Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2303/21.1T8STB.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: COOPERATIVA
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: i) a factualidade objeto de julgamento é aquela que foi alegada nos articulados apresentados pelas partes, e não o contrário do que foi alegado;
ii) da não prova de determinado facto não resulta provado o seu contrário;
iii) a recusa de cumprimento de certa obrigação contratual pode alicerçar-se na exceção de não cumprimento do contrato, exceção que decorre do nexo de interdependência que prende as duas obrigações fundamentais integradas no contrato bilateral.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autora: (…) – Sociedade Agrícola de (…), Lda.
Recorrida / Ré: (…) – Cooperativa Agrícola de Produtores de Leite de (…), CRL

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a Autora peticionou a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 314.558,36 (trezentos e catorze mil, quinhentos e cinquenta e oito euros e trinta e seis cêntimos), a título de indemnização pelos danos sofridos em face do incumprimento contratual da Ré, acrescida de juros a contar da citação, à taxa legal em vigor.
Para tanto, alegou a celebração de um contrato com a Ré relativo à compra e venda de leite cru, a 01/06/2019, resultando a Ré obrigada a adquirir-lhe 1.750.000 litros de leite cru de vaca, durante 12 meses, por preço a calcular de acordo com o estabelecido pela tabela de classificação de leite modelo 0.0.052.00 em vigor. A partir de 16 de julho de 2019, e sem motivo bastante para tanto, a Ré recusou-se a realizar as recolhas de leite, vindo a resolver o contrato em abril de 2020. A Autora, confrontada com a recusa da Ré a recolher o leite, mediante o pagamento de € 32.000,00, comprou direitos de entrega de leite de outros produtores à (…), que acabou por recolher todo o leite que era destinado à Ré. Logrou, assim, a Autora vender 600.000 litros de leite por € 32.000,00, valor inferior ao que contratara com a Ré; os restantes 831.054 litros cuja recolha a Ré não assegurou foram entregues à (...) sem nada receber em troca.
Termos em que alega a Autora o prejuízo de € 282.558,36 (831.054 litros x € 0,34 / litro) acrescido de € 32.000,00.
A Ré, em sede de contestação, invocou a exceção de não cumprimento do contrato alicerçada na tuberculose bovina detetada na exploração de leite da Autora em julho de 2019, com o consequente sequestro sanitário da exploração, o que inviabilizou a recolha de leite que, como bem sabia a Autora, era destinado a (…), SA (proprietária da unidade industrial de tratamento e embalamento de leite em …, e que recusou a aquisição de leite proveniente da exploração da Autora), já que a Ré, enquanto cooperativa, não procede ao tratamento nem comercializa o leite junto do consumidor.
Tais circunstâncias configuram ainda fundamento, na ótica da Ré, para se opor à pretensão da Autora por alteração anormal das circunstâncias sobre as quais as partes fizeram assentar a decisão de contratar.
Em resposta, a Autora sustentou que não procedem as invocadas exceções, já que colocou o leite cru à disposição da Ré, que podia recolher o leite, como sempre fez, em separado, além de que não pode ser afetada pela relação da Ré com a (…), SA, reiterando que a doença diagnosticada nos bovinos em nada afeta a recolha do leite.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Inconformada, a Autora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a ação totalmente procedente. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1.ª) Entende a recorrente que a sentença proferida pelo tribunal a quo enferma de erro quanto à apreciação da matéria de facto, em concreto quanto aos pontos 8, 26, 27, 32, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 42, 53 e 54 dos factos provados, bem como as alíneas A) e C) dos factos não provados, assim como quanto à interpretação das normas jurídicas aplicáveis, plasmada em sede de motivação sobre a matéria de Direito.
2.ª) Quanto ao facto constante do ponto 8 dos factos provados, verifica- se que a redação que foi conferida pelo tribunal quanto a este ponto não se encontra tecnicamente correta, já que resulta do Regulamento (CE) 853/2004, assim como das declarações das testemunhas (…) e (…), que todo o leite vendido em Portugal é pasteurizado ou ultra pasteurizado, por motivos de saúde pública, bem como submetido ao teste da fosfatose alcalina.
3.ª) Mesmo a própria nata, referida erradamente pelo tribunal a quo como um exemplo de leite que não é submetido à pasteurização, é também sujeita ao processo da pasteurização, pois foi explicado pelo legal representante da interveniente que o desnate, no qual não é atingida a temperatura da pasteurização, é uma fase meramente preliminar, onde é apenas separado o leite e a gordura, sendo que, depois, quer o leite, quer a nata são separadamente submetidas à pasteurização.
4.ª) De onde resulta efetivamente que todo o leite e todas as natas vendidas ao consumidor são efetivamente objeto, no mínimo, de pasteurização, sendo certo que não poderia ser de outra forma, pois só assim se assegura a segurança alimentar destes produtos, quer provenham de explorações indemnes ou não indemnes.
5.ª) Assim deverá a redação do ponto 8 dos factos provados ser alterada para a seguinte: O leite cru, após recolha, é transportado para fábrica, onde é sujeito a tratamento térmico de desnate, sendo posteriormente o leite e as natas obrigatoriamente sujeitas a pasteurização ou ultra pasteurização.
6.ª) Quanto aos pontos 32 e 35 dos factos provados, verifica-se que estes são contraditórios com o teor do ponto 50 dos factos provados, já que apenas resultou provada a existência de um contrato de compra e venda de leite cru entre a Ré e a interveniente é de 1 de janeiro de 2020.
7.ª) Pelo que, reportando-se a recusa da Ré a julho de 2019, é manifesto que não foram provados factos suficientes que permitam concluir, nem que a Ré vendia todo leite à … (ponto 35), nem, muito menos, que o contrato entre a Ré e a Autora (outorgado em 2019) tenha sido celebrado pela Ré no pressuposto que todo o leite cru iria ser revendido à (…).
8.ª) Porquanto, em 2019, não consta dos autos que houvesse qualquer contrato entre a Ré e a interveniente (…), facto este que apenas admite prova documental, nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil, porquanto o contrato de compra e venda de leite cru está sujeito a forma escrita, nos termos do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 42/2013, de 22 de março, não sendo as declarações de parte dos legais representantes idónea ou, sequer, suficientes para a prova de tal facto.
9.ª) Em consequência, deverão os factos constantes dos pontos 32 e 35 serem julgados como não provados.
10.ª) No que concerne ao ponto 34 dos factos provados, verifica a recorrente que, também aqui, a redação conferida pelo tribunal a quo revela-se falaciosa e imprecisa, dando a entender que a Ré é uma mera transportadora.
11.ª) Circunstância que, não só não é verdadeira, como não foi feita qualquer prova que, à data do sequestro sanitário, a Ré fizesse qualquer “ligação” entre produtores e unidades industriais.
12.ª) Já que, conforme supra referido, não consta dos autos qualquer contrato de compra e venda de leite cru para o ano de 2019 entre a Ré e a interveniente (…), nem com qualquer outra unidade industrial.
13.ª) Apenas as declarações do legal representante da Ré não são suficientes, pois, como já vimos a existência destas relações contratuais apenas admitem prova documental, nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil, porquanto o contrato de compra e venda de leite cru está sujeito a forma escrita, nos termos do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 42/2013, de 22 de março.
14.ª) Acresce que nunca a Ré poderia ser considerada como uma mera transportadora ou intermediária no âmbito da relação jurídica existente entre a Autora e Ré, pois, por um lado, tal não resulta do clausulado do contrato, como, por outro lado, a Ré atua no mercado e junto dos seus produtores como uma cooperativa e não como uma sociedade comercial de transporte de mercadorias.
15.ª) Assim e em face do teor do Doc. 1 junto com a petição inicial, terá que ser alterada a redação conferida ao ponto 34 dos factos provado no seguinte sentido: A Ré, enquanto cooperativa, procede à compra de leite cru aos produtores cooperadores, que depois encaminha para unidades industriais de processamento para ser tratado termicamente e comercializado junto do consumidor.
16.ª) Quanto aos pontos 36 e 37 dos factos provados, não podia o tribunal a quo ter dado como provado que a Ré soube do sequestro sanitário da Autora pela interveniente (…), quando foi o próprio legal representante da Ré que, nas suas declarações, referiu que tinha tido conhecimento da situação no dia 15 de julho de 2019 transmitido pelo gerente da Autora.
17.ª) Tendo ainda o legal representante da Ré esclarecido que teve conhecimento do ofício da DGAV pelo interveniente (…), que lhe remeteu o mesmo em 16 de julho de 2019.
18.ª) Desta forma, importa diferenciar estes momentos distintos, seja o momento do conhecimento do sequestro sanitário (no dia 15 de julho de 2019, transmitido pelo gerente da Autora), seja o momento do conhecimento do ofício da DGAV com as diretrizes a adotar (no dia 16 de julho de 2019, remetido pela interveniente …).
19.ª) Com efeito, em face das declarações do legal representante da Ré e sendo estes factos que apenas se reportam ao momento conhecimento, a redação dos factos 36 e 37, estando desconforme às mesmas, deve ser alterada no seguinte sentido:
• 36. A Autora comunicou à Ré os factos a que se alude em 5 em 15 de julho de 2019, através do seu legal representante.
• 37. A (…), ao ter sido notificada pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) acerca do sequestro sanitário da exploração da Autora, remeteu o ofício à Ré.
20.ª) Quanto aos pontos 39, 40, 41 e 42 dos factos provados e alínea A) dos factos não provados, todos referentes à questão de saber se a venda de leite cru proveniente de exploração da Autora em sequestro sanitário cumpria ou não a legislação em vigor, igualmente aqui se verifica imprecisão e alguma confusão por parte do tribunal a quo.
