Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
879/14.9TBSSB.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTA SOLIDÁRIA
HERANÇA
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A instituição bancária é alheia à questão da repartição da propriedade do dinheiro depositado nas suas contas, a qual respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 879/14.9TBSSB.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
*

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum, actualmente a correr termos em Secção Cível da Instância Central de Setúbal da Comarca de Setúbal (depois de iniciada no Tribunal Judicial de Sesimbra), instaurada por (…) contra (…) e «Banco (…), SA», foi pela A. invocada a sua condição de única herdeira de seu pai, (…), falecido em 4/1/2014, que viveu em união de facto com a irmã da R., (…), igualmente falecida, em 3/12/2013, e que era titular de contas bancárias depositadas no Banco R., e alegado que, após a morte de seu pai, o referido Banco procedeu indevidamente à entrega de metade de todo o dinheiro que era de seu pai a favor da R., apesar de a A. ter informado o Banco que esse dinheiro era, praticamente na sua totalidade, produto de rendimentos auferidos pelo seu pai, e não pela companheira deste, pelo que a R. terá beneficiado ilegitimamente, com a colaboração do Banco R., de valores que não lhe pertenciam – e, nessa base, pediu a A. a condenação solidária dos RR. nos seguintes termos: a) a restituirem-lhe a quantia de 268.723,44 €, de que a R. beneficiou; b) a pagarem-lhe juros sobre aquela quantia, à taxa legal, vencidos, que computou em 4.064,00 € à data da instauração da acção, e vincendos, até integral pagamento; ou, c) em alternativa, a reporem aquela quantia em benefício da A., por ter havido enriquecimento sem causa à custa desta.

Contestando, ambos os RR. impugnaram o pedido. O Banco R. alegou, no essencial, que as contas bancárias a que se refere a A. eram contas solidárias, em nome do pai da A. e da irmã da R., pelo que o Banco se teria de orientar pela presunção legal (designadamente emergente do artº 516º do C.Civil) de que o dinheiro em causa pertencia a ambos os titulares em partes iguais, desconhecendo e não tendo de saber se o dinheiro era pertença efectiva de apenas um dos titulares, pelo que, perante o falecimento da irmã da R. não poderia deixar de entregar metade do valor dos depósitos à sucessora daquela, procedimento esse que foi, aliás, aceite pela A., uma vez que a mesma emitiu uma declaração perante o Banco nesse sentido (declarando ter recebido do Banco a quantia de 213.723,44 € e «nada mais ter a receber do Banco indicado seja a que título for») – e, nessa base, sustentou a sua absolvição do pedido. Por sua vez, a R. alegou, no essencial, que tinha direito a metade do dinheiro depositado nas contas solidárias em nome do pai da A. e da irmã da R., por esse dinheiro ser produto da vida em comum de ambos ao longo de cerca de 30 anos, para que a sua irmã contribuiu com apoio e trabalho em prol do companheiro e outros valores por si angariados, pelo que o Banco R. procedeu correctamente ao entregar metade desse dinheiro à R., em aplicação da presunção de comparticipação em partes iguais decorrente do artº 516º do C.Civil – e, nessa base, pediu em reconvenção o reconhecimento da união de facto que existiu entre o pai da A. e a irmã da R., e a condenação da A. a reconhecer essa união de facto e que o valor de 268.723,44 € pertence à R., enquanto herdeira daquela.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizado o julgamento, após o qual foi lavrada sentença (a fls. 305-330) em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção – condenando os RR. a pagar à A., solidariamente, a quantia de 267.979,91 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre 23.187,40 € desde 3/4/2014 e sobre 244.792,51 € desde 10/3/2014, vencidos e vincendos, até integral pagamento – e parcialmente procedente a reconvenção – declarando o reconhecimento da união de facto entre o pai da A. e a irmã da R. por mais de 20 anos.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, no essencial, o seguinte: estando em causa apurar a propriedade do dinheiro depositado no Banco R., em conta solidária em nome do pai da A. e da irmã da R., com depósitos a prazo associados, resultou da matéria de facto provada que naquela conta foi depositada a quantia de 495.907,04 €, que pertencia em exclusivo ao pai da A.; mais se provou que nessa conta era também depositada a pensão de sobrevivência auferida pela irmã da R., no montante mensal de 175,43 €; provou-se igualmente a existência de uma união de facto que ligou o pai da A. e a irmã da R. e que durou mais de 20 anos; não sendo estes casados e tendo o pai da A. sobrevivido à morte da companheira, não adquiriu esta um direito a alimentos que lhe pudesse conferir qualquer direito sobre as quantias pertencentes ao pai da A., ao abrigo do artº 2020º do C.Civil; para efeitos patrimoniais, a união de facto deve ser aproximada das sociedades de facto, sendo de aplicar por analogia o regime das sociedades civis, no que for compatível, pelo que será de ter em conta o artº 992º, nº 1, do C.Civil, segundo o qual os sócios participam nos lucros e perdas na proporção das respectivas entradas; neste contexto, é de concluir que o pai da A. participou quase por inteiro na composição do depósito bancário existente à data da sua morte, sendo de admitir que a irmã da R. gastaria a totalidade da sua pensão nas duas despesas básicas; e, nessa base, deve proceder o pedido formulado pela A. em relação à R., pelo montante de que a R. efectivamente beneficiou, que corresponde a 267.979,91 € (montante que foi repartido em duas verbas, uma de 244.792,51 €, de que a R. se apropriou em 10/3/2014, e outra de 23.187,40 €, que foi afecta ao pagamento de imposto de selo ao Banco, devido a partir de 3/3/2014); em todo o caso, sempre estariam verificados os requisitos do enriquecimento sem causa, previsto no artº 473º do C.Civil, de aplicação subsidiária, pelo que também por aí procederia o pedido da A.; quanto ao pedido reconvencional apenas poderá proceder a pretensão respeitante ao reconhecimento da existência da referida união de facto; em relação ao Banco R., a presunção de igualdade de comparticipações do artº 516º do C.Civil, que aquele invoca, cede quando se verifica a situação prevista na própria norma («sempre que (…) resulte que são diferentes as suas partes»); ora se é certo que o Banco não tinha de conhecer a quem pertencia efectivamente o dinheiro, não lhe cabendo apurar a respectiva titularidade, também é exacto que esse Banco, em face do óbito dos titulares e do desacordo dos interessados seus sucessores, que foi levado ao conhecimento do Banco R., não deveria este ter procedido à entrega das quantias a que procedeu, antes devendo ter procedido ao congelamento dos saldos até ao apuramento definitivo da propriedade do dinheiro; como se decidiu já em Ac. RL de 26/1/2016, a solução neste caso seria o Banco colocar-se à margem do diferendo entre os sucessores dos titulares da conta solidária e manter indisponível a movimentação da conta até à resolução do diferendo, por acordo ou por via judicial, e não substituir-se à vontade das partes ou à decisão judicial, definindo a propriedade das quantias depositadas, através da atribuição de metade a cada um dos interessados; e assim incumpriu o Banco R. os deveres contratuais a que estava obrigado, incorrendo em responsabilidade contratual, pelo que deve indemnizar a A., ao abrigo dos artos 798º e 562º do C.Civil.

