Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
514/21.9PAVRS.E1
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
AGENTE DA POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
IMPEDIMENTO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do C. P. Penal, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II - O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39º, nº 3, do C. P. Penal, aplicável por força do nº 2 do artigo 8º do D.L. nº 243/2015, de 19/10, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes (na circunstância «agentes») que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III - Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41º, nº 2, do C. P. Penal), como o foi.
IV - Constatando-se que o ato processual praticado - o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal - não pode ser repetido utilmente, e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade - assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade -, tal ato é inválido.
V - Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118º, nº 1, do C. P. Penal, a nulidade insanável cominada (artigo 41º, § 3º e corpo do artigo 119º do CPP) impede a repetição do ato nulo.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

No dia 31 de janeiro do corrente ano de 2024, foi proferida sentença absolvendo-se o arguido, cujo dispositivo é o seguinte:
Declara-se nulo o auto de noticia elaborado nos presentes autos, o que implica a invalidade dos demais atos praticados subsequentemente, nos termos dos artigos artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do CPP, absolvendo-se, nessa sequência, o arguido, da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro.
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Inconformado com o decidido veio o MP intentar o presente recurso apresentando para tanto as seguintes conclusões:
1.ª – O presente recurso vem interposto da douta sentença titulada «DESPACHO» proferida em Acta e identificada no sistema informático «Citius» com a referência n.º 131075771, de 31-01-2024, que absolveu o arguido R, da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, conjugado com os arts. 121.º s. do Código da Estrada;
2.ª – Crê-se que o Tribunal «a quo» não procedeu à correcta interpretação do disposto no art.º 41.º, n.º 3, segunda proposição do Código de Processo Penal e do regime da nulidade aí cominada, em consequência, declarou a nulidade insanável do Auto de Notícia elaborado pela Agente da Polícia de Segurança Pública M e no qual indicou como testemunha o Agente da mesma Polícia V, os quais – à data dos factos descritos em tal Auto de Notícia – viviam maritalmente;
3.ª – Expende-se no douto «Despacho» (com natureza de sentença absolutória) em crise, para o que ora releva [por transcrição]:
«(…) Designada data para a realização de audiência de julgamento, veio o arguido, na mesma, invocar que, em suma, tendo sido autuante a agente M, e testemunha o agente V, e tendo atuado conjuntamente no exercício das funções enquanto agentes da PSP, encontrando-se, à data dos factos, casados, e estabelecendo o artigo 8.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, do estatuto da PSP que o regime de impedimentos, recusas e escusas previstos no Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações aos policias enquanto OPC, mais sendo que no Código de Processo Penal o regime dos impedimentos, recusas e escusas vem previsto nos artigos 39.º a 46º, e assim, transpondo tais normativos para o caso dos autos e aplicando-lhe as necessárias adaptações, não podem exercer funções a qualquer título no mesmo processo policias que sejam entre si cônjuges ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges. Face ao exposto, entendendo que tal facto é cominado como nulidade insanável dada a previsão do artigo 119.º do Código de Processo Penal, foi tal requerido.
(…) Procedendo à identificação do arguido e à comunicação ao mesmo dos factos pelos quais vem acusado, o mesmo não os admitiu.
O Ministério Público pugnou pela não verificação da nulidade invocada.
Cumpre, pois, neste momento, decidir da nulidade suscitada.
Compulsados os autos, verifica-se que o auto de noticia junto aos mesmos foi elaborado pela agente da Policia de Segurança Publica M, com a matricula n.º (…..) e nele foi indicada a testemunha, também agente da mesma força policial, V, com a matrícula n.º (…..).
Resulta ainda dos autos, que a agente autuante e a testemunha indicada no auto de notícia, viviam à data dois factos, em condições análogas à dos cônjuges.
Aos autos é, desde logo, aplicável o disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei 243/2015, de 19 de outubro, (…)”.
Por sua vez, nos termos do art. 39.º, n.º 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, temos que, “não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges”.
Ora, nos autos, claro está que, vivendo à data dos factos em condições análogas às dos cônjuges, e sempre se aplicando o disposto nas normas acima referidas (…).
Nesta sequência, e considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 3, do CPP, veja-se que “os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.
Considerando-se que os presentes autos assentam na notícia do crime constatada pelos referidos intervenientes, enquanto agente autuante e testemunha, não podendo o mesmo ser repetido utilmente, sendo que, a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade, o que necessariamente afeta de forma grave a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade, impõe-se julgar inválido o mesmo.