21.ª) Desde logo, parece o tribunal a quo não compreender que as vacas que testaram positivo para a tuberculose foram todas abatidas – cfr. doc. junto pela DGAV em 14 de dezembro de 2022 – apenas ficando, designadamente para serem ordenhadas, as que testaram negativo.
22.ª) Quer os especialistas na matéria (através do parecer técnico ora junto), quer as testemunhas (…), (…), (…) e o legal representante da (…), explicaram que todas as bactérias (incluindo a da tuberculose) são eliminadas pelos processos da pasteurização e ultra pasteurização, que são os tratamentos usados em Portugal para o processamento de todo o leite vendido ao consumidor.
23.ª) Por conseguinte, a situação da exploração se encontrar não indemne a esta doença não impossibilita a venda desse leite, mas apenas exige obrigações o cumprimento das obrigações específicas que constam dos ofícios da DGAV – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial e doc. 2 junto com a contestação – e que se são concretizações das normas constantes do Regulamento n.º 853/2004.
24.ª) Designadamente, ao produtor impõe-se o cumprimento das normas de higiene com vista à erradicação e não contágio da doença; ao transformador, impõe-se a obrigatoriedade de transporte diferenciado e submissão à pasteurização com teste negativo à fosfatose alcalina.
25.ª) Cumpridas que forem estas normas, é perfeitamente legal e admissível a venda deste tipo de leite, sendo certo que a (…) obteve autorização da DGAV para vender o leite proveniente da exploração da A. precisamente por ter existido esse cumprimento.
26.ª) O cumprimento de tais obrigações estava, in casu, assegurado, pois não só a Ré sempre transportou o leite da Autora numa cisterna exclusiva (cfr. ponto 12 dos factos provados), como ainda a sujeição a processo de pasteurização ou ultra pasteurização e teste à fosfatose alcalina se encontravam assegurados, por ser o procedimento legalmente imposto para todo o leite comercializado em Portugal.
27.ª) A este propósito importa ainda notar duas questões fundamentais:
a) O leite da Autora foi recolhido e tratado pela (…), pelo que, caso este não cumprisse as normas sanitárias em vigor, tal não poderia ter sucedido; e
b) O fundamento invocado pela (…) para não receber o leite não foi o incumprimento de normas sanitárias por parte da Autora, mas apenas motivos de logística e preocupação com o bom nome.
28.ª) Como é bom de ver, efetivamente o leite cru da Autora cumpria todas as normas sanitárias em vigor, em particular as do Regulamento n.º 853/2004, caso contrário teria sido destruído e nunca poderia ter sido aceite pela (…).
29.ª) Ainda quanto a esta questão, existe outra circunstância que se impõe ponderar: ficou provado que a doença foi detetada no matadouro em 23 de maio de 2019 mas que, no entanto, devido a uma falha dos serviços da DGAV, a Ré apenas disso tomou conhecimento em 16 de julho de 2019, ou seja, mais de 50 dias depois,
30.ª) 50 dias durante os quais a Ré recolheu o leite da Autora e o terá entregado em unidades de processamento sem qualquer tratamento diferenciado.
Pergunta-se: o que aconteceu? Rigorosamente nada!
31.ª) E não aconteceu nada porque, precisamente, todo o leite é submetido à pasteurização ou ultra pasteurização, os quais matam todas as bactérias e doenças animais nocivas para os humanos, conforme é explicado pelo parecer técnico ora junto, elaborado pela Escola de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, bem como ao teste da fosfatose alcalina.
32.ª) Então cumpre questionar: Se assim é, qual o motivo da obrigação de transporte separado imposta pela DGAV? A testemunha (…), a este propósito, esclareceu de forma cabal que tal obrigação prende-se com uma questão de rastreabilidade.
33.ª) O que atualmente já está assegurado, pois os procedimentos já implementados no âmbito da “grande distribuição” permitem a rastreabilidade de todo e qualquer leite.
34.ª) Nem podia ser de outra forma senão note-se: conforme consta do doc. 4 junto com a contestação, as inspeção sanitária é feita anualmente – cfr. doc. 4 junto com a contestação.
35.ª) No entanto, durante esse ano, pode haver, como houve, um surto da doença em qualquer exploração, o qual só será detetado em circunstâncias específicas, como aconteceu in casu: a Autora mandou vacas para o matadouro e no matadouro, por uma casualidade, foi descoberto que um bezerro tinha a bactéria da tuberculose.
36.ª) Ora, caso a Autora não tivesse mandando os referidos bezerros para o matadouro a doença não teria sido descoberta e a Autora teria continuado com exploração oficialmente indemne à tuberculose, continuando a escoar o seu leite como habitualmente fazia.
37.ª) Isto aconteceu com a Autora, mas pode acontecer com qualquer outro produtor de leite em Portugal!
38.ª) Naturalmente que tal circunstância seria um gravíssimo problema para a saúde pública, não fosse o facto de existir a obrigatoriedade da pasteurização de todo o leite e posterior testagem, processo este que assegura a salubridade do leite para consumo humano, bem como o cumprimento de todas as normas sanitárias.
39.ª) Assim e quanto a esta questão, é manifesto que o leite cru da Autora cumpria todas as normas de salubridade e sanitárias, iria obrigatoriamente (e à semelhança de todo o leite cru vendido em Portugal) ser pasteurizado e testado.
40.ª) Por fim e a respeito do facto constante do ponto 42, conforme supra referido e conforme foi explicado pelo legal representante da (…), a existência de um tratamento térmico preliminar de desnate, a temperaturas mais baixas, não afasta a sujeição do leite e natas já separada à pasteurização, já que ambos os produtos são, após o desnate, pasteurizado ou ultra pasteurizados.
41.ª) Ainda quanto a este ponto, é manifesto que, sendo a Autora uma produtora, obviamente que não poderia assegurar a pasteurização do leite antes da sua recolha pela Ré, já que não só não dispõe de fábrica para o efeito, como ainda esta é uma obrigação do transformador e não do produtor, conforme igualmente decorre do Regulamento n.º 853/2004.
42.ª) Neste sentido, verifica-se que a forma como tribunal a quo mal andou ao ter julgado como não provado o facto constante da alínea A) dos factos não provados, o qual deverá ser dado como provado, assim como a redação dos factos provados 39 a 42 não está correta, nem foi isso que resulta, quer da prova produzida, quer das artis legis nesta matéria, devendo estes serem alterados no seguinte sentido:
• 39. O leite cru proveniente de exploração em sequestro sanitário por animais infetados com tuberculose, antes de sujeito à pasteurização, não reúne as mesmas condições de sanidade e salubridade que um leite cru proveniente de uma exploração de gado saudável.
• 40. Mesmo no âmbito de exploração em sequestro sanitário, o leite cru proveniente de animais que testaram negativo à tuberculose pode ser comercializado, por ser sempre sujeito exatamente como o demais leite a pasteurização ou ultra pasteurização;
• 41. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário é sempre comercializável, porquanto este é sujeito aos procedimentos normais de tratamento térmico a temperatura elevada, designadamente de pasteurização ou ultrapasteurização.
• 42. O leite cru da Autora, depois de recolhido pela Ré, é sempre submetido a tratamento de pasteurização ou ultra pasteurização.
43.ª) Quanto ao ponto 53 dos factos provados, conforme já referido, foi explicado pela testemunha (…), médico veterinário responsável pelo controlo de qualidade do leite da (…) que a necessidade de separação do leite é motivado por uma questão de rastreabilidade e não para evitar qualquer contaminação, conforme consta do facto 53.
44.ª) Porquanto, como também já vimos, a contaminação do demais leite é, do ponto de vista da saúde pública, irrelevante, pois todo o leite vendido ao consumo é pasteurizado e testado e, como tal, saudável.
45.ª) No entanto, a DGAV exige, de forma compreensível, que todo o leite proveniente de explorações não indemnes seja transportado de forma segregada, para que a autoridade competente possa rastrear o cumprimento de todas as normas sanitárias por parte dos intervenientes, conforme consta do ofício da DGAV junto como doc. 2 da contestação.
46.ª) Sendo que, caso o leite proveniente de exploração não indemne fosse misturado com leite proveniente exploração indemne antes de chegar à fabrica, seria mais difícil assegurar a sua total e adequada rastreabilidade, mas não impossível, como vimos.
47.ª) Desta forma, entende-se que ao ponto 53 dos factos provados deverá ser conferida a seguinte redação: 53. A identificação do leite como não indemne importa o transporte segregado, por motivos de rastreabilidade.
48.ª) No que concerne ao ponto 54 dos factos provados, o mesmo também se afigura incorreto tal como foi redigido pelo tribunal a quo, pois este entra em contradição insanável com o facto constante do ponto 12 dos factos provados (este último que não se impugna).
49.ª) Pois que, através do depoimento da testemunha (…), ficou provado que o camião da Ré habitualmente só recolhia o leite da Autora, não transportando, na mesma cisterna, leite proveniente de outras explorações.
50.ª) Impondo-se, assim, quanto ao facto 54, retirar a seguinte referência:
“sendo que, a recolha no produtor em apreço pode não importar o limite da capacidade da cisterna”, já que tal não ficou provado, mas antes o seu contrário, ficando este com a seguinte redação: 54. Essa segregação importa que a sua recolha e transporte seja efetuado numa cisterna específica, pelo que a necessária segregação importa que essa cisterna não possa ser utilizada para recolha noutros produtores esgotando a capacidade.
