Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
290/24.3T8STR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ESTAFETA
PLATAFORMA DIGITAL
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
ARECT
PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA
Sumário: Sumário elaborado pela relatora (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

I – Mostra-se preenchida a al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem determina unilateralmente os critérios de fixação da remuneração do estafeta, pagando tal remuneração semanalmente.


II – Mostra-se preenchida a al. b) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem estabelece determinadas regras, de forma unilateral, relativas à prestação da atividade do estafeta, exigindo ainda o cumprimento de normas específicas para que este se possa inscrever na plataforma e impondo também a sujeição do estafeta a determinadas atividades de fiscalização durante a sua atividade, sendo ainda a Ré quem seleciona as propostas de entrega que aparecem no écran do telemóvel do estafeta, indicando-lhe os locais de recolha e de entrega.


III – Mostra-se preenchida a al. c) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem controla, em tempo real, a localização do estafeta, sendo esse controlo necessário para o exercício da sua atividade e para a seleção que a plataforma faz dos pedidos que lhe envia; e quem controla, através de um sistema de reconhecimento facial instalado na aplicação, a identidade do estafeta, durante o exercício da sua atividade.


IV – Mostra-se preenchida a al. e) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem tem a autoridade disciplinar para excluir ou desativar a conta em definitivo do estafeta, sempre que entenda que o mesmo não cumpriu os termos e condições que assumiu ao subscrever o contrato que lhe foi unilateralmente apresentado.


V – Mostra-se preenchida a al. f) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem gere a aplicação informática Uber Eats que o estafeta teve de instalar no seu telemóvel, aplicação informática essa que não só é um instrumento de trabalho fornecido pela Ré ao estafeta, como é o instrumento de trabalho mais importante deste, sem o qual a sua atividade não podia ser realizada.


VI – Estando preenchidas cinco presunções legais, nas quais especificamente se comprovou que o estafeta prestava uma atividade para a Ré, em troca de uma retribuição paga com caráter regular, encontrando-se sujeito a subordinação jurídica, quer através das normas unilateralmente impostas pela Ré quanto ao modo de exercício da atividade, quer através dos poderes exercidos pela Ré de controlo e supervisão da atividade efetuada, quer através da autoridade disciplinar consubstanciada na possibilidade de a Ré poder excluir ou desativar a conta do estafeta em definitivo, é de concluir pela existência de um contrato de trabalho.

Decisão Texto Integral: Proc. n.º 290/24.3T8STR.E1

Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1





Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório


O Ministério Público intentou ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos dos arts. 186.º-K, n.º 1, e seguintes, do Código de Processo do Trabalho e art. 15.º-A, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, na redação conferida pela Lei n.º 13/2023, de 03-04, contra as Rés “Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.”2 e “Contagiante Tradição, Lda.”3, solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente, por provada, e, em consequência, se reconheça a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a Ré “Uber Eats” e o trabalhador AA,4 com início em 31-08-2022, ou, subsidiariamente, se reconheça a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a Ré “Contagiante Tradição” e o trabalhador AA, com início em 31-08-2022.





A Ré “Uber Eats” veio contestar, invocando erro na forma do processo e inadmissibilidade da coligação passiva, solicitando, a final, a sua absolvição da instância, por procedência da exceção dilatória atípica derivada da anulabilidade da participação efetuada pela ACT aos serviços do Ministério Público; ou, subsidiariamente, a improcedência do pedido, por não provado; ou, subsidiariamente, a improcedente do pedido, por ilisão da presunção de existência de contrato de trabalho prevista no art. 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho.





Realizado o julgamento, foi proferida, em 11-07-2025, a respetiva sentença, onde, previamente, se indeferiram as exceções invocadas pela Ré, e se proferiu decisão de mérito, com o seguinte teor:

Pelo exposto julga-se a presente acção improcedente, por não provada e, consequentemente:

A) Absolvem-se ambas as rés dos respectivos pedidos.

*

Sem custas, dada a isenção do Digno Ministério Público (artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento de Custas Processuais).

*

Valor da causa: 30.000,01 (por aplicação analógica do artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Civil, dado estar em causa um interesse público no combate ao falso trabalho autónomo).

*

Registe e notifique, como previsto no artigo 186º-O, nº 9 do Código de Processo do Trabalho.




Não se conformando com a sentença, veio o Ministério Público interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:

1.ª

O artigo 12º-A do Código do Trabalho não afasta aplicação do artigo 12.º do CT e, à semelhança deste, basta-se com a verificação de duas caraterísticas que estabelece para que se tenha por verificada a presunção de laboralidade.

2.ª

Para poder exercer a atividade, ao registar-se na plataforma, o estafeta teve de indicar a área geográfica onde estava disponível para fazer as entregas, dentro das áreas geográficas onde a plataforma estivesse operacional.

3.ª

Quem determina a área onde o negócio se vai desenvolver é a empresa que o tem. O estafeta não tem qualquer possibilidade de determinar a área geográfica onde a plataforma vai estar operacional, a sua liberdade limita-se à de escolher um dos lugares onde a plataforma opera.

4.ª

Acresce que é a plataforma que indica ao estafeta o ponto de recolha e o ponto de entrega da encomenda e lhe define inicialmente a rota (e só esta é paga), pelo que se considera preenchida a caraterística do artigo 12º, n.º 1, alínea a) do CT.

