, à elaboração de nova sentença – violando ademais, a regra dos impedimentos estabelecida pelo artigo 40º, alínea e) do CPP – sem realização de novo julgamento.
Analisemos, então, o vício de que padece a decisão recorrida proferida nos moldes que acabámos de relatar.
Decorre da organização judiciária constitucionalmente estabelecida que, em Portugal, os tribunais se organizam segundo uma estrutura hierarquizada, sendo a mesma integrada por tribunais de 1.ª Instância, de 2.ª Instância (os tribunais da Relação) e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Conforme expressamente se estabelece no artigo 210.º da CRP, nos artigos 4º e 42º da LOSJ e no artigo 4.º n.º 1 do EMJ, os tribunais de hierarquia inferior devem obediência aos tribunais de hierarquia superior nas decisões que estes proferem em sede de recurso, daí decorrendo que, nos processos em que tal suceda, devem os tribunais de hierarquia inferior acatar as decisões proferidas pelos tribunais de categoria e hierarquia superior. A conjugação das referidas normas legais estabelece um sistema de hierarquização funcional dos tribunais que se revela imprescindível para a estruturação do regime recursivo.
Assim, a sentença de um tribunal de primeira instância proferida em desobediência a um acórdão de um Tribunal da Relação prolatado em sede de recurso de primitiva decisão daquele tribunal, como sucede no caso dos autos, é decretada, não apenas contra tal acórdão, mas ainda contra lei expressa, concretamente contra a Constituição da República Portuguesa, contra as leis da organização judiciária e contra o Estatuto dos Magistrados Judiciais, pelo que consubstancia uma decisão manifestamente inconstitucional – por violação das disposições conjugadas dos artigos 20º, nºs 1, 4 e 5, 32º, nº 1, 202º, nº 2, 205º, nº 2, 209º, nº 1, alínea a) e 210º, nºs 2 e 4 da CRP – e ilegal – por violação dos artigos 2º, nº 1, 4.º (“1 - Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores. [2]) 22º, 29º, 37º, nº 1 e 42.º (1 - Os tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões [3]) da LOSJ aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, e ainda o nº 1 do artigo 4º do EMJ (1 - Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.)[4] .
Efetivamente, a decisão do tribunal superior vincula o Tribunal hierarquicamente inferior, impendendo sobre o juiz titular deste último o dever de acatar e de cumprir essa decisão. Não o fazendo – como não o fez o juiz “a quo” nos presentes – o mesmo viola as regras de hierarquia funcional estruturantes da organização judiciária e, consequentemente, as regras da competência em razão da hierarquia, o que, em última instância, põe em causa, a regulamentação do processo penal concorrente para a prossecução do seu fim primordial com assento constitucional no artigo 32º da CRP, qual seja, o da realização da justiça com vista à descoberta da verdade material, através da garantia de um processo justo e equitativo.
Nesta conformidade, considerando que a sentença recorrida foi proferida em manifesto desrespeito do decidido no acórdão proferido nos presentes autos no âmbito de recurso interposto pela arguida da primitiva sentença, constatamos ter sido cometida a nulidade insanável por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, tipificada no artigo 119°, al. e) do CPP[5], aplicável ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC, o que determina a invalidade da sentença que agora constitui o objeto do presente recurso, em conformidade com o disposto no artigo 122º, nº 1 do CPP, também aplicável ex vi dos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC e, caso não tivesse entretanto ocorrido a prescrição do procedimento contraordenacional nos termos acima já conhecidos, determinaria ainda o envio dos autos ao Tribunal recorrido para estrito cumprimento do decidido no acórdão desta Relação datado de 16.12.2021, com a realização de novo julgamento com respeito das regras processuais constantes dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A do CPP.
***
IV – Decisão
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, decide-se declarar verificada a exceção de prescrição e, em consequência, determinar a extinção do procedimento contraordenacional e da responsabilidade da recorrente, com o consequente arquivamento dos presentes autos.
Sem tributação.

(Processado em computador e revisto integralmente pela signatária)

Évora, 7 de abril de 2022

Maria Clara Figueiredo


__________________________________________________
[1] Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, página 1156, anotação 13.
[2] Negrito acrescentado.
[3] Negrito acrescentado.
[4] Negrito acrescentado.
[5] Neste sentido se pronunciaram o Acórdão do STJ de 28.11.2017, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, o Acórdão da Relação do Porto de 30.10.2014, relatado pelo Desembargador Carlos Portela, disponíveis em www.dgsi.pt e, tratando uma situação que apresenta grande similitude com a dos presentes autos, o Acórdão da Relação do Porto de 18.03.2009 mencionado e transcrito no Acórdão da Relação do Porto de 30.10.2014 acima referido.