Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
43/20.8GAPRL.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REPARAÇÃO À VÍTIMA
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A inclusão na sentença da afirmação de uma realidade e do seu contrário – por um lado, o facto de as condutas do arguido terem molestado a vítima de forma intensa e reiterada, tendo-lhe causando sofrimento psicológico assinalável e, por outro, a falta de demonstração da existência de danos de especial relevo – como se ambos pudessem coexistir na mesma decisão, encerra em si mesma uma contradição lógica da fundamentação, uma vez que evidencia a valoração de premissas antagónicas e, portanto, inconciliáveis, redundando, incontornavelmente, no vício de contradição insanável da fundamentação da sentença previsto no artigo 410º, nº2, alínea c) do CPP.
II – As particulares exigências de proteção da vítima do crime de violência doméstica encontram-se pressupostas pelo artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, pelo que, em caso de condenação por tal crime, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição da reparação a que alude o artigo 82º-A do CPP, não podendo negá-la com o argumento de que no caso concreto se não verificam as mencionadas exigências de proteção da vítima. Porém, a atribuição da reparação dependerá da verificação dos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual, pelo que, não havendo dano, ou não assumindo este relevância que justifique a tutela do direito, não deverá arbitrar-se qualquer indemnização.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 43/20.8GAPRL, foi o arguido AA, nascido a … de 1992, filho de BB e de CC, natural da freguesia de …, concelho de …, solteiro, trabalhador rural, residente no …, …, condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea b), nºs. 2 a), 4 e 5, do Código Penal, da seguinte forma:

- Na pena principal de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova que passará obrigatoriamente pela sujeição do arguido a consulta de psiquiatria e/ou psicologia, e consulta de alcoologia, e ao respetivo cumprimento do tratamento que vier a ser prescrito, a monitorizar pela DGRSP.

- Nas penas acessórias de proibição de contactos por qualquer meio, de afastamento da vítima durante os primeiros 14 meses da suspensão da pena, afastamento fiscalizado por meios de vigilância eletrónica apenas pelo período de 1 ano e de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, a monitorizar pela DGRSP.

***

Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. Antes de mais, afigura-se-nos que a sentença do tribunal a quo padece do vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.

2. O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão só existe quando há uma incompatibilidade que não é possível resolver através da decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

3. A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se chega à conclusão, de acordo com um raciocínio lógico e tendo em conta as regras da experiência comum, que a decisão contém contradição irremediável, que não pode ser ultrapassada, entre os próprios fundamentos nela invocados, ou que a fundamentação determina uma decisão oposta àquela que foi proferida.

4. Além das considerações de natureza teórica, apreciado os factos dados como provados e subsumindo-os ao crime de violência doméstica, o tribunal a quo considerou que «Consta-se da factualidade provada que o arguido de facto dirigiu à ofendida expressões ofensivas da sua honra e consideração, molestou-a psiquicamente e manteve uma postura de desrespeito para com a mesma.

Mais, alguns dos factos tiveram lugar na casa de morada da família o que demonstra desrespeito até pelo lar que partilhavam e que deve ser visto como um “porto seguro” e não como um lugar de pressão, tensão e agressão.

As sucessivas mensagens e telefonemas, porque reiterados e com conteúdo persecutório e intimidador são bastantes para considerar preenchido o tipo pelo mau estar que causam e pelos bens protegidos que ofendem, nomeadamente a dignidade e o sossego da ofendida.

O arguido agiu, pois, com o intuito de molestar a saúde psíquica da ofendida, o que logrou fazer de forma reiterada, bem sabendo que assim violava os deveres que sobre ele impendiam em virtude da relação de união de facto que tinha mantido com ela, e que dessa forma a colocava numa situação de particular vulnerabilidade, até porque escolhia a ofensa à sua intimidade, que é dos bens mais protegidos e que mais devem ser reservados.»

5. Posteriormente e de forma lacunar, entendeu o tribunal a quo que «In casu, não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais, ou não patrimoniais (de especial relevo que imponham esta protecção/compensação adicional da vitima.»

6. Ora, esta conclusão não se afigura compatível com a factualidade provada na sentença, nem com as considerações de ordem teórica e a subsunção das mesmas ao caso dos autos que consubstanciam e justificariam justamente os danos não patrimoniais sofridos pela vítima em virtude da conduta reiterada e violenta do arguido.

7. De igual forma, dificilmente se compreende como chegou o tribunal a quo à conclusão de que não haveria efectivamente danos causados à vítima, quando é o próprio tribunal que considera, na fundamentação da sentença, que « Os factos em discussão nos presentes autos assumem, portanto, seriedade pois que para além das ofensas verbais existiram ameaças de morte repetidas, e a verdade é que o comportamento do arguido não corresponde a uma acção isolada, e revela uma intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que é suficiente para lesar o bem jurídico protegido pelo tipo, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.»

8. Por estes motivos, considera o Ministério Público que se verifica o vício da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

9. Não só pela factualidade dada como provada, mas igualmente até pela fundamentação que exarou na sentença, o Ministério Público sufraga o entendimento que o tribunal a quo deveria ter arbitrado uma indemnização à vítima, com base na equidade.

10. Desde logo, a Lei n.º 112/2009, de 116 de Setembro estabeleceu no artigo 21.º o direito da vítima à indemnização nos seguintes termos:

11. «1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.»

12. Daqui resulta, tal como tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência, que «… em caso de condenação por crime de violência doméstica, há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou porque, não o tendo feito e não se tendo oposto expressamente ao seu arbitramento, assim o obriga o disposto no artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16-9.

