Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
583/24.0T8PTG.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL
CESSÃO DE CRÉDITO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O direito de propriedade só pode adquirir-se através de um dos meios previstos no artigo 1316.º do Código Civil e, no caso, não foi alegado e não se provou que a aqui apelante haja adquirido o direito de propriedade sobre qualquer dos veículos em causa por qualquer das formas previstas na lei; ela limitou-se a financiar a aquisição dos mesmos por parte dos dois requeridos. Donde não tendo a apelante / requerente a qualidade de proprietária dos referidos veículos não pode reservar para si a propriedade de algo que nunca foi seu. E, assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da apelante e aposta no contrato de financiamento é nula.
2 - Não é legalmente possível transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro por via da sub-rogação legal estabelecida no artigo 592.º do Código Civil ou por via de uma cessão de créditos, porquanto estes dois institutos são formas de operar mudanças no sujeito ativo de relações jurídicas obrigacionais, sendo, portanto alheios à constituição e transferência da reserva de propriedade que é uma restrição ao direito real de propriedade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 583/24.0T8PTG.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.º Adjunta: Maria Domingas Simões
2º Adjunto: Mário Branco Coelho


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
I.1.
O Banco (…), S.A., requerente nos presentes autos de procedimento cautelar comum que instaurou contra:
- (…) e (…), a Massa Insolvente de (…) e (…), (…), (…), (…), (…), (…), Lda., (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…),
interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, no segmento em que declarou a nulidade da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato celebrado entre o requerente Banco (…) e os requeridos (…) e (…).

Na ação cautelar o requerente pediu a apreensão dos veículos automóveis com as matrículas 20-(…); 34-(…); 42-(…); 50-(…); 56-(…); 83-(…); 99-(…); 61-(…); 49-(…); 05-(…); 27-(…); 44-(…); 79-(…); 83-(…); 15-(…); 06-(…); 08-(…); 32-(…); 29-(…) e 00-(…) e a inversão do contencioso, nos termos do disposto no artigo 369.º do Código de Processo Civil, tendo alegado, para tal desiderato, que celebrou com os requeridos (…) e (…) um contrato de financiamento de existências (stocks) de veículos usados, no âmbito do qual ficou estabelecido uma cláusula de reserva de propriedade relativa às viaturas aludidas, que, por sua vez, se encontram na posse dos demais requeridos.

