Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
850/22.7T8FAR-D.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: TESTEMUNHA
PRERROGATIVA DE DEPÔR POR ESCRITO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – De acordo com o art. 503º, n.º 3, do CPC, a parte que indique como testemunha uma das pessoas a quem é reconhecida a prerrogativa de depor por escrito deve especificar os factos sobre que pretende o depoimento.
2 – Não tendo a parte cumprido esse ónus, e pretendendo a testemunha indicada fazer uso dessa prerrogativa, deve o juiz convidar a parte a aperfeiçoar o requerimento probatório, fazendo a indicação em falta.
3 – O indeferimento da prestação desse depoimento nos termos previstos na lei não pode ocorrer sem que à parte seja dada essa oportunidade de suprir o incumprimento inicial do ónus a seu cargo e verificada que seja a falta desse suprimento.
4 – A aplicação de multa processual pressupõe a existência de uma conduta violadora de disposições legais que estatuam essa consequência, pelo que a decisão condenatória tem que referir concretamente qual o fundamento legal considerado.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
1 – RELATÓRIO
A autora, AA, instaurou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra os réus BB e CC, todos com os sinais dos autos, correndo a mesma no Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1.
No final da sua contestação o réu BB indicou como testemunha, entre outras, a DD, que é Bispo ..., sem, no entanto, indicar qual a matéria a que este devia depor (o réu refere inclusivamente que ele deveria ser ouvido por teleconferência).
Prosseguindo o processo os seus trâmites, no dia 01-07-22, na sequência de requerimento da testemunha mencionada, no sentido de pretender prestar depoimento por escrito, ao abrigo do art. 503º, n.º 2, al. h), do Código de Processo Civil, foi proferido o seguinte despacho:
Com vista à prestação de depoimento escrito pelo Sr. Bispo ..., notifique o 1.º réu para indicar os factos sobre os quais incidirá tal depoimento.”
E posteriormente, no dia 11-07-2022, na audiência prévia, em resposta a requerimento da autora em que esta defendia que não deveria ser admitida a inquirição por escrito do Sr. Bispo ..., por não terem sido indicados os factos sobre os quais o mesmos deveria incidir, foi proferido despacho que declarou “indeferido o requerido por manifesta extemporaneidade (porquanto, quando foi notificado da indicação da testemunha em causa, pelo réu BB, a autora nada disse) e por inadmissibilidade legal (considerando impender sobre o tribunal o ónus de convidar a parte a indicar os factos sobre os quais a testemunha irá depor, tanto que, quando a testemunha é indicada, a parte desconhece se ela irá usar da prerrogativa legal que lhe assiste), condenando-se a autora numa multa processual que se fixa em 2 UC´s (€ 204.00), sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia, pelo incidente causado e transtornos decorrentes sobre o normal decorrer da diligência.
Reagindo contra o decidido, a autora apresentou no dia 31-08-2022 requerimento de recurso, no qual pretende impugnar o conteúdo dos dois referidos despachos nos segmentos acima transcritos.
Tendo sido inicialmente rejeitado o recurso interposto, veio o mesmo a ser admitido nesta Relação, após reclamação nos termos previstos no art. 643º do CPC.
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2 – A APELAÇÃO
Sintetizando os fundamentos da sua apelação, apresenta a autora as seguintes conclusões:
A) “O disposto no n.º 3 do art.º 503.º do C.P.C. deve ser interpretado como um ónus imposto à parte que indica como testemunha qualquer uma das entidades referidas nos n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito legal, o qual, se não for cumprido pela parte, preclude o direito de a testemunha ser ouvida por escrito;
B) Os dois doutos despachos recorridos são assim ilegais por violação do disposto dos art.ºs 503.º, n.ºs 2, al. h) e 3 e 6.º, n.º 1 ambos do C.P.C. e por consequência devem ser revogados, e ordenado o desentranhado do depoimento escrito da referida entidade entretanto já junto aos autos.
C) Não existe qualquer extemporaneidade na arguição pela A., na primeira instância, da violação do n.º 3 do art.º 503.º C.P.C. pelo R. BB nem o Tribunal tem o ónus de convidar a parte cumprir o ónus violado, por tal contender com o disposto no 6.º, n.º 1 ambos do C.P.C..