5.ª

A aplicação informática é um instrumento de trabalho incorpóreo essencial, sem o qual não existiria relação entre o prestador da atividade e a plataforma enquanto sujeito da relação jurídica e é imprescindível que exista e que o prestador a ela continue a ter acesso para que a relação se mantenha.

6.ª

É através da aplicação que é feita toda a organização da atividade, pelo que a caraterística do artigo 12.º, nº 1, alínea b), do CT, assim como a característica da alínea f), do n.º 1, do artigo 12º-A do mesmo diploma legal, se têm por verificadas, uma vez que não se exige que todos os instrumentos pertençam ao beneficiário da atividade, como já acontecia com a presunção de laboralidade na Lei 99/2003 de 27 de agosto.

7.º

Estando preenchidas duas das caraterísticas prevista no art.º 12.º do CT (as alíneas a) e b) ), está verificada a presunção de laboralidade, mas se assim não fosse, sempre se teria de considerar que também estão verificadas as caraterísticas previstas no artigo 12º-A, n.º 1, alíneas a) b) c) d) e) e f) do CT.

8.º

A retribuição paga ao estafeta tem uma componente fixa que é determinada unilateralmente pela plataforma e tem uma parte variável que pode ter a colaboração do estafeta na sua determinação. Contudo essa parte variável é ainda encontrada a partir de um mínimo fixado pela plataforma, pelo que está verificada a caraterística da alínea a), do nº 1, do artigo 12º-A do CT.

A plataforma digital exerce o poder de direção, de gestão e organização da prestação de atividade e o poder de regulamentar a prestação de atividade em todos os aspetos que a envolvam.

10.º

Fá-lo quando define o processo de registo na aplicação, quando define quanto, quando e como paga o serviço de entrega sem intervenção ativa do prestador, que apenas pode alterar o valor a receber por quilómetro a partir de um mínimo fixado pela Ré Uber Eats, quando define ab initio um percurso de entrega e só esse é pago, quando cria um “radar de viagens” para “tabelar preços” e a intervir na prestação da atividade, estando assim verificada a caraterística da alínea b), do nº 1, do artigo 12º –A do CT.

11.º

A plataforma digital tem o poder de controlar e supervisionar a prestação de atividade incluindo em tempo real ou verificar a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica quando recolhe dados, incluindo, biométricos, com a geolocalização do prestador de atividade a partir do momento em que este se coloca online, quando disponibiliza uma funcionalidade que permite ao cliente final colocar a sua apreciação sobre a prestação de atividade do estafeta ( Feedback), pelo que está verificada a característica da alínea c), do nº 1, do artigo 12º –A do CT.

12.º

É a Ré Uber Eats que decide o uso que faz da informação que recolhe através da plataforma, não tendo o estafeta qualquer intervenção.

13.

Com a alínea d), do nº 1, do artigo 12.º- A do CT, entramos no domínio do controlo e das restrições à própria atividade e não à prestação propriamente dita. Se relativamente à escolha de horários, períodos de ausência, não há restrições, já no que respeita à utilização de subcontratados ou substitutos, nomeadamente partilha de contas, a plataforma impõe regras próprias a que o estafeta tem de obedecer, podendo mesmo impedir o acesso temporário à conta e ou o cancelamento definitivo da mesma, se não cumpridas pelo estafeta impedindo-o de trabalhar.

14.º

O poder disciplinar está presente com a sujeição do prestador de atividade à direção do empregador e é o critério distintivo principal entre o trabalhador subordinado e o independente.

15.º

O prestador de atividade está sujeito a um controlo do seu desempenho, está vinculado a um conjunto de regras impostas pelo proprietário da aplicação, que tem sobre ele o poder de lhe restringir o acesso à plataforma de forma temporária ou definitiva.

16.º

No âmbito da alínea e), do nº 1, do artigo 12.º- A do CT, essas possibilidades aparecem associadas ao poder disciplinar que por sua vez, remete, para o trabalho subordinado.

17.º

Atendendo ao grau de controlo que a plataforma exerce sobre o prestador, na prática é esta que detém o domínio da prestação, controlando como é exercida, estando o prestador sujeito às regras impostas através da plataforma, pelo que também esta caraterística se tem como verificada.

18.º

Para afastar a presunção de laboralidade, a prova tem de ser efetiva, contraprova, não bastando declarações negociais escritas afirmativas de que o prestador trabalha/ presta serviço para uma empresa, que “não é trabalhador” da Uber, insertas nos formulários elaborado unilateralmente pela Ré Uber Eats (contrato de adesão), feitos para conferirem uma aparência de autonomia a uma prestação que não querem ver qualificada como de trabalho subordinado.

19.ª

A presunção poderia ser ilidida com a demonstração do funcionamento do algoritmo. Algoritmo, em termos simples, é uma sequência de instruções lógicas que um computador pode seguir para executar uma tarefa específica. Essas instruções são a tradução em linguagem informática do contrato que as partes vão executar entre elas. A divulgação dessas instruções de “programação” assumem particular importância para a qualificação da relação contratual estabelecida entre as partes.

***

Em face do exposto, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que reconheça a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o prestador de atividade AA e a Ré Uber Eats Portugal Unipessoal Lda, com início desde 01.05.2023.

Porém Vossas Excelências farão, como sempre JUSTIÇA




A Ré “Uber Eats” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.





O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido admitido o recurso nos seus precisos termos, bem como os pareceres juntos pela Ré “Uber Eats”.


Após a ida aos vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.





