Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2475/23.0T8OER-B.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado deve identificar quanto possível o documento e especificar os factos que com ele quer provar.
II – A inobservância destes requisitos constitui fundamento de indeferimento do requerimento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: 2475/23.0T8OER-B.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 161, (…), instaurou contra (…), residente na Rua (…), (…), Sousel, veio este deduzir oposição à execução mediante embargos.
Alegou, em resumo, que a confissão de dívida que serve de título à execução, foi por si assinada sob coacção, assistindo-lhe o direito de requerer a anulação do negócio.
Concluiu pedindo que seja declarada a anulação da Confissão de Dívida e determinada a extinção da execução.
Requereu a final o seguinte:
Requerer-se que seja ordenada a junção aos autos, por parte da Embargada, dos documentos em que funda a existência da dívida objecto de confissão, no valor de € 30.000,00, o que faz nos termos do n.º 1 do artigo 429.º do CPC”.
A Exequente contestou por forma a defender a improcedência dos embargos.

2. Houve lugar a audiência prévia no decurso da qual foi proferido despacho saneador a afirmar a validade e regularidade da instância, identificado e objecto do litígio e enunciados os temas da prova e proferido o seguinte despacho:
V.2 – Documentos em poder da parte contrária
O Embargante veio requerer que a Embargada junte ao processo os documentos ‘em que funda a existência da dívida objeto de confissão’, nos termos do artigo 429.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Resulta da alegação constante da causa de pedir dos embargos deduzidos que o documento intitulado de ‘acordo de pagamento e confissão de dívida’, foi apresentado ao Embargante por Il. Mandatária do Embargado.
Os documentos que deram origem a tal documento e que o Embargante requer agora são propriedade da Il. Mandatária que não é parte no processo, apenas assegura uma função de representação judicial, através de um contrato de mandato. Acresce que o conteúdo dos documentos podem estar sujeitos a segredo profissional não podendo o Tribunal deles ter conhecimento.
‘I. O segredo profissional que se impõe ao Advogado como dever essencial ao exercício da sua profissão, encontrando embora justificação também em razões de ordem pública, pode e deve ceder quando em confronto com outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação consagrado no artigo 417.º do CPC é instrumental. II. A dispensa, porém, devendo assumir um carácter de verdadeira excepcionalidade, só deve/pode ser determinada quando ocorram razões imperiosas, assumindo-se o testemunho do profissional como absolutamente essencial, decisão que impõe a ponderação dos interesses em conflito tendo em vista a formulação de um juízo de prevalência assente nas circunstâncias concretas do caso’.
Nos presentes autos, por ora, não constam dos mesmo elementos que permitam ao Tribunal concluir pela excecionalidade de facto e ou de direito que impliquem a quebra do segredo profissional por parte da Il. Mandatária do Exequente, ora Embargado, e, consequentemente, que determine que o mesmo apresente os documentos que estiveram na origem do título executivo em sindicância, tanto mais que, como o Embargante alega no seu requerimento, o documento foi da autoria da Il. Mandatária.
Não menos relevante é, ainda, o facto de certamente o Embargante ter cópia dos documentos que trocou com o Embargado, nomeadamente cartas, e-mails, contactos, os quais, por pertencerem diretamente às partes e não estarem sujeitas a segredo profissional, podem ser juntos aos presentes autos, não descuidando os ónus de prova que a cada parte compete.
Nestes termos, indefere-se, por falta de fundamento, o pedido de junção de documentos que se encontram na posse da parte contrária”.

3. Recurso
O Executado recorre deste despacho, motiva e recurso e conclui:
I. O embargante requereu sede de petição de Embargos o seguinte: “Requerer-se que seja ordenada a junção aos autos, por parte da Embargada, dos documentos em que funda a existência da dívida objecto de confissão, no valor de € 30.000,00, o que faz nos termos do n.º 1 do artigo 429.º do CPC”;
II. O Mm.º Juiz a quo, em sede de Despacho Saneador, indeferiu assim, com os fundamentos ali melhor explanados:
“Nestes termos, indefere-se, por falta de fundamento, o pedido de junção de documentos que se encontram na posse da parte contrária”;
III. Não resulta dos autos, muito menos da alegação do Embargante que os documentos cuja junção foi requerida, sejam propriedade da ilustre causídica;
IV. Nem consta com alegado pelo ora Recorrente que o documento intitulado de “acordo de pagamento e confissão de dívida”, é propriedade da Ilustre mandatária;
V. A intervenção do mandatário nos autos, é feita em nome e no interesse do mandante, através dos poderes que lhe são transmitidos pela procuração forense;
VI. Nos autos em que é obrigatória a constituição de mandatário, como nos presentes autos, apesar da intervenção processual ter que ser apresentada através de mandatário, resulta da própria natureza do mandato que é o mandante que fala e intervém nos autos, não é o mandatário;
VII. O mesmo se diga em relação aos documentos que ali se juntam, são propriedade ou estão na posse do mandante, apesar de serem apresentados pelo mandatário;
VIII. A parte que intervém nos autos, é o mandante, e não o mandatário;
IX. No documento intitulado de “acordo de pagamento e confissão de dívida” consta expressamente que o Embargante se confessa devedor perante a Embargada e não perante a sua ilustre causídica;
X. Razão pela qual, se mostra irrelevante, inoportuna e descontextualizada a questão suscitada no douto despacho sob recurso, do sigilo profissional e do seu correspondente levantamento;
XI. Pretende pois o Embargante, que sejam juntos aos autos os documentos que comprovam documentalmente o processo de liquidação do valor correspondente e relacionado com o documento intitulado de “acordo de pagamento e confissão de dívida”;
XII. Para existir dívida, teve que existir negócio jurídico, este teve que ter o suporte de documentos e o cálculo do valor encontrado, teve que ser objecto de liquidação, para chegar ao seu valor;
XIII. São esses documentos em poder da Embargada, bem assim, a rigorosa descrição factual, da liquidação do valor apurado, cuja junção foi requerida pelo Embargante, que se mostram essenciais à descoberta da verdade dos factos e boa decisão da causa;
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogado a douto despacho que indeferiu o pedido de junção de documentos em poder da Embargada e substituído por outro que defira o pedido, assim se fazendo a costumada justiça.”
A Exequente respondeu por forma a defender a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objecto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se a Exequente deve ser notificada para juntar aos autos documentos.