Se a sentença do tribunal "a quo" não o fizer, incorrerá na nulidade da omissão de pronúncia prevista no art.º 379.º, n.º 1 al.ª c), como aliás uniformemente o tem decidido a jurisprudência: acórdãos da RC de 28-5-2014, processo 232/12.9GEACB.C1 e de 2-7-2014, processo 245/13.3PBFIG.C1, acessíveis em www.dgsi.pt; e da RG de 22-4-2013, sumariado na CJ, 2013, II-313.» (in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21.04.2015, proferido no proc. n.º 65/11.0GEALR.E1).

13. No mesmo sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.05.2016, processo n.º 232/12.9GEACB.C2:

«I - Há lugar à atribuição de indemnização à vítima, mesmo não tendo sido pedido e mesmo que não ocorram particulares exigências de protecção da mesma, na fixação desta indemnização segue-se a regra geral, à falta de lei especial para o efeito. II - No caso particular do crime de violência doméstica em que a atribuição de indemnização é obrigatória entendemos que se deverá prescindir da verificação do pressuposto “gravidade do dano” porque se assim não fosse poderíamos concluir, em muitas situações, que não haveria lugar à fixação da indemnização que a lei obriga a atribuir por os danos não serem particularmente graves. III - A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.».

14. O tribunal a quo teceu considerações sobre o impacto da violência nas vítimas, pelo que se dá por reproduzida a fundamentação transcrita no ponto anterior.

15. Da leitura da sentença, resulta que o tribunal a quo chegou inclusivamente a considerar que as consequências para a vítima foram graves, porquanto fundamentou que «O arguido agiu, pois, com o intuito de molestar a saúde psíquica da ofendida, o que logrou fazer de forma reiterada, bem sabendo que assim violava os deveres que sobre ele impendiam em virtude da relação de união de facto que tinha mantido com ela, e que dessa forma a colocava numa situação de particular vulnerabilidade, até porque escolhia a ofensa à sua intimidade, que é dos bens mais protegidos e que mais devem ser reservados.»

16. Em conclusão, no vertente caso, os requisitos formais mostram-se preenchidos – não foi deduzido pedido de indemnização civil, verifica-se a condenação do arguido e a vítima não se opôs expressamente à fixação da indemnização, embora não a tenha peticionado.

17. Quanto aos demais requisitos, mostram-se também verificados, uma vez que, conforme se apurou, a vítima psicologicamente molestada, de forma reiterada e muito violenta, em consequência das condutas do arguido.

18. Ora, a factualidade mencionada impõe exigências de protecção da vítima.

19. Assim, levando em conta as consequências das condutas levadas a cabo pelo arguido e a sua condição económica modesta, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, afigura-se-nos adequada uma indemnização em quantia não inferior a € 2.500,00,00 (dois mil e quinhentos euros).

20. A pena principal aplicada a AA correspondente a em 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução sob regime de prova, é desadequada às necessidades de prevenção existentes e consequentemente violadora dos artigos 40.º, 70.º e 71.º todos do Código Penal.

21. Atendendo ao bem jurídico lesado, ao desvalor da conduta do arguido, ao resultado da sua conduta, ao grau de ilicitude e de culpa revelados no caso concreto, às elevadas exigências de prevenção geral e, às exigências de prevenção especial, entende-se que a medida a fixar não deverá ser inferior a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução sob regime de prova - ao invés da pena aplicada de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses - favorecendo a inserção social do arguido e revelando-se comunitariamente aceitável, atentas as expectativas na validade da norma violada.”

Termina pedindo a revogação parcial da sentença recorrida e a sua substituição por outra que:

“- Julgue verificado o vício previsto no artigo 410.º, n.º 1, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal;

- Arbitre uma indemnização a favor da vítima, de acordo com a equidade e em valor não inferior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), nos termos do disposto no artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09 e 82.ºA do Código de Processo Penal;

- Fixe uma pena principal em medida não inferior a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução sob regime de prova.”

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, tendo o arguido sido notificado da sua admissão, apresentou a sua resposta, na qual considerou que “(…) a decisão do Tribunal a quo não padece dos vícios apontados, parecendo-nos integralmente fundamentada, acertada, adequada, proporcional e sobretudo justa em toda a linha da decisão, atendendo aos factos provados e não provados de que o arguido vinha acusado. (…)”.

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, nada tendo o arguido respondido.

Procedeu-se a exame preliminar.

Após a redistribuição dos autos à signatária, foram colhidos os vistos legais e, tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Determinar se a sentença recorrida enferma do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, a que alude o artigo 410º, nº2, alínea b) do CPP.

B) Caso se conclua pela inexistência de tal vício, determinar se a factualidade considerada provada deveria ter conduzido ao arbitramento de uma indemnização à vítima nos termos do disposto nos artigos 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09 e 82.ºA do Código de Processo Penal.

C) E, também na eventualidade de se concluir pela inexistência do vício de contradição insanável da fundamentação, apreciar se os critérios e os parâmetros utilizados pelo tribunal a quo para determinar a medida concreta da pena aplicada ao arguido se revelam legalmente fundados e adequados, ou se, ao invés, os critérios legais, aplicados à situação do arguido, imporiam a aplicação de uma pena de prisão mais elevada.

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos:

“1. Em data não concretamente apurada, AA iniciou um relacionamento amoroso com DD, com quem, no dia 21 de Agosto de 2014, começou a viver em comunhão de leito, mesa e habitação.