II – Objeto do Recurso


Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.


No caso em apreço, a questão que importa decidir é:


1) Existência de um contrato de trabalho.





III – Matéria de Facto


O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. No âmbito de acção inspectiva levada a cabo pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) em 23 de Agosto de 2023, foi levantado auto por inadequação do vínculo que tutela a prestação de actividade no âmbito de plataforma digital, na relação entre a Ré Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. e AA, com o número de identificação fiscal ....

2. A 27.09.2023, pelas 21h00, AA estava à porta do estabelecimento Mc Donald’s de Santarém, sito em Santarém, a preparar-se para dar início à recolha de uma refeição ali confeccionada para, de seguida, a ir entregar ao cliente final.

3. AA executa a actividade de estafeta, de entrega rápida de refeições/géneros alimentares/outros produtos de retalho ao domicílio;

4. O que faz com recurso à app da 1.ª Ré desde 06 de Novembro de 2019, tendo-se registado a 30 de Outubro de 2019;

5. Usando o seu próprio telemóvel.

6. App esta onde teve que se inscrever, através da criação de um e-mail e a inserção de palavra passe e, só após este registo, é que começou a receber os pedidos de refeições, dentro da aplicação informática disponibilizada pela Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.

7. A ré “Contagiante Tradição, Lda.” dedica-se, entre outras, à actividade de entrega de comida ao domicílio. Transporte e entrega de pequenas encomendas ao domicílio e prestação de serviço e estafeta em veículos ligeiros. Outras actividades postais e de courier.

8. No âmbito dessa actividade, a 2.ª ré está registada na aplicação UberEats como “parceiro de frota”.

9. E agrega na sua conta vários estafetas, sendo que AA tem a sua própria conta.

10. A 1ª ré opera a plataforma ou aplicação informática (APP) Uber Eats em Portugal no endereço https://www.ubereats.com/pt. através da qual disponibiliza serviços à distância, a pedido de utilizadores e mediante o recebimento destes de uma importância em dinheiro.

11. Esta app faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas que desejam fazer entregas aos clientes.

12. Tanto os comerciantes, como os estafetas, como os clientes, são utilizadores da plataforma.

13. A 1ª ré compra os serviços de entrega oferecidos pelos estafetas na plataforma e revende-os aos clientes. (Alterado, conforme fundamentação infra)

14. E os estafetas, em seu nome, ou através de um intermediário, vendem os seus serviços de entrega e realizam-nas, conforme solicitado pelos clientes, através da Plataforma. (Eliminado, conforme fundamentação infra)

15. É a plataforma informática que negoceia os preços ou as condições com os titulares dos estabelecimentos aderentes e os clientes finais, sendo que estes pagam àquela plataforma e não a AA

16. A 1ª ré paga ao parceiro de frota, que em Agosto de 2023 era “Paisagem Recente, Lda.” os valores respeitantes às entregas efectuadas por AA que, por sua vez paga semanalmente ao mesmo, deduzindo o valor de 10%.

17. AA pode escolher os locais onde pretende exercer a actividade, tendo escolhido efectuar entregas em Santarém.

18. O valor que os estafetas recebem depende, nomeadamente, da área onde escolheram exercer a actividade e da distância a percorrer entre o ponto de recolha e o da entrega.

19. Este valor é fixado pela plataforma, tendo AA a possibilidade de definir o valor mínimo por km a partir do qual pretende que a plataforma lhe apresente entregas para efectuar e só através da plataforma esta pode ter acesso ao que vai ganhar em cada serviço que prestar.

20. AA pode recusar entregas, inclusivamente, depois de já as ter aceitado, sem que daí advenham sanções ou diminuição de apresentação de entregas.

21. AA escolhe os dias e horas em que pretende ligar-se à plataforma para fazer entregas, podendo estar meses sem se ligar, sem que tenha de apresentar justificação ou veja a sua conta desactivada ou limitada.

22. AA comprou e usa uma mochila térmica de cor verde, com o logótipo da Uber Eats, sendo que efectua as entregas em viatura própria.

23. A 1ª ré não obriga ao uso da referida mochila, podendo a mesma ter o logotipo de outra empresa, não estando AA obrigado ao uso de qualquer farda.

24. AA pode seguir a rotas que desejar, bem como utilizar os sistemas de navegação GPS (por exemplo, Google Maps e Waze) que preferir ou até não utilizar nenhum sistema de GPS.

25. A 1.ª ré, através da sua plataforma UberEats, determina os termos e condições que AA tem que cumprir na prestação da actividade de estafeta.

26. A 1.ª ré, por geolocalização - através de software instalado no telemóvel de AA - sabe, em tempo real, onde esta está, o que se mostra fundamental para que receba ofertas da plataforma digital adequadas à região onde se encontra, podendo ainda a 1ª ré, igualmente em tempo real, tomar conhecimento do tempo despendido por AA desde o momento em que é recebido um pedido de um cliente, a aceitação do mesmo por aquela e a entrega do pedido ao cliente.

27. AA, por vezes, tem que fazer, através de verificação biométrica de reconhecimento facial, o reconhecimento de que é o próprio, para impedir a utilização da conta por outrem (partilha de contas), condição que lhe foi imposta pela 1ª ré.

28. Sendo que o mesmo pode fazer-se substituir por outra pessoa através da funcionalidade “nomeação de substituto” na app da 1ª ré.