51.ª) Quanto aos pontos 26 dos factos provados, em face da prova produzida, nomeadamente do depoimento das testemunhas (…), (…), (…) e (…), bem como das declarações do legal representante da Autora., ficou provado que os 600.000 litros aí referidos, relativamente aos quais a Autora pagou € 32.000,00, foram referentes ao ano de 2019.
52.ª) Devendo à redação do ponto 26 dos factos provados ser acrescentada a referência ao ano de 2019, conforme explicaram as testemunhas acima referidas, ficando com a seguinte redação: 26. Em 2019, a Autora comprou 600.000 litros de cedência de leite, por € 32 000,00, o que lhe permitiu vender esses 600.000 litros à (…).
53.ª) Quanto ao ponto 27 dos factos provados, verifica-se que os 831.054 litros, aí referidos, foram efetivamente entregues à (…), mas foram-no porque, em 2020, a Autora adquiriu mais direitos de entrega à (…) a outros produtores, como resultou do depoimento das testemunhas(…), (…), (…) e (…).
54.ª) Estas testemunhas explicaram que em 2020 a Autora adquiriu a outros produtores a cedência de mais 850.000 litros, por forma a conseguir vender à (…) os restantes 831.054 litros de leite que a Ré não levantou, nos quais despendeu mais € 37.000,00.
55.ª) Desta forma, terá que ser igualmente reformulado o ponto 27 no seguinte sentido, por ter sido provado: 27. Os restantes 831.054 litros cuja recolha a Ré não assegurou foram vendidos à (…), através da compra pela Autora, no ano de 2020, de 850.000 litros de cedência de leite, por € 37.000,00.
56.ª) Finalmente, quanto à alínea C) dos factos não provados, entende a recorrente ter sido produzida prova bastante de que a Ré, em condições de normalidade, pagava mais € 0,015 por litro de leite entregue pela (…), através das declarações do legal representante da Autora que foram na íntegra corroboradas pela testemunha (…).
57.ª) Assim, deverá o mesmo ser integrado no elenco de factos provados, com a seguinte redação: O leite referido em 26 e 27, num total de 1.431.054 litros, foi vendido à (…) a menos € 0,015 por litro do que o preço contratado com a Ré.
58.ª) Quanto à fundamentação quanto à matéria de Direito apresentada pelo tribunal a quo igualmente não pode ser acolhida pela recorrente, quer à luz das normas constante do Regulamento n.º 853/2004, quer à luz do clausulado contratual e, ainda, ao abrigo das disposições no Código Cooperativo.
60.ª) Conforme supra alegado, o leite cru da Autora respeitava todas as normas de salubridade e sanidade, bastando que fosse transportado em separado e sujeito a tratamento de pasteurização e ultra pasteurização (tal e qual como todo o leite comercializado em Portugal), porquanto proveniente apenas de vacas que testaram negativo à tuberculose e que, por isso, não foram abatidas.
61.ª) Nem o Regulamento n.º 853/2004, nem as autoridades sanitárias competentes em Portugal proíbem as explorações não indemnes à tuberculose de escoar o seu leite.
62.ª) Acresce que não podia, como fez, o tribunal a quo ter apreciado a conduta da Ré no pressuposto desta ser mera transportadora, já que estão aqui em causa dois tipos de relações jurídicas: a relação jurídica contratual de compra e venda de leite cru e a relação jurídica cooperativa, decorrente da Ré ser uma cooperativa de produtores de leite e a Autora um membro cooperador.
63.ª) Ora, quanto à relação contratual, do contrato junto como doc. 1 da petição inicial, a Ré é referida como “compradora”; obriga-se a “adquirir” o leite e a pagar o preço correspondente; e é ainda responsável por fazer as análises do leite no seu laboratório – cfr. cláusulas 1ª, 3ª e 6ª do contrato.
64.ª) Pois que, estamos perante um verdadeiro contrato de compra e venda e não perante um mero contrato de transporte, o qual inclusivamente prevê que a Ré tenha que ter instalações, nomeadamente um laboratório.
65.ª) Como é bom de ver, nenhuma cláusula do contrato apenas obriga a Ré ao transporte, nem sequer faz alusão ao facto da Ré não ter instalações (pelo contrário), nem muito menos refere qualquer condição de revenda do leite à interveniente (…).
66.ª) Acresce que, na ausência de qualquer cláusula nesse sentido, o risco de comprar leite que depois não conseguisse eventualmente escoar faz parte da esfera de riscos próprios da Ré, não podendo o tribunal a quo transferi-lo, sem mais, para Autora.
67.ª) Paralelamente, é necessário atentar ainda ao facto de que a Ré é uma cooperativa agrícola não uma sociedade comercial dedicada ao transporte de mercadorias.
68.ª) Neste âmbito, o artigo 2.º Código Cooperativo, dispõe que: “As cooperativas são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”.
69.ª) Por seu turno o artigo 3.º do mesmo Código, vem estabelecer um conjunto de princípios fundamentais que devem nortear a atuação das cooperativas, em particular o princípio da autonomia e independência, segundo o qual “As cooperativas são organizações autónomas de entreajuda, controladas pelos seus membros. No caso de entrarem em acordos com outras organizações, incluindo os governos, ou de recorrerem a capitais externos, devem fazê-lo de modo a que fique assegurado o controlo democrático pelos seus membros e se mantenha a sua autonomia como cooperativas”.
70.ª) Concretizando, o artigo 8.º do mesmo Código diz que: “É permitida a associação entre cooperativas e outras pessoas coletivas desde que essa associação respeite os princípios cooperativos da autonomia e da independência”.
71.ª) Aplicando estas normas in casu, verifica-se que, pela sua natureza, a Ré está legalmente vinculada à satisfação das necessidades dos seus membros cooperadores – como é o caso da Autora – e não de terceiros – como a (…).
72.ª) A venda da sua fábrica à interveniente não desonera a Ré do cumprimento das suas responsabilidades junto dos seus cooperadores, continuando essa obrigada a garantir a sua total autonomia e independência relativamente a terceiros, como é o caso da (..,).
73.ª) Assim, o argumento segundo o qual a Ré não podia recolher o leite da Autora pura e simplesmente porque a (…) não o recebia, estando a Ré, por sua vez, totalmente dependente daquela, é totalmente ineficaz em relação à Autora, como ainda é até ilegal, em face da letra dos artigos 3.º e 8.º do Código Cooperativo.
74.ª) Sendo certo que, tendo a Ré se colocado nessa conscientemente situação de dependência e ter ficado sem meios (note-se, sem sequer a acautelar nos contratos que celebra com os seus produtores), tal não pode nunca ser oponível à A., nem fundamentar qualquer desoneração da Ré em recolher o leite e pagar o preço correspondente, sendo obrigação da própria Ré encontrar destino para esse leite.
75.ª) Assim, seja pela interpretação do contrato de compra e venda entre a Ré e a Autora seja pelas disposições constantes do Código Cooperativo, conclui-se que a relação contratual (e suas vicissitudes) entre a Ré e a interveniente (…), bem como a falta de meios próprios da Ré daí decorrente não configura exceção de não cumprimento.
76.ª) Consequentemente, não poderia o tribunal a quo ter julgado procedente a exceção de não cumprimento invocada pela Ré, motivo pelo qual a decisão proferida carece de revogação.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) da não verificação da exceção de não cumprimento do contrato.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância[1]
1. Em 01/06/2019, entre a Autora, na qualidade de vendedor e a Ré, na qualidade de comprador, foi celebrado o acordo escrito junto a fls. 9 verso a 10 verso onde, sob a epígrafe de “Contrato compra e venda de leite cru”, foi estipulado o seguinte:
“É celebrado o presente contrato de compra e venda de leite cru de vaca ao abrigo do disposto nos artigos 2.° e 40.º do Decreto-lei 42/20013, de 22 de Março, com as seguintes cláusulas:
Cláusula primeira
Objeto
1- O vendedor compromete-se a entregar ao comprador, e este a adquirir, a quantidade de 1.750.000 litros de leite cru de vaca, comercializável nos termos da legislação aplicável e nas condições estabelecidas no presente contrato.
2- As partes aceitam uma variação da quantidade estabelecida no número anterior de 5%, durante os 12 meses de vigência do contrato.
Cláusula segunda
Local e condições de entrega
A quantidade contratada é disponibilizada pelo vendedor ao comprador nas instalações daquele, sendo a recolha efetuada com intervalos de 48 horas durante os 12 meses do contrato.
Cláusula Terceira
Preço
1- O preço total a pagar pelo comprador respeitante ao volume efetivamente entregue pelo vendedor abrangido pelo presente contrato, é calculado de acordo com o estabelecido pela tabela de classificação de leite ao produtor mod. D.Q.052.00 em vigor.
2- O preço referido no número anterior corresponde ao valor aplicável ao local definido na cláusula segunda, com custos de transporte para o local de destino a cargo do comprador, acrescido do IVA, à taxa em vigor.
3- Em Novembro será pago o valor de € 0,01 por litro de leite entregue durante o período de 1 de Novembro a 31 de Outubro de acordo com as regras estabelecidas para o efeito.
Cláusula quarta
Pagamento
O pagamento do leite total entregue durante um mês é efetuado até ao dia 20 do mês seguinte.
Cláusula quinta
Qualidade e rastreabilidade
1- O leite fornecido nos termos do presente contrato deve cumprir as normas de comercialização aplicáveis no que respeita a condições de higiene, sanidade e rastreabilidade, devendo o comprador recusar todo o produto que não respeite essas condições, sem que o vendedor tenha direito a qualquer compensação ou pagamento.
2- Sem prejuízo das condições definidas no Reg. (CE) n.º 853/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e demais legislação aplicável, os parâmetros a ter em conta para efeitos de aferição da qualidade do leite fornecido são os constantes na tabela de classificação de leite ao produtor mod. D.Q.052.00 em vigor.