Tal invalidade constitui uma nulidade insanável, considerando o disposto no artigo 119.º, do CPP, a qual deve ser oficiosamente declarada, em qualquer fase do procedimento, face à impossibilidade de repetição do ato nulo.
Sobre a questão – e ademais quanto aos mesmos intervenientes – debruçou-se já o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25/05/2023, Relator Gomes de Sousa, Processo 463/22.3PAVRS.E1 (…) – neste sentido, entendeu-se que os atos nulos praticados pelos OPC, inquinavam tudo o mais praticado no processo, porquanto “irrepetíveis” os atos nulos e assim, declarou-se nulo o auto de notícia e tudo o mais que lhe seguiu, nomeadamente, a sentença proferida nos autos, absolvendo o arguido do crime praticado.
Diga-se ainda que, iniciada a audiência de julgamento, o arguido não admitiu a prática dos factos, pelo que inexistindo quaisquer outros meios de prova não contaminados pela nulidade dos atos praticados pelo OPC, e que pudessem ser livremente valorados – admitindo-se, fosse esse o caso, a consideração de meio de prova diverso e não inquinado pelo nulidade do auto de notícia, entendendo que em tal situação se poderia ponderar a valoração de tais declarações de natureza confessória, não afetadas pelo vício referido, e livremente apreciadas (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004, no que respeita à análise da questão relativa à não contaminação da nulidade dos atos praticados pelos OPC – no caso, nulidade de escutas mas aplicada ao caso com as devidas adaptações – à prova por confissão e ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2023, Relator Ernesto Vaz Pereira, Recurso de Revisão, no qual se analisou situação com os mesmos intervenientes dos autos e tendo sido negado provimento ao mesmo, porquanto o facto novo trazido a juízo, o do casamento dos OPC, à data da prática dos factos e do auto de noticia, não “contaminou a confissão livre integral e sem reservas operada pelo arguido em sede de audiência de julgamento, entendendo-se que “a dúvida sobre a justiça da condenação, relevante para a revisão, tem de ser qualificada. Como se tem salientado, não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade. Aqui a condenação sofrida assentou na confissão integral e sem reservas do arguido. Confissão essa que não vem negada, nem se afirma viciada. Confissão que levou necessariamente à condenação e coerentemente à não interposição de recurso. Estamos perante uma confissão livre, total e sem reservas, fora de qualquer coação, em termos que não levantam dúvidas da sua espontaneidade, genuinidade ou autenticidade. Nem hic et nunc o Recorrente as suscita. Confissão assumida, com arrependimento, perante juiz de julgamento e na presença do seu defensor e depois da advertência feita pelo primeiro. Que, decorrentemente, implicou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consideração destes como provados, como manda o artigo 344º, nº 2, do CPP. Nomeadamente determinou a não audição da única testemunha arrolada pelo Ministério Público para ser inquirida na audiência de julgamento. A que não houve oposição. O facto “novo” agora avançado, a conjugalidade dos agentes autuantes, que, como “novo”, marcado vem nos pontos conclusivos VI, XII, XXVI e XXVIII do recurso, alegadamente impeditivo do desempenho de funções conjuntas, nem determinou a condenação nem agora tem a virtualidade de por si ou com os demais elementos suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação”).
Face ao exposto, e na ausência de outros meios de prova que validamente possam ser valorados, declara-se nulo o auto de noticia elaborado nos presentes autos, o que implica a invalidade dos demais atos praticados subsequentemente, nos termos dos artigos artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do CPP, absolvendo-se, nessa sequência, o arguido, da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique.
Em face do ora decidido, fica, pois, prejudicada a continuação da audiência de julgamento, tendo-se a mesma por encerrada, pelos motivos acima referidos». [r/m]
4.ª – Com todo o respeito que é devido, o douto Tribunal «a quo» apesar de ter fundamentado a decisão de absolvição do arguido, nomeadamente, nos ensinamentos plasmados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13-09-2023, prolatado no Processo Sumário n.º 391/22.2PAVRS deste Juízo Local de Vila Real de Santo António – Juiz 1 em recurso extraordinário de Revisão de Sentença, publicado na web no site do IGFEJ Bases JurídicoDocumentais, não sopesou o entendimento aí avançado segundo o qual:
«(…) na pretendida aplicação do artigo 41º, nº 3, do CPP, não pode olvidar-se que a nulidade aí cominada é uma nulidade sui generis, que, não cabendo no artigo 119, nº 1, al. a), in fine, do CPP, tem de ser arguida no prazo de 10 dias contados do conhecimento do facto, e que, em afastamento do regime geral do artigo 121, do CPP, fica sanada se não houver utilidade na repetição do acto e se não houver prejuízo para a justiça da decisão do processo (cfr “Comentário do CPP”, I, 5ª edição, Pinto de Albuquerque, nota ao artigo 41º)» - in nota de rodapé n.º 3.
