Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5500/24.4T8STB-A.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
CONEXÃO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
QUESTÃO PREJUDICIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
EFEITO DEVOLUTIVO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL EM CONTRAORDENAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: SOCIAL
Sumário: Sumário elaborado pela relatora:
I. Limitando-se a arguida, em sede de impugnação judicial da decisão da ACT, a apresentar uma lista de processos contraordenacionais pendentes contra si deduzidos, nada mais referindo, nomeadamente sobre o preenchimento dos requisitos necessários à conexão de processos previstos nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, e não resultando da matéria de facto o preenchimento desses requisitos, inexiste fundamento legal para deferir a visada apensação de processos.

II. Um processo judicial de contraordenação laboral só constituirá questão prejudicial em relação a outro se o que se vier a decidir no primeiro for suscetível de condicionar a decisão final a proferir no segundo.

III. O artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, conjugada com a norma contida na alínea c) do artigo 33.º da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, interpretadas no sentido de considerar que a impugnação judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre efeito devolutivo, é inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral: P.5500/24.4T8STB-A.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


I. Relatório


Gertal – Companhia Geral de Restaurantes e Alimentação S.A. impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Para As Condições de Trabalho (ACT) que lhe aplicou uma coima pela prática de contraordenação laboral.


O Ministério Público apresentou os autos ao juiz, ao abrigo do artigo 37.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


A 1.ª instância proferiu despacho liminar, no qual, em síntese, para o que ora releva, decidiu:


1. Indeferir a requerida prestação de caução, mediante garantia bancária, com vista à fixação de efeito suspensivo à impugnação judicial, atenta a sua inadmissibilidade legal;


2. Admitir a impugnação judicial, com efeito devolutivo;


3. Indeferir a arguida nulidade processual por preterição da apensação dos processos identificados pela impugnante no artigo 29.º das suas alegações.


4. Julgar inverificada a arguida nulidade do auto de notícia e de todos os atos dele dependentes, nomeadamente da decisão administrativa.


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A impugnante interpôs recurso para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:


«I. A RECORRENTE FOI NOTIFICADA DO DESPACHO QUE INDEFERIU A PRETENDIDA PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO, MEDIANTE GARANTIA BANCÁRIA, COM VISTA À FIXAÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO À IMPUGNAÇÃO JUDICIAL, POR INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSTO NO ARTIGO 35.º, N.º 1, DA LEI N.º 107/2009, DE 14 DE SETEMBRO, NA REDACÇÃO DADA PELA LEI N.º 13/2023, DE 3 DE ABRIL, BEM COMO QUE INDEFERIU A ARGUIDA NULIDADE, POR PRETERIÇÃO DA APENSAÇÃO DOS PROCESSOS IDENTIFICADOS PELA RECORRENTE NO ARTIGO 29.º, DAS SUAS ALEGAÇÕES:


II. NÃO PODE, ADEMAIS, A ACT APLICAR UMA COIMA PARA CADA UMA DAS INFRACÇÕES OU VÁRIAS COIMAS POR CADA BLOCO DE INFRACÇÕES, PELO QUE, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 19.º, N.º 1 DO RGCO E 558.º, N.º 3, DO CÓDIGO DO TRABALHO, DEVERÁ PROCEDER À APENSAÇÃO DE TODOS OS PROCESSOS CONTRA-ORDENACIONAIS INSTAURADOS À RECORRENTE NUM SÓ;


III. COM EFEITO, A ACT DEVERIA TER APENSADO AOS PRESENTES AUTOS TODOS OS PROCESSOS CONTRA-ORDENACIONAIS MELHOR IDENTIFICADOS NAS ALEGAÇÕES DO PRESENTE RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL E QUE FORAM INSTAURADOS PELOS DIVERSOS CENTROS DA ACT;


IV. PELO EXPOSTO, A DECISÃO CONDENATÓRIA DA ACT É NULA POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 120.º, N.º 2, ALÍNEA D) E 122.º, N.º 1, AMBOS DO CPP, APLICÁVEIS EX VI DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 19.º E 41.º DO RGCO E 60.º DA LEI 107/2009, DE 14 DE SETEMBRO, NA MEDIDA EM QUE NÃO CUMULOU O PRESENTE PROCESSO COM TODOS OS PROCESSOS DE CONTRAORDENAÇÃO PENDENTES EM NOME DA RECORRENTE EM TODAS AS UNIDADES DA ACT (CFR. JURISPRUDÊNCIA CONSTANTE DOS DOCUMENTOS N.ºS 2 A 8 JUNTOS COM O RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL);


V. SEM CONCEDER, A ACT (CFR. DOCUMENTO N.º 9 JUNTO COM O RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL) TINHA CONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE UM PRÉVIO RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL (PROCESSO N.º 4189/19.7... - JUÍZO DO TRABALHO DO PORTO – JUIZ 2), NO QUAL O TRIBUNAL ORDENOU QUE A ACT EFECTUASSE O CÚMULO JURÍDICO COM TODOS OS PROCESSOS DE CONTRAORDENAÇÃO PENDENTES EM NOME DA RECORRENTE EM TODAS AS UNIDADES E CENTROS LOCAIS DO PAÍS, SEM QUE, ATÉ À DATA, A ACT TENHA DADO CUMPRIMENTO A TAL ORDEM JUDICIAL;