2. Juntamente com AA e com DD à guarda, cuidados e sob assistência e protecção dos mesmos vivia a filha menor de ambos, EE, nascida a … de 2015.

3. Ultimamente, AA e DD residiam na Rua …, n.º…, em ….

4. Durante o relacionamento, em várias ocasiões, AA e DD mantiveram discussões verbais.

5. No dia 2 de Março de 2020, DD decidiu terminar o relacionamento amoroso que mantinha com AA, tendo começado a fazer as malas.

6. Então, AA disse a DD “se tu te quisesses ir embora, já tinhas ido”.

7. Depois de pôr as malas no carro, DD deslocou-se à Escola … a fim de conversar com a professora da filha, tendo sido impedida por AA de o fazer.

8. Após, DD deslocou-se novamente à residência onde coabitava com AA a fim de ir buscar outros objectos de é dona e de que necessitava.

9. Então, no interior da residência, AA disse a DD “a partir do momento em que abalares aqui de casa não levas a menina”.

10. Depois de DD ter afirmado que iria requerer a regulação do exercício das responsabilidades parentais, AA disse à mesma “se pensares em irmos a Tribunal, desapareces tu e eu que eu mato a gente os dois, acabou, tens a sentença lida, não ficas nem tu nem eu”.

11. De seguida, DD abandonou a residência onde coabitava com AA, terminando o relacionamento amoroso que mantinha com o mesmo.

12. Ainda no dia 2 de Março de 2020, AA enviou diversas mensagens escritas a DD, entre outras as com o seguinte teor:

“tu não imaginas como ando se te vais mesmo embora têm de me internar”;

“Não me fassan perder o juízo;

“Que isto vai dar merda grande não me vais deixar e ficar assim te garanto”;

“Não ficas comigo não vais ter vida em quanto eu viver”;

13. Entre o dia 2 e o dia 10 de Março de 2020, por diversas vezes, AA pediu a DD que reatasse o relacionamento amoroso, o que esta se recusou a fazer.

14. Inconformado com o fim do relacionamento amoroso, AA começou a acossar DD, a telefonar insistentemente e a remeter diversas mensagens escritas à mesma, procurando compeli-la a reatar o relacionamento e não permitindo que a mesma visse ou estivesse com a filha menor de ambos a não ser nas condições por ele impostas.

15. Nesse quadro, referindo-se à filha de ambos, AA remeteu as seguintes mensagens escritas a DD:

“a EE, só com um tiro nos cornos”;

“durante a semana não”;

“o é assim ou não é para nenhum”;

“Queres arranjar mesmo xatisses”;

“Deixa de andar a dizer que a menina vai vier contigo porque eu já te disse que durante a semana a menina vai ficar comigo e ao fim de semana contigo”;

“Então se vamos ver prepara-te para o pior”;

“E que se isso acontecer que nunca a mais a vês tu e eu”;

16. Ainda no quadro do descrito comportamento, em data não determinada, mas entre o dia 2 e o dia 11 de Abril de 2020, AA inseriu a palavra passe de DD e acedeu à página da mesma na rede social “FACEBOOK”.

17. Após, AA visualizou o conteúdo do “Messenger” de DD e apercebeu-se de que a mesma tinha enviado vídeos, em que aparecia despida e a tocar-se, a um indivíduo do sexo masculino de nome FF.

18. No dia 11 de Abril de 2020, através do “Messenger” da rede social “FACEBOOK”, AA pressionou DD a encontrar-se pessoalmente com ele e a conversar com ele a fim de reatarem o relacionamento, afirmando que iria divulgar os mencionados vídeos a terceiros e a familiares da mesma.

19. Assim, após diversas mensagens em que alegou pretender conversar sobre a filha de ambos, AA remeteu a DD, entre outras, mensagens com o seguinte teor:

“E imagina as tuas fotos na net”;

“As tuas têm cara” “Hahahahahah”;

“Obrigas-me a isto tudo para quê?”;

“Para quê chegarmos a isto?”;

“Diz-me, fala”;

“É por tu não falares que andamos nisto”;

“Andas a fazer-me perder a cabeça toda”;

“Tenho as originais”;

“O vídeo tá top para o red tub”;

“Ui”;

“Fala comigo, porra”;

“A sério que ponho tudo na net”;

“Escarrapachado no face”;

“Fala comigo, porra”;

“DD”;

“Atende-me, por favor”;

“Por favor, DD atende”;

“Não me obrigues a expor-te assim”;

“Eu só quero falar”;

“Podíamos ter evitado merdas aos montes se falasses”;

“Por favor, DD”;

“Começo a carregar neles para a net ou ligas-me?”;

“Como é”;

“Tão óptimos”;

“FDS andas a dar cabo de mim”;

“Posso só saber se é verdade pela tua boca”;

“Eu não te meti as fotos nem vídeos em lado nenhum, mas preciso saber uma coisa e quero a verdade por a tua boca por pior que seja”.

“Te garanto uma coisa eu vou preso mas se tiveres couragem de vir à minha frente eu digo-te o que te vou fazer”.

20. Já no dia 20 de Abril de 2020, enquanto DD esteve a apresentar denúncia no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana, AA efectuou vinte e cinco telefonemas para a mesma.