5.ª – Sempre ressalvando o melhor entendimento de V. Exas., ao encontro do âmago desta questão, veio o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 06-022024, proferido no Processo Sumário n.º 309/23.5PAVRS deste Juízo Local de Vila Real de Santo António – Juiz 2, publicado na web no site do IGFEJ Bases Jurídico-Documentais, conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e determinar a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento daqueles autos «com os limites apontados (nulidade de indicação da testemunha».
Em tal douto Acórdão, foi decidido que (por transcrição):
«(…) Sendo verdade que o (…) art.º 8º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, o regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.
Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.
Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.
(…) cumpre notar que, mesmo que se entenda que a indicação da testemunha nessa qualidade no auto de notícia implica o dito impedimento, no limite, o que poderá estar ferido de nulidade, com base no disposto no art.º 41º, nº 3 do CPP, é a indicação da testemunha enquanto tal, mas não a parte sobrante do auto de notícia. Assim, a reconhecer-se a nulidade da indicação da testemunha nessa qualidade, o que, em nosso entender, se impunha, era efectuar a sua declaração com o consequente aproveitamento do auto de notícia na parte subsistente na audiência de julgamento (…).» [r/m];
6.ª – Semelhantemente ao que ali se decidiu, também nestes autos a prova do objecto do crime não depende de forma decisiva do depoimento da testemunha cuja nulidade se pudesse vir a declarar em audiência de julgamento, já que consta do rol da prova da acusação, a prova documental traduzida no Auto de apreensão da Licença de condução do arguido caducada e as pesquisas e informação com origem no IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. sobre a falta de titulo válido para o arguido conduzir ciclomotores na data em que foi fiscalizado;
7.ª – Nesta medida, e analisando o regime da nulidade que foi conhecida e declarada pelo douto Tribunal «a quo», afigura-se, salvo o melhor entendimento de V. Exas., que não podendo repetir-se a acção de fiscalização que deu origem aos presentes autos, a nulidade (na medida em que exista) não opera se se verificar que dos actos nulos não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo - nos termos previstos na segunda proposição do n.º 3 do art.º 41.º do Código de Processo Penal – que assentará, de forma decisiva, na prova documental indicada na acusação;
8.ª – Afigura-se que os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação de Évora citados, analisam a nulidade em causa como sendo «sui generis», cujo regime deve ser conhecido como nulidade se tratando de uma nulidade que não é absoluta e não é insanável; e que, por consequência, não abrange todo o acto policial de fiscalização rodoviária realizado pelos Agentes da Polícia de Segurança Pública em causa nestes autos que nessa data viviam em condições análogas às dos cônjuges, nem o todo o Auto de Notícia elaborado nessa fiscalização e ainda, que fica sanada se os identificados actos nulos não puderem ser repetidos utilmente e deles não resultar prejuízo para a justiça da decisão do processo;
9.ª – Neste enquadramento, sendo a prova do crime que constitui objecto deste processo fundamentalmente de natureza documental e, sendo o depoimento da Sr.ª Agente da Polícia de Segurança Pública autuante suficiente para a realização do julgamento do arguido, deveria o douto Tribunal «a quo» ter prosseguido com o julgamento após a audição do arguido que realizou – e que não prestou declarações -, ter inquirido a Sr.ª Agente da Polícia de Segurança Pública autuante e conhecido de toda a prova documental indicada, sem prejuízo de, logo na audiência de julgamento, ou na sentença final, vir a declarar a nulidade da prova testemunhal na parte relativa à indicação do Agente da Polícia de Segurança Pública não autuante;
10.ª - Assim, e salvo melhor entendimento de V. Exas., a douta decisão em crise padece de nulidade por errada interpretação do disposto na segunda parte do n.º 3 do art.º 41.º do Código de Processo Penal e do regime da nulidade dos actos aí contemplada, pelo que deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento do julgamento do arguido expurgado da nulidade da indicação no rol da acusação da testemunha Agente da Polícia de Segurança Pública V que não elaborou o Auto de Notícia.