Inconformado com tal decisão, dela apelou o Banco R., formulando as seguintes conclusões:

«1. O Banco aqui Recorrente, não concordando com a, aliás, Douta Sentença, proferida pelo Tribunal a quo, vem da mesma recorrer, impugnando igualmente a decisão relativa à matéria de facto.

2. Face aos fundamentos invocados e aos concretos meios probatórios constantes do processo igualmente indicados nas alegações, bem se verifica que o Banco não procedeu a uma meação, por herança (nos termos dos arts. 2050º e seguintes do CC), atendendo unicamente à titularidade das contas e bem assim à forma de movimentação da mesma, nos termos dos artigos 1185º, 1187º, 1192º, 1206º, 1142º e 1144º, todos do CC.

3. A conta de depósitos à ordem, era uma conta colectiva, com dois titulares – a Sra. (…) e o Sr. (…) – e solidária, nos termos do artigo 7º do CdVM.

4. Todas as subcontas de aplicações financeiras eram igualmente contas colectivas, com dois titulares – a Sra. (…) e o Sr. (…) – e solidárias.

5. Assim a questão da titularidade diz respeito à propriedade do património nas contas depositado, ao passo que a questão da solidariedade é relativa à movimentação da conta.

6. A propriedade do capital é alheia ao Banco Recorrente, dizendo unicamente respeito aos titulares, tendo unicamente o Banco Recorrente que o restituir in casu, aos legítimos herdeiros, nos termos dos artigos 1185º, 1187º, 1192º, 1206º, 1142º e 1144º, todos do CC, e do artigo 7º do CdVM.

7. E, quer a Sra. (…), quer o Sr. (…), eram ambos titulares e, portanto, proprietários de todo o património ali depositado.

8. E tal foi o que contratualizaram com o Banco aqui Recorrente, bem sabendo o Sr. (…), homem de negócios experiente e com muito sucesso, que poderia ter optado por outro tipo de conta (entre elas a mista), para proteger a propriedade de todos os fundos, caso assim o quisesse.

9. Poderia também – caso não quisesse que a sua companheira de 30 anos fosse proprietária daquele capital – ter recorrido à figura da Representação Voluntária, nomeadamente a Procuração, nos termos previstos dos artigos 262º e seguintes do CC.

10. Contudo, ambos não quiseram que assim fosse, tendo optado por uma conta colectiva, com os dois como titulares e solidária.

11. Solidariedade essa que permitia que qualquer um dos titulares (proprietários do capital) movimentasse todo o capital de tais contas, e no limite esvaziar as mesmas.

12. As decisões que tomaram foram assim tomadas de forma consciente, livre e esclarecida.

13. Não esteve bem o Tribunal a quo, ao não considerar a intenção livre e consciente de ambos ao contratarem com o Banco, naqueles termos.

14. Ao Banco não cabe conhecer se o dinheiro em depósito é pertença efectiva de um dos co-titulares ou de ambos.

15. Cabendo-lhe unicamente o cumprimento da Lei, conforme dispõe o artigo 516º, 1185º, 1187º, 1192º, 1206º, 1142º e 1144º, todos do CC, e do artigo 7º do CdVM.

16. Mandando a Lei, que as quantias sejam meadas em partes iguais pelos dois co-titulares da conta.

17. Estava o Banco quer contratualmente, quer por lei, obrigado a entregar às legitimas herdeiras de ambos os co-titulares – à Sra. (…) (A.) e à Sra. (…) (R.) – a sua parte do património, ou seja, metade dos fundos existentes nas contas, a cada uma delas, conforme artigos 516º, 1185º, 1187º, 1192º, 1206º, 1142º e 1144º, todos do CC e do artº 7º do CdVM.

18. O Sr. (…), sabia assim, que ao colocar o nome da sua companheira de mais de 30 anos, como titular de todas as contas, lhe estava a doar parte do seu património e bem assim que esta querendo, sendo a movimentação solidária das mesmas, nada a teria impedido de levantar ou transferir o capital existente em tais contas, para outra instituição financeira, até para uma conta só em seu próprio nome.