I.2
A Recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A. Veio o Tribunal a quo dar como provados que “No exercício da respetiva atividade comercial, a requerente celebrou com os requeridos (…) e (…) um contrato denominado «contrato de financiamento de existências (stocks) de veículos usados, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente», datado de 19 de Maio de 2021, com um prazo de 12 meses, no valor de € 975.000,00, a ser reembolsado mediante a entrega dos valores obtidos com a venda das viaturas em causa” e bem assim que “No referido contrato consta a cláusula 7ª, cujo n.º 5 apresenta a seguinte redação: «A Empresário desde já aceita que o Banco (…) possa vir a exigir a constituição de quaisquer garantias sobre os veículos financiados ao abrigo do presente Contrato, nomeadamente a constituição de reserva de propriedade ou de hipoteca a seu favor, sendo da responsabilidade da Empresário suportar todos os encargos inerentes à sua inscrição junto do Registo Automóvel, incluindo as multas devidas pelo atraso da prática dos atos de registo”.
B. E mais ainda que (..)” o 1.º requerido, por si ou por interposta pessoa, nomeadamente os vendedores ao serviço daquele nos stands em causa, não deu conhecimento aos requeridos de que se encontrava averbada uma cláusula de reserva de propriedade sobre as aludidas viaturas a favor da requerente”.
C. Concluindo que “afigura-se claro que o contrato celebrado entre o requerente e os requeridos (…) e (…) não se enquadra na figura de um contrato de alienação, mas sim na categoria dos contratos de mútuo. Desta feita, cingindo-nos a uma interpretação declarativa, chegaríamos à conclusão de que a cláusula em causa seria nula ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1 e 294.º do Código Civil”.
D. O que não pode merecer o entendimento do ora Apelante.
E. Sobre a reserva de propriedade, diz-nos o artigo 409.º do Código Civil o seguinte:
«1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.»
F. Sendo certo que, a cláusula de reserva de propriedade é entendida e utilizada como, conforme refere o Código Civil, um meio de acautelar e proteger aquele que coloca o bem à disposição de outrem, mediante a contrapartida da entrega do preço.
G. Ora, a reserva de propriedade constituída a favor da ora Apelante visa garantir o cumprimento das prestações a que os Requeridos (…) e (…) se vincularam.
H. E face ao desfasamento do artigo 409.º do Código Civil para com a realidade atual, refere o Acórdão do STJ de 30/09/2014 – Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1: (…) “Na prática, a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil».
I. Com efeito, a reserva da propriedade, sendo tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objeto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem.
J. Decorrente do contrato celebrado entre o ora Apelante e os Requeridos (…) e (…) e porque este último recorreu a um contrato de financiamento para pagamento dos automóveis melhor identificados nos autos, a aquisição dos veículos em causa foi contratada sob reserva de propriedade, dando origem a uma sub-rogação, o que encontra pleno acolhimento no artigo 591.º do Código Civil.
K. Relativamente a esta sub-rogação e a validade da mesma, pronuncia-se o Acórdão do STJ, de 30/09/2014, dando a conhecer os seus argumentos para tal posição:
1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito.
2) Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro.
3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente.
4) A natureza dispositiva, e não imperativa, das normas dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil.
L. Assim, é de entender que que face às alterações sócio-económicas que ocorreram desde 1966, publicação do Código Civil e data desde a qual o referido artigo 409.º não sofreu alterações, implica que se recorra à aplicação do artigo 9.º do mesmo diploma legal para uma interpretação à luz do que hoje ocorre.
M. Neste sentido, também as conservatórias aceitam o presente entendimento, motivo pelo qual fazem também o respetivo registo de propriedade, veja-se o parecer publicado no Boletim de Registos e do Notariado, n.º 5/2001, citado no Acórdão da Relação de Lisboa n.º 2164/11.9TBGMR.L1-2, de 07-12-2011, defende que «o financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratado sob condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação legal.»
N. A reserva de propriedade tem, pois, essencialmente, uma função de garantia do direito do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, nota 5 ao artigo 934.º) .
O. É importante distinguir a diferença entre a constituição de cláusula a favor do mutuante e a transmissão dessa mesma cláusula para o mutuante, na medida em que a invocada invalidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante está implicitamente relacionada com tal diferença.
P. De facto grandes diferenças existem entre dar direitos e garantias a um terceiro que além de não ser parte no contrato de compra e venda não tem nem nunca vai ter o direito à propriedade do bem que financiou ou que esses direitos e garantias sejam cedidos a quem financia por meio de uma sub-rogação, isto é, de um regime legal que dá poderes a este terceiro, para que o mesmo encontre proteção na sua posição de entidade financiadora.
Q. Nesse sentido, refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/03/2013 – Proc. 2368/16.8T8VNG.P1: «Com efeito, o mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante – na titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito – por sub-rogação, quer pelo vendedor (artigo 589.º do CC) quer pelo devedor (a requerida), sem necessidade de consentimento do vendedor (artigo 590.º do CC), desde que a vontade de sub-rogar seja manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação. Situação que ainda se verifica quando o mutuário cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada pelo mutuante, também sem necessidade de consentimento do credor, desde que haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do vendedor (artigo 591.º do CC). E, se assim for, o mutuante passa a ter os direitos que antes eram do vendedor e são esses direitos que estão aqui em causa e que podem ser exercidos.»
R. Neste sentido, e tendo em conta a operada sub-rogação, é do entendimento do ora Apelante ser válida a transmissão da cláusula de reserva de propriedade para o ora Apelante.
S. Tanto mais que a transferência de propriedade dos veículos para os demais Requeridos ainda não se operou, na medida em que à data ainda não correu o pagamento integral do preço, o que o Requerido (…) bem confessou nas declarações que prestou junto do tribunal a quo.
T. Não podendo a reservas de propriedade transmitidas ao ora Apelante ser declaradas nulas, sob pena de colocar em risco a garantia do apelante sobre os Requeridos (…) e (…).
Assim, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, concedendo integral provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando a decisão recorrida, mais se ordenando a sua substituição por outra que que julgue a cláusula de reserva de propriedade aposta no Contrato de financiamento de existências (stocks) de veículos usados, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente, datado de 19 de Maio de 2021, celebrado entre o requerente Banco (…), SA e os requeridos (…) e (…) (cláusula 7ª, n.º 5), deferindo totalmente o procedimento cautelar, fazendo V. Exas. a tão esperada e costumada JUSTIÇA!»