29. Caso AA não cumpra os termos e condições por si assumidas perante a 1.ª ré, esta pode, no limite, decidir pela sua exclusão e/ou desactivação em definitivo da conta de acesso da mesma à plataforma informática.

30. A ré pode também desactivar a conta por razões relacionadas com segurança (dos clientes ou devido a fraude).

31. A ré não tem como saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) nem quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.

32. Os estafetas podem usar outras plataformas concorrentes, inclusive ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na plataforma da 1ª ré, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.

33. AA alterou por várias vezes o parceiro de frota, por sua própria opção, desligando-se do parceiro em causa na app da 1ª ré e ligando-se a outro parceiro de frota.

34. A 1ª ré não fez entrevista a AA, nem solicitou o seu curriculum vitae para que o mesmo pudesse registar-se na app.


E deu como não provados os seguintes factos:

a) No momento id. em 2. BB obedecia a indicações da app UberEats. (Eliminada, conforme fundamentação infra)

b) Enquanto “Parceiro de Frota”, a 2.ª ré detém um número não apurado de acessos ao registo de estafetas na aplicação UberEats, que faculta aos interessados que não conseguem registar-se directamente nesta aplicação.

c) A organização, prestação e disponibilização do serviço enunciado em 10. é da exclusiva responsabilidade da 1.ª ré, no âmbito do seu modelo de negócio e da marca Uber Eats, o que contempla necessariamente a organização do serviço de AA e o respectivo pagamento, o qual é fixado unilateralmente pela 1.ª ré. (Eliminada, conforme fundamentação infra)

d) Através da 2.ª ré, a 1.ª ré procede à entrega dos pagamentos devidos aos estafetas pelo trabalho efectuado, permitindo assim à 2.º ré reter uma percentagem pelos registos iniciais facultados pela mesma aos estafetas.

e) AA presta a actividade de estafeta, distribuindo refeições nas zonas indicadas pela 2.ª ré, no caso, em Santarém, Almeirim e Vale de Santarém e que aquele não pode alterar por sua iniciativa.

f) A 1.ª ré, através da plataforma Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. verifica a qualidade da actividade de estafeta prestada por AA, nomeadamente através das avaliações dos prestadores de actividade que são dadas na plataforma pelos clientes finais.

g) Caso haja por parte dos clientes finais uma avaliação negativa, ou menos positiva, a ré pode aplicar sanções a AA, entre as quais, impedir temporariamente o seu acesso à plataforma informática e, no limite, decidir pela sua exclusão da mesma e/ou desactivação em definitivo da conta de acesso do mesmo à plataforma informática.

h) Não existe margem de liberdade por parte de AA para a prestação do serviço por outra via.




IV – Enquadramento jurídico


Aplicação do art. 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil


Compulsados os autos, constatou-se quanto aos factos dados como provados o seguinte:


O thema decidendum dos presentes autos consiste em apurar se estamos perante um contrato de trabalho ou um contrato de prestação de serviços. Deste modo, não deve ficar a constar na matéria dada como provada determinadas expressões conclusivas que tenham, em si mesmas, implicações jurídicas em qualquer um desses sentidos.


No caso em apreço, tal ocorre nos factos provados 13.º e 14.º, quando é feita menção à compra e venda dos serviços prestados pelos estafetas.


Assim, tais expressões de carácter jurídico-conclusivo terão de ser eliminadas,5 sendo alteradas pela descrição factual dessas atividades, passando a existir apenas o facto provado 13 e sendo eliminado o facto provado 14.


Deste modo, o facto provado 13 passa a ter a seguinte redação:

13. É a 1ª ré quem procede ao pagamento dos serviços de entrega efetuados pelos estafetas na plataforma, a solicitação efetuada pelos clientes dessa plataforma, pagamento esse que pode ser feito diretamente aos estafetas ou através de um intermediário.

Constatou-se ainda quanto aos factos dados como não provados o seguinte:


- O que consta da alínea a) da matéria dada como não provada reporta-se a considerações conclusivas e não a factos.


Efetivamente será em face do que tiver sido dado como provado que se pode concluir se o estafeta AA (e não BB, como ficou a constar), em 27-09-2023, estava, ou não, a obedecer a instruções da app UberEats.


Assim, esta alínea será eliminada do elenco dos factos não provados.


- O que consta da alínea c) da matéria dada como não provada reporta-se a considerações conclusivas e não a factos, a que acresce que tais considerações estão em profunda oposição com os factos provados 6.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 18.º, 19.º, 25.º e 29.º


Na realidade, não se compreende como é que se pode ter dado como provado, designadamente, que a Ré “Uber Eats” opera a plataforma ou aplicação informática Uber Eats, através da qual disponibiliza serviços à distância (facto provado 10), e que através dessa plataforma determina os termos e condições que AA tem que cumprir na prestação da atividade de estafeta (facto provado 25), para depois dar como não provado que a organização, prestação e disponibilização do serviço efetuado através da plataforma Uber Eats é da exclusiva responsabilidade da 1.ª ré, no âmbito do seu modelo de negócio e da marca Uber Eats, o que contempla necessariamente a organização do serviço de AA


Assim, também esta alínea será eliminada do elenco dos factos não provados.


Em conclusão:


- Altera-se o teor do facto provado 13, o qual passa a ter a seguinte redação:

13. É a 1ª ré quem procede ao pagamento dos serviços de entrega efetuados pelos estafetas na plataforma, a solicitação efetuada pelos clientes dessa plataforma, pagamento esse que pode ser feito diretamente aos estafetas ou através de um intermediário.