19. Doação esta, traditio simbolica, conforme dispõe o artigo 10º do CC, artigo 516º, concatenado com os artigos 940º, 942º, 947º, 956º, 1263º, todos do CC.

20. O Banco entregou o respectivo capital a cada uma das herdeiras, não por se tratar de uma meação, por herança, pois não é esse o objecto social do Banco, mas antes tendo efectuado aquela entrega de metade do capital a cada herdeira, de acordo com, prima facie, o que contratualizou com ambos os titulares daquelas contas em vida, respeitando assim as suas vontades expressas e bem assim de acordo com a Lei, quanto às contas solidárias de vários titulares.

21. Não esteve bem o Tribunal a quo, ao não dar como provado o facto do Sr. (…), sem prejuízo da proveniência da maioria do capital depositados nas contas, ter contratualmente e expressamente declarado a sua vontade, em vida, que foi o de contemplar a sua companheira de 30 anos com o seu património.

22. Assim, não esteve bem o Tribunal a quo, na sua Douta Sentença, dando como não provado o seguinte facto: “Que o falecido manifestava o desejo de contemplar a então companheira com os seus bens, por a A., há muitos anos o ter abandonado, não tendo qualquer contacto com ele, razão pela qual a R., procedeu ao levantamento de metade do saldo bancário existente na conta solidária”. Devendo ter o Tribunal a quo, ter dado tal facto como provado, pelo menos na parte que expressa a verdadeira vontade do falecido de contemplar a sua companheira com os seus bens.

23. Ao contrário do que considerou erradamente o Tribunal a quo, o Banco respeitou a propriedade do capital depositado naquelas contas e as condições de movimentação das mesmas.

24. Ambas herdeiras, apresentaram os documentos legalmente exigidos, junto do Banco, entre eles as certidões de óbito e habilitação de herdeiros, para que o Banco procedesse à abertura interna do respectivo processo de óbito e bem assim procedesse à entrega do capital, exactamente da forma como procedeu.

25. Não competia ao Banco indagar se o capital provinha mais da actividade de um dos titulares da conta ou do outro.

26. A A. estava a ser aconselhada pela sua mandatária, pelo que, querendo reivindicar o direito de propriedade de todo o capital, deveria em tempo útil ter utilizado o meio legal para o efectuar, entre eles o procedimento cautelar, nos termos dos artigos 362º e seguintes do CPC.

27. Não o tendo efectuado.

28. Mais acresce que ambos os titulares da conta viviam em união de facto há cerca de 30 anos, partilhavam mesa e leito e, à semelhança do que acontece em vários casamentos, só uma das pessoas trabalhava fora de casa, sendo que a outra se dedicava às lides domésticas, conforme Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, alterada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, e bem assim conforme artigo 980º do CC.

29. E foi assim, porque ambos o quiseram, durante todos os anos que durou aquela união de facto, ou seja, até ao falecimento.

30. Não esteve bem o Tribunal a quo que fez “tábua rasa” à actividade de doméstica da Sra. (…), desconsiderando o seu trabalho por ser em casa.

31. Sendo esta desconsideração do Tribunal a quo redutora para o ser humano, e contrária à dignidade da pessoa, no âmbito dos direitos de uma mulher doméstica, consagrado na Lei Constitucional e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos dos artigos 16º e 67º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 16º, nº 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

32. Quem está na posse do capital, referente ao pedido da A., é a R., (…), e não o Banco R., que o entregou legalmente.

33. Esteve mal assim o Tribunal a quo, quanto à questão da solidariedade, condenando o R. Banco como se este se encontrasse na posse do capital anteriormente depositado em tais contas.»


A A. apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da R. apelante recorrentes resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar a eventual modificabilidade da matéria de facto, ao abrigo do artº 662º do NCPC, e a aferir da justeza da sentença, à luz da invocada presunção de igualdade de comparticipações nas contas bancárias solidárias (designadamente estabelecida no artº 516º do C.Civil), quanto ao juízo de procedência (parcial e nos termos em que o foi) nela formulado em relação ao pedido da A. no que respeita ao Banco apelante, sendo que é pretensão deste obter a sua absolvição quanto a tal pedido.

Esclareça-se, neste ponto, que, em virtude de não ter sido interposto recurso pela 1ª R., se deve considerar definitivamente assente a procedência do pedido da A. em relação a essa demandada e a sua consequente condenação, nos exactos termos constantes da sentença recorrida: esta deve ter-se por transitada em julgado nessa parte, mantendo-se por isso intocada, independentemente do que vier a ser decidido no presente recurso, que apenas se reportará à pretensão da 2ª R..

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. A A. é filha de (…) e de (…), com quem aquele esteve casado entre 28 de Dezembro de 1953 e 30 de Maio de 1974, data em que se separaram de facto, tendo-se divorciado em 11 de Dezembro de 1975.

2. (…) casou com (…) em 29 de Maio de 1976, casamento dissolvido por causa do óbito da cônjuge mulher em 15 de Setembro de 1982.

3. (…) e (…) viveram em comunhão de habitação, mesa e leito, como se de marido e mulher se tratassem, pelo menos durante mais de vinte anos e até ao óbito de (…), em 3/12/2013.

4. Dessa união de facto não existem filhos.

5. (…) e (…) eram titulares da conta solidária (…) no “Banco (…)”, cujo NIB é o (…) e que tinha associada aplicações em depósitos a prazo.