D) Declarada que seja a ilegalidade dos dois despachos acima identificados nos termos e com os fundamentos alegados, e com douto suprimento, revogada terá também de ser a multa processual em que a A. foi condenada.
E) Caso assim não se entenda, ainda assim a multa processual em que a Recorrente foi condenada mostra-se no nosso entender excessiva e por isso deve ser substancialmente reduzida, segundo o prudente arbítrio do Tribunal ad quem sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que a Recorrente goza.
Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência devem ser revogados os dois despachos recorridos, consequentemente ordenado o desentranhado do depoimento escrito da referida entidade entretanto já junto aos autos e revogada a condenação em multa processual da Recorrente;
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, ainda assim a multa processual em que a Recorrente foi condenada mostra-se excessiva e por isso deve ser substancialmente reduzida, segundo o prudente arbítrio do Tribunal ad quem sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que a Recorrente goza.”
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3 – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
A – Respondeu o réu CC, sustentando que as decisões recorridas não merecem qualquer reparo (tanto no que se refere ao convite ao réu para indicar os factos sobre que incidiriam o depoimento do Sr. Bispo ... como ao indeferimento da pretensão da recorrente de não ser aceite o depoimento por escrito do Sr. Bispo ..., e bem assim quanto à multa aplicada).
Considera o recorrido que os poderes-deveres de gestão processual do juiz ao nível de regularização da instância e no suprimento de deficiências ou omissões em ordem à justa e célere composição do litígio impunham a orientação seguida e que a oposição deduzida pela tardia deduzida pela autora justificou a condenação em multa.
B – De igual forma contra-alegou o réu CC, argumentando no mesmo sentido: deverão ser confirmadas as decisões impugnadas, por se mostrarem conformes aos princípios e às normas legais aplicáveis.
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4 – OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso sintetizam-se no seguinte:
- Se a não indicação pela parte da matéria sobre a qual deverá incidir o depoimento de uma testemunha que goza da prerrogativa de depor por escrito tem efeito preclusivo, não podendo depois ser admitido o depoimento escrito dessa testemunha;
- Se a oposição deduzida pela parte contrária no caso concreto constitui fundamento para a condenação em multa que foi decretada.
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
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5 – O DIREITO
Uma vez que não se colocam no presente recurso quaisquer questões sobre factos, bastando-se para decisão do mérito deste a consideração das incidências e tramitação processual acima relatadas à luz das pertinentes normas jurídicas, impõe-se agora apreciar as razões da recorrente.
Recorde-se antes do mais o que está em discussão.
Ao contestar a acção interposta pela agora recorrente, o réu BB indicou prova testemunhal, referindo nomeadamente como testemunha o “Sr. Bispo DD, Bispo ... da diocese do ..., Largo ..., ... ... - a inquirir por teleconferência”.
Tendo sido proferido despacho saneador a 07-05-2022 (Referência: 124479426), neste foi dispensada a realização de audiência prévia e marcada audiência final – e nele foi esse rol de testemunhas expressamente admitido, como os demais, sem que até então tivesse existido qualquer manifestação de oposição a esse respeito.
Posteriormente, a 12-06-2022, o réu BB apresentou requerimento dizendo em resumo que ao indicar “a testemunha DD, colocou a “inquirir por teleconferência”, quando na realidade o que se pretendia era “a notificar para comparência”, solicitando-se assim a sua alteração.”
E por seu turno a autora, ora recorrente, apresentou requerimento, a 22-06-2022, solicitando a realização de audiência prévia, ao abrigo do art. 593º, n.º 3, do Código de Processo Civil, declarando pretender aí reclamar do despacho saneador proferido.
Entretanto, por ter sido notificado para comparência (no saneador tinha ficado logo convocada audiência de julgamento) o Sr. Bispo ... deu entrada a requerimento no qual dizia que tendo sido convocado para comparecer na qualidade de testemunha vinha requerer que o seu depoimento fosse prestado por escrito, em conformidade com a prerrogativa prevista no art. 503º, n.º 2, al. h), do CPC.