VI. SALVO MELHOR ENTENDIMENTO, A PENDÊNCIA DO PROCESSO N.º 4189/19.7... CONTENDE COM A PENDÊNCIA DO PRESENTE (E NOVO) RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL ONDE SE CUIDARÁ DE APRECIAR A MESMA QUESTÃO FORMAL DA VIOLAÇÃO, PELA ACT, DO DISPOSTO NO ARTIGO 19.º DO RGCO – QUESTÃO JÁ OBJETO DE DOUTA DECISÃO JUDICIAL QUE A ACT PERSISTE EM NÃO CUMPRIR;


VII. ADEMAIS, A EFECTIVAÇÃO DO CÚMULO JURÍDICO DOS PROCESSOS PELA ACT NO ÂMBITO DO ORDENADO NO PROCESSO N.º 4189/19.7... CONFIGURA, SALVO MELHOR OPINIÃO, QUESTÃO PREJUDICIAL QUE IMPEDE A PROSSECUÇÃO DOS PRESENTES AUTOS ATÉ À PROLAÇÃO DE UMA DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO NAQUELES AUTOS;


VIII. E NÃO INVOQUE A ACT QUE JÁ FOI EFECTUADO O CÚMULO, CUJA DECISÃO É POSTERIOR À PENDÊNCIA DESTES AUTOS CONTRA-ORDENACIONAIS, NÃO TENDO SIDO EFECTUADO O CÚMULO POR DECISÃO EXPRESSA DA ACT;


IX. SALVO O DEVIDO RESPEITO E QUE É MUITO, O JULGADOR NÃO SE PRONUNCIOU SOBRE TAIS ARGUMENTOS, OPTANDO POR EXPENDER ARGUMENTOS DESTINADOS A DEMONSTRAR QUE NÃO ERA POSSÍVEL O CÚMULO JURÍDICO;


X. A RECORRENTE PUGNA PELA DESAPLICAÇÃO, POR INCONSTITUCIONALIDADE, DA NORMA CONTIDA NA ALÍNEA C) DO ARTIGO 33.º DA LEI 13/2023, DE 3 DE ABRIL, NA PARTE EM QUE REVOGOU OS N.ºS 2 E 3 DO ARTIGO 35.º DA LEI N.º 107/2009, DE 14 DE SETEMBRO, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 18.º, N.º 2, 20.º, N.º 1 E 32.º, N.º 10, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, BEM COMO PELA ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL INTERPOSTO, CONFORME DOCUMENTOS N.ºS 10 E 10.1 JUNTOS COM O RECURSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL;


XI. A PREDITA NORMA JÁ FOI DECLARADA INCONSTITUCIONAL PELA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA (CFR. DOCUMENTO N.º 10.1 – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL);


XII. DESTARTE, FOI OPÇÃO DO LEGISLAR REVOGAR A NORMA QUE ATRIBUÍA EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO, MEDIANTE A PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO OU DE GARANTIA BANCÁRIA, BEM COMO IMPOR UM ÚNICO REGIME: EFEITO DEVOLUTIVO PARA TODOS OS RECURSOS DE IMPUGNAÇÃO DE COIMAS LABORAIS;


XIII. A PREDITA OPÇÃO DO LEGISLADOR CONTENDE COM O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA (ARTIGO 32.º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA), DADO QUE A DECISÃO TORNA-SE IMEDIATAMENTE EXEQUÍVEL SUBVERTENDO AQUELE PRECEITO MUITO PRECOCEMENTE, DO DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA (ARTIGO 20.º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA) E DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (ARTIGO 18.º, N.º 2 DO MESMO DIPLOMA), NAS VERTENTES DA NECESSIDADE E DA JUSTA MEDIDA;


XIV. SE O LEGISLADOR PRETENDIA EVITAR RECURSOS INFUNDADOS, DILATÓRIOS E UMA MAIOR CELERIDADE DAS DECISÕES ADMINISTRATIVAS, TAL DESIDERATO JÁ SE ENCONTRA SALVAGUARDADO, ENTRE OUTROS, COM A RESPONSABILIZAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ADMINISTRADORES, GERENTES E DIRETORES, PELO PAGAMENTO DAS COIMAS E PELA EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS NAS CONTRAORDENAÇÕES LABORAIS;


XV. CONFORME ACÓRDÃO N.º 376/2016 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NÃO SAI FERIDO PELA LIMITAÇÃO DO EFEITO SUSPENSIVO DOS RECURSOS DESDE QUE VERIFICADOS DETERMINADOS PRESSUPOSTOS, O QUE FOI COMPLETAMENTE REVOGADO PELA ALÍNEA C) DO ARTIGO 33.º DA LEI 13/2023, DE 3 DE ABRIL, PELO QUE DISCORDA-SE, PELOS FUNDAMENTOS EXPOSTOS, DOS ARGUMENTOS CONSTANTES DA DECISÃO RECORRIDA.


NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, OS QUAIS SERÃO DOUTAMENTE SUPRIDOS POR V. EX.A, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO INTEGRALMENTE PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, ASSIM SENDO FEITA, COMO SEMPRE, A ACOSTUMADA JUSTIÇA.»


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A 1.ª instância admitiu o recurso, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.


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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.


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O apenso do recurso subiu à Relação e a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer no sentido de o recurso dever improceder.