Cláusula sexta
Laboratório de referência
A verificação das características do leite fornecido no que respeita a critérios de comercialização é efetuada no laboratório do comprador.
Cláusula sétima
Duração
O presente contrato tem a duração de 12 meses, contado do início da sua vigência, sendo renovável por períodos iguais, se não for denunciado por escrito com a antecedência mínima de 15 dias sobre o termo do período inicial de vigência ou de qualquer uma das suas renovações.
Cláusula oitava
Força maior
1- Nenhum dos contratantes incorrerá em responsabilidade se, por caso de força maior, não for possível o cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, entendendo-se como casos de força maior as circunstâncias que impossibilitem a respetiva realização, alheias à vontade da parte afetada, que ela não pudesse conhecer ou prever à data da celebração do contrato e cujos efeitos não lhe fosse razoavelmente exigível contornar ou evitar.
2- A parte que invocar casos de força maior comunica e justifica tais situações à outra parte e informa o prazo previsível para restabelecer a situação.”
2. A Autora mantém também relações contratuais com a (,,,), Cooperativa Agrícola de Produtores de Leite, SA, a quem vende leite nas exatas condições em que o fazia à Ré, sendo as recolhas de leite alternadas entre ambas as compradoras.
3. No dia 1 recolhia a (…), dia 3, a Ré, dia 7 (…), dia 7 a Ré e assim sucessivamente.
4. A partir de 16 de julho de 2019 a Ré recusou-se a realizar as recolhas de leite na exploração da A., sob pretexto da tuberculose bovina diagnosticada nas vacas da Autora.
5. Em junho de 2019, foi diagnosticada tuberculose bovina em algumas das cabeças de gado da Autora, na sequência do que foi realizado o sequestro sanitário 04/DAVAU2019.
6. A Autora respeitou todos os procedimentos do protocolo de erradicação TBC do DGAV a que se encontrava vinculada com o intuito de erradicar a tuberculose diagnosticada.
7. A (…) continuou a proceder às recolhas de leite acordadas.
8. O leite cru, após recolha, é transportado para a fábrica, onde é sujeito a processo de transformação, podendo ser pasteurizado.
9. O leite não é consumido em cru pelo consumidor final.
10. Em 16 de julho de 2019, (…), na qualidade de Chefe de Divisão da Direção Geral de Alimentação e Veterinária, da DSAVR Alentejo, profissional devidamente qualificada para tratar e analisar a questão em apreço, enviou email aos responsáveis da Ré reiterando que, é ao estabelecimento de transformação, no caso à unidade da (…) SA a quem cabe a responsabilidade de tratamento diferenciado de leite proveniente de exploração não indemne.
11. Aí se refere ainda que, quanto ao transportador, a ora Ré (…), a única medida a tomar no decurso do diagnóstico de tuberculose bovina, é apenas e tão só o transporte em separado do leite.
12. O que se encontrava já a ser cumprido, pois o camião da Ré carregou sempre apenas e só leite da Autora, pelo que por essa via não haveria qualquer acréscimo de custos para a Ré.
13. A Autora comprou direitos de entrega de leite de outros produtores à (…), para com isso tentar ultrapassar o problema e evitar situação de insolvência.
14. Em 17 de julho de 2019, a (…) procedeu à recolha de 19.547 litros de leite que eram destinados à Ré.
15. Nessa data a Ré responsabilizou-se pelo pagamento do leite que foi recolhido pela (…).
16. Em 21 de julho de 2019 a Ré recolheu o leite, pela última vez.
17. Em 25 de julho de 2019 a (…) tornou a realizar a recolha de leite que era destinado à Ré, num total de 19.618 litros de leite.
18. A Ré novamente se responsabilizou pelo pagamento desse leite.
19. Em 29 de julho de 2019 a (…) tornou a recolher 20.291 litros de leite destinado à Ré.
20. No dia 2 de agosto, a Autora tinha 21.700 litros de leite para ser recolhidos pela Ré.
21. Mais uma vez foi a (…) quem procedeu à recolha do mesmo, porquanto a R. informou que não dispunha de condições para realizar a recolha.
22. Contudo, a Ré já não pagou esse leite à Autora.
23. No dia 5 de agosto de 2019, a Autora enviou à Ré a carta junta a fls. 18, onde além do mais solicita que a Ré “volte ao cumprimento contratual pontual e escrupuloso”.
24. Tendo a Ré respondido por carta de 07 de Agosto, junta a fls. 18 verso, onde, além do mais, se refere:
“Em primeiro lugar, sublinhamos que se o vosso leite cumprisse os requisitos legais e os contratualmente exigidos, conforme invocam no início do vosso email:
• Não estava a vossa exploração com o estatuto sanitário mais grave T2.1;
• Não estava já com a sinalização de um número elevado de cabeças de gado a abater;
• A unidade transformadora a quem a (…) estava convencionada entregá-lo para tratamento e comercialização não o recusava;
• A indústria transformadora de sub-produtos que procedeu à destruição por incineração do vosso leite não encarecia o preço da operação ao verificar que o mesmo se enquadrava na categoria 2 e provinha de uma exploração em sequestro.
Todavia, a (…) numa manifestação de bom senso, boa vontade e na tentativa de resolução amigável de um problema de estatuto sanitário para o qual não contribuiu, com origem unicamente na vossa exploração, assumiu prejuízos que não lhe cabia suportar, ao receber e pagar-vos fornecimentos de leite nessas condições, que se viu obrigada a destruir.
Por outro lado, a (…) ainda vos apresentou duas propostas de resolução antes de vos notificar da suspensão dos efeitos do contrato pelas razões já aduzidas no nosso email de 02.08.2019.
Porém, V. Exas. preferiram insistir em adotar uma postura de intransigência e de arrogância, declinando de imediato o proposto por esta Cooperativa.
Assim, reitera-se tudo quanto foi invocado no nosso email de 2 de Agosto de 2019”.
25. Todos os custos associados à produção de leite, por parte da Autora, mantiveram-se.
26. A Autora comprou 600.000 litros de cedência de leite, por € 32.000,00, o que lhe permitiu vender esses 600.000 litros à (…).
27. Os restantes 831.054 litros cuja recolha a Ré não assegurou, foram entregues à (…).
27- a). Caso a (…) não tivesse recolhido o leite, a Autora, para além do prejuízo de nada receber, a Autora ainda teria que pagar pelos menos 0,20 cêntimos por litro na destruição do leite.
28. A faturação mensal da recolha de leite da Autora à Ré era, em média, acima dos € 50.000,00.
29. Meses existiram em que a Autora faturou à Ré € 65.733,24, como sucedeu em julho de 2019.
31. A Ré apenas recolheu 318.946 litros de leite, faltando 1.431.054 litros para a quantidade contratada.
32. A Ré celebrou o contrato no pressuposto de que revenderia/entregaria o leite adquirido à …, Lacticínios, SA, a qual, enquanto proprietária de unidade industrial de tratamento e embalamento de leite na cidade de …, lhe daria a devida destinação para venda ao consumidor.
34. A Ré, enquanto cooperativa, não trata nem comercializa o leite junto do consumidor, apenas estabelece a ligação entre os produtores e as entidades encarregues do tratamento e processamento industrial do leite, o que permite a sua colocação em supermercados e outras superfícies de venda a retalho.
35. Era à (…), S.A. que a Ré vendia todo o leite comprado à Autora.
36. A Autora não comunicou à Ré os factos a que se alude em 5.
37. Foi por intervenção da (…) que a Ré soube do sucedido na exploração da Autora, a qual, ao ter sido notificada pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) acerca do sequestro sanitário da exploração da Autora, pediu que também a Ré fosse notificada.
38. A (…) avisou logo a Ré de que não lhe compraria mais leite da Autora enquanto tal situação se mantivesse.
39. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário por animais infetados com tuberculose, não reúne as mesmas condições de sanidade e salubridade que um leite proveniente de uma exploração de gado saudável.
40. Mesmo no âmbito de exploração em sequestro sanitário, o leite produzido pelos animais testados e com resultado negativo à infeção pode ser comercializado se sujeito a determinados tratamentos técnicos.
41. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário apenas é comercializável, caso seja sujeito a procedimentos adicionais de tratamento, nomeadamente tratamento térmico a uma elevada temperatura.
42. O leite cru da Autora, quando disponibilizado para recolha pela Ré, pode não ser submetido a tratamentos dessa natureza.
43. À data de 15-07-2019 já tinham sido abatidos dezenas de cabeças de gado, com receio da infeção ou da sua disseminação.
44. O sequestro sanitário durou de 7 de julho de 2019 a 3 de agosto de 2020.
47. O abate do primeiro animal da Autora ocorreu em 23-05-2019.
48. A ADS do Litoral Alentejano (Agrupamento de Defesa Sanitária) declarou, em 27-06-2019, que a exploração da Autora não tinha qualquer problema de tuberculose bovina.
50. Em 01 de Janeiro de 2020 foi celebrado entre a Ré e a interveniente o contrato junto a fls. 45 verso a 49, aqui dado por reproduzido, onde na cláusula 2ª-ponto 2, se refere: ”Para além da aplicação das condições referidas no Regulamento CE n.º 853/2004 (…) e demais legislação aplicável, as Partes acordam que a Qualidade do leite fornecido do Anexo III (Tabela de Qualidades) ao presente contrato.
51. Do anexo acima referido consta, além do mais: “A (…), CRL, só efetuará a recolha de leite das explorações que cumpram com o Reg. CE 853/2004 de 29 de abril relativamente aos requisitos higio-sanitários da produção de leite e locais de recolha”.