6. Em 3/12/2013 faleceu (…), no estado de viúva de (…).

7. Por óbito de (…) sucedeu-lhe a sua irmã, ora R..

8. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao óbito de (…), a sua irmã e ora R. (…), na qualidade de única herdeira da falecida, veio ao Banco com a respectiva habilitação de herdeiros e certidão de óbito, dando-se início ao processo interno conducente à entrega das quantias existentes no Banco e que cabiam à herdeira por direito.

9. Em 4/1/2014 faleceu (…), no estado de viúvo de (…).

10. O falecido não deixou testamento ou quaisquer outras disposições de última vontade, tendo-lhe sucedido como sua única e universal herdeira a A..

11. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao óbito de (…) e anterior a 27/1/2014, a filha do falecido e ora A. veio ao Banco com a habilitação de herdeiros e certidão de óbito, tendo o Banco também nesse caso dado início ao processo interno conducente à entrega das quantias existentes no Banco e que cabiam à herdeira por direito.

12. O Banco (…) remeteu uma carta à A., datada de 27/1/2014 com o seguinte teor:

“Assunto: Óbito do Sr. (…), ocorrido em 01 de Janeiro 2014 (…)

Em conformidade com o solicitado informamos que o Sr. (…) foi titular no Banco (…), das seguintes contas:

- Conta de depósitos à ordem n.º (…), com forma de movimentação solidária, 2 titulares, a qual apresentava à data do óbito o saldo de € 678,25. Sendo a quota-parte da herança de € 618,99 e o diferencial da quota-parte da herança da segunda titular da conta igualmente falecida.

- Conta de depósitos a prazo n.º (…), com forma de movimentação solidária, dois titulares, a qual apresentava à data do óbito o saldo de € 6.000,00. Sendo a quota-parte da herança de € 500,00 e o diferencial quota-parte da herança da segunda titular da conta igualmente falecida.

- Conta de depósitos a prazo n.º (…) com forma de movimentação solidária, dois titulares, a qual apresentava à data do óbito o saldo de € 1.107,59. Sendo a quota-parte da herança de € 604,45 e o diferencial da quota-parte da herança da segunda titular da conta igualmente falecida.

- Conta de depósitos a prazo n.º (…) com forma de movimentação solidária, dois titulares, a qual apresentava à data do óbito o saldo de € 50.000,00. Sendo a quota-parte da herança de € 0,00 e o diferencial da quota-parte da herança da segunda titular da conta igualmente falecida.

- Conta de depósitos a prazo n.º (…) com forma de movimentação solidária, dois titulares, a qual apresentava à data do óbito o saldo de € 424.000,00.

Por imperativo legal, anexamos os extractos combinados da conta (…), relativos aos dois meses anteriores ao mês em que ocorreu o óbito, os quais reflectem as aplicações a prazo supra indicadas, e associadas à referida conta, por forma a instruir a participação da transmissão de bens, em sede de imposto de selo, junto do Serviço de Finanças competente.

Mais se informa que a conta à ordem e as restantes contas a prazo não apresentaram quaisquer movimentos entre 01 de Janeiro e a data do óbito, com excepção da conta de depósitos a prazo n.º (…), para a qual por apresentar movimentação de Janeiro de 2014 se junta extracto manual.”

12. A A. entregou em mão no dia 7 de Fevereiro de 2014 uma carta, redigida pela sua Mandatária, na agência de Sesimbra do Banco (…), datada do mesmo dia onde referia, “(…) Relativamente aos eventuais valores mobiliários, a informação deve conter a espécie/designação, quantidade, o respectivo valor de aquisição (valor/nominal) e cotação à data do óbito atrás indicada.

Relativamente ao teor de v/ carta datada de 27/1/2014, (…) desde já se refere não se compreender, por escassez de informação mais detalhada quanto às contas aí identificadas, os critérios legais para encontrar a quota-parte da herança pelo óbito do Sr. (…), e a quota-parte da segunda titular da conta igualmente falecida.

Informamos que os valores contantes das contas identificadas na v/ carta, apesar da forma de movimentação solidária e das mesmas terem dois titulares, é bem de identificar que os únicos valores movimentos na conta e que diziam respeito à D.ª (…), com que o Sr. (…) vivia em união de facto, ou seja, correspondiam apenas aos rendimentos da pensão daquela.

Todos os outros valores diziam e dizem respeito ao Sr. (…), aliás, a grande maioria deles transitados do Banco, onde ele era o único titular, ao que se conhece, entre outros valores provenientes da venda de bens imobiliários propriedade exclusiva do Sr. (…).

Em face de todo o exposto, entendemos que qualquer atribuição de valores à herdeira da D.ª (…), deverá acautelar os princípios de natureza legal atrás enunciados, pelo que a minha cliente irá assinar o documento de recepção de valores do acervo da herança por óbito do seu pai, Sr. (…), sob condição.”

13. Nesse mesmo dia 7 de Fevereiro de 2014, a A. assinou junto do R. Banco uma declaração com o seguinte teor:

“(…) na qualidade de herdeira habilitada por óbito de (…), declaram que, nesta data, recebem a seguinte verba

- EUR 213.723,44 (Duzentos e treze mil setecentos e vinte e três euros e quarenta e quatro cêntimos).

Referentes ao depósito na conta n.º (…), existente no Banco (…), S.A. titulada pelo falecido acima identificado. Declara ainda nada mais ter a receber do banco indicado, seja a que título for.”