III- Fundamentação
1. Factos
Relevam os factos constantes do relatório supra.
2. Direito
2.1. Da junção de documentos em poder da parte contrária
Segundo o artigo 429.º, n.º 1, do CPC, quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.
E estabelece o n.º 2: “Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação”.
De acordo com este regime o juiz determina a notificação da parte contrária para juntar documentos verificados os seguintes requisitos:
- existência de um documento que se encontre em poder da parte contrária;
- o documento se destine à prova de factos com interesse pra a decisão da causa.
Para a apreciação liminar ou perfunctória destes requisitos o requerente identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.
A notificação tem efeitos relevantes: a falta de junção do documento pela parte notificada é havida como recusa com efeitos sancionatórios (condenação em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis) e efeitos processuais: o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil [artigo 417.º, n.º 2, ex vi do artigo 430.º, do Código de Processo Civil].
O notificado pode ainda declarar que não possui o documento, caso em que o requerente é admitido a provar, por qualquer meio, que a declaração não corresponde à verdade [artigo 431.º, n.º 1, do Código de Processo Civil].
Para tanto, o requerente deve assegurar-se previamente que o documento existe e identificá-lo tanto quanto possível, única via de o despacho dar a conhecer à parte contrária de que documento se trata “é indispensável que ela saiba, ao certo, qual a espécie de documento que se lhe exige – se uma carta, se uma letra, se um relatório, se um balanço, se um título de arrendamento, etc.. E não basta que se indique a espécie em abstracto, é necessário que se caracterize a espécie, que se individualize o documento (…)[1].
A notificação da parte contrária para juntar aos autos um documento inexistente - ou que não se sabe se existe - constitui um uso reprovável dos meios processuais e, de qualquer modo, um acto inútil que a lei não consente [artigo 130.º do Código de Processo Civil].

2.2. A junção de documentos no caso concreto
A execução tem por título executivo um documento particular denominado “confissão de dívida e acordo de pagamento” e o Executado veio requerer “que seja ordenada a junção aos autos, por parte da Embargada, dos documentos em que funda a existência da dívida objecto de confissão, no valor de € 30.000,00, o que faz nos termos do n.º 1 do artigo 429.º do CPC”.
Requerimento que não observa os requisitos de forma necessários; não se identifica – ainda que tanto quanto possível – os documentos cuja junção se requer, nem se especificam os factos que com eles se quer provar.
Em vista das alegações de recurso fica-se, aliás, com a ideia que o próprio Executado não sabe se os documentos existem ou não – “Para existir dívida, teve que existir negócio jurídico, este teve que ter o suporte de documentos e o cálculo do valor encontrado, teve que ser objecto de liquidação, para chegar ao seu valor [cls. XII]e se o Executado que interveio nas negociações e assinou a confissão de dívida não sabe se os documentos existem ou não – devem existir porque a dívida existe, é o seu ponto – não se vê como notificar a Exequente para proceder à sua junção.
A notificação para junção de documentos, ao abrigo do disposto no artigo 429.º, n.º 1, do CPC, constitui um acto de instrução do processo e não um meio de fragilização da posição jurídica da parte contrária.
O requerimento para junção de documentos não identifica – ainda que tanto quanto possível – os documentos cuja junção se requer, nem especifica os factos que com eles se quer provar e, assim, não merece deferimento.
Com esta fundamentação, o despacho recorrido mantem-se.

3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Executado/recorrente pagar as custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso em confirmar o despacho recorrido.
Custas pela Apelante.
Évora, 16 de Dezembro de 2024
Francisco Matos
Ana Margarida Pinheiro Leite
Mário João Canelas Brás


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[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 34.