A recorrente respondeu, reiterando a posição anteriormente assumida.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*


II. Objeto do recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO) e artigos 50.º, n.º 4, e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


Em função destas premissas, as questões a decidir são as seguintes:


1.ª Se devem ser apensados aos presentes autos os processos contraordenacionais pendentes contra a recorrente;


2. ª Se o processo pendente com o n.º 4189/19.7... constitui questão prejudicial que impede a prossecução dos presentes autos;


3.ª Se deve ser atribuído efeito suspensivo à impugnação judicial.


*


III. Matéria de Facto


A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para a qual remetemos sem necessidade da sua repetição, tendo-se, ainda, em consideração os elementos relevantes que resultem do processo.


*


IV. Enquadramento jurídico


1. Da visada apensação de processos


A questão sub judice foi assim decidida pela 1.ª instância:


«Quanto à Apensação dos Processos


I. Conforme se viu a Lei n.º 107/2009, de 14/09, através da redação introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 03/04, veio prever no art. 25º, n.º 2, que As sanções aplicadas às contraordenações em concurso são sempre objeto de cúmulo material.


Esta norma, atento o seu pendor agravante da situação da arguida, vale apenas para o futuro (ou seja, para as infração cometidas após a entrada em vigor da lei, não tendo aplicação retroativa.


O que significa que, quanto às infrações abrangidas pela nova lei, não há necessidade de ponderar eventuais apensações de processos contraordenacionais, pois não será realizado um cúmulo jurídico de coimas que tenha em consideração a imagem global dos factos.


Finalmente, e quanto às infrações anteriores, o Tribunal da Relação de Évora, vinha entendendo que:


“I – Encontrando-se a matéria do concurso de contraordenações que dão a lugar a cúmulo jurídico prevista no art. 19.º do DL n.º 433/82, de 27-10, no qual não se mostra referida quer a situação do cúmulo por arrastamento, quer a situação do cúmulo de contraordenações que se encontrem em concurso, mas cujo conhecimento venha a ser superveniente, inexiste lacuna na lei, pelo que não há base legal para a aplicação do disposto no art. 78.º do Código Penal.


II – Sempre que o cúmulo jurídico das sanções aplicadas em várias contraordenações que se encontrem em concurso não resulte de uma mesma participação ou auto de notícia, para que o mesmo possa ocorrer é necessário proceder à apensação dos respetivos processos, única forma para que de vários processos em curso passe a correr apenas um.


III – Inexistindo quer na lei contraordenacional laboral quer na lei das contraordenações em geral qualquer norma relativa à matéria da apensação, ter-se-á de aplicar o disposto nos arts. 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, em face do disposto no art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e no art. 41.º do DL n.º 433/82, de 27-10.”


No caso em análise, a arguida limita-se a requerer a apensação identificando processos de contraordenação pendentes, sem concretizar os elementos que, nos termos do disposto nos arts. 24º e 25, do CPP, justificariam aquela apensação.


Essa necessidade é tão mais premente, quanto é certo que, conforme se disse, desde maio de 2023, deixou de subsistir a regra do cúmulo jurídico, o que torna manifestamente inútil o processado conjunto dos vários processos de contraordenação.


Finalmente, a apensação de processos deve ser requerida e determinada no processo competente face ao disposto no art. 28º, do CPP.


A arguida não fez prova de ter requerido a apensação destes autos de contraordenação num daqueles processos que identifica e, nomeadamente, no processo que deve “absorver estes autos” e que o tribunal desconhece qual seja.


Aliás, o tribunal desconhece, por falta de alegação, se se verificam os pressupostos previstos naqueles arts. 24º e 25º, do CPP.


Veja-se que, nos termos e para efeitos do disposto no art. 24º, é necessário que:


- a recorrente tenha cometido aquelas outras contraordenações objeto de algum ou alguns daqueles outros processos através da mesma ação ou omissão que aqui lhe está imputada; ou que estas contraordenações resultam daquelas mesmas ação ou omissão objeto daqueles outros processos;


- a recorrente tenha cometido várias contraordenações, na mesma ocasião ou lugar, sendo umas causa ou efeito das outras, ou destinando-se umas a continuar ou a ocultar as outras.


Para a apensação de contraordenações não basta a simples pendência de uma pluralidade de processos de contraordenação.


Quanto ao art. 25º, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido várias contraordenações cujo conhecimento seja da competência de tribunais (da ACT) com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes.


E nessa conformidade, acrescente aquele Ac. da Rel. de Évora:


“Como prescreve expressamente o art.º 24.º n.º 2 do CPP, a conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.


Assim, e para além da necessidade de os processos, cuja apensação se pretende realizar, terem de se encontrar na mesma fase processual, é ainda obrigatório quando as contraordenações se reportem a situações distintas (isto é, sem qualquer ligação entre si, para além de serem imputadas ao mesmo agente) que a competência para a apreciação dessas contraordenações pertença à mesma comarca.


No caso em apreço, não consta da matéria factual dada como assente, a existência de qualquer contraordenação pendente contra a arguida, quanto mais que essa contraordenação preenchesse os requisitos impostos para a apensação decorrentes dos citados arts. 24.º e 25.º do Código de Processo Penal.”


E no caso, face à falta de alegação da recorrente, só podemos concluir que aquelas contraordenações nada têm que ver com estas contraordenações, e vice-versa, havendo apenas coincidência de arguida da prática da ação/omissão.


Mas porque assim é, apenas seria admissível apensação entre processos pendentes no Unidade Local de Setúbal da ACT.