14. O R. Banco (…) procedeu à entrega à R. (…), no dia 10 de Março de 2014, da quantia de 244.792,51 €.

15. No dia 3/3/2014, a R. (…) havia liquidado 23.187,40 € de imposto de selo.

16. O pai da A. era iletrado, conseguindo apenas assinar o nome por cópia e durante toda a sua vida activa dedicou-se, pelo menos, à venda de rádios, CDs, bijutaria, rolos de fita, anzóis de pesca, pilhas, ferramentas, reparava pequenos electrodomésticos, chegou a vender peixe, e emprestava dinheiro a juros, comprava e vendia imóveis.

17. Em data não concretamente apurada o pai da A. veio viver para Sesimbra, onde continuou o negócio no r/c do n.º (…) da Rua (…), em Sesimbra.

18. Por escritura pública de compra e venda de 14/4/1994 (…), representada por (…) declarou vender a (…), pelo preço de cinco milhões de escudos, a nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra “V”, correspondente ao 4º andar drt.º, Bloco C, destinado a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Dr. (…), n.º (…) e Avenida (…), em Sesimbra, freguesia de Santiago, concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da freguesia de Santiago, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…) e declarou vender o direito de usufruto sobre a mesma fracção a (…), pelo preço de três milhões de escudos.

19. Por escritura pública de quitação de 4/3/1998, (…) declarou dar quitação da quantia de dez milhões de escudos que, por escritura de 27/2/1995, emprestara a (…) e mulher, por ter recebido a referida quantia.

20. Por escritura pública de compra e venda de 28/7/2005, (…) declarou vender a (…) pelo preço de 50.000,00 € a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão para habitação com entrada pelo n.º (…) que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Sesimbra, na Rua (…), n.ºs 23 e 25, freguesia de Santiago, concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da freguesia de Santiago e inscrito na respectiva matriz sob o art.º (…), aquisição registada pela Ap. (…) de (…).

21. No dia 18/9/2007, através de escritura pública de compra e venda, (…), na qualidade de procurador de (…), proprietário, e (…), na qualidade de usufrutuária, declararam vender, livre de ónus e encargos, a (…), representado por (…), a nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao 1º andar para habitação, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), n.º (…), Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…), da freguesa de Santiago inscrito na matriz sob o artigo (…), pelo preço de 35.000,00 €, e vendem o usufruto do mesmo imóvel pelo preço de 15.000,00 €.

22. A propriedade da fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao 1º andar para habitação, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), n.º (…), Santiago, Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…), da freguesa de Santiago, estava registada a favor de (…) pela inscrição G-4, Ap. (…), de (…), e o direito de usufruto estava registado a favor de (…) pela inscrição F-3, Ap. (…), de (…), posteriormente cancelado o registo pela inscrição F-3, Ap. (…), de (…).

23. (…) era titular de uma conta no Banco (…) na dependência de Sesimbra – conta D.O. (…), onde movimentava os seus rendimentos e fazia as suas aplicações financeiras, a qual tinha um saldo contabilístico e disponível de 379.871,72 € em 6/2/2009.

24. Em 11/8/2009 transferiu todo o dinheiro para o Banco (…), tendo de imediato feito um depósito a prazo no valor de 385.907,04 €.

25. Por escritura pública de 19/8/2011 (…) declarou vender a “(…) – Imobiliária, Lda.”, representada por (…), o prédio urbano composto por edifício de loja e dois andares, para comércio e habitação, sito na Rua de (…), n.º 26 e 28, tornejando para o Beco do (…), n.º 1, (…), freguesia de S. Miguel, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), da freguesia de S. Miguel, pelo preço de 110.000,00 €, aquisição convertida em definitiva pela Ap. (…), de (…).

26. A quantia global de 110.000,00 € foi depositada na conta do Banco (…).

27. Pelo menos entre os anos de 2001 a 2005 o (…) entregou a declaração de IRS apenas em seu nome.

28. Pelo menos nos anos de 2008 a 2011, (…) e (…) entregaram declaração conjunta de IRS.

29. No ano de 2008, (…) declarou em sede de IRS rendimentos provenientes de pensões no montante de 5.317,24 € e o rendimento de 4.800,00 € de rendas e (…) o rendimento de 2.028,18 € de pensão.

30. No ano de 2009, (…) declarou em sede de IRS rendimentos provenientes de pensões no montante de 5.450,49 € e o rendimento de 4.800,00 € de rendas e (…) o rendimento de 2.079,14 € de pensão.

31. No ano de 2010, (…) declarou em sede de IRS rendimentos provenientes de pensões no montante de 5.518,66 € e o rendimento de 4.800,00 € de rendas e (…) o rendimento de 2.105,18 € de pensão.

32. No ano de 2011, (…) declarou em sede de IRS rendimentos provenientes de pensões no montante de 5.518,66 €, o rendimento de 2.395,25 € de rendas e o montante de 110.000,00 € de alienação de imóvel e (…) o rendimento de 2.105,18 € de pensão.

33. (…) não tinha outra fonte de rendimentos para além da pensão de sobrevivência, uma vez que apenas trabalhou alguns anos como bordadeira, o que já não fazia há alguns anos, cerca de 15 a 20 anos, antes do seu óbito.

34. (…) levou consigo, no início da sua convivência com (…), duas máquinas, uma de costura e outra de bordar, bem como um cordão e uma pulseira em ouro, desconhecendo-se se tais bens actualmente ainda existem ou qual o seu valor.

35. Por questões de saúde e dificuldades em se deslocar do Sr. (…), nos tempos antes do seu falecimento era a D.ª (…) quem ia ao Banco, para acorrer a despesas correntes do dia-a-dia.