- Elimina-se o facto provado 14 e as alíneas a) e c) dos factos não provados.


1 – Existência de um contrato de trabalho


Considera o recorrente que as presunções previstas nas seis alíneas do art. 12.º-A do Código do Trabalho se mostram preenchidas, pelo que se deve concluir pela existência de um contrato de trabalho entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA com início a 01-05-2023.


Estipula o art. 12.º-A do mesmo Diploma Legal que:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.

3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.

4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.

6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.

7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.

8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.

9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.

10 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.

11 - Em caso de reincidência, são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias:

a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos;

b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.

12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.

Apreciemos.


A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

10. A 1ª ré opera a plataforma ou aplicação informática (APP) Uber Eats em Portugal no endereço https://www.ubereats.com/pt. através da qual disponibiliza serviços à distância, a pedido de utilizadores e mediante o recebimento destes de uma importância em dinheiro.

13. É a 1ª ré quem procede ao pagamento dos serviços de entrega efetuados pelos estafetas na plataforma, a solicitação efetuada pelos clientes dessa plataforma, pagamento esse que pode ser feito diretamente aos estafetas ou através de um intermediário.

15. É a plataforma informática que negoceia os preços ou as condições com os titulares dos estabelecimentos aderentes e os clientes finais, sendo que estes pagam àquela plataforma e não a AA

16. A 1ª ré paga ao parceiro de frota, que em Agosto de 2023 era “Paisagem Recente, Lda.” os valores respeitantes às entregas efectuadas por AA que, por sua vez paga semanalmente ao mesmo, deduzindo o valor de 10%.

18. O valor que os estafetas recebem depende, nomeadamente, da área onde escolheram exercer a actividade e da distância a percorrer entre o ponto de recolha e o da entrega.

19. Este valor é fixado pela plataforma, tendo AA a possibilidade de definir o valor mínimo por km a partir do qual pretende que a plataforma lhe apresente entregas para efectuar e só através da plataforma esta pode ter acesso ao que vai ganhar em cada serviço que prestar.

Em face dos factos supra elencados, constata-se que é a Ré “Uber Eats” quem determina todas as condições relativas à remuneração devida pela atividade prestada pelo estafeta AA Efetivamente, é esta Ré quem gere a plataforma informática Uber Eats, sendo através desta plataforma que esta Ré negoceia os preços ou as condições com os titulares dos estabelecimentos aderentes e com os clientes finais, negociação essa da qual o estafeta AA se mostra excluído. Acresce que o valor auferido pelo estafeta AA é fixado pela plataforma e depende de vários fatores pela Ré “Uber Eats”, unilateralmente, fixados, como sejam o da localidade onde é efetuada a atividade e a distância a percorrer entre o ponto de recolhe e o da entrega, em face do valor por quilómetro que fixa. Esta Ré dá, porém, ao estafeta AA a possibilidade de estabelecer um valor mínimo superior por quilómetro ao valor base constante da plataforma. O estafeta AA apenas tem acesso ao que vai ganhar por cada entrega que realiza através da informação que lhe é fornecida pela referida plataforma informática.


Acresce que é a Ré Uber Eats quem procede ao pagamento semanal ao estafeta, seja de forma direta, seja através de um intermediário, limitando-se este a retirar 10%, a título de comissão, desse valor, e a proceder à entrega do remanescente ao estafeta.


Pelo exposto, considera-se preenchida a al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A.


A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

3. AA executa a actividade de estafeta, de entrega rápida de refeições/géneros alimentares/outros produtos de retalho ao domicílio;

4. O que faz com recurso à app da 1.ª Ré desde 06 de Novembro de 2019, tendo-se registado a 30 de Outubro de 2019;

5. Usando o seu próprio telemóvel.

6. App esta onde teve que se inscrever, através da criação de um e-mail e a inserção de palavra passe e, só após este registo, é que começou a receber os pedidos de refeições, dentro da aplicação informática disponibilizada pela Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.

25. A 1.ª ré, através da sua plataforma UberEats, determina os termos e condições que AA tem que cumprir na prestação da actividade de estafeta.

26. A 1.ª ré, por geolocalização - através de software instalado no telemóvel de AA - sabe, em tempo real, onde esta está, o que se mostra fundamental para que receba ofertas da plataforma digital adequadas à região onde se encontra, podendo ainda a 1ª ré, igualmente em tempo real, tomar conhecimento do tempo despendido por AA desde o momento em que é recebido um pedido de um cliente, a aceitação do mesmo por aquela e a entrega do pedido ao cliente.

27. AA, por vezes, tem que fazer, através de verificação biométrica de reconhecimento facial, o reconhecimento de que é o próprio, para impedir a utilização da conta por outrem (partilha de contas), condição que lhe foi imposta pela 1ª ré.

Em face desta factualidade, resulta que a Ré “Uber Eats” estabelece determinadas regras, de forma unilateral, relativas à prestação da atividade do estafeta AA (designadamente a utilização de um telemóvel com internet e a ligação à aplicação Uber Eats de forma a poder receber os pedidos), exigindo ainda o cumprimento de normas específicas para que este possa exercer a atividade, isto é, para que se possa inscrever na plataforma, de maneira a exercer a sua atividade (concretamente, a instalação no telemóvel da aplicação Uber Eats, a sua inscrição na plataforma, nos termos que lhe indica para a criação da sua conta pessoal) e impondo também a sujeição do estafeta a determinadas atividades de fiscalização durante a sua atividade (como é o caso da aceitação de um sistema de geolocalização, para poder tomar conhecimento do tempo despendido por AA desde o momento em que é recebido um pedido de um cliente, a aceitação do mesmo por aquele e a entrega do pedido ao cliente; e da aceitação de um sistema de verificação biométrica de reconhecimento facial, para impedir a utilização da sua conta por outrem).