I.3.
Os apelados (…), (…), (…), (…), (…) e (…) apresentaram resposta ao recurso, defendendo a sua improcedência.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Corridos os vistos, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.3) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (cfr. artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão a decidir consiste em saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato celebrado entre a recorrente e os requeridos (…) e (…).

II.3.
FACTOS
II.3.1.
Na decisão recorrida o tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

«1. No exercício da respetiva atividade comercial, a requerente celebrou com os requeridos (…) e (…) um contrato denominado «contrato de financiamento de existências (stocks) de veículos usados, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente», datado de 19 de Maio de 2021, com um prazo de 12 meses, no valor de € 975.000,00, a ser reembolsado mediante a entrega dos valores obtidos com a venda das viaturas em causa.
2. No referido contrato consta a cláusula 7ª, cujo n.º 5 apresenta a seguinte redação:
«A Empresário desde já aceita que o (…) possa vir a exigir a constituição de quaisquer garantias sobre os veículos financiados ao abrigo do presente Contrato, nomeadamente a constituição de reserva de propriedade ou de hipoteca a seu favor, sendo da responsabilidade da Empresário suportar todos os encargos inerentes à sua inscrição junto do Registo Automóvel, incluindo as multas devidas pelo atraso da prática dos atos de registo.»
3. Em anexo (identificado com o n.º 2) ao referido contrato consta a «Lista dos contratos de financiamento particulares e dos veículos em vigor resultante do Contrato e Quadro anterior» do qual constam as seguintes viaturas: 77-(…), 25-(…), 52-(…), 72-(…), 30-(…), 06-(…), 98-(…), 92-(…), 46-(…), 13-(…), 31-(…), 43-(…), 10-(…), 78-(…), 87-(…), 54-(…), 64-(…), 65-(…), 19-(…), 83-(…), 69-(…), 80-(…), 32-(…), 00-(…), 62-(…), 73-(…), 08-(…), 55-(…), 52-(…), 40-(…), 75-(…), 45-(…), 80-(…), 36-(…), 92-(…), 29-(…), 30-(…), 20-(…), 33-(…), 49-(…), 84-(…), 06-(...), 39-(…), 93-(…), 53-(…), 22-(…), 99-(…), 79-(…), 42-(…), 32-(…), 50-(…), 83-(…), 77-(…), 51-(…), 70-(…), 13-(…), 78-(…), 31-(…), 75-(…), 29-(…), 86-(…), 99-(…), 50-(…), 67-(…), 61-(…), 60-(…), 49-(…), 94-(…), AF-(…), 18-(…), 30-(…), 43-(…), 72-(…), 65-(…), 27-(…), 79-(…), 89-(…), 84-(…), 54-(…), 53-(…), 14-(…), 83-(…), 49-(…), AC-(…).
4. Encontram-se averbadas na Conservatória do Registo Comercial a menção, a título de ónus e encargos, da reserva de propriedade a favor da requerente, nelas figurando como sujeito passivo o requerido (…).

5. O veículo automóvel com a matrícula 34-(…), marca Land Rover, modelo Evoque 2.0 d, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 25 de novembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 23.500,00.

6. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

7. O veículo automóvel com a matrícula 42-(…), marca Renault, modelo Megane 1.5. dci, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 21 de novembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 12.000,00.

8. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

9. O veículo automóvel com a matrícula 50-(…), marca Mitsubishi, modelo space star 1.2, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre a requerida (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 25 de outubro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 11.500,00.

10. Desde aquela data, a requerida (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

11. O veículo automóvel com a matrícula 83-(…), marca Opel, modelo Corsa 1.0, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre a requerida (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 9 de julho de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 13.900,00.