36. A A. emitiu relação de bens, em que relacionou as contas bancárias no processo de imposto de selo, como contas exclusivamente da titularidade de (…).

37. A A. não entregou ao Banco qualquer declaração da autoridade tributária comprovativa da ilisão da quota-parte.

38. A declaração referida em 13) foi assinada pela A. porquanto foi imposta pelo R. Banco como condição para o levantamento da quantia da conta bancária, quantia que era indispensável para a A. fazer face a despesas instantes.»


B) DE DIREITO:

1. Comece-se por recordar, conforme já se deixou expresso supra, que no presente recurso apenas subsiste por discutir, do objecto do processo, a questão de saber se o Banco R. actuou (ou não) correctamente, i.e. em conformidade com a lei, quando, perante solicitações (cfr. pontos de facto nos 8 e 11 supra) das herdeiras (aqui A. e 1ª R.) de cada um dos titulares de conta bancária solidária (aberta em nome do pai e da irmã daquelas, respectivamente) aberta naquela instituição bancária – e não obstante a divergência entre tais sucessoras, quanto à efectiva titularidade do dinheiro ali depositado – entendeu fazer aplicação da presunção de igualdade de comparticipações de ambos os titulares dessa conta, ao abrigo do 516º do C.Civil, e, nessa base, proceder à entrega de metade do saldo dessa conta a cada uma das referidas sucessoras.

Note-se que já está consolidada no processo a condenação da 1ª R. no sentido de restituir à A. a metade desse saldo que lhe foi entregue pelo Banco R., por se ter entendido que todo o dinheiro ali depositado pertencia efectivamente ao pai da A. – e isso na medida em que a 1ª R. não recorreu da sentença, conformando-se com essa decisão. Já não se discute, pois, o acerto da decisão quanto à titularidade desse dinheiro, sendo por isso irrelevante toda a alegação do Banco recorrente quanto à relevância patrimonial da actividade de doméstica da falecida irmã da R. para a economia comum da união de facto que ligava os titulares da conta. O que está em causa é apenas a legalidade do procedimento bancário adoptado pelo Banco apelante perante as solicitações de A. e 1ª R. no sentido da entrega do dinheiro.

Na apreciação a fazer sobre esse procedimento importa ainda ter presentes dois aspectos que não serão despiciendos para ponderação: por um lado, será necessário encontrar fundamento legal para permitir o procedimento contrário (i.e., para o Banco reter o dinheiro e não o entregar às herdeiras dos titulares da conta, apesar de instado para tal), sob pena de a recusa da entrega ser, essa sim, ilegal; e, por outro lado, deverá perspectivar-se que, como consequência da decisão de condenação do Banco R., estará a obrigar-se este a um duplo pagamento, entregando uma segunda vez (desta vez à A.) quantia que já entregou (à 1ª R.) e que já não tem na sua posse, como se fosse uma penalização pela sua presumível actuação desconforme a regras bancárias – o que suscitará a questão da existência de um direito de regresso em relação à 1ª R., assim se evidenciando que o tribunal, com a condenação do Banco R., estará a constituí-lo, na prática, como uma espécie de garante ou seguradora da responsabilidade da 1ª R. (ainda que essa questão já extravase o objecto da presente acção, não tendo de ser dirimida neste recurso).

Porém, e preliminarmente à apreciação substantiva do procedimento bancário em causa, haverá que ajuizar sobre a pretensão, com precedência lógica, de alteração da matéria de facto também manifestada pela R. apelante.

2. Quanto à impugnação da matéria de facto, e se atentarmos nas conclusões das alegações de recurso da R. recorrente, verificamos que esta produz a declaração de que o tribunal a quo errou na análise da prova testemunhal e documental produzida nos autos, indicando elementos probatórios (designadamente, procede à transcrição de excertos de depoimentos, no corpo das alegações – concretamente, das testemunhas … e …) que, no seu entender, determinariam a alteração pretendida.

Ora, no que tange a essa modalidade de impugnação, sublinhe-se, desde já, que apenas serão de considerar as pontuais pretensões claramente manifestadas nesse sentido pelo recorrente, por força da especial exigência do legislador no rigoroso cumprimento dos ónus impostos nesse domínio pelo artº 640º do NCPC (como melhor se referenciará infra), sendo por isso tidas por irrelevantes indicações mais ou menos genéricas ou imprecisas de eventual alteração.

Para melhor enquadrar a avaliação da viabilidade da pretensão concretamente manifestada pelo Banco apelante, importa, antes de mais, atender às condicionantes legais da impugnação da matéria de facto.

Desde logo, tenha-se presente o que se sublinhava no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento».

Daqui derivam dois pensamentos essenciais que devem parametrizar esta matéria da apreciação da impugnação da matéria de facto: por um lado, a noção de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova; por outro, a ideia de que o tribunal de 2ª instância não deve ir além de um juízo sobre a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, face aos elementos disponíveis nos autos.

Quanto ao primeiro aspecto, saliente-se o que já dizia o Ac. RE de 3/6/2004 (CJ, XXIX, t. III, p. 249): «(…) o sistema legal, tal como está consagrado, [mesmo] com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa». Têm-se aqui em mente aqueles «elementos intraduzíveis e subtis», como a «mímica e todo o aspecto exterior do depoente», de que falava LOPES CARDOSO (in BMJ, nº 80, pp. 220-221, citado por ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 4ª ed, Almedina, Coimbra, 2004, p. 247).