52. A (…), através do e-mail enviado em 15.07.2019, comunicou à Ré que “não tem condições para estar a receber leite com estas condicionantes”.
53. A identificação de leite como não indemne importa a sua segregação do demais leite, atendendo à contaminação de microrganismos que constituem risco para a saúde humana.
54. Essa segregação importa que a sua recolha e transporte seja efetuado numa cisterna específica, sendo que, a recolha no produtor em apreço pode não importar o limite da capacidade da cisterna, pelo que a necessária segregação importa que essa cisterna não possa ser utilizada para recolha noutros produtores esgotando a sua capacidade.
55. Igualmente, no processo de tratamento do leite, importa a utilização de sistema de descarga de leite, tanque e tratamento térmico de altas temperaturas único.
56. Após a realização desse procedimento o leite tem obrigatoriamente de ser integralmente esterilizado, não podendo qualquer outro tipo de leite entrar em contacto com qualquer dos equipamentos.
57. A segregação desse leite impossibilitaria a Interveniente de funcionar na sua capacidade habitual, importando, além do mais, que as demais cisternas recebidas diariamente teriam de ficar a aguardar todo o tratamento térmico e procedimentos de higienização, o que dependendo da quantidade leite em causa, por ser produto perecível poderia ficar inutilizado.
59. Em data não concretamente apurada, a Ré enviou à Autora a carta junta a fls. 12, aqui dada por reproduzida, onde além do mais, se refere:
“Com a sinalização da vossa exploração leiteira como não indemne de tuberculose pela DGAV e o sucessivo agravamento do estado sanitário da mesma, deixaram V. Exas. de cumprir com os termos do contrato de compra e venda de leite cru que celebraram com esta cooperativa em 01.06.2019.
Na verdade, o leite proveniente da vossa exploração não cumpre com as normas respeitantes a condições de sanidade contratualmente estabelecidas na cláusula quinta do aludido contrato, bem como não cumpre com os requisitos legais exigidos pelo Regulamento (CE) n.º 166212006 de 6 de novembro, conforme oportunamente foi certificado pela DGAV, como exploração T2.1.
Assim, sendo, assiste à (…) o direito e a prerrogativa legal de recusar o leite proveniente da vossa exploração leiteira enquanto esta se encontrar sob sequestro da autoridade sanitária.
Apesar, de se ter tentado encontrar uma solução válida e concertada para as partes, o certo é que, não pode a (…) continuar a ser onerada unilateralmente com uma situação economicamente insustentável devido a um problema sanitário com origem na vossa exploração e para a qual a (…) não contribuiu e é alheia às suas causas.
Face ao exposto, suspende-se os efeitos do contrato até que V. Exas. restabeleçam o estado sanitário do leite em conformidade com o convencionado no contrato, o cumprimento dos requisitos legais e que afastem a sinalização de tuberculose registada pela DGAV”.

B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O regime atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto consta enunciado no artigo 640.º, CPC. O seu acionamento despoleta a reapreciação do julgamento realizado em 1.ª Instância com vista a apurar se os factos concretos submetidos à instrução, factos esses objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso, foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa da recorrida. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da recorrida – cfr. artigos 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Cumpre notar que, por força do Princípio do Dispositivo, conjugado com o Princípio do Contraditório, a factualidade objeto de julgamento há de ser colhida, em regra, dos articulados apresentados pelas partes.
Relativamente ao n.º 8[2], a Recorrente sustenta que deve passar a ter a seguinte redação:
O leite cru, após recolha, é transportado para fábrica, onde é sujeito a tratamento térmico de desnate, sendo posteriormente o leite e as natas obrigatoriamente sujeitas a pasteurização ou ultra pasteurização.
A Recorrida, em resposta, diz ser indiferente a pretensão da Recorrente para a resolução do litígio.
Vejamos.
A factualidade que tinha sido alegada que o leite cru, após recolha, é transportado para a fábrica, na qual é sujeito a processo de transformação, passando a ser pasteurizado – cfr. artigos 14º a 16º da p.i.
O Tribunal de 1.ª Instância exarou que o depoimento do legal representante de Terra Alegre evidenciou que o leite que é transformado em nata não é submetido à temperatura da pasteurização, afirmação que fundamentou a prova do que consta sob o n.º 42.
Alcança-se, contudo, das declarações pelo mesmo prestadas a afirmação de a nata é pasteurizada, tem que levar o mesmo tratamento do leite. O que foi corroborado pelas testemunhas que se pronunciaram sobre tal matéria.
Assim, deve o n.º 8 passar a constar nos termos em que a factualidade em causa foi alegada no processo, a saber:
8 - O leite cru, após recolha, é transportado para a fábrica, onde é sujeito a processo de transformação, passando a ser pasteurizado.
Segue a Recorrente sustentando que o que consta dos n.ºs 32[3] e 35[4] deve ser dado como não provado. Para tanto, invoca que tais factos são contrários ao que está provado sob o n.º 50 (donde resulta que o contrato celebrado entre a Ré e … foi outorgado apenas a 01/01/2020), que inexiste prova documental (exigível nos termos do artigo 2.º do DL n.º 42/2013, de 22/03) da vigência de contrato relativo ao ano de 2019 e que, uma vez que os representantes legais da Ré e da Interveniente não foram ajuramentados e tem interesse na causa, não foi produzida prova de que … foi a única compradora do leite adquirido pela Ré.
O facto de ter sido celebrado contrato de fornecimento de leite cru de vaca entre a Ré e (…) com data de 01/01/2020 (do qual consta, designadamente, que tal contrato revoga e substitui qualquer contrato anterior celebrado entre as partes – cfr. cláusula 11.ª, fls. 49 dos autos) não é contrário à afirmação de que a Ré celebrou, a 01/06/2019, contrato com a Autora no pressuposto de que venderia o leite adquirido a (…) nem à afirmação de que era a (…) que a Ré vendia todo o leite comprado à Autora.
Não está provado, nem consta alegado, que inexistia contrato de fornecimento de leite cru de vaca entre a Ré e (…) para produzir efeitos no ano de 2019, o que não se retira da circunstância de não constar documento nos autos que consubstancie tal contrato.
No que respeite às declarações de parte nas quais a 1.ª Instância alicerçou a respetiva convicção, não assiste razão à Recorrente quando refere que os declarantes nem foram ajuramentados. Nos termos do disposto no artigo 459.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 466.º/2, do CPC[5], os depoentes devem prestar juramento. O que se verificou no presente caso, tal como se alcança do que está exarado nas atas de audiência final a fls. 147 verso e 163 verso.
Igualmente não se acolhe a alegação de que tais declarações, por si só, são insuficientes à prova dos factos.
Na verdade[6], relativamente à livre valoração das declarações de parte (artigo 466.º/3, do CPC), a doutrina e a jurisprudência vêm-se acomodando, essencialmente, em três teses:
- tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos – as declarações de parte têm natureza essencialmente supletiva, seno insuficientes para fundamentar, por si só, um juízo de prova, salvo nos casos de prova única, em que inexiste outra prova;
- tese do princípio de prova – as declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, sendo apenas coadjuvantes da prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova, ou seja, as declarações de parte terão de ser corroboradas por outros meios de prova;
- tese da autossuficiência ou do valor autónomo das declarações de parte – as declarações de parte podem sustentar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo.
Em defesa da tese da autossuficiência assinala-se que só assim se alcança a paridade relativamente a outros meios de prova sujeitos a livre apreciação, que a parte é quem tem melhor razão de ciência, que é a forma de observar o regime inserto no n.º 3 do artigo 466.º do CPC e que há que valorar, em primeiro lugar, as declarações de parte e só depois a pessoa do depoente, sob pena de prejulgar as declarações de parte e incorrer no viés confirmatório.
O STJ pronunciou-se já sobre esta problemática, conforme segue:
- «Sendo as declarações de parte de livre apreciação pelo tribunal, podem determinar, por si sós, a convicção do julgador, sem necessidade de corroboração por outros meios de prova» – Ac. do STJ de 07/2/2019, Rosa Ribeiro Coelho;
- «Desde que a lei não imponha prova tarifada para a demonstração de certo facto, nem seja apresentado meio de prova com força probatória plena ou reforçada, não está vedado às instâncias, no julgamento da matéria de facto, dar como provado esse facto, apenas com base nas declarações de parte, que são livremente apreciadas e valoradas pelo Tribunal» – Ac. do STJ de 11/07/2019, Bernardo Domingos.
Em Acórdão deste TRE, de 12/04/2018, Albertina Pedroso, foi exarado o seguinte:
«Estando sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, na formação da convicção pelo julgador no que tange à credibilidade da forma como foram prestadas as declarações de parte e ao peso que revistam na decisão da matéria de facto, não é irrelevante ter presente o âmbito sobre o qual as mesmas podem incidir, porquanto, em face do preceituado no artigo 466.º, n.º 1, a prestação de declarações versa sobre factos em que as partes tenham tido intervenção pessoalmente, ou sobre os quais tenham conhecimento direto.
Assim, ao invés de posições apriorísticas sobre a natureza subsidiária ou supletiva deste meio de prova, diminuindo ou desconsiderando o seu valor probatório por via da mera qualidade de quem produz as declarações, (…) consideramos que as mesmas devem ser apreciadas, tal qual o comando legal prescreve, ou seja, são livremente valoradas pelo juiz, no confronto da demais prova produzida.»
Nesta senda, afigura-se que a alegação da Recorrente no sentido de que a fundamentação da decisão tem por base exclusivamente as referidas declarações de parte não implica se considere que a 1.ª Instância incorreu em erro de julgamento, impondo-se decisão diversa.