21. No dia 22 de Abril de 2020, entre outros, através do “Messenger” da rede social “Facebook”, AA enviou diversas mensagens escritas a DD, com o seguinte teor:

“Só preciso saber uma coisa, mesmo que parvoíce é essa”;

“Por favor”;

“Peço desculpa por o que te disse ontem, eu sei que não devia ter dito nem feito isso. Acredita não quero o teu corpo exposto. Só de pensar nisso fico doente. Mas por favor, preciso mesmo saber por ti”;

“?”

“?”

22. Após, por meio de videochamada, AA tentou conversar com DD por diversas vezes, afirmando que pretendia falar sobre a filha de ambos.

23. Por não se conformar com o fim do relacionamento, em data não determinada, mas em Março de 2020, AA telefonou a GG, amiga de DD, e disse que se soubesse que esta última mantinha relacionamentos amorosos com outros indivíduos acabava com a vida de todos.

24. Nessa ocasião, AA também disse a GG que se DD não fosse dele não era de mais ninguém.

25. Por último, AA disse a GG que não deixava DD ficar com a filha menor de ambos.

26. Em datas não apuradas, mas em Março de 2020, em duas ocasiões, AA, fazendo-se transportar num veículo de marca “…”, seguiu DD que circulava noutro veículo acompanhada pela irmã, HH.

27. No dia 21 de Abril de 2020, AA foi levar a filha menor à residência onde DD se encontra a habitar.

28. Nesse local, AA pressionou DD a acompanhá-lo para conversar com ele, afirmando que se ela não fosse que se ia embora e levava a filha menor.

29. No dia 7 de Julho de 2020, através do Messenger da rede social “FACEBOOK”, AA remeteu uma mensagem escrita para HH, irmã de DD, com o seguinte teor “é bom que venhas com a EE ver a minha irmã e dar-lhe um beijo que a II faz anos e a menina sabe que tem aqui bolos, porque se me fazem ir aí eu vou preso, mas vocês não se safam”.

30. Mais tarde, nesse dia, no decurso de uma videochamada com a filha menor, AA disse à mesma “então a puta da tua mãe”.

31. Ainda no decurso da videochamada, AA disse a DD “tu comigo estás queimada”.

32. No dia 27 de Setembro de 2020, pelas 18H00, junto da residência onde habita, sita na Rua …, …, em …, AA disse a DD “onde eu te apanhar, mato-te”.

33. No dia 23 de Outubro de 2020, entre as 00H42 e as 02H05, no decurso de uma chamada telefónica, que efectuou, referindo-se a DD, AA disse “eu digo-te, eu… por mais que não queira vou-me sempre lembrar da outra puta, sempre, sempre, sempre. Ainda agora estava a pensar na minha EE, a minha EE, isto, a minha EE. Mais bem ou mais mal, por alguma coisa vou sempre lembrar. Posso estar muito bem-disposto às vezes. (…) O problema é que eu não me lembro do bom nem do mau basta lembrar-me. (…) Sabes aquele sentimento amor/ódio. (…). Simplesmente tenho raiva é onde estou a querer chegar. Gostei muito dela, é verdade, não penso nela, é mentira, mas de maneira diferente. Antigamente podia pensar porque gosto, porque gostava dela. Hoje em dia penso porque tenho raiva. Derivado ao que ela me tem feito e ao que fez à minha filha. Tenho que me lembrar que tive um porradão de meses sem a ver por causa daquela puta. Qual é a minha vontade é quando isto passar eu ir de cana mas mata-la antes. (…). Se a minha filha, ainda no dia em que fui ao Tribunal disse à minha mãe : Mãe mentaliza-te se isto hoje não correr bem eu vou de cana.” Eu não tenho medo nenhum daquilo, eu não tenho medo de ir de cana, nenhum, ou me matam ou me tornam mais forte, das duas três. Mas limpinho, direitinho, é que não tenho medo nenhum daquilo. Se eu no dia que fui ao tribunal, se a minha filha não ficasse comigo que mais não seja, eu já não digo mais, que mais não seja, eu não tivesse direito a ver a minha filha, à porta do tribunal eu tinha matado a DD e a esta hora já estava aí em … ou já estava no cemitério, sabe-se lá. Lá que ando com esta ideia ando, sempre andei e não ando mais porque felizmente e graças a Deus consegui mais ou menos alguma coisa porque se não tenho conseguido nada estava mal. Olha a minha EE deixou o perfume deitado. Ficaste tão calada porque estou a dizer a verdade (…)”.

34. Ao agir da forma descrita, AA sabia que molestava a saúde física de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que a acossava, que limitava a sua liberdade de movimentos e de decidir com quem se relacionar, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.

35. AA actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

36. O arguido assumiu a prática dos factos provados em 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 26, 33 e 34, e mostrou-se arrependido.

37. Disse estar, à data, desesperado com a separação, desespero potenciado com o consumo excessivo de álcool e drogas, mas hoje reconhece os seus erros.

38. Antes da sua prisão, era trabalhador rural, manobrador de máquinas agrícolas, e auferia em média € 40,00 por dia/ € 800,00 mensais.

39. Tem uma companheira, com quem começou a relacionar-se em agosto de 2020, que actualmente vive em casa dos seus pais.

40. Paga, a título de Alimentos, a quantia de € 100,00.

41. Não vê a filha desde a sua prisão em Novembro de 2020.

42. A mãe e ora ofendida referiu que o arguido é bom pai e cuidador.

43. Tem o 6º ano de escolaridade.

44. Em liberdade, pretende procurar emprego no … e ver a filha aos fins-de-semana, conforme estabelecido judicialmente.

45. O arguido é tido pelos amigos como uma pessoa trabalhadora, amiga do amigo, bem disposta, e calma, que consome estupefacientes há vários anos.