V. Exas., porém, melhor decidirão!
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Recebido o recurso e dele notificado o arguido, não tendo apresentado resposta.
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A Sr.ª PGA junto deste Tribunal da Relação apôs o seu visto.
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Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 410º nº 2 CPP.
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Como se verifica das conclusões de recurso, o objeto do presente recurso consiste em saber:
i) se o auto de notícia é nulo, resultante do impedimento do autuante e testemunha arrolada, ambos agentes da PSP e casados um com o outro, e, consequentemente, todo o processado.
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III - Fundamentação:
A - A decisão recorrida é do seguinte teor:
Compulsados os autos, temos que, vem o arguido acusado da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro, por factos praticados a 2 de outubro de 2021.
Designada data para a realização de audiência de julgamento, veio o arguido, na mesma, invocar que, em suma, tendo sido autuante a agente M, e testemunha o agente V, e tendo atuado conjuntamente no exercício das funções enquanto agentes da PSP, encontrando-se, à data dos factos, casados, e estabelecendo o artigo 8.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, do estatuto da PSP que o regime de impedimentos, recusas e escusas previstos no Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações aos policias enquanto OPC, mais sendo que no Código de Processo Penal o regime dos impedimentos, recusas e escusas vem previsto nos artigos 39.º a 46º, e assim, transpondo tais normativos para o caso dos autos e aplicando-lhe as necessárias adaptações, não podem exercer funções a qualquer título no mesmo processo policias que sejam entre si cônjuges ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges. Face ao exposto, entendendo que tal facto é cominado como nulidade insanável dada a previsão do artigo 119.º do Código de Processo Penal, foi tal requerido.
Foi nessa sequência, determinada a junção aos autos da certidão de nascimento da Agente autuante.
Consultada a mesma, vislumbra-se que a Agente autuante e a testemunha apenas contraíram casamento a 18/03/2022, tendo o Agente presente sido chamado a responder relativamente à sua situação pessoal e de vida, à data dos factos, tendo resultado que se encontravam a viver em situação de união de facto.
Procedendo à identificação do arguido e à comunicação ao mesmo dos factos pelos quais vem acusado, o mesmo não os admitiu.
O Ministério Público pugnou pela não verificação da nulidade invocada.
Cumpre, pois, neste momento, decidir da nulidade suscitada.
Compulsados os autos, verifica-se que o auto de noticia junto aos mesmos foi elaborado pela agente da Policia de Segurança Publica M, com a matricula n.º (…..) e nele foi indicada a testemunha, também agente da mesma força policial, V, com a matrícula n.º (…..).
Resulta ainda dos autos, que a agente autuante e a testemunha indicada no auto de notícia, viviam à data dois factos, em condições análogas à dos cônjuges.
Aos autos é, desde logo, aplicável o disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei 243/2015, de 19 de outubro, que estabelece o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, o qual estatui que “o regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal (…)”.
Por sua vez, nos termos do art. 39.º, n.º 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, temos que, “não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges”.
Ora, nos autos, claro está que, vivendo à data dos factos em condições análogas às dos cônjuges, e sempre se aplicando o disposto nas normas acima referidas, sendo que, inexistindo nos mesmos declaração de impedimento efetuada pela agente autuante – podendo tal circunstancialismo ser ademais suscitado pelo arguido, considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 2, do CPP.
Nesta sequência, e considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 3, do CPP, veja-se que “os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.
Considerando-se que os presentes autos assentam na notícia do crime constatada pelos referidos intervenientes, enquanto agente autuante e testemunha, não podendo o mesmo ser repetido utilmente, sendo que, a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade, o que necessariamente afeta de forma grave a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade, impõe-se julgar inválido o mesmo.
Tal invalidade constitui uma nulidade insanável, considerando o disposto no artigo 119.º, do CPP, a qual deve ser oficiosamente declarada, em qualquer fase do procedimento, face à impossibilidade de repetição do ato nulo.
Sobre a questão – e ademais quanto aos mesmos intervenientes – debruçou-se já o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25/05/2023, Relator Gomes de Sousa,
Processo 463/22.3PAVRS.E1, no qual se entendeu que “Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges». Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo” – neste sentido, entendeu-se que os atos nulos praticados pelos OPC, inquinavam tudo o mais praticado no processo, porquanto “irrepetíveis” os atos nulos e assim, declarou-se nulo o auto de notícia e tudo o mais que lhe seguiu, nomeadamente, a sentença proferida nos autos, absolvendo o arguido do crime praticado.