No n.º 34[7] está provado o que a Ré alegou no artigo 5º da contestação. A Recorrente sustenta que ali deve passar a constar que:
34 - A Ré, enquanto cooperativa, procede à compra de leite cru aos produtores cooperadores, que depois encaminha para unidades industriais de processamento para ser tratado termicamente e comercializado junto do consumidor.
A alegação da Recorrente é a de que, para além de transportar o leite cru, a R também procede à compra de leite cru, é verdadeira comerciante de leite cru, o que não é evidenciado naquele segmento dos factos provados.
Que a Ré é transportadora de leite cru resulta do que consta do n.º 11 dos factos provados, alegado na p.i. no artigo 25º.
Que a Ré compra, para revenda, leite cru constitui facto que resulta expressamente dos n.ºs 1, 32 e 35 dos factos provados.
Inexiste, assim, fundamento para não se acolher a alegação da Ré nos termos plasmados no n.º 34.
Segue a Recorrente alegando que os n.ºs 36[8] e 37[9] devem ter diversa redação, em função do que foi afirmado pelo legal representante da Ré, a saber:
36 - A Autora comunicou à Ré os factos a que se alude em 5 em 15 de julho de 2019, através do seu legal representante.
37 - A (…), ao ter sido notificada pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) acerca do sequestro sanitário da exploração da Autora, remeteu o ofício à Ré.
Também nesta matéria a Recorrente desconsidera o que foi alegado e a circunstância de o Tribunal estar adstrito a julgar os factos alegados, e não o contrário do que foi alegado. Acresce que da não prova de determinado facto não resulta provado o seu contrário. Nem o Tribunal está adstrito a dar como provada factualidade que não foi alegada.
Nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3, do CPC, os fundamentos da sentença devem incluir o rol dos factos que são julgados provados e o dos que são julgados não provados. Os factos a enunciar como provados hão de ser colhidos entre os factos essenciais que as partes alegaram[10], conforme determinado pelo artigo 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC. São esses os factos de que é lícito ao juiz conhecer (artigo 411.º do CPC), e é sobre esses que se impõe profira juízo de provado ou de não provado.
Ora, se o que foi alegado foi que a Autora não deu conhecimento à Ré do sequestro sanitário imposto à sua exploração, das duas, uma:
- ou resulta provado o facto alegado, que é julgado provado;
- ou não resulta provado o facto alegado, que é julgado não provado.
O Tribunal não deve pronunciar-se sobre o facto não alegado de que a Autora deu conhecimento à Ré do sequestro sanitário imposto à sua exploração. A A. nomeadamente em sede de resposta à exceção de não cumprimento do contrato invocada pela Ré, não alegou o facto que agora pretende ver contemplado.
Analisado o depoimento indicado pela Recorrente, constata-se ter sido admitido que o legal representante da Autora disse ao legal representante da Ré que um animal tinha sido abatido no matadouro. O que não corresponde à comunicação pela Autora à Ré de que tinha sido imposto sequestro sanitário à sua exploração – o que evidenciaria ser de julgar não provado o que foi alegado no artigo 12º da contestação/36 dos factos provados.
Por conseguinte, não está demonstrado o erro de julgamento relativamente ao que consta do n.º 36.
O que implica seja de manter o n.º 37, nos seus precisos termos.
Relativamente ao n.º 39[11], a Recorrente pretende que passe a constar com a seguinte redação:
39 - O leite cru proveniente de exploração em sequestro sanitário por animais infetados com tuberculose, antes de sujeito à pasteurização, não reúne as mesmas condições de sanidade e salubridade que um leite cru proveniente de uma exploração de gado saudável.
O que se verifica, alega a Recorrente, por ter sido demonstrado que o processo de pasteurização ou ultra pasteurização assegura a eliminação da bactéria da tuberculose (e outras), conferindo ao leite exatamente a mesmas condições da sanidade e de salubridade do demais leite, igualmente sujeito à pasteurização.
Assim é.
Resulta da demais factualidade provada, designadamente dos n.ºs seguintes, dos n.ºs 8 e 9, e dos n.ºs 53 e ss, que no n.º 39 está em causa leite cru, que todo o leite é submetido a processos de pasteurização e/ultra pasteurização, que o leite não é disponibilizado ao consumidor final sem ser submetido a esses procedimentos, que o que estava em causa, na verdade, era a segregação do leite, o tratamento diferenciado do leite, a necessidade de o separar do o leite recolhido de explorações não submetidas a sequestro, que nas cisternas quer nas cubas em que se procede à pasteurização, que devem ser sujeitas a esterilização. Assim é imposto pela DGAV, por força da legislação aplicável – cfr. doc. de fls. 45, carta de 15/07/2019 enviada à (…), Lacticínios, SA.
Daí que não mereça reparo a decisão proferida em 1.ª Instância ao dar como provado o que foi alegado no artigo 15º da contestação, naqueles precisos termos.
Relativamente ao n.º 40[12], a Recorrente sustenta que deve passar a constar nos seguintes termos:
40. Mesmo no âmbito de exploração em sequestro sanitário, o leite cru proveniente de animais que testaram negativo à tuberculose pode ser comercializado, por ser sempre sujeito, exatamente como o demais leite, a pasteurização ou ultra pasteurização.
Ora, não há dúvida que o leite referido no n.º 40, o leite produzido pelos animais antes de submetido aos tratamentos térmicos de elevada temperatura, é leite cru, sendo desnecessária a alteração pretendida introduzir pela Recorrente. Que o leite ali referido pode ser comercializado se for sujeito a determinados tratamentos técnicos também não suscita qualquer objeção.
Termos em que, não se alcançando erro no acolhimento em sede de factualidade provada do que foi alegado no artigo 16º da contestação, não existe fundamento para alterar o n.º 40 dos factos provados.
Relativamente ao n.º 41[13], a Recorrente pretende fique a constar o seguinte:
41. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário é sempre comercializável, porquanto este é sujeito aos procedimentos normais de tratamento térmico a temperatura elevada, designadamente de pasteurização ou ultra pasteurização.
O que a Recorrente coloca em causa é que o tratamento térmico a levada temperatura constitua procedimento adicional. Pois, na verdade, não é. Resulta de toda a prova produzida, tal como a Recorrente evidencia, que todo o leite comercializado junto do consumidor final é sujeito a procedimentos técnicos de elevada temperatura, a pasteurização/ultra pasteurização.
Os procedimentos adicionais a que, desde logo por imposição da DGAV, o leite proveniente de exploração em sequestro sanitário é sujeito são os procedimentos de segregação, esterilização das cisternas e cubas, análise à fosfatase alcalina, expressa autorização de comercialização por parte da autoridade competente, expressa autorização da DGAV para receção do leite por parte da indústria de lacticínios – cfr. doc. de fls. 45.
Assim, levando em linha de conta o que foi alegado e provado, o n.º 41 passará a constar com a seguinte redação:
41. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário apenas é comercializável caso seja sujeito a procedimentos de tratamento térmico a uma elevada temperatura.
Como resulta dos n.ºs 8 e 9, o leite só é comercializável junto do consumidor final se sujeito a esses procedimentos. Se, por qualquer razão, não for pasteurizado/ultrapasteurizado, não é comercializável. O que se passa, de igual modo, com o leite proveniente de explorações em sequestro sanitário.
Relativamente ao n.º 42[14], a Recorrente sustenta que o que ali consta não corresponde à verdade. Pretende fique a constar o seguinte:
42. O leite cru da Autora, depois de recolhido pela Ré, é sempre submetido a tratamento de pasteurização ou ultra pasteurização.
Tal como avançado pela Recorrente, não existe fundamento para dar como provado que o leite cru da Autora, quando disponibilizado para recolha pela Ré, pode não ser submetido a tratamentos dessa natureza – n.º 42 dos factos provados. Os procedimentos dessa natureza são os tratamentos térmicos a altas temperaturas, o processo de esterilização a altas temperaturas durante certo período de tempo, denominados de pasteurização ou ultra pasteurização, consoante os parâmetros de temperatura/tempo aplicados.
Como foi reiteradamente afirmado, todo o leite cru é sujeito a tais procedimentos. Ainda que provenha de explorações em sequestro sanitário – cfr. doc. de fls. 45.
Assim, a factualidade inserta no n.º 42, alegada pela Ré no artigo 26º da contestação, não pode ser dada como provada, pelo que vai julgada não provada.
O segmento que a Recorrente pretende ver consignado não é de elencar no rol dos factos provados porquanto não se trata de matéria alegada, não tendo a 1.ª Instância incorrido em erro ao não exarar tal factualidade como provada.
Termos em que se exclui o n.º 42 dos factos provados.
Segue a Recorrente invocando que o n.º 53[15] deve ser alterado, dele passando a constar o seguinte:
53. A identificação do leite como não indemne importa o transporte segregado, por motivos de rastreabilidade.
Não lhe assiste razão.
Embora tenha sido afirmado em audiência de julgamento que está essencialmente em causa rastreabilidade do produto, de modo a registar o destino dado a tal produto, certo é que não foi alegado que a segregação do leite se dá por motivos de rastreabilidade.
O que foi alegado foi o que resultou provado sob o n.º 53, a saber, que a identificação de leite como não indemne importa a sua segregação do demais leite, atendendo à contaminação de microrganismos que constituem risco para a saúde humana – cfr. fls. 122 dos autos. Mais aí se alegou que a recolha e transporte deve ser efetuado em cisterna específica, que o tratamento desse leite deve ser efetuado utilizando sistemas de descarga de leite, tanque e tratamento térmico único, separadamente do restante leite; a cisterna, o sistema de descarga, os tanques, tudo tem que ser esterilizado antes que outra leite entre em contacto com tais equipamentos, conforme imposto pela DGAV; tais procedimentos de segregação e de esterilização constituem entrave à regular operacionalidade do sistema de recolha, transporte e tratamento do leite, contendendo com a otimização da capacidade de funcionamento da estrutura.