Por fim, é esta Ré quem procede à escolha dos clientes e das propostas de entrega que aparecem no écran do telemóvel do estafeta, sendo sempre aquela quem fornece a este os locais específicos de recolhe e de entrega dos pedidos aceites, ou seja, quem determina os termos e condições que o estafeta AA tem que cumprir na prestação da sua atividade.


Pelo exposto, existindo diversas regras impostas por esta Ré ao estafeta quanto ao exercício da sua atividade, mostra-se preenchida a al. b) do n.º 1 do art. 16.º-A.


A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

24. AA pode seguir a rotas que desejar, bem como utilizar os sistemas de navegação GPS (por exemplo, Google Maps e Waze) que preferir ou até não utilizar nenhum sistema de GPS.

26. A 1.ª ré, por geolocalização - através de software instalado no telemóvel de AA - sabe, em tempo real, onde esta está, o que se mostra fundamental para que receba ofertas da plataforma digital adequadas à região onde se encontra, podendo ainda a 1ª ré, igualmente em tempo real, tomar conhecimento do tempo despendido por AA desde o momento em que é recebido um pedido de um cliente, a aceitação do mesmo por aquela e a entrega do pedido ao cliente.

27. AA, por vezes, tem que fazer, através de verificação biométrica de reconhecimento facial, o reconhecimento de que é o próprio, para impedir a utilização da conta por outrem (partilha de contas), condição que lhe foi imposta pela 1ª ré.

Da análise dos mencionados factos resulta que a Ré “Uber Eats”, a partir do momento em que o estafeta AA entra na aplicação Uber Eats, controla, em tempo real, a sua localização, sendo esse controlo necessário para o exercício da sua atividade e para a seleção que a plataforma faz dos pedidos que lhe envia. Acresce que sempre que o estafeta tem o sistema de geolocalização ligado, esta Ré controla, através dessa aplicação, o tempo de entrega dos pedidos e o percurso efetuado pelo estafeta. De igual modo, esta Ré controla, através de um sistema de reconhecimento facial instalado na aplicação, a identidade do estafeta, durante o exercício da sua atividade, tendo o referido estafeta de se submeter a esse reconhecimento facial sempre que tal lhe é solicitado por esta Ré.


Importa ainda referir que, apesar de o estafeta poder, após receber o pedido, optar por não utilizar qualquer sistema de navegação GPS, e concretamente o sistema que consta da aplicação Uber Eats, em todo o caso, se o fizer, prejudica o bom funcionamento da referida aplicação e a própria lógica inerente a este tipo de serviço. Na realidade, este tipo de serviço pressupõe que o cliente e a própria Ré “Uber Eats” possam acompanhar, desde o momento da recolha do pedido pelo estafeta, todo o trajeto deste até ao destino, podendo, assim, prever o tempo de chegada. Esta possibilidade revela-se, por isso, contraditória com aquilo que este tipo de serviço promove.


Assim, em face destes dois sistemas – o de geolocalização e o de reconhecimento facial – esta Ré controla e supervisiona, em tempo real, a atividade prestada pelo estafeta AA, pelo que a al. c) do n.º 1 do art. 16.º-A também se encontra preenchida.


A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

20. AA pode recusar entregas, inclusivamente, depois de já as ter aceitado, sem que daí advenham sanções ou diminuição de apresentação de entregas.

21. AA escolhe os dias e horas em que pretende ligar-se à plataforma para fazer entregas, podendo estar meses sem se ligar, sem que tenha de apresentar justificação ou veja a sua conta desactivada ou limitada.

28. Sendo que o mesmo pode fazer-se substituir por outra pessoa através da funcionalidade “nomeação de substituto” na app da 1ª ré.

32. Os estafetas podem usar outras plataformas concorrentes, inclusive ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na plataforma da 1ª ré, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.

Resulta, assim, da factualidade apurada que o estafeta AA é livre quanto à escolha do horário que entende praticar, quanto aos períodos de ausência, quanto à possibilidade de aceitar ou recusar os pedidos que lhe aparecem no écran do telemóvel, quanto à possibilidade de trabalhar para terceiros, inclusive para empresas concorrentes, podendo também fazer-se substituir por outro estafeta registado na plataforma, sem ficar sujeito à aplicação de sanções.


Esse é o entendimento do acórdão do STJ proferido em 17-09-2025, no processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1,6 entendimento esse que passámos a acompanhar.


Pelo exposto, importa concluir que não se mostra preenchida a al. d) do n.º 1 do art. 12.º-A.


A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta


Nesta parte iremos apenas apreciar o poder disciplinar, visto que os outros poderes laborais, como o são o poder de direção e o poder regulamentar, já se mostram inseridos na al. b) do n.º 1 do art. 12.º-A.


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

29. Caso AA não cumpra os termos e condições por si assumidas perante a 1.ª ré, esta pode, no limite, decidir pela sua exclusão e/ou desactivação em definitivo da conta de acesso da mesma à plataforma informática.