Diga-se ainda que, iniciada a audiência de julgamento, o arguido não admitiu a prática dos factos, pelo que inexistindo quaisquer outros meios de prova não contaminados pela nulidade dos atos praticados pelo OPC, e que pudessem ser livremente valorados – admitindo-se, fosse esse o caso, a consideração de meio de prova diverso e não inquinado pelo nulidade do auto de notícia, entendendo que em tal situação se poderia ponderar a valoração de tais declarações de natureza confessória, não afetadas pelo vício referido, e livremente apreciadas (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004, no que respeita à análise da questão relativa à não contaminação da nulidade dos atos praticados pelos OPC – no caso, nulidade de escutas mas aplicada ao caso com as devidas adaptações – à prova por confissão e ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2023, Relator Ernesto Vaz Pereira, Recurso de Revisão, no qual se analisou situação com os mesmos intervenientes dos autos e tendo sido negado provimento ao mesmo, porquanto o facto novo trazido a juízo, o do casamento dos OPC, à data da prática dos factos e do auto de noticia, não “contaminou a confissão livre integral e sem reservas operada pelo arguido em sede de audiência de julgamento, entendendo-se que “a dúvida sobre a justiça da condenação, relevante para a revisão, tem de ser qualificada. Como se tem salientado, não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade. Aqui a condenação sofrida assentou na confissão integral e sem reservas do arguido. Confissão essa que não vem negada, nem se afirma viciada. Confissão que levou necessariamente à condenação e coerentemente à não interposição de recurso. Estamos perante uma confissão livre, total e sem reservas, fora de qualquer coação, em termos que não levantam dúvidas da sua espontaneidade, genuinidade ou autenticidade. Nem hic et nunc o Recorrente as suscita. Confissão assumida, com arrependimento, perante juiz de julgamento e na presença do seu defensor e depois da advertência feita pelo primeiro. Que, decorrentemente, implicou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consideração destes como provados, como manda o artigo 344º, nº 2, do CPP. Nomeadamente determinou a não audição da única testemunha arrolada pelo Ministério Público para ser inquirida na audiência de julgamento. A que não houve oposição. O facto “novo” agora avançado, a conjugalidade dos agentes autuantes, que, como “novo”, marcado vem nos pontos conclusivos VI, XII, XXVI e XXVIII do recurso, alegadamente impeditivo do desempenho de funções conjuntas, nem determinou a condenação nem agora tem a virtualidade de por si ou com os demais elementos suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação”).
Face ao exposto, e na ausência de outros meios de prova que validamente possam ser valorados, declara-se nulo o auto de noticia elaborado nos presentes autos, o que implica a invalidade dos demais atos praticados subsequentemente, nos termos dos artigos artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do CPP, absolvendo-se, nessa sequência, o arguido, da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro.
Sem custas, por não serem devidas.
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B - Apreciação do recurso
Como acima se explanou, a única questão a decidir é a de saber e decidir se o auto de notícia é nulo, resultante do impedimento do autuante e da testemunha arrolada, ambos agentes da PSP casados um com o outro, e, consequentemente todo o processado, ao abrigo das normas previstas nos art.ºs 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Entende o recorrente, Ministério Público, que não verifica qualquer nulidade do auto de notícia, porquanto o marido da autuante, não praticou nenhum ato no processo, não subscreveu o auto de notícia, nem qualquer outro documento ou peça processual, e, tendo sido indicado como testemunha na acusação deduzida, não prestou depoimento. Ou seja, não exerceu nos autos qualquer função ou ato de que se encontrasse impedido, motivo pelo qual não deveria ter sido considerada a existência da aludida nulidade, pelo que a decisão recorrida violou o art.º 41.º, do Código de Processo Penal, por referência aos art.ºs 8.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro e 39.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
Previamente, cumpre salientar que neste Tribunal da Relação de Évora já foram proferidas duas decisões contrárias acerca da mesma questão jurídica.
Na primeira, datada de 25.05.2023, no âmbito do processo n.º 463/22.3PAVRS.E1, em que foi relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Gomes de Sousa, e no qual a decisão recorrida se baseou, entendeu-se que o auto de notícia estava afetado de nulidade insanável em virtude do impedimento decorrente de as testemunhas, agentes da PSP (agente autuante que elaborou o auto e testemunha) serem casados entre si.