Por novo requerimento de 29-06-2022, na sequência de notificação ordenada pela Sra. Juíza para que esclarecesse qual a sua reclamação, a autora insistiu pela realização de audiência prévia e declarou que nesta apresentaria a sua reclamação.
Foi nesta sequência que surgiu despacho judicial, a 01-07-2022, que desencadeou a polémica que nos cumpre dirimir.
Neste despacho a Sra. Juíza, reagindo ao requerimento do Sr. Bispo ..., determinou que “com vista à prestação de depoimento escrito pelo Sr. Bispo ..., notifique o 1.º réu para indicar os factos sobre os quais incidirá tal depoimento” e reagindo ao requerimento da autora decidiu “alterar a finalidade da diligência designada para dia 11/7/2022, pelas 13h40m, passando a considerar-se que a mesma se destina à realização de audiência prévia, com as finalidades previstas no n.º 3, do artigo 593.º, do C.P.C.
Ou seja, em vez de audiência final de julgamento passou a estar marcada para o dia 11-07-2022 a realização de “audiência prévia”.
Sublinhe-se que na sequência deste despacho o réu BB acatou o convite, indicando os factos os factos sobre os quais incidiria o depoimento do
Sr. Bispo ..., e este veio realmente a apresentar o seu depoimento escrito, que veio a ser junto ao processo.
Na audiência prévia supra referida, como consta da respectiva acta, veio a autora a manifestar a sua oposição a que fosse admitido nos autos o depoimento escrito do Sr. Bispo ..., considerando que o direito a inquirir a testemunha estava precludido pelo não cumprimento do ónus previsto no art. 503º do CPC, e veio a ser proferido o despacho que por um lado rejeitou essa oposição e condenou a autora pelo incidente, nos termos que foram transcritos no relatório inicial.
Aqui chegados, torna-se necessário recordar o que dispõe o art. 503º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe genérica “Prerrogativas de inquirição”.
Estabelece esta norma no seu n.º 1 quais as entidades que gozam da prerrogativa de ser inquiridas na sua residência ou na sede dos respectivos serviços, e no n.º 2 quais as entidades que “gozam de prerrogativa de depor primeiro por escrito, se preferirem, além das entidades previstas no número anterior”.
Na al. h) deste número 2 do art. 503º incluem-se entre aqueles que gozam desta prerrogativa de depor por escrito, se assim preferirem, “os altos dignitários de confissões religiosas”.
Foi esta prerrogativa legal que o Sr. Bispo ... pretendeu exercer, e o tribunal veio a atender (o depoimento escrito em causa foi depois junto aos autos, e admitido expressamente).
A polémica suscitada pela recorrente centra-se no n.º 3 do citado art. 503º, a qual dispõe que “ao indicar como testemunha uma das entidades designadas nos números anteriores, a parte deve especificar os factos sobre que pretende o depoimento”.
O réu que indicou a testemunha em causa não cumpriu este ónus, e a recorrente entende que essa omissão arrasta um efeito preclusivo: assim, já não pode ser admitido nos autos o aludido depoimento escrito.
Todavia, a recorrente não indica qual o fundamento legal de onde faz derivar essa preclusão, e por nossa parte julgamos que tal conclusão não pode aceitar-se.
Com efeito, em ponto algum a lei processual estabelece a consequência para a falta de cumprimento desse ónus pelo sujeito processual que indica a testemunha. A solução tem que ser encontrada no espírito do sistema, recorrendo aos princípios e às normas processuais no seu conjunto.
Ora no processo civil actualmente em vigor o juiz está adstrito a um dever de gestão processual, consagrado essencialmente no art. 6º, nº 2, do CPC, e que se relaciona muito directamente com os princípios estabelecidos no art. 411º do mesmo Código: ao primado da demanda da verdade material, com vista à justa composição do litígio, e quando necessário com recurso ao inquisitório.
Ou seja, no caso concreto, tendo a testemunha (que já havia sido expressamente admitida como tal) declarado pretender fazer uso da prerrogativa conferida pela al. h) do n.º 2 do art. 503º do CPC, mas verificando o juiz que não tinha sido previamente indicada pela parte a matéria sobre a qual devia incidir o depoimento, outra coisa não devia ter feito que não fosse precisamente o convite para que fosse suprida tal omissão.