46. Da ficha de avaliação de registo efectuada pela PSP em 21/06/2021 resulta um risco classificado como Elevado.

47. Do relatório social para eventual determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, no essencial, consta:

AA é proveniente de uma estrutura familiar modesta em termos económicos e caracterizada por uma dinâmica com alguma conflitualidade, decorrente de hábitos etílicos do progenitor, mas, ainda assim, dispondo de enquadramento familiar. O seu percurso vivencial apresenta ligações a consumos de estupefacientes que o expuseram a uma associação de pares e contextos criminógenos. Concluiu o 6º ano, tendo desistido então do ensino. Iniciou na adolescência a atividade laboral no ramo agrícola, com carater sazonal, situação que tem desempenhado com interrupções até à reclusão, possuindo uma pequena experiencia migratória de curta duração na Suíça, na área da construção civil. O arguido possui uma filha de 6 anos de idade, a residir com a progenitora, com quem mantém forte ligação afetiva, fruto de anterior relação marital. Após separação, encetou novo relacionamento conjugal, mantendo-se a atual companheira a residir com os progenitores do arguido e a expensas destes.

Em face do exposto consideramos que o condenado evidencia capacidade de competências para se submeter a regras e normas, bem como, para compreender e cumprir as decisões judiciais que vierem a ser tomadas.

48. Tem os antecedentes criminais que se dão por reproduzidos e que aqui se sintetizam (crime/data da prática/pena):

» Condução sem habilitação – 2011 – multa

» Furto qualificado

» Furto qualificado e consumo de estupefacientes

» Sem habilitação – 2014 – multa.

*

II.II Factos não provados:

O Tribunal considera não provado:

i) Por referência a 4, “relacionadas com o facto de o primeiro, alegadamente, consumir e vender produtos estupefacientes e manter relacionamentos amorosos com outras mulheres.”.

ii) No dia 4 de Agosto de 2018, entre as 03H00 e as 06H00, junto a uma igreja, em …, na sequência de uma discussão verbal relacionada com o facto de AA pretender conduzir um veículo, depois de ter ingerido bebidas com álcool em excesso, este desferiu um pontapé no tórax de DD.

iii) Em consequência directa e necessária da descrita conduta de AA, DD sofreu de dores físicas e de mal-estar psicológico.

iv) Por referência a 17, que a identidade do individuo não seja possível de apurar.

v) No dia 15 de Maio de 2020, pelas 22H00, enquanto DD conversava ao telefone com CC, mãe de AA, este disse àquela “acredita que eu vou matar-te”.

vi) Por referência a 30, que a expressão usada tenha sido cabra (mas sim puta).

vii) Que em 31 tenha usado a expressão sua puta.

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da invocada contradição insanável da fundamentação.

Alega o recorrente que no acórdão recorrido se deteta um dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, concretamente o vício de contradição insanável previsto na alínea b) do referido preceito CPP. Desde já adiantamos que, em nosso entender, lhe assiste razão. De acordo com o disposto no artigo 410.º, nº 2, al. b) do CPP, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito e desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o recurso pode ter como fundamento a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Este vício, tal como os demais previstos no nº 2 do artigo 410º, ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir ter-se verificado a referida contradição insanável.

Ora, na situação vertente, da leitura da sentença recorrida ressalta ostensivamente tal contradição.

Vejamos.

No ponto 34. do elenco dos factos provados, consignou o tribunal recorrido que:

“34. Ao agir da forma descrita, AA sabia que molestava a saúde física de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que a acossava, que limitava a sua liberdade de movimentos e de decidir com quem se relacionar, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.” (1)

Na fundamentação de direito, na breve subsunção que realizou dos factos tidos por provados ao crime de violência doméstica – sobre o qual anteriormente tecera várias considerações teóricas – concretamente a fls. 19, consignou a sentença sindicada o seguinte: “Volvendo agora ao caso dos autos, Consta-se da factualidade provada que o arguido de facto dirigiu à ofendida expressões ofensivas da sua honra e consideração, molestou-a psiquicamente e manteve uma postura de desrespeito para com a mesma. Mais, alguns dos factos tiveram lugar na casa de morada da família o que demonstra desrespeito até pelo lar que partilhavam e que deve ser visto como um “porto seguro” e não como um lugar de pressão, tensão e agressão. As sucessivas mensagens e telefonemas, porque reiterados e com conteúdo persecutório e intimidador são bastantes para considerar preenchido o tipo pelo mau estar que causam e pelos bens protegidos que ofendem, nomeadamente a dignidade e o sossego da ofendida. O arguido agiu, pois, com o intuito de molestar a saúde psíquica da ofendida, o que logrou fazer de forma reiterada, bem sabendo que assim violava os deveres que sobre ele impendiam em virtude da relação de união de facto que tinha mantido com ela, e que dessa forma a colocava numa situação de particular vulnerabilidade, até porque escolhia a ofensa à sua intimidade, que é dos bens mais protegidos e que mais devem ser reservados. (…) Os factos em discussão nos presentes autos assumem, portanto, seriedade pois que para além das ofensas verbais existiram ameaças de morte repetidas, e a verdade é que o comportamento do arguido não corresponde a uma ação isolada, e revela uma intensidade, ao nível do desvalor da ação e do resultado, que é suficiente para lesar o bem jurídico protegido pelo tipo, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.(…)” (2)