Finalmente, e conforme é referido na proposta de decisão e não foi posto em causa pela arguida, relativamente aos outros processos que a arguida identificada na sua defesa escrita, foi proferida apensação nacional pela Inspetora Geral, que não abrangeu estes autos.


Ora, não há notícia – a recorrente não o refere – que requereu também a apensação deste processo, ou que reclamou contra a não inclusão deste processo naquela decisão (que, como se disse, por falta de alegação, se desconhece se houve ou não).


As apensações não devem ser utilizadas nos processos onde vão surgindo as condenações, e à medida em que estas vão surgindo, como forma de conseguir anulações e, com isso, o uso de expedientes manifestamente dilatórios.


A recorrente estava assim onerada com a alegação devida dos elementos que determinam, nos termos sobreditos, aquela conexão, sendo certo que, conforme se disse, ela alegação não se basta com a identificação de processos contraordenacionais pendentes.


Conforme se disse, assentando a arguida aquela sua pretensão na obrigação legal de realização de cúmulo jurídico de coimas, só faz sentido a referida apensação quanto a processos que abranjam contraordenações não abrangidas pela nova lei; pois quanto a estas, a lei impõe que se proceda a um cúmulo material das coimas (ou seja, apenas há que somar as várias coimas aplicadas e não olhar para todas elas, e fixar uma coima única que tenha os limites previstos no art. 19º, do RGCO).


III. Face ao exposto, indefiro a arguida nulidade por preterição da apensação dos processos identificados pela arguida no art. 29º, das suas alegações.»


Em sede de recurso, esta decisão é colocada em crise, argumentando a recorrente, no essencial, que a ACT deveria ter procedido à apensação de todos os processos contraordenacionais contra si instaurados, identificados no artigo 29.º da impugnação judicial, criado um só processo e aplicado uma coima única.


Na resposta ao recurso, o Ministério Público alegou, em súmula, que a ACT não violou quaisquer normas processuais relativas ao cúmulo jurídico das contraordenações, pelo que inexiste qualquer nulidade processual por preterição da apensação dos processos contraordenacionais identificados no artigo 29.º da impugnação judicial.


Cumpre apreciar.


E desde já adiantamos que a decisão da 1.ª instância não nos merece censura.


Expliquemos porquê.


No artigo 29.º da impugnação judicial apresentada, veio a ora recorrente listar 30 processos contraordenacionais que, alegou, a ACT instaurou contra si e que se encontravam pendentes. Nada mais refere sobre os ditos processos.


O objetivo de tal alegação era a apensação de todos estes processos por forma a subsistir um só processo e, deste modo, aplicar-se, em cúmulo, uma única coima.


Ora, a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro (regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social), não contém qualquer norma respeitante à apensação de processos, pelo que ter-se-á de aplicar o regime previsto nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, atento o disposto nos artigos 60.º da Lei n.º 107/2009 e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.


Dispõe o artigo 24.º do Código de Processo Penal:


1 - Há conexão de processos quando:


a) O mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma ação ou omissão;


b) O mesmo agente tiver cometido vários crimes, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros;


c) O mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação;


d) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes em comparticipação, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros; ou


e) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou lugar.


f) Esteja em causa responsabilidade cumulativa do agente do crime e da pessoa coletiva ou entidade equiparada a que o mesmo crime é imputado.


2 - A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.


3 - A conexão não opera quando seja previsível que origine o incumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou o retardamento excessivo desta fase processual ou da audiência de julgamento.


E o artigo 25.º estatui:


Para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes.


Infere-se destas normas, como repetidamente tem sido afirmado por esta Secção Social, que a conexão de processos só é viável quando os processos (a apensar) se encontrem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento – cf. acórdãos de 21-01-2022 (Proc. n.º 1046/20.8Y2STR.E1) e de 22-10-2020 (Proc. n.º 1171/19.8T8STR.E1) – e quando tratando-se de contraordenações que se reportem a situações distintas (ou seja, sem ligação entre si, e que só têm em comum o facto de serem imputadas ao mesmo agente), a competência para a apreciação dessas contraordenações pertencer à mesma comarca - cf. acórdãos de 21-11-2024 (Proc. n.º 3656/23.2T8FAR.E1), de 11-05-2023 (Proc. n.º 912/22.0T8BJA.E1) e de 21-01-2022 (Proc. n.º 1046/20.8Y2STR.E1).2


No caso que nos ocupa, a recorrente nada alegou sobre o preenchimento dos requisitos necessários à apensação de processos, nem a verificação dos mesmos resultou demonstrada nos autos, razão pela qual não haveria fundamento legal para que a ACT ou o tribunal a quo tivessem ordenado a visada apensação.


Ora, não tendo sido ordenada, e bem, a conexão de processos, só podemos concluir pela inexistência, no presente processo (em que está em causa a prática, apenas, de uma infração contraordenacional), de fundamento legal para a aplicação de uma única coima, por cúmulo jurídico– salienta-se que o artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º107/2009, na redação introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, não se aplica ao caso dos autos, pelos fundamentos explanados na decisão recorrida.


Nesta conformidade, sufragamos a decisão da 1.ª instância de que inexiste qualquer nulidade processual por preterição da apensação dos processos contraordenacionais identificados no artigo 29.º da impugnação judicial.


Consequentemente, quanto à questão analisada, improcede o recurso.