Reconhecendo-se, como pacificamente se aceita nos autos, a existência dessa prerrogativa legal, então podia e devia o juiz fazer o convite que fez à parte que tinha indicado a testemunha, para que especificasse os pontos a esclarecer nesse depoimento.
Por força do art. 6º, n.º 2, do CPC, deve o juiz assegurar o andamento do processo em condições de regularidade e de celeridade, dentro dos limites da lei, para isso promovendo as diligências que julgue necessárias; e julga-se que um convite ao aperfeiçoamento do requerimento probatório, como aconteceu, inclui-se certamente nesse dever de gestão processual atribuída por lei ao juiz.
Salienta-se que a parte acatou o convite ao aperfeiçoamento, pelo que não se trata aqui das consequências a extrair do eventual desrespeito pelo convite, com ou sem cominação expressa, tendo em conta o imperativo de respeitar a prerrogativa legal concedida à testemunha; tais hipóteses não se verificam no caso.
A este propósito, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 13-06-2018, no processo n.º 143/14.3T8PFR-B.P1, em que foi relator Jorge Seabra, disponível em www.dgsi.pt.
Nesse douto aresto, raciocinando sobre o incumprimento de idêntico ónus de discriminação da matéria factual existente a respeito das declarações de parte que sejam requeridas, acaba por declarar-se que na realidade “incumbe ao respectivo requerente indicar no respectivo requerimento de prova, de forma discriminada, os factos por si alegados sobre que deverão incidir as suas declarações de parte, em conformidade com o disposto no art. 452º, n.º 2 ex vi do art. 466º, n.º 2, ambos do CPC.”; não o fazendo, e “sendo dirigido à parte convite no sentido de proceder a tal discriminação e não sendo esse convite aceite e correspondido, deve ser indeferida a produção de declarações de parte por inobservância (culposa) do referido ónus processual; “a consagração do aludido ónus processual e do consequente efeito cominatório preclusivo (após convite endereçado à parte e não correspondido) não se apresenta como excessivo ou desproporcionado e, como tal, não afronta os direitos constitucionais do acesso ao direito, do direito à prova e à tutela jurisdicional efectiva consagrados no art. 20º da Constituição da República.”
Dizendo de outro modo, o falado efeito preclusivo só não colide com os direitos constitucionais do acesso ao direito, do direito à prova e à tutela jurisdicional efectiva quando houve um convite endereçado à parte para suprir a sua omissão e esse convite não foi correspondido.
A mesma orientação foi seguida no Acórdão da Relação do Porto de 06-02-2020, no processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1, relator Paulo Duarte Teixeira, disponível na mesma base de dados: assim, deve o tribunal convidar a parte a corrigir esse lapso; caso a parte decida não aceitar esse convite terá de suportar as consequências do incumprimento desse ónus com a rejeição desse meio de prova.
Mas tais consequências resultam do não acatamento do convite para suprir a falta, e não imediatamente da omissão verificada.
Regressando à situação dos autos, e como já ficou dito, julgamos acertada a posição assumida pela Sra. Juíza do processo, ao endereçar o convite ao réu para indicar qual a matéria a que deveria depor por escrito o Sr. Bispo ..., e ao admitir nos autos o depoimento escrito apresentado por esta testemunha, questões estas que vinham impugnadas no recurso.
Improcede, portanto, a apelação nessa parte, sendo de confirmar as decisões recorridas a respeito do aludido depoimento.
Diferentemente se julga o respeitante à condenação em multa decretada na mesma audiência prévia.
Na realidade, a condenação proferida não invoca qualquer norma legal que a suporte, mencionando, todavia, que a mesma seria “pelo incidente causado e transtornos decorrentes sobre o normal decorrer da diligência”.
A diligência em causa era a audiência prévia em curso, e o incidente referido depreende-se que seria a oposição manifestada pela autora ao convite dirigido ao réu para indicar o objecto do depoimento da testemunha Bispo ... e à própria admissão desse depoimento por escrito.
