Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
402/23.4T8STC-B.E1
Relator: MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
III - Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
IV - Com o aditamento do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
VII - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 402/23.4T8STC-B.E1 - Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Família e Menores de Santiago do Cacém
Recorrente – (…)
Recorridos – Ministério Público
(…)
*
Sumário: (…)
**
Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
*
I – RELATÓRIO
(…) deduziu contra (…) incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Em síntese, alega que
“1º Conforme os autos de regulação das responsabilidades parentais com n.º 327/22.0T8STC, aos quais o presente incidente deve ser apensado, em conferência de pais realizada a 30 de novembro de 2022, o requerido ficou obrigado a pagar a quantia mensal de € 120,00 (cento e vinte euros) a título de pensão de alimentos ao filho menor de ambos, (…), até ao dia 8 de cada mês a que respeitar (…).
3.º Sucede, porém, que desde essa altura, o requerido nunca efetuou qualquer pagamento da pensão de alimentos que está obrigado a pagar mensalmente ao seu filho menor. (…)
5.º Assim, permanecem em falta todas as prestações alimentícias vencidas desde a data da conferência de pais até à presente data, o que se traduz em 8 meses de incumprimento (dezembro de 2022 até julho de 2023), ascendendo à quantia de € 960,00 (novecentos e sessenta euros)”.

Requer que
a) Seja declarado o incumprimento pelo requerido do determinado em acordo de regulação das responsabilidades parentais;
b) Seja o mesmo condenado a pagar a quantia em falta de € 960,00 e, bem assim no pagamento das prestações vincendas;
c) Para pagamento das quantias vencidas e vincendas, nos termos conjugados dos artigos 41.º e 48. º, n.º 1, alínea b), ambos do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e demais normas legais aplicáveis, se apure a entidade patronal do requerido e se requisite de imediato à mesma a dedução correspondente nos termos da lei dos montantes em atraso bem como das prestações vincendas;
d) Caso das diligências a efetuar se conclua pela impossibilidade de ver satisfeita a prestação de alimentos nos moldes supra requeridos, se requer a V. Exa. se digne fixar o montante da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, no valor correspondente à prestação já fixada, ou seja, € 120,00, notificando-se o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, para que providencie junto do centro regional da segurança social da sua residência, com vista a iniciar o respetivo pagamento”.

Por despacho de 13.07.2023, foi dispensada a realização de conferência de pais, determinando-se a notificação do requerido para, no prazo de 5 dias, alegar o que tivesse por conveniente quanto ao teor do requerimento inicial, com a expressa advertência de que, nada dizendo no prazo que lhe foi concedido, se considerariam confessados os factos alegados e julgado verificado o incumprimento em conformidade.

O requerido, notificado, nada disse.

Por despacho de 13.09.2023, foi determinada a realização de diligências tendo em vista o apuramento da existência de património e/ou rendimentos do requerido.

Por decisão de 15.10.2023, o Tribunal conheceu da exceção dilatória de caso julgado, absolvendo da instância o requerido.