O sumário do referido acórdão é o seguinte:
I. Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III. Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi.
IV. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido.
V. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo.
Na segunda, proferida em 06.02.2024, relatado pela Exma. Senhora Juíza Desembargadora Margarida Bacelar, no processo n.º 309/23.5PAVRS.E1, seguiu-se entendimento contrário.
Transcreve-se o respetivo sumário:
Sendo verdade que o art.º 8º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, do regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.
Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.
Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.”
Ao nível da legislação, têm interesse para a solução jurídica do pleito as normas jurídicas que de seguida se transcrevem.
Estatui o art.º 8.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 243/ 2015, de 15 de outubro que:
1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.”
Por seu turno, dispõe o art.º 39.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que:
“(…)
3 - Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges.
Finalmente, prevê o art.º 41.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que:
“ (…)
3 - Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.”.
Subscrevemos na íntegra o primeiro dos acórdãos sumariados, entendendo, por isso, que a decisão recorrida realizou uma correta subsunção dos factos, sendo de manter, pelas razões constantes do voto de vencida da Exma. Senhora Juíza Desembargadora Filipa Costa Lourenço no Acórdão desta Relação, proferido no processo n.º 500/21.9GPAVRS.E1, cujo teor se subscreve na íntegra e que por isso, sem necessidade de qualquer desenvolvimento, se transcreve:
Julgaria o recurso improcedente e confirmaria na integra a decisão recorrida declarando nulo o auto de notícia, concordando-se com a absolvição do arguido bem como com os seus fundamentos que nos parecem acertadíssimos, pelos seguintes vectores:
Seguindo de perto Jurisprudência e citando a “quase” e por ora, consolidada a deste Tribunal da Relação de Évora, vide Ac TRE de 2/05/2023 processo 463/22.3PAVRS.E1 e AC TRE 325/22.4PAVRS.E1 de 19/03/24.
I. Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III. Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi.
IV. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido.
V. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo.
Então:
“O Artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, integrado na Secção II do Capítulo II, relativa às «Garantias de imparcialidade», dispõe claramente que:
1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.
Ora, tratando-se de um auto de notícia lavrado em funções cristalinamente processuais penais, é inócuo o regime contido na Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), designadamente o seu art. 24º, nsº 1, 2 e 4 («Proibições específicas»), na medida em que não nos encontramos face a simples obrigações laborais resultantes de prestação de «serviços no âmbito do estudo, preparação ou financiamento de projetos, candidaturas ou requerimentos que devam ser submetidos à sua apreciação ou decisão ou à de órgãos ou serviços colocados sob sua direta influência», com cariz contratual ou administrativo no sentido restrito.
Tratando-se de notícia de um crime é indubitavelmente aplicável o nº 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que estatui que “O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, (…)”.
Como nenhum dos agentes envolvidos no auto de notícia suscitou o seu impedimento para o acto, passada se mostra a possibilidade de ter sido deduzido o impedimento, tornou-se inaplicável o disposto no nº 3, que naturalmente supõe a existência de uma declaração de impedimento.
(…)
Integrando-se a existência do auto de notícia num processo penal passa o mesmo – e o impedimento invocado - a ser regido pelo CPP, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
O artigo 39º, nº 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, é cristalino quando estatui que «Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
Demonstrado nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto são cônjuges (ou vivem em união de facto/ no caso), demonstrada está a existência de impedimento.
Inexistindo declaração de impedimento – o que pode ser suscitado pelo arguido (nº 2 do preceito) -passa a reger a situação o disposto no artigo 41.º do CPP que, no seu número 3 determina que «Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo».
Constatando-se que o acto – o lavrar de auto de notícia e o sequente depoimento – não podem ser repetidos utilmente e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afectando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – é inválido, resta saber do regime da mesma.
Sujeita a invalidade ao princípio da legalidade constante do artigo 118º, nº 1 do CPP, verificamos que a mesma está prevista na lei – as supras citadas – e cominada como nulidade, concretamente insanável dada a previsão do corpo artigo 119º do CPP e a ser “oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” e face à impossibilidade de repetição do acto nulo.”
Nestes termos, e em situações similares já foram analisadas em acórdãos do T.R.E. sendo intervenientes agentes da autoridade casados entre si ou vivendo em união de facto e sempre da mesma cidade Vila Real de Santo António.