12. Desde aquela data, a requerida (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

13. O veículo automóvel com a matrícula 99-(…), marca Wolkswagen, modelo Polo Van 1.2 tdi, foi objecto de um contrato de compra e venda verbal entre a requerida (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 12 de novembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 10.800,00.

14. Desde aquela data, a requerida (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

15. O veículo automóvel com a matrícula 05-(…), marca Peugeot, modelo 208 1.6 hdi, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 15 de outubro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 11.750,00.

16. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

17. O veículo automóvel com a matrícula 44-(…), marca Fiat, modelo 500 1.2 Lounge, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre a requerida (…), na qualidade de comprador, e o requerido (...), na qualidade de vendedor, datado de 9 de dezembro de 2021 e pelo preço de € 11.250,00.

18. Desde aquela data, a requerida (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

19. O veículo automóvel com a matrícula 79-(…), marca Peugeot, modelo 208 1.4 hdi, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 24 de novembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 13.593,72.

20. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

21. O veículo automóvel com a matrícula 83-(…), marca Renault, modelo Megane ST 1.5 dci, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 5 de agosto de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 14.500,00.

22. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

23. O veículo automóvel com a matrícula 15-(…), marca Opel, modelo Zafira 1.6 CDTI, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 10 de dezembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 17.000,00.
24. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

25. O veículo automóvel com a matrícula 32-(…), marca Renault, modelo Captur 1.5 dci, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 14 de janeiro de 2022 e pelo preço integralmente liquidado de € 20.000,00.

26. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

27. O veículo automóvel com a matrícula 29-(…), marca BMW, modelo 420d, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre o requerido (…), na qualidade de comprador, e a sociedade (…) Automóveis, Lda., na qualidade de vendedor, datado de 21 de dezembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 26.500,00.

28. Desde aquela data, o requerido (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

29. O veículo automóvel com a matrícula OO-(…), marca Nissan, modelo Qashqai 1.5 dci, foi objeto de um contrato de compra e venda verbal entre a requerida (…), na qualidade de comprador, e o requerido (…), na qualidade de vendedor, datado de 06 de dezembro de 2021 e pelo preço integralmente liquidado de € 20.500,00.

30. Desde aquela data, a requerida (…) tem assumido as despesas necessárias ao pagamento da manutenção, seguro, imposto e inspeção relacionados com aquela viatura.

31. Aquando da celebração dos supra referidos contratos de compra e venda, o 1.º requerido, por si ou por interposta pessoa, nomeadamente os vendedores ao serviço daquele nos stands em causa, não deu conhecimento aos requeridos de que se encontrava averbada uma cláusula de reserva de propriedade sobre as aludidas viaturas a favor da requerente.

32. No âmbito do processo de insolvência n.º 1239/23.6T8PTG, relativo aos requeridos (…) e (…), que corre termos no Juízo Local Cível de Portalegre – Juiz 1, foi reconhecido um crédito ao requerente no valor total de € 503.902,66.»