2. Da alegada existência de questão prejudicial que impede a prossecução dos presentes autos


Na motivação do recurso, alegou a recorrente que no processo judicial com o n.º 4189/19.7..., que corre termos no Juízo do Trabalho do Porto, Juiz 2, foi ordenado que a ACT efetivasse o cúmulo jurídico entre os diversos processos contraordenacionais existentes, a nível nacional, contra a recorrente, encontrando-se, neste momento, o referido processo a aguardar que a ACT proceda ao cúmulo jurídico.


No entender da recorrente a efetivação do cúmulo jurídico dos processos configura questão prejudicial que impede a prossecução dos presentes autos.


Vejamos.


Na decisão administrativa judicialmente impugnada consta, com relevância, o seguinte:


«(…) os presentes autos já não podem integrar a requerida apensação, porquanto já foi proferida apensação nacional dos restantes processos pela Inspetora Geral.»


Ademais, infere-se da fundamentação da decisão recorrida que a recorrente não pôs em causa que o presente processo contraordenacional não foi considerado para efeitos do cúmulo jurídico que, eventualmente, resultará da apensação nacional dos (outros) processos deduzidos contra a recorrente.


Logo, o mencionado processo judicial com o n.º 4189/19.7... e a decisão que, por ventura, venha a ser proferida no mesmo sobre a aplicação de uma única coima em cúmulo jurídico, com referência aos processos apensados, não constitui uma questão prejudicial em relação aos presentes autos, na medida em o que ali se vier a decidir não condiciona a decisão final a proferir nos presentes autos.


Cita-se, pela relevância, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-04-2008 (Proc. n.º 435/04.0TACBR.C1):3


«Questão prejudicial é a questão jurídica concreta que, embora autónoma quanto ao seu objeto relativamente à questão principal do processo em que surge e podendo por isso ser objeto próprio de um outro processo, se revela como questão condicionante do conhecimento e decisão da questão principal (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 114);


II. - A questão prejudicial funciona como pressuposto lógico substantivo da decisão da questão prejudicada.


III. - São características da questão prejudicial, a antecedência lógico-jurídica relativamente, a autonomia e a necessidade, relativamente à decisão da questão principal (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., 115 e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed. 1974, Reimpressão, 165).»


Na realidade, a contraordenação que está em causa nos presentes autos não será considerada naquele outro processo judicial, e, além disso, não há qualquer possibilidade de atender à coima única que naquele venha a ser aplicada no âmbito da decisão a proferir nos presentes autos.


Sobre este último cenário, recordemos que tem sido decidido por esta Secção Social que o cúmulo jurídico apenas pode ocorrer numa situação em que as infrações estejam em concurso.


Dito de outro modo, nas contraordenações laborais não há cúmulo jurídico por arrastamento ou cúmulo jurídico superveniente.


Sobre a matéria, escreveu-se no acórdão desta Secção Social de 27-01-2022, melhor identificado supra:


«Em face do disposto no art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, diploma que regula expressamente as contraordenações laborais, por inexistir, neste diploma, norma expressa referente ao cúmulo jurídico, terá de se aplicar o citado no art. 19.º do DL n.º 433/82, de 27-10[2].


Deste artigo resulta que, existindo concurso de contraordenações, o arguido é punido com uma coima única.


Conforme amplamente tem sido decidido nesta relação[3], “o cúmulo por infrações em concurso forma-se perante aquelas pelas quais o auto de notícia (ou a participação) foi levantado, e perante eventuais processos cuja conexão tenha sido ordenada, verificadas que estejam as condições estritas dos arts. 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, sendo que este último apenas admite a conexão para processos na mesma comarca, e não a nível nacional”[4].


Cita-se ainda desta relação, pela sua relevância, o sumário do acórdão proferido em 11-07-2019[5]:


i) é aplicável subsidiariamente ao concurso de contraordenações laborais o regime jurídico previsto no art.º 19.º do Regime Geral das Contraordenações.


ii) não há concurso entre contraordenações que sejam conhecidas após a condenação definitiva por qualquer uma delas.


iii) a aplicação do cúmulo jurídico nos mesmos termos previstos para os crimes traria problemas de competência material insanáveis, pois cada autoridade administrativa tem competência limitada à instrução e decisão das contraordenações relativas à matéria em questão e não está prevista a competência material para efetuar o cúmulo jurídico decorrente de concurso de contraordenações de diferentes matérias


Na realidade, encontrando-se a matéria do concurso de contraordenações que dão a lugar a cúmulo jurídico prevista no art. 19.º do DL n.º 433/82, de 27-10, no qual não se mostra referida quer a situação do cúmulo por arrastamento[6], quer a situação do cúmulo de contraordenações que se encontrem em concurso, mas cujo conhecimento venha a ser superveniente, inexiste lacuna na lei, pelo que não há base legal para a aplicação do disposto no art. 78.º do Código Penal.»


Em suma, não existindo uma relação de concurso entre as infrações julgadas no processo n.º 4189/19.7... e a infração em causa nos presentes autos, não há que efetuar qualquer cúmulo jurídico final, pelo que não vislumbramos qualquer fundamento para que se considere que existe a invocada questão prejudicial.


Por conseguinte, também nesta parte, improcede o recurso.