Como já disse concordo na integra com a decisão recorrida e seus fundamentos , aduzindo no entanto que o quadro que nos é apresentado deveria pelo menos ser dado conhecimento ao superior hierárquico dos intervenientes no auto de noticia para evitar a nova oclusão de situações similares, não se compreendendo também a génese destes casos pois basta estarem ambos em serviço de giro (ou outro) simultaneamente um com o outro tal agir não é legalmente admissível e sendo todos os actos praticados nessa “parceria proibida”( metaforicamente falando) nulos.
O princípio da legalidade impõe-se ao legislador, dele exigindo o recurso a técnicas legislativas de qualidade que garantam a efectividade da função de garantia da lei penal. Ao juiz cabe aplicar a lei feita pelo legislador, nunca podendo aquele substituir-se a este, num processo dialéctico determinado pela relação entre o problema de facto juridicamente relevante e a determinação da norma aplicável cuja previsão se há-de encontrar por via da utilização de todos os critérios legitimamente admissíveis no processo de interpretação que, tendo a norma por objecto, nela busca o critério adequado à solução do caso sub judice. É indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que é evidente um «claro teor literal» (JESCHEK, loc. cit, p. 137; sublinhando este ponto, o acórdão do STJ de 14.3.3013, no proc. 287/12.6TCLSB.L1.S1).A interpretação há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, levando em conta todos os elementos de interpretação - gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) -, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao «sentido possível» do texto (letra) da lei, enquanto limite da própria interpretação (artigo 9.º do Código Civil). / vide aqui parecer do PGA agora Juiz Conselheiro José Luís Lopes da Mota.
Aliás levando ao extremo parece-nos que que este “status quo” repetente fere indubitavelmente a garantia constitucional de imparcialidade que o nosso Estado de Direito garante a todos os cidadãos, podendo até dar origem a processos de indemnização a pedido pelos arguidos, ou quiçá até à condenação do Estado Português em Instâncias Internacionais, pois as normas que regem este conspecto são tão claras que não lobrigamos um “ nicho” para se fazer uma interpretação do modo decidido julgando o recurso procedente e excepcionando desta forma a aplicação da lei que nos parece bastante clara.
Aliás e fazendo jus a um exemplo de extremo ou radical, atente-se por exemplo que ao fazer- se um julgamento em Tribunal Colectivo, se este começa com dois juízes casados entre si e depois de levantada a questão um deles retira-se, entrando outro em sua substituição prosseguindo o julgamento e aproveitando-se os actos anteriormente praticados…” quid júris? (Artº 39º nº 3 do CPP e já para não falar do artº 40º do C.P.P.)
Também se seguiria o raciocínio do presente acórdão? Julgamos que não…
E se não, porque fazê-lo a quem está sujeito à mesma norma legal / no caso dos autos, a dois agentes da PSP? Não pode haver dois pesos nem duas medidas, e por aqui me quedo.
Sabemos que a jurisprudência é o próprio direito na sua vivência progressiva, no entanto “in casu” parece-nos que seria aqui também de aplicar o princípio lógico (filosófico) da “Navalha de Occam” (dita como a lei da parcimónia - “Pluralitas non est ponenda sine necessitate”) na interpretação das normas adoptadas da decisão da qual se discorda.
Aliás “O regime de impedimentos do processo penal previsto nos arts. 39.º e 40.º, para além de específico, é de enumeração taxativa. Não contém lacunas que devam ser integradas por analogia. Por tal motivo, não é lícito recorrer ao CPC, ex vi do art. 4.º do CPP, para integração do pretenso caso omisso” vide AC. do STJ de 7/07/2010.
Verificando-se nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto viviam ao tempo em união de facto, demonstrada está a existência do impedimento, razão pela qual concordo com a decisão recorrida e julgaria improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, posição aliás que já assumi noutro processo de idêntica natureza.
Aqui chegados, seguindo nós o entendimento jurisprudencial constante do Acórdão citado, bem desenvolvido e complementado pelo voto de vencida que se transcreveu e em cujo teor nos revemos, concluímos sem dúvida que o recurso apresentado não merece provimento.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Évora, em julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, e em consequência mantem-se a decisão recorrida.
- Sem custas por delas estar isento o MP.

Évora, 4 de junho de 2024
Maria Gomes Perquilhas
Carlos de Campos Lobo
Filipa Costa Lourenço

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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.