II.5.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa a sentença do tribunal de primeira instância que, tendo apreciado a questão da validade da cláusula de reserva de propriedade que, in casu, foi constituída a favor da requerente do presente procedimento cautelar no contrato de financiamento que aquela outorgou, na qualidade de mutuante, com os requeridos (…) e (…), julgou aquela cláusula inválida, declarando-a nula. Consequentemente, sendo pressuposto da providência requerida, a saber, a apreensão dos veículos melhor identificados nos autos, à luz do regime previsto no Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, a existência de um direito de propriedade da requerente (entidade financiadora), o tribunal de primeira instância julgou improcedente o procedimento cautelar «face à inexistência do facto jurídico de que precede a pretensão do requerente» (sic).
Depois de aludir às diferentes posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a questão da admissibilidade de estipulação de cláusula de reserva de propriedade no âmbito de contratos de mútuo/financiamento, o julgador a quo acolheu aquela que defende que tal cláusula só pode ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação e não em qualquer outro, porquanto a sua característica essencial é suspender os efeitos translativos inerentes àquele tipo de contrato. A apelante, por sua vez, defende uma interpretação atualista do artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, «que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades atuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro» (sic).
Cumpre, pois, apreciar a questão suscitada, desde já se adiantando que a decisão do tribunal a quo a propósito da questão da admissibilidade de estipulação de cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da mutuante/financiadora não nos merece reparo.
A estipulação de cláusula de reserva de propriedade está consagrada no artigo 409.º do Código Civil epigrafado Reserva de propriedade, o qual dispõe que nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. De harmonia com este preceito legal, a transferência da propriedade sobre o bem fica na dependência do preenchimento de uma “condição” e enquanto esta não se verificar o devedor não se torna proprietário do bem. Ao ligar a transmissão da propriedade ao momento do efetivo cumprimento das obrigações da outra parte, maxime do pagamento do preço (ou ao cumprimento de outra obrigação ou, ainda, a outro evento que as partes hajam estipulado), e não ao momento da celebração do contrato, como estipula o artigo 408.º do Código Civil, o vendedor cria para si um instrumento de tutela assente na propriedade da coisa: se o devedor não cumprir, ele pode recuperar a coisa, uma vez que a propriedade nunca saiu da sua esfera jurídica[1]. Ensinam Antunes Varela/Pires de Lima[2] que o negócio é realizado sob condição suspensiva quanto à transferência da propriedade[3].
No artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil estabelece-se o princípio do numerus clausus, ou da tipicidade dos direitos reais, por força do qual «todo o direito com caráter real, quer assuma a forma de uma restrição ao direito de propriedade, quer a de um parcelamento deste direito, só é admissível se estiver previsto na lei. O negócio de constituição de um direito real não previsto é, pois, nulo, se dele resultar um parcelamento da propriedade, e produz efeitos obrigacionais, se dele nascer uma pura restrição ao direito de propriedade de outrem.»[4]. Este princípio - consagrado no artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil – que exclui, por conseguinte, a liberdade contratual neste domínio (e à qual apela a tese contrária àquela que foi adotada pelo julgador a quo) – inclui, também, os direitos reais de garantia – neste sentido, por exemplo, os recentes acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.09.2023, proc. 1113/13.4TJLSB.L1-8, e de 07.12.2023, proc. 2883/23.7, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
A cláusula de reserva de propriedade apenas tem sentido quando relacionada com a transferência da propriedade e a menção legal de que a reserva ocorre até ao cumprimento das obrigações significa que cumpridas as obrigações do adquirente, consolida-se a transferência da propriedade operada pelo contrato de alienação. E esta natureza da reserva de propriedade não é afastada por um mero ato de registo de um acordo que não tenha aquelas características – Ac. RL de 28.02.2013, proc. n.º 84/13.1TJLSB.L1-6, consultável em www.dgsi.pt.
Como se refere no sumário do Acórdão do STJ de 02.10.2007[5] «IV- A interpretação atualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito». Ora, «ao moverem-se dentro do princípio da liberdade contratual, as partes têm de atender aos limites impostos pela lei, não podendo, mediante uma reserva de propriedade a favor do mutuante, fixar restrições à tipicidade que vigora no âmbito dos direitos reais» - acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 17.12.2015, processo n.º 8075/14.9T8LSB.L1-6[6]. Também no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2013 já referido se diz que «a interpretação atualista do artigo 409.º do Código Civil (e também do artigo 18.º do D/L n.º 54/75) não é possível, nem sequer se impõe. Não se impõe face a um diploma que sofreu onze alterações legislativas, a última das quais em novembro de 2008, sem que o legislador tenha entendido esclarecer a legitimidade do mutuante para a providência prevista» (referindo-se ao D/L n.º 54/75).
Por conseguinte, uma cláusula de reserva de propriedade estipulada num contrato de financiamento a favor daquele que financia a aquisição de um bem por parte da contraparte é nula, por força do disposto no artigo 280.º do Código Civil. Com efeito, resultando do disposto no artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil que a reserva de propriedade constitui uma garantia a favor do proprietário alienante na medida em que condiciona a transmissão do seu direito de propriedade sobre a coisa ao cumprimento integral das obrigações advindas para o adquirente no âmbito do contrato de alienação, maxime o pagamento do preço respetivo, no caso em que não subsistam já quaisquer obrigações do adquirente por cumprir, nomeadamente o pagamento do preço, extingue-se na esfera jurídica do alienante o direito correspondente à reserva de propriedade e, nessa medida, qualquer convenção no sentido da transmissão do direito em questão a um terceiro, reporta-se a um objeto impossível.
Voltando ao caso sub judice, não vem posto em causa que o contrato celebrado entre o Banco (…) e os requeridos (…) e (…) é um contrato de concessão de crédito, na modalidade de abertura de conta. Neste tipo de contrato, o Banco (creditante) obriga-se a colocar à disposição dos clientes (creditados) uma determinada quantia pecuniária, por tempo determinado, ou não, ficando os segundos obrigados ao reembolso das somas utilizadas e ao apagamento dos respetivos juros e comissões. Este concreto contrato destinou-se a financiar a aquisição, pelos dois requeridos supra mencionados, das viaturas melhor identificadas nos autos (e cuja apreensão foi requerida nos autos pelo apelante). Ora, da resolução deste contrato, por incumprimento contratual, não resulta a obrigação de restituição dos bens vendidos.
O direito de propriedade só pode adquirir-se através de um dos meios previstos no artigo 1316.º do Código Civil e, no caso, não foi alegado e não se provou que a aqui apelante haja adquirido o direito de propriedade sobre qualquer dos veículos em causa por qualquer das formas previstas na lei; ela limitou-se a financiar a aquisição dos mesmos por parte dos dois requeridos supra mencionados. Donde não tendo a apelante/requerente a qualidade de proprietária dos referidos veículos não pode reservar para si a propriedade de algo que nunca foi seu. E, assim, à luz de todo o exposto, a cláusula de reserva de propriedade a favor da apelante e aposta no contrato é nula.
Refira-se, por último, que ao contrário do que sustenta o apelante (…), não é legalmente possível transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro por via da sub-rogação legal estabelecida no artigo 592.º do Código Civil ou por via de uma cessão de créditos, porquanto estes dois institutos são formas de operar mudanças no sujeito ativo de relações jurídicas obrigacionais, sendo, portanto alheios à constituição e transferência da reserva de propriedade que é uma restrição ao direito real de propriedade. Em síntese, por via da sub-rogação e da cessão de créditos transmitem-se direitos de créditos e não se transmitem nem se constituem direitos reais.