30. A ré pode também desactivar a conta por razões relacionadas com segurança (dos clientes ou devido a fraude).

Em face da factualidade dada como provada, resulta, à evidência, que a Ré “Uber Eats” exerce autoridade disciplinar sobre o estafeta AA, visto que, sempre que entenda, de forma unilateral, que o mesmo não cumpriu os termos e condições que assumiu ao subscrever o contrato que lhe foi unilateralmente apresentado, pode excluí-lo ou desativá-lo em definitivo da sua conta de acesso àquela plataforma informática. De igual modo, a referida Ré pode desativar a conta deste estafeta se considerar, unilateralmente, que existem razões relacionadas com a segurança dos clientes ou devido a fraude.


Pelo exposto, apenas nos resta concluir pelo preenchimento da al. e) do n.º 1 do art. 12.º-A.


Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação


Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:

2. A 27.09.2023, pelas 21h00, AA estava à porta do estabelecimento Mc Donald’s de Santarém, sito em Santarém, a preparar-se para dar início à recolha de uma refeição ali confeccionada para, de seguida, a ir entregar ao cliente final.

3. AA executa a actividade de estafeta, de entrega rápida de refeições/géneros alimentares/outros produtos de retalho ao domicílio;

4. O que faz com recurso à app da 1.ª Ré desde 06 de Novembro de 2019, tendo-se registado a 30 de Outubro de 2019;

5. Usando o seu próprio telemóvel.

6. App esta onde teve que se inscrever, através da criação de um e-mail e a inserção de palavra passe e, só após este registo, é que começou a receber os pedidos de refeições, dentro da aplicação informática disponibilizada pela Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.

10. A 1ª ré opera a plataforma ou aplicação informática (APP) Uber Eats em Portugal no endereço https://www.ubereats.com/pt. através da qual disponibiliza serviços à distância, a pedido de utilizadores e mediante o recebimento destes de uma importância em dinheiro.

18. O valor que os estafetas recebem depende, nomeadamente, da área onde escolheram exercer a actividade e da distância a percorrer entre o ponto de recolha e o da entrega.

19. Este valor é fixado pela plataforma, tendo AA a possibilidade de definir o valor mínimo por km a partir do qual pretende que a plataforma lhe apresente entregas para efectuar e só através da plataforma esta pode ter acesso ao que vai ganhar em cada serviço que prestar.

22. AA comprou e usa uma mochila térmica de cor verde, com o logótipo da Uber Eats, sendo que efectua as entregas em viatura própria.

23. A 1ª ré não obriga ao uso da referida mochila, podendo a mesma ter o logotipo de outra empresa, não estando AA obrigado ao uso de qualquer farda.

25. A 1.ª ré, através da sua plataforma UberEats, determina os termos e condições que AA tem que cumprir na prestação da actividade de estafeta.

26. A 1.ª ré, por geolocalização - através de software instalado no telemóvel de AA - sabe, em tempo real, onde esta está, o que se mostra fundamental para que receba ofertas da plataforma digital adequadas à região onde se encontra, podendo ainda a 1ª ré, igualmente em tempo real, tomar conhecimento do tempo despendido por AA desde o momento em que é recebido um pedido de um cliente, a aceitação do mesmo por aquela e a entrega do pedido ao cliente.

27. AA, por vezes, tem que fazer, através de verificação biométrica de reconhecimento facial, o reconhecimento de que é o próprio, para impedir a utilização da conta por outrem (partilha de contas), condição que lhe foi imposta pela 1ª ré.

Em total concordância com o defendido nos acórdãos do STJ proferidos em 17-09-2025 no processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1 e em 28-05-2025 no processo n.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1,7 entendemos não só que a aplicação informática Uber Eats que o estafeta AA teve de instalar no seu telemóvel é um instrumento de trabalho fornecido pela Ré “Uber Eats”, como é o instrumento de trabalho mais importante, sem o qual a atividade desenvolvida pelo estafeta não podia ser realizada. É através dessa aplicação que o estafeta se inscreve, se submete às regras que lhe são impostas e que desenvolve a sua atividade, tomando conhecimento dos pedidos que lhe são apresentados e da remuneração a que tem direito, aceitando tais pedidos também nessa aplicação. De igual modo, através dessa aplicação toma conhecimento do local de recolha e do local de entrega, bem como do percurso a efetuar entre um e outro.


Assim, ainda que as mochilas, o meio de transporte e o telemóvel não sejam fornecidos pela Ré “Uber Eats”, o instrumento de trabalho mais importante – a aplicação informática Uber Eats – é gerido por esta e é cedido ao estafeta AA se e enquanto esta Ré quiser.


Pelo exposto, mostra-se igualmente preenchida a al. f) do n.º 1 do art. 12.º-A.


Mostram-se, assim, preenchidas cinco das seis alíneas prevista do art. 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho.


Importa, então, apurar se a Ré “Uber Eats” conseguiu ilidir a presunção de existência de contrato de trabalho entre ela e o estafeta AA assente nas cinco alíneas supramencionadas, uma vez que estamos perante uma presunção ilidível, nomeadamente através da prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata (n.º 4 do art. 12.º-A).