Sobre o segundo ponto, pronuncia-se assim o Ac. RC de de 3/10/2000 (CJ, XXV, t. IV, p. 27): «o tribunal da 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si». Trata-se aqui de «através das regras da ciência, da lógica e da experiência, (…) controlar a razoabilidade daquela convicção [do tribunal de 1ª instância] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado», conforme se expressa TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 348).

Diremos, pois, na linha de outros arestos desta Relação, que a constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto impõe que se tenha chegado à conclusão de que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, como decorrência de «um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas» (cfr., por todos, Ac. RE de 23/9/2004, Proc. 1027/04-2, in www.dgsi.pt).

Num outro plano, é ainda de exigir, para que ocorra uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, que seja dado pelo recorrente o devido cumprimento aos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC: indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

Quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

Finalmente, e ainda noutro plano, importa reiterar a afirmação, já supra expendida, de que as conclusões das alegações são determinantes para a delimitação do objecto do recurso e para o âmbito de intervenção do tribunal de recurso – pelo que a omissão naquelas conclusões de elementos tidos por relevantes para a apreciação do recurso, segundo a conformação da pretensão do recorrente, fará claudicar inexoravelmente tal recurso.

Também aqui é de salientar a posição de ABRANTES GERALDES, ao sustentar a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, e com o mesmo «critério de rigor» supra assinalado, sempre que ocorra «falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto», «falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados» ou «dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados», e «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 128).

Vejamos então se, no caso dos autos, e tendo presentes estas considerações e o teor das conclusões das alegações de recurso, terá dado a apelante adequado cumprimento ao disposto no artº 640º, nº 1, do NCPC.

Ora, se bem virmos o referido teor, apenas é possível descortinar a indicação de um concreto ponto de facto que deveria ser declarado como “provado” – e que corresponde à primeira parte de facto declarado como “não provado”: «O falecido manifestava o desejo de contemplar a então companheira com os seus bens» (cfr. conclusão 22ª supra). Contudo, a menção aos elementos probatórios tidos como relevantes para alcançar tal aditamento à factualidade provada consistiu numa extensa transcrição (no corpo das alegações) de trechos de declarações prestadas em audiência, que peca por não revelar uma demonstração rigorosa e cabal de quais as específicas passagens da gravação da audiência que imporiam decisão de facto diversa. E isto apenas no plano formal, já que, se devidamente formulada a pretensão de alteração de facto neste ponto, sempre se colocaria a questão da sua irrelevância para a questão substantiva subsistente no recurso (em que já não se discute a titularidade material do dinheiro depositado).

Por sua vez, quanto a outros pontos de facto que a R. apelante pretendesse alterar ou aditar enquanto factualidade provada, é notória a omissão da indicação desses concretos factos (e em que exactos termos) que pretendia ver declarados provados: não se enunciou o exacto teor que deveriam ter os novos pontos de facto provados, não se concretiza o texto dos novos pontos de facto (e um por um) a aditar ao elenco de factos provados já estabelecido – i.e., não se especifica «a decisão que (…) deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», como impõe a al. c) do nº 1 do artº 640º do NCPC.

E qualquer dessas circunstâncias afecta irremediavelmente a pretensão de impugnação da matéria de facto. Ou seja, por força das circunstâncias enunciadas, somos levados a concluir que a impugnação da matéria de facto formulada pela R. apelante não deverá ser atendida, por carência de um pleno e integral cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC. Sendo assim, cumpre rejeitar o presente recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, na medida em que não estão reunidas as condições formais para a sua reapreciação, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º – o que também nos dispensa da audição da prova gravada em audiência. E, como tal, considera-se improcedente a pretensão de impugnação da matéria de facto formulada em sede do presente recurso.

Em conformidade, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância (e para a qual se remete, nos termos do artº 663º, nº 6, do NCPC).

3. Posto isto, e atenta a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância (na sequência da rejeição da impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC), importa, pois, aferir do acerto da decisão recorrida quanto à matéria de direito.

Como se disse, a questão nuclear em discussão prende-se com o procedimento bancário adoptado pelo Banco apelante, no quadro da comprovada sucessão de A. e 1ª R. nas posições que seu pai e irmã, respectivamente, tinham enquanto titulares de conta bancária solidária aberta naquela instituição bancária (cfr. ponto de facto nº 5 supra).

Não nos oferece dúvidas que, em relação a esse depósito bancário, estamos perante um contrato de depósito irregular: é pacífico o entendimento de que um contrato de depósito bancário (com entrega de quantia em dinheiro, como coisa fungível), como o que se prefigura no caso dos autos, reveste a referida natureza, que tem a sua previsão no artº 1205º do C.Civil, ao qual se aplicam, quando possível, as regras do mútuo, nos termos do artº 1206º do mesmo Código (v., por todos, o recente Ac. STJ de 16/9/2014, Proc. 339/09.0TVLSB.L2.S1, e o Ac. RE de 4/10/2007, Proc. 64/07-3, in www.dgsi.pt), designadamente a regra de que o Banco fica com a obrigação de restituir o dinheiro depositado do mesmo género e qualidade, nos termos do artº 1142º do C.Civil (e a concretizar no termo de prazo acordado ou quando para tal interpelado o mutuário/depositário, sempre ressalvando período mínimo de denúncia, se aplicável, ou regras contratuais específicas, tudo segundo as disposições dos artos 1147º e 1148º ou 1187º, al. c), 1192º e 1194º do C.Civil).