Quer no facto provado (34.), quer nas considerações relativas à subsunção dos factos ao direito que transcrevemos, o tribunal recorrido deixou clara a convicção que formou no que diz respeito à existência de danos de natureza não patrimonial, mormente do foro psíquico e emocional causados à vítima pelas condutas do arguido (3) que o tribunal entendeu subsumir ao crime de violência doméstica. E não só consignou expressamente que o arguido teve como propósito causar sofrimento psíquico à ofendida e que conseguiu fazê-lo, como fez realçar a “seriedade” e a “intensidade” dos factos “ao nível do desvalor”, não só da ação, mas também “do resultado”, intensidade que reputa até de “incompatível com a dignidade da pessoa humana.” Visando ainda realçar a importância dos danos sofridos pela vítima, o tribunal a quo fez ainda questão de enfatizar que a conduta do arguido censurada nos autos “a colocava numa situação de particular vulnerabilidade, até porque escolhia a ofensa à sua intimidade, que é dos bens mais protegidos e que mais devem ser reservados.” Os factos provados e a explanações realizadas na sua subsunção ao direito revelam-se absolutamente consonantes, não se descortinando nas mesmas qualquer tipo de incoerência. O mesmo não sucede, porém, no que tange ao confronto dos referidos factos e explanações com o que o tribunal a quo decidiu consignar mais à frente, em sede de apreciação da temática do arbitramento oficioso de reparação à vítima de acordo com regime estabelecido conjugadamente pelos artigos 21º da Lei 112/2009, de 16/09 e 82º-A do CPP. De facto, incompreensivelmente e totalmente ao arrepio do que anteriormente consignara relativamente à relevância e intensidade dos danos causados à vítima – e após ter elencado os elementos constitutivos do direito à reparação, entre os quais obviamente se inclui a existência de danos relevantes causados pela conduta ilícita – afirma a juiz a quo, a fls. 27, da sentença, que: “In casu, não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais, ou patrimoniais de especial relevo que imponham esta proteção/compensação adicional da vítima”. Afinal, em que ficamos? As condutas do arguido foram causadoras de danos psicológicos à vítima relevantes e intensos nos termos constantes quer do ponto 34. da factualidade provada quer da subsunção dos factos ao direito acima transcritos, ou nos autos não resultou demonstrada a existência de quaisquer danos relevantes, conforme se consignou a fls. 27 da sentença recorrida? A verdade é que a juiz do julgamento incluiu na sentença a afirmação de uma realidade e o seu contrário – por um lado, o facto de as condutas do arguido terem molestado a vítima de forma intensa e reiterada, tendo-lhe causando sofrimento psicológico assinalável e, por outro, a falta de demonstração da existência de danos de especial relevo – como se ambos fossem conciliáveis e pudessem coexistir na mesma decisão. Assim não é, porém. A consignação na sentença recorrida, em partes diferentes da peça, da prova de danos extremamente relevantes e da não prova dos referidos danos, encerra em si mesma uma contradição lógica da fundamentação, uma vez que evidencia a valoração de premissas antagónicas e, portanto, inconciliáveis. O mesmo é dizer que a conexão entre, por um lado, a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada (danos psicológicos) e a valoração que fez da mesma (intensos e extremamente relevantes) e, por outro, a avaliação que fez da mesma factualidade noutro passo da sentença (inexistência de danos relevantes) se apresenta como logicamente inaceitável. Ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, a nosso ver, os factos e as considerações feitas sobre os mesmos nos segmentos transcritos consubstanciam a mesma realidade contraditoriamente tida por provada com sentidos opostos, o que redunda, incontornavelmente, no vício de contradição insanável da fundamentação da sentença. Tal como alega o recorrente, em termos que integralmente subscrevemos,“(…) de forma lacunar, entendeu o tribunal a quo que «In casu, não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais, ou não patrimoniais (de especial relevo que imponha que imponham esta proteção/compensação adicional da vítima.» Ora, esta conclusão não se afigura compatível com os factos provados supra transcritos, nem com as considerações de ordem teórica e a subsunção das mesmas ao caso dos autos que consubstanciam e justificariam justamente os danos não patrimoniais sofridos pela vítima em virtude da conduta reiterada e violenta do arguido.(…)” Assiste razão ao recorrido ao referir na sua resposta ao recurso que as considerações teóricas mencionadas na sentença tiveram apenas como objetivo realizar o enquadramento da problemática da violência contra as mulheres, em nada interferindo na verificação do vício que acabámos de sindicar. De outra sorte, não subscrevemos o entendimento pelo mesmo expresso em tal peça processual quando refere que: “(…) 19º Mas e apesar da consideração dos factos dados como provados, designadamente os referidos pelo MP no seu recurso, tal não colide em nada com a conclusão do Tribunal ao considerar que “não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais de especial relevo que imponham proteção/compensação adicional da vítima.” 20º Não se podendo considerar que esta conclusão não é compatível com a factualidade provada na sentença, nem com as considerações de ordem teórica e subsunção das mesmas ao presente caso. 21º A violação dos bens jurídicos protegidos e suas consequências, não significa, necessariamente, a verificação de danos patrimoniais e não patrimoniais de especial relevo que imponham a proteção/compensação adicional da vítima, sendo necessária a sua ocorrência e demonstração, devendo ser como o foi, ponderadas todas as circunstâncias ocorridas. 22º E por isso, entendemos, e, contrariamente ao defendido pelo M.P. não existir, qualquer lacuna, da parte do Tribunal ao considerar e cita “In caso, não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais de especial relevo que imponham esta proteção/compensação adicional da vítima. .(…)”.