3. Do pretendido efeito suspensivo para a impugnação judicial


O tribunal a quo indeferiu a requerida prestação de caução, mediante garantia bancária, com vista à fixação de efeito suspensivo à impugnação judicial, com arrimo na seguinte fundamentação:


«Da Não Fixação de Efeito Suspensivo à Impugnação Judicial


I. A arguida apresentou impugnação judicial da decisão administrativa que a condenou na coima única de 18.360,00 €.


Nessa impugnação a arguida requer a fixação de efeito suspensivo, alegando falta de capacidade económica para proceder à prestação de caução.


(…)


II. Como ponto prévio cumpre referir que o art. 3º, do RGCO, não tem aplicação à resolução da questão em análise, uma vez que aquele preceito versa apenas e só sobre o direito material de contraordenação.


Quanto à regulamentação processual do procedimento contraordenacional, inexiste norma expressa (quer no RGCO quer na Lei n.º 107/2009, de 14/09). Assim, e por aplicação do disposto no art. 41º, n.º 1, do RGCO, têm aplicação subsidiária as normas do processo penal.


Dispõe o art. 5º, do CPP, que:


1 - A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior.


2 - A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:


a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou


b) Quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.


Dispunha o art. 35º, da versão originária da Lei n.º 107/2009, de 14/09 (lei em vigor à data da prática dos factos e do início do procedimento contraordenacional), que:


1 - A impugnação judicial tem efeito meramente devolutivo.


2 - A impugnação judicial tem efeito suspensivo se o recorrente depositar o valor da coima e das custas do processo, no prazo referido no n.º 2 do artigo 33.º, em instituição bancária aderente, a favor da autoridade administrativa competente que proferiu a decisão de aplicação da coima.


3 - O depósito referido no número anterior pode ser substituído por garantia bancária, na modalidade «à primeira solicitação».


A atual redação daquele art. 35º, introduzida pela Lei n.º 13/2003, de 03/04, dispõe:


1 - A impugnação judicial tem efeito meramente devolutivo.


2 - (Revogado.)


3 - (Revogado.)


Deixou o legislador de prever a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à impugnação judicial, estabelecendo de forma automática e imediata o efeito meramente devolutivo.


Recordamos que a norma em causa surge tendo o legislador conhecimento do Ac. Do TC n.º 485/2021, de 07/07, que decidiu:


Julga inconstitucional a interpretação normativa extraída dos n.os 1 a 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, no sentido de que a atribuição de efeito suspensivo ao recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, depende do depósito do valor da coima aplicada e das custas do processo ou de garantia bancária no mesmo valor, na modalidade «a primeira solicitação», sem que o juiz da causa possa avaliar se de tal exigência resulta prejuízo considerável para o arguido; não conhece do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.


Na situação em análise naquele aresto apenas foi colocada à consideração do TC a questão da conformidade à constituição da sujeição da atribuição de efeito suspensivo ao depósito do valor da coima e das custas ou de garantia bancária, na modalidade de primeira solicitação, no mesmo valor, porque a lei previa essa possibilidade.


Deixando a lei de prever a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à impugnação judicial, deixa aquele juízo de inconstitucionalidade de ter aplicação, pois deixa de ser legalmente admissível a sua fixação ao julgador.


A opção feita está, ainda, no âmbito da ampla margem de conformação concedida pela Constituição ao legislador ordinário.


Cumpre, assim, verificar se o atual regime procedimental que seria imediatamente aplicável sofre a limitação prevista no art. 5º, n.º 2, a), do CPP, ou seja, se a sua aplicação imediata se traduz em Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido.


Não cremos que a alteração da lei tenha agravado sensivelmente a situação procedimental da recorrente.


Note-se que a recorrente não pretende gozar do efeito suspensivo que a anterior lei previa, tout court, ou seja, sem proceder ao depósito das quantias referentes à coima e custas processuais.


O que a recorrente pretende é que lhe seja permitido aquele efeito suspensivo à impugnação mediante a prestação de caução que se oferece para prestar no valor integral correspondente à coima e custas: tudo no valor de 18.972,00€.


Ora, se a recorrente tem aquela quantia para proceder à caução, sem qualquer prejuízo considerável para a sua tesouraria, também terá essa quantia para a utilizar no pagamento daqueles valores.


Se, mais tarde, for dada procedência à impugnação, aqueles valores ser-lhe-ão devolvidos.


Como se vê esta solução não afronta os princípios constitucionais, e, nomeadamente, o princípio da presunção de inocência da arguida, pois estamos perante direito de mera ordenação social.


Veja-se que o TC constitucional não julgou contrário à constituição a norma regra do efeito devolutivo da impugnação.


O que o TC ali considerou foi a violação do princípio da proporcionalidade da norma que, cegamente, nega a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo sem o pagamento integral da coima e das custas, através de caução, sem que seja possibilitado ao julgador proceder a uma avaliação casuística do caso, tendo em consideração a desproporção manifesta que pode resultar entre a exigência de pagamento daquela quantia e o eventual “prejuízo considerável para o arguido” decorrente desse pagamento.


De igual modo, e conforme anotam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª Ed., pág. 417/418), “o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva não impõe, porém, a regra do efeito suspensivo ao recurso, nem mesmo quando esteja em causa a impugnação contenciosa de atos administrativos”.


Não há, pois, que desaplicar a norma por desconformidade com o princípio constitucional da presunção de inocência OU da tutela jurisdicional efetiva.