Por outro lado, a característica de solidariedade dessa conta bancária remete, necessariamente, para a consideração do disposto no artº 516º do C.Civil. Reza esse preceito como segue: «Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito». Perante esta norma não oferecerá também dúvidas que a questão da repartição da propriedade do dinheiro respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa – sendo por isso matéria a que o Banco é alheio. Mas como compatibilizar aquela obrigação de restituição do Banco, quando instado para tal, com esta obrigação de não interferência desse mesmo Banco em litígio relativo à propriedade dos valores nele depositados?

Ora, é neste preciso ponto que releva a interpretação do artº 516º do C.Civil, a qual, segundo cremos, impõe ao Banco o cumprimento da obrigação de restituição de acordo com o critério supletivo que se inscreve naquela norma: o da presunção de igualdade de comparticipações (ou de contitularidade em partes iguais).

Com efeito, e retomando a reflexão iniciada supra, afigura-se-nos que a questão da legalidade do procedimento bancário adoptado pelo Banco apelante tem de ser ponderada numa perspectiva diferente da que foi colocada pelo tribunal a quo (e pelo invocado Ac. RL de 26/1/2016, in Proc. 355/09.1TVLSB.L1-6). Segundo esse ponto de vista, o Banco, perante o dissídio das sucessoras dos titulares da conta, deveria ter recusado a entrega por metade do dinheiro ali depositado a cada uma das herdeiras, procedendo ao congelamento do saldo da conta até que se apurasse definitivamente a propriedade do dinheiro. Mas a questão que então se coloca é a de saber que base legal, nessa eventualidade, teria o Banco para recusar tal entrega, incumprindo a obrigação de restituição que emerge do artº 1142º, ex vi do artº 1205º, ambos do C.Civil – e isso perante o risco de o Banco ser, afinal, e com propriedade, demandado por responsabilidade civil contratual, devido a essa omissão de entrega. E a resposta que nos surge como óbvia é, precisamente, inexistir qualquer fundamento legal para tal procedimento: não se vislumbra qualquer normativo que permitisse ao Banco impedir os herdeiros dos titulares de aceder ao dinheiro dos seus familiares, e por todo o tempo que durasse o litígio entre as partes, designadamente até haver uma decisão judicial definitiva daquele – o que apenas se afiguraria possível através de alguma medida conservatória que blindasse o respectivo saldo, a accionar por via judicial, e por iniciativa de algum dos interessados (neste caso, da A., na medida em que se considerava com direito à totalidade do saldo bancário, enquanto a 1º R. apenas reivindicava o direito à metade que recebeu do Banco).

Afirma-se na decisão recorrida (louvando-se no aresto supra citado), e com a concordância da A., que a aplicação pelo Banco R. da presunção do artº 516º do C,Civil, para dar resposta às solicitações de entrega do dinheiro por parte das aqui A. e 1ª R., se traduziu, na prática, numa forma de dirimir o litígio daquelas, substituindo-se à decisão judicial na definição da propriedade do dinheiro depositado. Porém, cremos que a presente acção demonstra precisamente o contrário: aquele procedimento do Banco não impediu que a discussão judicial da titularidade do dinheiro tivesse lugar (podendo alcançar-se, como se alcançou, uma decisão no sentido de que o dinheiro era pertença do pai da A.); e, precisamente porque não cabia ao Banco decidir quanto à ilisão da presunção do artº 516º do C.Civil, não podia aquele deixar de aplicar tal presunção quando interpelado para cumprir a obrigação de restituição a que estava contratualmente vinculado (e a cujo cumprimento não tinha fundamento legal para se eximir). Discorda-se, assim, da solução sustentada na decisão recorrida (e no aresto em que a mesma se louva).

Ainda uma última observação. Apenas para manifestar alguma perplexidade perante a condenação solidária das RR. exarada na decisão recorrida, quando, afinal, a responsabilidade imputada a ambas não tem um fundamento comum: a da 1ª R. assentou, no fundo, no instituto do enriquecimento sem causa; e a da 2ª R. no regime da responsabilidade civil contratual – pelo que ficou por explicar a ratio daquela solidariedade, reforçando a ideia, já expressa supra, de uma criação ad hoc de um regime de garantia subsidiária da responsabilidade da 1ª R., posta a cargo do Banco R., sem suporte legal bastante.

De tudo isto se deduz, portanto, que não haveria fundamento para a condenação da R. apelante operada na sentença recorrida (condenação essa que apenas deverá subsistir para a 1ª R., por tal sentença, nessa parte, já se ter consolidado no processo, pelo respectivo trânsito em julgado).

Neste conspecto, não pode ser mantida a decisão recorrida, na parte impugnada, e cabe a este Tribunal, em substituição do tribunal a quo (ao abrigo do artº 665º, nº 1, do NCPC), revogar essa decisão quanto àquilo que, no seu dispositivo, respeita à 2ª R. – que, consequentemente, deverá ser absolvida do pedido.

4. Em suma: pelas razões aduzidas, a presente apelação merece provimento, com a consequente revogação da decisão recorrida, na parte em que condenou a 2ª R. parcialmente no pedido (i.e., a pagar à A., solidariamente com a outra R., a quantia de 267.979,91 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre 23.187,40 € desde 3/4/2014 e sobre 244.792,51 € desde 10/3/2014, vencidos e vincendos, até integral pagamento), devendo absolver-se a mesma do pedido formulado na acção.

*


III – DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento à presente apelação, pelo que se revoga a sentença recorrida, na parte que respeita à condenação da R. «Banco (…), SA», improcedendo integralmente a acção quanto à mesma, que assim vai absolvida do pedido contra ela formulado.

Custas da apelação pela A. apelada (artº 527º do NCPC).

Évora, 23 / 02 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)