Em conclusão, a cláusula contratual[7] que constitui a possibilidade de constituição de reserva de propriedade a favor da financiadora é nula à luz do disposto no artigo 280.º do Código Civil, improcedendo, pois, as conclusões do recurso.

Sumário: (…)


III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm a sentença recorrida.
As custas na presente instância são da responsabilidade da recorrente, porque vendida, sendo que a esse título apenas é devido o pagamento de custas de parte porquanto a recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há encargos.
Notifique.
DN.
Évora, 10 de julho de 2025
Cristina Dá Mesquita
Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho



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[1] Na eventualidade de o comprador não cumprir a sua obrigação, o vendedor, ainda que já tenha entregue a coisa, poderá, de acordo com as regras da resolução, depois de ter colocado o devedor em incumprimento definitivo através do recurso à interpelação cominatória prevista no artigo 808.º do Código Civil, resolver o contrato e, uma vez este extinto, tem direito à restituição do bem entregue de que manteve sempre proprietário.
[2] Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Atualizada com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, pág. 376.
[3] No mesmo sentido, por exemplo, Ac. RL de 18.02.2014, proc. 3331/11.0TVLSB.L1-7, desembargador Tomé Gomes, e Ac. RL de Lisboa de 07.12.2023, proc. n.º 2883/23.7T8OER-A.L1-2, desembargador António Moreira, ambos consultáveis em www.dgsi.pt
[4] Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição Revista e Atualizada (Reimpressão), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, pág. 95.
[5] Processo n.º 07A2680, Sr. Conselheiro Fonseca Ramos, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Relatado pela Sra. Desembargadora Teresa Pardal, consultável em www.dgsi-pt.
[7] A qual tem o seguinte teor: «A Empresário desde já aceita que o (…) possa vir a exigir a constituição de quaisquer garantias sobre os veículos financiados ao abrigo do presente Contrato, nomeadamente a constituição de reserva de propriedade ou de hipoteca a seu favor, sendo da responsabilidade da Empresário suportar todos os encargos inerentes à sua inscrição junto do Registo Automóvel, incluindo as multas devidas pelo atraso da prática dos atos de registo»