A requerente, inconformada com esta decisão, dela veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo:
i. A sentença a quo consubstancia decisão surpresa, pronunciando-se sobre questão jurídica sem facultar às partes a sua discussão;
ii. Em momento algum, foi aflorada a exceção dilatória de caso julgado ou, sequer, foi concedido às partes a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem, violando do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código Processo;
iii. A sentença a quo é nula;
iv. Não se verifica a exceção dilatória de caso julgado;
v. Inexiste identidade dos pedidos formulados no Apenso A e neste Apenso B, respeitando a meses diferentes;
vi. A recorrente não estava acompanhada por advogado no âmbito do apenso A;
vii. O entendimento sufragado na sentença ora em crise é atentatório do superior interesse do menor e do seu direito a alimentos por parte dos pais.
viii. Ao decidir pela verificação da exceção dilatória de caso julgado a sentença revidenda violou o disposto nos artigos 577.º, i), 580.º e 581.º, todos do Código de Processo Civil;
ix. Deve a sentença a quo ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos até final”.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo da seguinte forma:
1. Inconformada com a sentença proferida no âmbito do processo de Incumprimento das Responsabilidades Parentais relativamente a (…) que considerou que a questão a decidir consubstanciava exceção dilatória de caso julgado, determinando a absolvição da instância do Réu, veio a progenitora/requerente do mesmo interpor recurso.
2. Considera a ora recorrente que o a decisão recorrida constitui, por um lado, decisão surpresa, sendo nula, uma vez que viola o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e, por outro, que a questão trazida aos autos não constitui exceção dilatória de caso julgado, pelo que a decisão recorrida viola os artigos 577.ª, alínea i), 580.º e 581.º, do Código de Processo Civil.
3. Adianta-se desde já que, em nosso entender assiste razão à recorrente, pelo que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão recorrida por outra que permita o prosseguimento dos autos.
(…)
5. Entende o Ministério Público que, no caso concreto, e alinhando com a tese da recorrente, a decisão de considerar a questão a decidir nos presentes autos consubstanciava exceção dilatória de caso julgado, sem antes ter sido dada a palavra às partes, poderá ter feito a Mm.ª Juíza a quo, salvo melhor opinião e com o devido respeito, incorrer na prolação de uma decisão surpresa, violando, assim, a norma plasmada no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
6. Por outro lado, e mais uma vez concordado com a tese da recorrente, o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais que deu origem ao presente apenso (-B), não consubstancia exceção dilatória de caso julgado, atento a decisão proferida no âmbito do apenso que lhe precede (-A).
7. Entendemos, assim, que a decisão da Mm.ª Juíza a quo, salvo melhor opinião e com o devido respeito, viola as normas previstas nos artigos 577.º, alínea i) e artigos 580.º e 581.º, do Código de Processo Civil”.

O requerido, notificado, não apresentou resposta.

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II- QUESTÕES A DECIDIR
Perante as conclusões das alegações da Recorrente há que apreciar as seguintes questões:
a) Nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC;
b) (In)existência de caso julgado.