Convocando todas as explanações acima realizadas, diremos apenas que, ao contrário do que propugna o arguido, a consideração, quer dos factos dados como provados, mormente dos vertidos no ponto 34. do respetivo elenco, quer da valoração que dos mesmos foi feita na sua subsunção ao direito, colide totalmente com a conclusão do tribunal recorrido ao considerar que “não resultaram demonstrados quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais de especial relevo que imponham proteção/compensação adicional da vítima.”

Somos, assim, a concluir pela existência do alegado vício de contradição insanável da fundamentação previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do CP.

*

Pese embora a verificação da existência do aludido vício da sentença, nos termos sobreditos, prejudique naturalmente a apreciação da questão do não arbitramento de uma indemnização à vítima nos termos do disposto nos artigos 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09 e 82.º-A do Código de Processo Penal, sempre se impõe tecer a tal respeito algumas considerações, desde logo com o propósito de conferir utilidade à sanação do vício detetado.

Expliquemos melhor.

Preceitua o artigo 21.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Violência Doméstica, aprovado pela Lei n.º 112/2009, de 16.09 que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”. Por seu turno, decorre do artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a titulo de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vitima o imponham”.

Considerando que nos presentes autos a ofendida do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado, não deduziu pedido cível, nem se opôs ao recebimento da reparação prevista no artigo 82.º-A, n.º 1 do CPP, sempre seria de equacionar a atribuição da mesma nos termos previstos conjugadamente em tal normas legais, o que, aliás, foi feito na sentença recorrida.

A questão que, porém, deverá colocar-se no atual momento processual – e à qual, aliás, o arguido pertinentemente faz alusão na sua resposta ao recurso – diz respeito à interpretação do citado artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09. A tal propósito, descortinamos três vias interpretativas seguidas na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores:

a) A que segue o entendimento de que é obrigatória a atribuição de reparação à vítima em qualquer situação de condenação pelo crime de violência doméstica, atendendo à existência de particulares exigências da sua proteção (4);

b) A que, mais recentemente, tem realizado uma interpretação mais restritiva da norma em causa, entendendo que a mesma apenas impõe a obrigatoriedade de aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em todas as situações de condenação pelo crime de violência doméstica, pelo que a atribuição da reparação aí prevista sempre estará sujeita à verificação do requisito da existência de particulares exigências de proteção da vítima. (5)

c) E, por fim, uma terceira posição que entende que o citado artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, impondo embora que se dê sempre aplicação do disposto no artigo 82º-A do CPP, estabelecendo que as vítimas do crime de violência doméstica beneficiam sempre de particulares exigências de proteção, não deixa de exigir que se verifiquem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar para que lhes seja arbitrada a reparação a que alude o citado artigo, o que deverá ser feito através da aplicação de critérios de equidade, conformados pelos factos tidos por provados nos autos. (6)

É, sem dúvida, esta última posição a que, respeitando embora os valores atinentes à necessidade de proteção da vítima que se visam assegurar com a previsão da norma em causa, nos parece mais consentânea com o respeito, também necessário, pelos pressupostos do direito ao ressarcimento de danos causados por factos ilícitos.

Efetivamente, a nosso ver, a posição que defende a atribuição automática de tal reparação à vítima em todas as condenações pelo crime de violência doméstica não encontra apoio bastante nem na letra nem no espírito da lei. O que o legislador visou com a consagração de tal norma legal no diploma que aprovou o Regime Jurídico da Violência Doméstica foi conferir especial proteção às vítimas de tal crime, atendendo às suas especiais fragilidades, estipulando que a tais situações deveria sempre aplicar-se o regime previsto no artigo 82º-A do C.P.P.. O mesmo é dizer que do mencionado regime decorre a obrigatoriedade de se equacionar sempre a possibilidade de ser arbitrada às vítimas de violência doméstica uma indemnização para reparação dos danos por elas sofridos, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, por se considerar que em relação a tais vítimas se verificam sempre particulares exigências de proteção.

Não nos parece, contudo, que o fim visado com a estatuição do artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 tenha sido o de impor ao julgador que, em qualquer circunstância, no caso de haver condenação pelo crime de violência doméstica, proceda ao arbitramento de uma indemnização à vítima, independentemente de a mesma se encontrar, ou não, na situação de merecer tal indemnização, ou seja, sem cuidar de averiguar se a conduta do arguido foi causadora de danos que, pela sua natureza e dimensão, mereçam ser ressarcidos. Dito de outra forma, as particulares exigências de proteção da vítima do crime de violência doméstica encontram-se pressupostas pelo citado artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, pelo que, em caso de condenação por tal crime, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição da reparação a que alude o artigo 82º-A do CPP, não podendo negá-la com o argumento de que no caso concreto se não verificam as mencionadas exigências de proteção da vítima. Porém, a atribuição da reparação dependerá da verificação dos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual, pelo que, não havendo dano, ou não assumindo este relevância que justifique a tutela do direito, parece-nos evidente que não deverá arbitrar-se qualquer indemnização.

No que tange ao elemento literal, a utilização do vocábulo “pode” pelo nº 1 do artigo 82º-A do CPP e da expressão “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal” no artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 aponta também claramente no sentido do caráter não automático da atribuição da reparação em causa. Ainda que visando assegurar a proteção das vítimas dos crimes de violência doméstica, tal automaticidade revelar-se-ia, ademais, excessiva e desproporcionada.