Assim, não só não foi alegada a factualidade que a Recorrente pretende ver plasmada nos factos provados como é certo que não é apenas o transporte do leite não indemne que está em causa.
Relativamente ao n.º 54[16], a Recorrente sustenta que deve passar a constar apenas o seguinte:
54. Essa segregação importa que a sua recolha e transporte seja efetuado numa cisterna específica, pelo que a necessária segregação importa que essa cisterna não possa ser utilizada para recolha noutros produtores esgotando a sua capacidade.
O que se impõe, refere a Recorrente, para não contradizer o que consta do n.º 12[17] dos factos provados e porque não ficou provado que “a recolha no produtor em apreço pode não importar o limite da capacidade da cisterna”.
Não se verifica qualquer contradição. A afirmação de que a recolha do leite na Recorrente pode não importar o limite da capacidade da cisterna não revela a afirmação de que o camião carregou sempre apenas e só leite da Recorrente, pelo que não haveria acréscimo de custos. No n.º 12 não consta que o transporte de, apenas e só, o leite da A na cisterna atingia o limite de capacidade da mesma cisterna.
Da conjugação do que consta do n.º 12 com o que consta do n.º 54 resulta na afirmação do que se mostra exarado na parte final do n.º 12, ou seja, que já se fazia o transporte segregado do leite da Autora na cisterna pelo que, ainda que tal procedimento não implicasse no limite da capacidade da cisterna, daí não resultaria prejuízo acrescido para a Ré.
Mais se constata que nenhum meio de prova é indicado pela Recorrente do qual resulte não corresponder à verdade que a recolha do leite na Recorrente pode não importar o limite da capacidade da cisterna. O depoimento transcrito acentua que a carga se fazia exclusivamente naquele produtor, a Autora, mas não que importava no limite da capacidade da cisterna.
Relativamente ao n.º 26[18], a Recorrente invoca que está em falta a menção do ano, devendo tal segmento iniciar-se com a menção “em 2019”.
Ora, a factualidade inserta no n.º 26 foi recolhida do que consta do artigo 63º da p.i., onde não consta a menção que agora a Recorrente pretende aditar. Dali se infere que o facto relatado ocorreu no ano de 2019.
Inexistindo erro de julgamento a apontar à 1.ª Instância, nenhuma alteração importa introduzir ao n.º 26.
Já quanto ao n.º 27[19], a Recorrente sustenta que deve passar a contemplar a seguinte redação:
27. Os restantes 831.054 litros cuja recolha a Ré não assegurou, foram vendidos à (…) através da compra pela Autora, no ano de 2020, de 850.000 litros de cedência de leite, por € 37.000,00.
O que consta do n.º 27 é o que a Autora/Recorrente alegou no artigo 83º da petição inicial, onde se mostra exarado que entregou à (…) 831.054 litros sem nada ter recebido em troca. O que é corroborado nos artigos 52º (as recolhas foram realizadas pela … a custo zero), 54º (a … não pagou esse leite, apenas tendo libertado a Autora do problema do leite não recolhido pela Ré) e 128º da petição inicial (foi a … quem efetuou as recolhas, a custo zero).
Aquilo que agora a Recorrente pretende ver consignado nos factos provados consta do requerimento para redução do pedido formulado na audiência de julgamento[20], requerimento que foi retirado em face do despacho que indeferiu a alegação de factos novos.
O que inviabiliza o acolhimento de tal facto no rol dos factos provados.
O que a Recorrente pretende reconduzir aos factos provados a propósito da alínea C)[21] dos factos não provados assentava nas alterações pretendidas introduzir aos n.ºs 26 e 27, alicerçadas em factos que foram rejeitados.
Logo, nenhuma alteração se justifica à alínea C) dos factos não provados.

ii) Da não verificação da exceção de não cumprimento do contrato
A Recorrente sustenta que não resultou afirmada a exceção de não cumprimento do contrato celebrado com a Recorrida porquanto:
- o leite cumpria as normas de higiene, sanidade e salubridade previstas no Reg. (CE) n.º 853/2004;
- a R tinha condições para assegurar o transporte diferenciado;
- todo o leite é pasteurizado;
- a diferenciação exigida ao leite proveniente de animais potencialmente infetados com tuberculose é feita por segregação no transporte para efeitos de rastreabilidade;
- inexiste diferença no tratamento térmico dado ao leite indemne;
- nem o Regulamento (CE) n.º 853/2004 nem as autoridades sanitárias nacionais proíbem as explorações não indemnes à tuberculose de escoar o leite;
- a Ré, sendo uma cooperativa, atua como intermediária na compra e venda do leite, não é mera transportadora;
- a Ré estava obrigada a cumprir o contrato celebrado com a Autora, a quem não é oponível o contrato celebrado com (…).
Vejamos.
A relação contratual estabelecida entre Autora e Ré resulta do acordo datado de 01/06/2019 denominado de contrato de compra e venda de leite cru, no qual a Ré é identificada como comprador e a Autora é identificada como vendedor.
Aí se estipulou, designadamente, o seguinte:
- O vendedor compromete-se a entregar ao comprador, e este a adquirir, a quantidade de 1.750.000 litros de leite cru de vaca, comercializável nos termos da legislação aplicável e nas condições estabelecidas no presente contrato;
- O leite fornecido nos termos do presente contrato deve cumprir as normas de comercialização aplicáveis no que respeita a condições de higiene, sanidade e rastreabilidade, devendo o comprador recusar todo o produto que não respeite essas condições, sem que o vendedor tenha direito a qualquer compensação ou pagamento;
- Sem prejuízo das condições definidas no Reg. (CE) n.°853/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e demais legislação aplicável, os parâmetros a ter em conta para efeitos de aferição da qualidade do leite fornecido são os constantes na tabela de classificação de leite ao produtor mod. D.Q.052.00 em vigor.
As partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405.º/1, do Código Civil). Uma vez celebrado, firmado que esteja o acordo, o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (artigo 406.º/1, do Código Civil).
A recusa de cumprimento pode alicerçar-se no regime inserto no artigo 428.º do CC. Dispõe tal preceito legal que, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. Como ensina Menezes Cordeiro[22], são requisitos da exceção de não cumprimento do contrato:
a) a existência de prazos idênticos para cada uma das prestações;
b) o não cumprimento duma delas ou a não oferta de cumprimento.
A exceção decorre do nexo de interdependência que prende as duas obrigações fundamentais integradas no contrato bilateral.[23] Por conseguinte, não pode ser invocada entre obrigações não abrangidas pela relação sinalagmática, pois nem todos os deveres de prestação resultantes dos contratos bilaterais para uma das partes estão ligados aos deveres de prestar impostos à outra parte pela relação de reciprocidade própria do sinalagma.[24]
Do contrato celebrado entre Autora e Ré decorre que esta se obrigou a adquirir 175.000 litros de leite cru de vaca, comercializável nos termos da legislação em vigor e nas condições estabelecidas no contrato. Mais dele decorre que a Ré deve recusar o leite que não respeite condições de higiene, sanidade e rastreabilidade, a determinar pelas condições definidas no Reg. (CE) n.º 853/2004 e demais legislação aplicável, não tendo a Autora direito a qualquer compensação ou pagamento.
O citado Regulamento estabelece o seguinte:
“I. REQUISITOS SANITÁRIOS APLICÁVEIS À PRODUÇÃO DE LEITE CRU
1. O leite cru deve provir de animais:
a) Que não apresentem quaisquer sintomas de doenças infeciosas transmissíveis aos seres humanos através do leite;
b) Que se encontrem em bom estado geral de saúde, não apresentem sinais de doença que possam resultar na contaminação do leite e, em especial, não sofram de qualquer infeção do trato genital com descarga, de enterite com diarreia e febre ou de uma inflamação reconhecível do úbere;
c) Que não apresentem qualquer ferida do úbere suscetível de afetar o leite;
d) Aos quais não tenham sido administradas substâncias ou produtos não autorizados e que não tenham sido objeto de um tratamento ilegal na aceção da Diretiva 96/23/CE; e
e) Em relação aos quais, em caso de administração de substâncias ou produtos autorizados, tenha sido respeitado o intervalo de segurança prescrito para esses produtos ou substâncias.
2. a) Em especial, no tocante à brucelose, o leite cru deve provir de:
i) vacas ou búfalas pertencentes a um efetivo que, na aceção da Diretiva 64/432/CEE (1), esteja indemne ou oficialmente indemne de brucelose,
ii) ovelhas ou cabras pertencentes a uma exploração oficialmente indemne ou indemne de brucelose, na aceção da Diretiva 91/68/CEE (1), ou
iii) fêmeas de outras espécies pertencentes, no caso de espécies sensíveis à brucelose, a efetivos examinados regularmente para deteção dessa doença ao abrigo de um plano de controlo aprovado pela autoridade competente.
b) No tocante à tuberculose, o leite cru deve provir de:
i) vacas ou búfalas pertencentes a um efetivo que, na aceção da Diretiva 64/432/CEE, esteja oficialmente indemne de tuberculose, ou
ii) fêmeas de outras espécies pertencentes, no caso de espécies sensíveis à tuberculose, a efetivos examinados regularmente para deteção dessa doença ao abrigo de um plano de controlo aprovado pela autoridade competente.
c) Se forem mantidas juntamente com vacas, as cabras devem ser inspecionadas e testadas relativamente à tuberculose.