III. Face ao exposto, entendo que tem plena aplicação a atual redação do disposto no art. 35º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14/09, pelo que:


- indefiro a pretendida prestação de caução, mediante garantia bancária, com vista à fixação de efeito suspensivo à impugnação judicial, atenta a sua inadmissibilidade legal.»


Do excerto citado extrai-se que o tribunal a quo considerou ser aplicável aos autos a atual redação do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, resultante das alterações provindas da Lei n.º 13/2023, que determina, sem exceção ou alternativa, que a impugnação judicial tem sempre efeito meramente devolutivo, razão pela qual negou a requerida prestação de caução com vista à atribuição do efeito suspensivo.


Não se conforma a recorrente com esta decisão, apoiando-se na Decisão Sumária n.º 244/2024 do Tribunal Constitucional, datada de 10-04-2024, que julgou inconstitucional a norma contida no artigo 35.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, conjugada com a norma contida na alínea c) do artigo 33.º da Lei n.º 13/2023, interpretadas no sentido de considerar que o recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre efeito devolutivo, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa.


Quid júris?


O artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, na sua versão original, tinha a seguinte redação:


1 - A impugnação judicial tem efeito meramente devolutivo.


2 - A impugnação judicial tem efeito suspensivo se o recorrente depositar o valor da coima e das custas do processo, no prazo referido no n.º 2 do artigo 33.º, em instituição bancária aderente, a favor da autoridade administrativa competente que proferiu a decisão de aplicação da coima.


3 - O depósito referido no número anterior pode ser substituído por garantia bancária, na modalidade «à primeira solicitação».


A Lei n.º 13/2023 revogou os n.ºs 2 e 3 do artigo -cf. artigo 33.º, alínea c), desta Lei.


Deste modo, em consequência da referida revogação, a impugnação judicial passou a ter, sempre, efeito meramente devolutivo.


A recorrente não põe em causa a imediata aplicabilidade do novo artigo 35.º, devidamente explicada na sentença recorrida.


O que alega é que o aludido artigo conjugado com a alínea c) do artigo 33.º da Lei n.º 13/2023, que inviabilizou a atribuição de efeito suspensivo à impugnação judicial, é inconstitucional, pelo que não deverá ser aplicado.


E afigura-se-nos que lhe assiste razão.


Na decisão sumária n.º 244/2024 do Tribunal Constitucional, o tema em debate foi assim apreciado e decidido:


«2. O Ministério Público interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo do Trabalho de Aveiro – J2, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, sustentando que «O presente recurso tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade da norma da alínea c), do artigo 33.º da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, na parte em que revoga os n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, cuja aplicação foi recusada na mencionada sentença, com fundamento na violação da garantia constitucional de presunção de inocência, o direito de acesso aos tribunais e à tutela efetiva, bem como o princípio da proporcionalidade, nas vertentes da necessidade e da justa medida, atentando, assim, contra o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 20.º e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa».


(…)


2.2. A questão apreciada pelo tribunal recorrido consistiu em saber se deveria ser atribuído efeito suspensivo ao recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, sendo que, no caso, a aí arguida ofereceu caução tendo em vista o efeito suspensivo, em requerimento anterior ao despacho que fixou os efeitos do recurso.


Para responder ao problema, o tribunal recorrido começou por enquadrar a situação no âmbito da denominada Lei da Agenda do Trabalho Digno (Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), que, ao que aqui importa, através do seu artigo 33.º, al. c), revogou o n.º 2 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que previa a possibilidade de consagração do efeito suspensivo do processo de contraordenação laboral.


Entendeu, então, o tribunal a quo, que a norma do artigo 33.º, al. c) levanta questões de inconstitucionalidade, decidindo, a final, «desaplicar a norma contida na al. c) do artigo 33.º da Lei 13/2023, de 3 de abril, na parte em que revoga os n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 20.º e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, e, em consequência, conceder efeito suspensivo ao presente recurso».


Esta tomada de posição não pode deixar de pressupor a desaplicação, implícita mas efetiva, do artigo 35.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, em vigor, que prevê, como única possibilidade, o efeito meramente devolutivo do recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa. Ou seja, o tribunal a quo fez tábua rasa da mencionada norma vigente com base numa censura dirigida ao legislador, no caso por ter eliminado as possibilidades de atribuição de efeito suspensivo ao recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, repescando, como solução para a questão em análise, o regime que vigorava em data anterior e decidindo com base nele.


A desaplicação implícita da norma constante do artigo 35.º, n.º 1, da Lei 107/2009, de 14 de setembro, e o regresso ao regime anteriormente consagrado nos números 2 e 3 do mesmo artigo 35.º, em todas as suas dimensões aplicativas, tornam-se, pois, evidentes, constituindo um elemento imprescindível do iter lógico-argumentativo implicado na solução com base na qual o tribunal recorrido decidiu atribuir efeito suspensivo ao recurso.


Assim, o objeto do recurso terá de ser a norma contida no artigo 35.º, n.º 1 da Lei 107/2009, conjugada com a norma contida na al. c) do artigo 33.º da Lei 13/2023, de 3 de abril, na parte em que revoga os n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, interpretadas no sentido de considerar que o recurso de recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre mero efeito devolutivo, procedendo-se por isso a um ajustamento formal do objeto do recurso sem, todavia, descaracterizar o seu sentido substancial.