Conclui-se assim que a julgadora encarou a intervenção processual da autora nessa audiência prévia, exprimindo pretensões que foram indeferidas, como sendo um incidente anómalo, estranho à normal tramitação processual.
Constata-se, todavia, que a condenação não menciona custas pelo incidente, mas antes é designada como sendo uma condenação em multa.
Ora, como resulta do art 3º do Regulamento das Custas Processuais, as custas processuais e as multas são realidades diversas (o que, observa-se, deixa sem sentido falar-se em condenação em multa “sem prejuízo do apoio judiciário”, pois que este nunca poderia abranger as multas, realidade de natureza sancionatória).
No n.º 1 do citado artigo 3º estatui-se que as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte, e o nº 2 referem-se separadamente as multas e outras penalidades, referindo que as mesmas “são sempre fixadas de forma autónoma e seguem o regime do presente Regulamento”.
Dito isto, diga-se também que a aludida intervenção processual não reveste a natureza de incidente anómalo, não devendo por isso ser tributada em taxa de justiça, apesar de decaimento da autora nas suas pretensões, e por outro lado não existe nela fundamento para qualquer condenação em multa.
Como bem explica Manuel Bargado, no Acórdão da Relação de Évora de 06-05-2020, no processo n.º 88/19.0T8VRS.E1, publicado em www.dgsi.pt:
O incidente processual é a ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual, que origine um processado próprio, isto é, com um mínimo de autonomia, ou dito de outro modo, uma intercorrência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo próprio da ação principal.”
Como é fácil de concluir, na situação presente a autora apenas apresentou na audiência de 11-07-2022 as reclamações que tinha anunciado querer fazer na sequência da sua notificação do despacho de 01-07-2022, fundamento que justificava inclusivamente o seu requerimento nos termos do n.º 3 do art. 593º CPC para a realização dessa audiência prévia, requerimento que foi aliás deferido.
Assim, tanto no que se refere a prazo de reacção, como no respeitante ao objecto dessa reacção, a manifestação de discordância da autora quanto à orientação processual que implicava a admissão do depoimento escrito em discussão situa-se no percurso normal da tramitação processual normal, nada tendo de anómalo.
Como é comum entendimento, consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide; e em nosso entender é pacífico que na situação presente nada ocorreu susceptível de integrar essa figura jurídica.
Não havendo, pois, lugar a tributação por qualquer incidente, julga-se também que não houve qualquer fundamento para a aplicação de multa.
Recorda-se que as multas processuais são referidas nos arts 27º e 28º do Regulamento das Custas Processuais. Diz nomeadamente o art 27º, nº 4, que “o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”.
Como decorre do excerto citado, é pressuposto dessa condenação a existência de uma qualquer violação da lei, e que esta tenha correspondentes repercussões processuais (vejam-se como exemplos os arts. 417º, n.º 2, ou 542º, ambos do CPC). Porém, a decisão recorrida ora em apreço não contém qualquer fundamentação de direito a que a situação seja subsumível, em ordem a justificar a condenação em multa.
Não indica, interpreta ou aplica normas jurídicas subjacentes à decisão, e os seus próprios termos não permitem deduzir o quadro normativo que a suporta (para além da caracterização conclusiva da actuação processual da autora, referindo a sua manifesta extemporaneidade e inadmissibilidade legal, e a aparente justificação da multa pelo “incidente causado e transtornos decorrentes sobre o normal decorrer da diligência”).
Nestes termos, afigura-se que a aludida condenação em multa é inteiramente desprovida de base legal, pelo que deve ser declarada sem efeito, procedendo o recurso de apelação neste particular.
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6 - DECISÃO
Pelo que fica dito, decide-se julgar improcedente a presente apelação na parte respeitante ao depoimento escrito do Sr. Bispo ..., confirmando as decisões proferidas a esse respeito que vinham impugnadas.
Julga-se, porém, procedente a apelação no respeitante à multa aplicada à recorrente, declarando esta sem efeito.
Custas pela apelante (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Évora, 15 de Junho de 2023
José Lúcio
Maria Adelaide Domingos
Ana Isabel Mascarenhas Pessoa