3. Todavia, o leite cru proveniente de animais que não satisfaçam os requisitos do ponto 2 pode ser utilizado com a autorização da autoridade competente:
a) No caso de vacas ou búfalas que não apresentem uma reação positiva aos testes da tuberculose ou da brucelose nem quaisquer sintomas dessas doenças, após ter sido submetido a um tratamento térmico na sequência do qual apresente uma reação negativa ao teste da fosfatase;
b) No caso de ovelhas ou cabras que não apresentem uma reação positiva aos testes da brucelose ou que tenham sido vacinadas contra a brucelose no âmbito de um programa de erradicação aprovado e que não apresentem qualquer sintoma dessa doença, quer:
i) para o fabrico de queijo com um período de maturação de, pelo menos, dois meses, quer
ii) após ter sido submetido a um tratamento térmico na sequência do qual apresente uma reação negativa ao teste da fosfatase; e
c) No caso de fêmeas de outras espécies que não apresentem uma reação positiva aos testes da tuberculose ou da brucelose nem quaisquer sintomas dessas doenças, mas pertencentes a um efetivo no qual a brucelose ou a tuberculose tenha sido detetada em resultado dos exames referidos na alínea a), subalínea iii), ou na alínea b), subalínea ii), do ponto 2, depois de tratado para garantir a sua segurança.
4. Não pode ser utilizado para consumo humano o leite cru proveniente de qualquer animal que não satisfaça os requisitos dos pontos 1 a 3, em especial de um animal que apresente individualmente uma reação positiva aos testes profiláticos da tuberculose ou da brucelose, em conformidade com a Diretiva 64/432/CEE e a Diretiva 91/68/CEE.
5. O isolamento dos animais infetados ou que se suspeite estarem infetados com qualquer das doenças referidas nos pontos 1 ou 2 deve permitir evitar eficazmente qualquer efeito negativo para o leite dos outros animais.
Ora, apurou-se que em junho de 2019, foi diagnosticada tuberculose bovina em algumas das cabeças de gado da Autora, na sequência do que, foi realizado o sequestro sanitário 04/DAVAU2019; que o abate do primeiro animal da Autora ocorreu em 23/5/2019; que, à data de 15/07/2019 já tinham sido abatidos dezenas de cabeças de gado, com receio da infeção ou da sua disseminação; que o sequestro sanitário durou de 7 de julho de 2019 a 3 de agosto de 2020.
É certo que a Autora respeitou todos os procedimentos do protocolo de erradicação TBC do DGAV a que se encontrava vinculada com o intuito de erradicar a tuberculose diagnosticada.
Porém, o leite proveniente de exploração em sequestro sanitário por animais infetados com tuberculose não reúne as mesmas condições de sanidade e salubridade que um leite proveniente de uma exploração de gado saudável.
O Reg. (CE) n.º 853/2004, no tocante à tuberculose, estabelece que o leite cru deve provir de vacas pertencentes a um efetivo que esteja indemne de tuberculose, e que o leite cru proveniente de animais que não satisfaçam tal requisito pode ser utilizado com autorização da autoridade competente, no caso de vacas que não apresentem uma reação positiva aos testes da tuberculose ou da brucelose nem quaisquer sintomas dessas doenças, após ter sido submetido a um tratamento térmico na sequência do qual apresente uma reação negativa ao teste da fosfatase.
O leite cru que a Autora colocou à disposição da Ré para recolha provinha de vacas pertencente a efetivo que não estava indemne de tuberculose. Nos termos do Regulamento, aquele leite cru apenas podia ser comercializado mediante autorização da autoridade competente, feitos que fossem testes às vacas e alcançado que fosse o teste negativo à fosfatase.
A autoridade competente, por seu turno, impôs a segregação do leite proveniente da exploração da A ao nível da recolha, transporte, descarga e tratamento térmico, mediante subsequentes procedimentos de esterilização e higienização dos equipamentos. Foi ainda perentória quanto à necessidade de autorização para recolha e receção do leite proveniente da exploração da A, assim como para a respetiva colocação no mercado.
Decorre do exposto que o leite cru disponibilizado pela Autora à Ré para recolha, não cumprindo as condições de sanidade consagradas no Regulamento (CE) n.º 853/2004, podia ser recusado, como foi, pela Ré.
Assim decorre do contrato celebrado, à luz da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º/1, do Código Civil.
É certo que o leite cru proveniente da exploração da Autora no período de sequestro sanitário poderia ser objeto de comercialização. Todo o leite cru é sujeito a pasteurização / ultra pasteurização, procedimentos que permitem reabilitar leite cru não indemne.
Será, por isso, abusivo o exercício do direito de recusa de recolha do leite cru proveniente da exploração em sequestro sanitário?
O instituto do abuso do direito está consagrado no artigo 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, é ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Por via deste regime, “a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjetivo por parte do seu titular se efetue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções.”[25]
Afigura-se-nos que não.
A recolha do leite cru que a Autora disponibilizou à Ré apenas podia ser comercializado cumpridos que fossem os procedimentos de segregação nas várias etapas, de esterilização de equipamentos e obtidas que fossem as devidas autorizações junto das autoridades competentes quer para a receção quer para a comercialização do leite.
O que, manifestamente, implicando entraves no processo de recolha, transporte, descarga, tratamento e comercialização do leite, justifica seja legítimo o exercício, pela Ré, do direito contratual de recusa do leite cru não indemne, sem que à Autora assista direito a qualquer compensação ou pagamento.
O facto de a Autora ser membro cooperador da Ré e a circunstância de esta estar sujeita ao regime do Código Cooperativo que designadamente impõe a cooperação e entreajuda dos seus membros e a prossecução de atividade sem fins lucrativos, de forma autónoma e independente, não contende com o caráter vinculativo dos contratos celebrados na prossecução dessa atividade. Donde, não constitui fundamento da inaplicabilidade do regime contratual acolhido na relação jurídica estabelecida entre as partes a 01/06/2019.
Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Vai dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, já que a complexidade das questões suscitadas no presente recurso e a retidão da conduta processual das partes não reclama sejam exigidos custos acrescidos – cfr. artigos 1.º/2 e 6.º/7, do RCP.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Évora, 5 de junho de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Eduarda Branquinho

__________________________________________________
[1] A não sequência numérica decorre de nenhum facto constar, na sentença, dos n.ºs aqui omitidos.
[2] 8. O leite cru, após recolha, é transportado para a fábrica, onde é sujeito a processo de transformação, podendo ser pasteurizado.
[3] 32. A Ré celebrou o contrato no pressuposto de que revenderia/entregaria o leite adquirido à (…), Lacticínios, SA, a qual, enquanto proprietária de unidade industrial de tratamento e embalamento de leite na cidade de (…), lhe daria a devida destinação para venda ao consumidor.
[4] 35. Era à (…), S.A. que a Ré vendia todo o leite comprado à Autora.
[5] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo CPC, Vol. I 2013, pág. 367.
[6] Seguindo de perto o CPC Anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Vol. I, 2.ª edição, pág. 552.
[7] 34. A Ré, enquanto cooperativa, não trata nem comercializa o leite junto do consumidor, apenas estabelece a ligação entre os produtores e as entidades encarregues do tratamento e processamento industrial do leite, o que permite a sua colocação em supermercados e outras superfícies de venda a retalho.
[8] 36. A Autora não comunicou à Ré os factos a que se alude em 5.
[9] 37. Foi por intervenção da (…) que a Ré soube do sucedido na exploração da Autora, a qual, ao ter sido notificada pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) acerca do sequestro sanitário da exploração da Autora, pediu que também a Ré fosse notificada.
[10] Ver Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, I vol., pág. 541.
[11] 39. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário por animais infetados com tuberculose, não reúne as mesmas condições de sanidade e salubridade que um leite proveniente de uma exploração de gado saudável.
[12] 40. Mesmo no âmbito de exploração em sequestro sanitário, o leite produzido pelos animais testados e com resultado negativo à infeção pode ser comercializado se sujeito a determinados tratamentos técnicos.
[13] 41. O leite proveniente de exploração em sequestro sanitário apenas é comercializável, caso seja sujeito a procedimentos adicionais de tratamento, nomeadamente tratamento térmico a uma elevada temperatura.
[14] 42. O leite cru da Autora, quando disponibilizado para recolha pela Ré, pode não ser submetido a tratamentos dessa natureza.
[15] 53. A identificação de leite como não indemne importa a sua segregação do demais leite, atendendo à contaminação de microrganismos que constituem risco para a saúde humana.
[16] 54. Essa segregação importa que a sua recolha e transporte seja efetuado numa cisterna específica, sendo que, a recolha no produtor em apreço pode não importar o limite da capacidade da cisterna, pelo que a necessária segregação importa que essa cisterna não possa ser utilizada para recolha noutros produtores esgotando a sua capacidade.
[17] 12. O que se encontrava já a ser cumprido (o transporte em separado do leite), pois o camião da Ré carregou sempre apenas e só leite da Autora, pelo que por essa via não haveria qualquer acréscimo de custos para a Ré.
[18] 26. A Autora comprou 600.000 litros de cedência de leite, por € 32.000,00, o que lhe permitiu vender esses 600.000 litros à (…).
[19] 27. Os restantes 831.054 litros cuja recolha a Ré não assegurou, foram entregues à (…).
[20] Cfr. ata de fls. 143 e ss.
[21] O leite referido em 26 foi vendido por um valor inferior ao contratado com a Ré.
[22] In Obrigações, vol. 2.º - 460.
[23] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, pág. 350.
[24] In J. Abrantes, A exceção de não cumprimento do contrato, pág. 65 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, pág. 346.
[25] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 281.