A este propósito e defendendo também que a imperatividade da atribuição da reparação pressupõe a existência de danos causados pela conduta criminosa, se pronunciou o STJ no acórdão datado de 02.05.2018, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, também disponível em www.dgsi.pt no qual podemos ler “(…)A formulação do texto do artigo 82.º-A do CPP, ao estabelecer que, não havendo pedido de indemnização, “o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”, obriga, por si mesma, pela imperatividade da norma, a que o tribunal, nessas circunstâncias, averigúe, sempre que seja caso disso, acerca destas “exigências de proteção”. Pelo que, buscando o sentido útil da remissão do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, este só pode ser outro que não o coincidente com essa obrigação, sob pena de, sendo a ela limitada, a remissão se mostrar desnecessária e vazia de conteúdo.

Assim sendo, em atenção aos elementos a considerar na definição do seu sentido normativo (supra, 10), esse sentido só poderá ser o de que, tendo em conta a natureza jurídica da “reparação”, o tribunal deverá condenar (“sempre”) na “reparação pelos prejuízos causados”, como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal. Isto, sublinhe-se, desde que, verificados os respetivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido “um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão” (7) que constitua esse crime, ou seja, desde que essa pessoa seja uma “vítima” do crime na aceção da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009.(…)”

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Assim, em cumprimento do regime legal estabelecido pelas disposições conjugadas dos artigos 21, nºs 1 e 2, da Lei n° 112/2009 82°-A, do CPP, deverá o julgador realizar uma análise casuística da situação, ponderando a factualidade e as várias circunstâncias apuradas, com especial destaque para a conduta do agressor e para as consequências sentidas pela vítima e, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil, decidir de acordo com a equidade.

Esta a razão pela qual não bastará nos presentes autos a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica – condenação que pelo mesmo não foi posta em causa – para assegurar o direito da vítima a ser-lhe arbitrada a reparação prevista no artigo 82º-A do CPP em obediência ao comando imposto pelo artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09. Indispensável se mostra aferir se a mesma sofreu danos em consequência das condutas criminosas do arguido e se tais danos, atenta a sua relevância, merecem a tutela do direito, pelo que se impõe eliminar a contradição insanável da fundamentação acima verificada, remetendo os autos para novo julgamento em conformidade com o regime processual estabelecido pelos artigos 426º, nº 1 do CPP e 426º-A do CPP.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Declarar que a sentença recorrida enferma do vício de contradição insanável da fundamentação previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. b) do CPP.

- Determinar o reenvio dos autos ao tribunal recorrido para novo julgamento e prolação de nova sentença com vista à sanação de tal vício, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP, com respeito das regras de competência constantes do artigo 426º-A do CPP.

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Sem custas.

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Compulsados os autos, constata-se que o arguido se encontra, desde 15.07.2021, sujeito às medidas de coação de proibição de contactos com a vítima, através de qualquer meio, diretamente ou por interposta pessoa, mediante fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância e de proibição de permanecer na residência e/ou local de trabalho da vítima, medidas impostas ao abrigo do disposto no artigo 200º do CPP.

Mais se verifica que, não obstante ter sido solicitada pelo Ministério Público antes da remessa dos autos a este tribunal da Relação, concretamente em 08.11.2021, a elaboração do competente trasladado para controlo da aplicação das referidas medidas de coação – sendo certo que as mesmas se encontram sujeitas aos prazos máximos estipulados pelo artigo 215º do CPP, por remissão expressa do artigo 218º, nº 2 do CPP – tal requerimento não foi objeto de qualquer despacho, não tendo o mencionado traslado sido elaborado.

Nesta conformidade, determino se dê, de imediato, conhecimento do teor do presente acórdão à primeira instância para os efeitos tidos por convenientes.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 22 de novembro de 2022

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 Negrito acrescentado.

2 Negritos acrescentados.

3 “O arguido agiu, pois, com o intuito de molestar a saúde psíquica da ofendida, o que logrou fazer de forma reiterada”

4 Assim decidiram, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 18.05.2016, relatado pela Desembargadora Olga Maurício; acórdãos da Relação de Guimarães de 07.03.2016, relatado pelo Desembargador Luís Coimbra e de 11.03.2019, relatado pelo Desembargador Pedro Cunha Lopes; o acórdão da Relação de Lisboa de 16.09.2015 relatado pela Desembargadora Margaria Ramos de Almeida e acórdãos da Relação de Évora, de 21.04.2015, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso, de 24.05.2016, relatado pelo Desembargador Carlos Berguete Coelho, todos disponíveis em www.dgsi.pt. (pese embora em vários destes arestos estivesse em causa o vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a questão do arbitramento da reparação à vítima e não exatamente a conclusão nas sentenças recorridas de que tal arbitramento não é obrigatório.)

5 Defendendo este entendimento encontramos o acórdão, da Relação de Coimbra de 24.06.2015, relatado pelo Desembargador Luís Ramos disponível em www.dgsi.pt.

6 Defendendo este entendimento encontramos o acórdão da Relação do Porto de 15.12.2016, relatado pelo Desembargador Manuel Ramos Soares, disponível em www.dgsi.pt.

Também Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, na anotação ao artigo 82º-A do CPP, página 505, refere que “(…) As únicas condições da reparação oficiosa da vítima são a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação (…)” .

7 Negrito acrescentado.