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Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
São os seguintes os factos a considerar na presente decisão:
A) Por decisão de 30.11.2022, proferida no apenso A, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor (…), nascido em 17-11-2010, no que agora interessa, nos seguintes termos:
1 - O jovem (…) fica a residir junto da mãe. (…)
6 – A título de pensão de alimentos o pai pagará mensalmente a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros) até ao dia 8 (oito) de cada mês a que respeitar por transferência bancária para o IBAN que a progenitora indicar.
6.1 - Esta pensão será atualizada anualmente em janeiro de cada ano de acordo no valor de € 1,00 (um euro), a iniciar em janeiro de 2024.
7 - As despesas de saúde e educação, na parte não comparticipada, serão suportadas em partes iguais por cada um dos progenitores, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos. Para o efeito, no prazo de trinta dias após reembolso da comparticipação, o progenitor que fizer a despesa envia ao outro o comprovativo da despesa, que, por sua vez, paga a sua parte em igual prazo.
8 - As atividades extracurriculares deverão ser acordadas entre os progenitores, sendo as despesas suportadas em partes iguais pelos mesmos. Não existindo acordo serão suportadas por aquele que inscrever o jovem”;
B) Por requerimento de 29.12.2022, apresentado no apenso A, a progenitora veio “informar que o pai desde 30.11.2022 não pagou nada”;
C) Por despacho de 17.02.2023, proferido no apenso A, foi determinada a notificação da progenitora para “esclarecer quais os montantes em dívida até à presente data e a que título (se pensão de alimentos, se despesas) desde o dia 30-11-2022 (data em que esteve presente em Tribunal)”;
D) Em 30.06.2023, foi proferido o seguinte despacho: “Uma vez que a progenitora, regularmente notificada, nada disse e mostrando-se alcançado o escopo da presente ação de regulação, nada mais temos, neste conspecto, a determinar.
Proceda ao oportuno arquivamento dos autos”.
E) Em 05.07.2023, a progenitora instaurou o presente incidente, alegando:
1º Conforme os autos de regulação das responsabilidades parentais com n.º 327/22.0T8STC, aos quais o presente incidente deve ser apensado, em conferência de pais realizada a 30 de novembro de 2022, o requerido ficou obrigado a pagar a quantia mensal de € 120,00 (cento e vinte euros) a título de pensão de alimentos ao filho menor de ambos, (…), até ao dia 8 de cada mês a que respeitar (…).
3.º Sucede, porém, que desde essa altura, o requerido nunca efetuou qualquer pagamento da pensão de alimentos que está obrigado a pagar mensalmente ao seu filho menor. (…)
5.º Assim, permanecem em falta todas as prestações alimentícias vencidas desde a data da conferência de pais até à presente data, o que se traduz em 8 meses de incumprimento (dezembro de 2022 até julho de 2023), ascendendo à quantia de € 960,00 (novecentos e sessenta euros).
F) Por despacho de 13.07.2023, foi dispensada a realização de conferência de pais, determinando-se a notificação do requerido para, no prazo de 5 dias, alegar o que tivesse por conveniente quanto ao teor do requerimento inicial, com a expressa advertência de que, nada dizendo no prazo que lhe foi concedido, se considerariam confessados os factos alegados e julgado verificado o incumprimento em conformidade.
G) O requerido, notificado, nada disse.
H) Por despacho de 13.09.2023, foi determinada a realização de diligências tendo em vista o apuramento da existência de património e ou rendimentos do requerido.
I) Por decisão de 15.10.2023, o Tribunal proferiu a decisão recorrida, com o seguinte teor:
Em sede do apenso A, a progenitora veio requerer as pensões de alimentos em dívidas desde a data de 30-11-2022 até à data de 29-12-2022.
Porém, notificada para vir indicar quais os valores em dívida, nada disse, pelo que, o M.P. promoveu em 20-06-2023 ref.ª97114849: “Atento o silêncio da progenitora, presume-se que a situação de incumprimento informada a 29.12.2022 se mostra ultrapassada. Pelo exposto, promove-se o arquivamento dos autos”.
Tal promoção mereceu o seguinte despacho “Uma vez que a progenitora, regularmente notificada, nada disse e mostrando-se alcançado o escopo da presente ação de regulação, nada mais temos, neste conspecto, a determinar. Proceda ao oportuno arquivamento dos autos”.
Tal foi notificado à requerente em 05-07-2023, Ref.ª 97610466.
Ora, tal despacho foi proferido e quanto a tal esgotou-se o poder jurisdicional do julgador, tendo ainda transitado em julgado.
A impugnação da mesma deveria ter sido feita em sede de recurso ou reclamação, o que não sucedeu.
Pelo que, a matéria de facto subjacente ao mesmo encontra-se resolvida e não pode ser objecto de nova acção de alimentos, com os mesmos intervenientes e pelo mesmo período.
Pelo que, ocorrendo excepção dilatória de caso julgado, determina-se a absolvição da instância do Réu, nos termos do artigo 577.º, i), do C.P.C..
Custas pela requerente – artigo 527.º do C.P.C..
Registe e notifique”.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1. Da violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
A Recorrente sustenta que a decisão recorrida consubstancia uma decisão surpresa. É nula porque se pronuncia sobre questão jurídica sem facultar às partes a sua discussão. Diz que em momento algum foi aflorada a exceção dilatória de caso julgado ou, sequer, foi concedida às partes a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem, violando o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
Vejamos se procede a arguida nulidade, por inobservância do contraditório.