2.3. Está em causa, assim, nos presentes autos, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 35.º, n.º 1, da Lei 107/2009, quando interpretada conjuntamente com a norma contida na al. c) do artigo 33.º da Lei 13/2023, de 3 de abril, na parte em que revoga os n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, no sentido de considerar a atribuição ao recurso de recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa mero efeito devolutivo.


3. Aqui chegados, considerando que, no que de essencial importa, a decisão recorrida afirma que as normas que determinam a impossibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, estão feridas de inconstitucionalidade.


E verificando-se que, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre idêntico objeto e normas similares às aqui em apreço, designadamente, no Ac. 485/2021, desta mesma secção, em que a questão de constitucionalidade foi suscitada em termos muito semelhantes e que aqui tomaremos por referência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, ao permitir que quando a questão a decidir for uma questão simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior deste Tribunal, a relatora proferirá decisão sumária.


Neste aresto – Ac. 485/2021 - afirmou-se e decidiu-se então o seguinte:


(…)


4. Face ao exposto, no caso em apreço, por maioria de razão, quando o que está em causa é a norma contida no artigo 35.º, n.º 1 da Lei 107/2009, conjugada com a norma contida na al. c) do artigo 33.º da Lei 13/2023, de 3 de abril, na parte em que revoga os n.os 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, interpretadas no sentido de considerar que o recurso de recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre mero efeito devolutivo, e por se considerar que a fundamentação que sustenta a posição firmada no Acórdão n.º 485/2021 é inteiramente transponível para o caso vertente, não se vislumbrando razões para divergir desta jurisprudência, decide-se, por remissão para a mesma, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.


III. Decisão


Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se:


a) Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 35.º, n.º 1 da Lei 107/2009, conjugada com a norma contida na al. c) do artigo 33.º da Lei 13/2023, de 3 de abril, na parte em que revoga os n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, interpretadas no sentido de considerar que o recurso de recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre mero efeito devolutivo, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP.»


Do trecho citado retira-se que o tribunal constitucional considerou que o artigo 35.º da Lei n.º 107/2009 interpretado no sentido que a impugnação judicial tem sempre efeito meramente devolutivo é inconstitucional porque viola o direito à tutela jurisdicional efetiva e o princípio da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Lei Fundamental.


Esta decisão de inconstitucionalidade apoia-se na fundamentação explanada no Acórdão n.º 485/2021, do mesmo tribunal, para a qual remetemos dada a sua extensão.4


Também a considerar inconstitucional o novo artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, pelos mesmos motivos, se pronunciou a Decisão Sumária n.º 268/2024 do mesmo tribunal.5


Ora, não vislumbramos razão para divergir do decidido.


Se no Acórdão n.º 485/2021, que serviu de fundamento à decisão sumária n.º 244/2024, foi entendido que os termos restritivos em que se possibilitava a atribuição de efeito suspensivo à impugnação judicial já eram inconstitucionais, então a abolição total do efeito suspensivo da impugnação judicial de decisão administrativa, por maioria de razão, constitui uma violação ainda mais intensa ao direito à tutela jurisdicional e ao princípio da presunção de inocência.


Assim, em face da inconstitucionalidade do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, na redação conferida pelo artigo 33.º, alínea c), da Lei n.º 13/2023, são de aplicar os n.º s 2 e 3 da redação originária do artigo 35.º.


Logo, a decisão recorrida que indeferiu a prestação de caução com vista à fixação de efeito suspensivo à impugnação judicial terá que ser substituída por outra que aprecie a requerida prestação de caução, ao abrigo da anterior redação do artigo 35.º.


Nesta conformidade, procede, nesta parte, o recurso interposto.


-


Vencida parcialmente no recurso, a recorrente deverá suportar parcialmente o pagamento das custas, que se fixam em 3 UC - artigo 59.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e artigo 8.º, n.ºs 7 e 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, e respetiva tabela III anexa.


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V. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, e consequentemente, revogam a decisão recorrida na parte que indeferiu a prestação de caução, com vista à fixação de efeito suspensivo à impugnação judicial, que deverá ser substituída por decisão que aprecie a requerida prestação de caução, nos termos suprarreferidos.


No demais, confirma-se a decisão recorrida.


As custas serão parcialmente suportadas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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Sumário elaborado pela relatora:

I. Limitando-se a arguida, em sede de impugnação judicial da decisão da ACT, a apresentar uma lista de processos contraordenacionais pendentes contra si deduzidos, nada mais referindo, nomeadamente sobre o preenchimento dos requisitos necessários à conexão de processos previstos nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, e não resultando da matéria de facto o preenchimento desses requisitos, inexiste fundamento legal para deferir a visada apensação de processos.

II. Um processo judicial de contraordenação laboral só constituirá questão prejudicial em relação a outro se o que se vier a decidir no primeiro for suscetível de condicionar a decisão final a proferir no segundo.

III. O artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, conjugada com a norma contida na alínea c) do artigo 33.º da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, interpretadas no sentido de considerar que a impugnação judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, tem sempre efeito devolutivo, é inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa.


Évora, 27 de março de 2025


Paula do Paço


Emília Ramos Costa


Mário Branco Coelho

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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho↩︎

2. Os acórdãos mencionados podem ser consultados em www.dgsi.pt.↩︎

3. Ibidem.↩︎

4. O Acórdão n.º 485/2021 está acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210485.html.↩︎

5. Consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20240268.html.↩︎