Conforme bem refere o acórdão do STJ proferido em 03-10-2025 no processo n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1:8

A presunção legal implica a inversão do ónus da prova, ficando o trabalhador dispensado de fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral (art. 350º, nº 1, do C. Civil), embora seja admitida prova em contrário para a ilidir (nº 2 do mesmo artigo), mediante a prova pela contraparte de “factos positivos excludentes da subordinação”24, ou seja, da existência de trabalho autónomo ou da falta de qualquer elemento essencial do contrato de trabalho.25 Elementos que, à luz do art. 11º, do CT, são: i) obrigação de prestar uma atividade a outrem; ii) retribuição: e iii) subordinação jurídica.

De igual modo, nas palavras do acórdão do TRL proferido em 11-02-2015 e citado pelas autoras Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira,9 a presunção de existência de contrato de trabalho mostra-se ilidida se os contraindícios “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica”.


Vejamos.


A relação contratual existente entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA possui elementos factuais que se afastam da natureza típica de um contrato de trabalho e que esta Ré logrou provar, como sejam, a não obrigatoriedade de o estafeta cumprir horário; a inexistência de o estafeta ter de cumprir um período mínimo de trabalho, seja diário, seja semanal, seja mensal; a possibilidade de o estafeta aceitar, ignorar ou recusar as propostas que lhe surgem no écran do telemóvel, podendo recusar tais entregas mesmo após as ter aceitado; a possibilidade de o estafeta poder trabalhar, em simultâneo, para outras empresas de serviços de entrega, sem ter necessidade do consentimento da Ré “Uber Eats”; a possibilidade de se fazer substituir por outros estafetas, desde que igualmente inscritos na aplicação informática desta Ré; e a possibilidade de desligar o GPS durante o exercício da sua atividade.


Ora, quanto a esta última, como já se referiu, tal possibilidade é contrária à própria funcionalidade deste tipo de serviço, não tendo a Ré “Uber Eats” provado que o estafeta AA alguma vez tenha usado desta “possibilidade”. De igual modo, também não provou que o referido estafeta alguma vez se tenha feito substituir ou que tenha trabalhado, em simultâneo, para qualquer outra empresa concorrente. Por fim, também não se provou que proposta o referido estafeta rejeitou, designadamente após as aceitar.


Efetivamente, não possuindo o estafeta qualquer possibilidade de negociar o contrato que subscreve, visto que se limita a aceitar um contrato pré-definido, aquilo que poderia relevar para afastar as presunções (no sentido da existência de um contrato de trabalho entre esta Ré e o estafeta AA), sempre seria a situação, em concreto, deste estafeta e não a existência de meras cláusulas contratuais instituídas unilateralmente pela Ré “Uber Eats” e em prol dos seus interesses.


Acresce que a inexistência de horário de trabalho e a possibilidade de os estafetas poderem aceder à aplicação informática apenas quando o pretendam, sem terem de cumprir um qualquer período mínimo diário, semanal ou mensal, podendo, inclusive, não aceder à referida aplicação durante períodos prolongados (sendo que, no caso, nada se apurou, em concreto, sobre períodos de ausências deste estafeta), tendo ainda a possibilidade de aceitar, ignorar ou recusar os pedidos que lhes são enviados para o écran do telemóvel, são características inerentes a este tipo de atividade e isso não impediu o legislador nacional (bem como as instituições europeias) de prever específicas situações que permitem inferir a presunção de um contrato de trabalho. Ora, no caso em apreço, em face da factualidade provada, a relação contratual estabelecida entre esta Ré e o estafeta AA levou ao preenchimento de cinco presunções legais, nas quais especificamente se comprovou que o estafeta prestava uma atividade para aquela, em troca de uma retribuição paga com caráter regular (e ainda que a remuneração seja à peça, todos os elementos da remuneração são fixados por esta Ré, inclusive as possibilidades concedidas ao estafeta de poder alterar o pagamento por quilómetro), encontrando-se sujeito a subordinação jurídica, quer através das normas unilateralmente impostas por esta Ré quanto ao modo de exercício da atividade, quer através dos poderes exercidos pela referida Ré de controlo e supervisão da atividade efetuada, quer através da autoridade disciplinar consubstanciada na possibilidade desta Ré poder excluir ou desativar a conta do estafeta em definitivo na aplicação informática Uber Eats.


Pelo exposto, apenas nos resta concluir que os contraindícios existentes não se revelam suficientemente fortes, quer pela sua quantidade, quer pela sua impressividade, para abalar a presunção resultante do preenchimento das cinco alíneas do art. 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, pelo que a relação contratual estabelecida entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA é laboral.


Em face do teor do pedido formulado em sede recursiva, o início dessa relação laboral fixar-se-á em 01-05-2023.


É, por isso, totalmente procedente o recurso interposto.








V – Decisão


Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que absolveu a Ré “Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.” do pedido, e, em sua substituição, condena-se a referida Ré a reconhecer que entre si e o estafeta AA foi celebrado um contrato de trabalho, por tempo indeterminado, com início em 01-05-2023.


No demais, mantém-se a sentença recorrida.


Custas a cargo da Ré “Uber Eats” (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).


Notifique.



Évora, 29 de outubro de 2025

Emília Ramos Costa (relatora)

Paula do Paço

Mário Branco Coelho

__________________________________________

1. Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.↩︎

2. Doravante “Uber Eats”.↩︎

3. Doravante “Contagiante Tradição”.↩︎

4. Doravante AA↩︎

5. Acórdão do STJ, proferido em 29-04-2015, no âmbito do processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎

6. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎

7. Consultáveis em www.dgsi.pt.↩︎

8. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎

9. Em Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª edição, Almedina, 2023, p.100.↩︎