O artigo 3.º, n.º 3, do CPC, sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, dispõe que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como se lê no Ac. da Relação do Porto de 02.12.2019, em www.dgsi.pt:
«O referido n.º 3 do artigo 3.º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.
Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório – que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito – já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.
A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas[1] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[2]. Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes – pela possibilidade de pronúncia e resposta – leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição vimos seguindo, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo – quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito – tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[3].
É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o n.º 3 do referido artigo 3.º.
Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever fosse proferida.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 3.º, em casos de manifesta desnecessidade.
Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.
Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3 do artigo 3.º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 664.º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”[4].
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.
Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Com o aditamento do n.º 3 do artigo 3.º, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
A citada norma, introduzida pela Reforma de 1995/1996, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, consagrando mais uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, consagrando de forma ampla o direito a exprimir posição para influenciar a decisão.
Para que os referidos objetivos de melhor, mais rápida e definitiva composição dos litígios fossem alcançados, foi consagrado que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artigo 591.º, n.º 1, alínea b)).
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influi ativamente na decisão.[5]. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem.[6].
O dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.
Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.
Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[7].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[8].
Há decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[9], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade.
Quer se trate de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, casos existem em que as mesmas tinham obrigação de prever que o tribunal as podia decidir em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que, se as não suscitaram e não cuidaram de as discutir no processo, sib imputet, não se podendo, de modo equilibrado e razoável, considerar que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa. Esta pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão, embora juridicamente possível, não estivesse sido prevista nem configurada por aquela[10]. Se a decisão tomada pelo tribunal é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes e o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso novos, não alegados, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever, como possível, nenhuma decisão surpresa existe.
Ora, não era previsível que o tribunal enveredasse pela posição que seguiu, constituindo a decisão recorrida, meramente de forma, uma decisão surpresa. Constitui decisão surpresa a solução seguida pelo tribunal que se afasta “do alegado pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjetividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal, então as mesmas terão o direito de tentar refazer a atividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”, só aí se podendo considerar que o tribunal se apartou “do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador”[11].
Não existe decisão-surpresa quando a decisão e os seus fundamentos estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do abstratamente permitido pela lei e que possa ser admitido como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava legitimamente a contar.
Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.
Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[12].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[13]”.

No caso concreto, estamos perante uma decisão-surpresa. Não que, em abstrato, a questão do caso julgado não possa ser oficiosamente suscitada pelo Tribunal, mas deve sê-lo em termos que não surpreendam as partes.
No caso concreto, estamos no âmbito de um incidente de incumprimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais que constitui o apenso B. Segue-se, portanto, ao apenso A – a ação regulação do exercício das responsabilidades parentais – na qual o Tribunal, em 30.06.2023, proferiu uma decisão cujo objeto parece nem se sobrepor àquele que constitui o objeto do presente incidente.

Conhecer, assim, da exceção de caso julgado, sem que às partes tenha sido facultada a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão suscitada e sem que dos autos resultasse sequer o menor indício de que o Tribunal poderia decidir como veio a decidir – recordemos que foi determinado o prosseguimento do presente incidente num momento em que, no apenso A, já tinha proferida a decisão de arquivamento do processo, da qual resulta, na perspetiva do Tribunal recorrido, a verificação do caso julgado – viola o princípio do contraditório, na medida que não foi observado o dever de audição prévia, estando em causa factos e questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.

Ora, “A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no artigo 199.º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do n.º 1 do artigo 195.º, não constituindo nulidade de que o tribunal conheça oficiosamente, a mesma tem-se por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo – artigos 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1 [14].
A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no n.º 1 do artigo 195.º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (artigo 197.º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (artigo 199.º, n.º 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso [15]. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso [16]Ac. da Relação do Porto acima citado.

Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão ser mantida. Declarada a nulidade da decisão recorrida, fica com isso prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da apelação.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal de Relação de Évora em julgar procedente a apelação, declarando nula a decisão recorrida.
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Sem custas.
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Évora, 02.10.2025
Miguel Jorge Vieira Teixeira
Anabela Raimundo Fialho
Maria Gomes Bernardo Perquilhas