Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
159/19.3GBCCH.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: INSTRUÇÃO
CRIME DE VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
CARACTERIZAÇÃO
PROVAS
PROVA EMPRESTADA
DECLARAÇÕES PRESTADAS NOUTROS PROCESSOS
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O crime de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152.º-B do Código Penal, respeita às condutas que por ação ou por omissão sejam violadoras das regras de segurança e com isso criadoras de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem.
II. Caracteriza-se por ser um crime de perigo concreto, que tanto pode ter lugar por via de ação como por via de omissão, e decorrendo a tutela dos bens jurídicos (vida, integridade física e saúde psíquica e mental) desde momento anterior ao início dos trabalhos destinados à realização da obra, com a prática de (ou a omissão de) certos atos incrementadores do risco de lesão de tais bens jurídicos.

III. Sendo um crime específico próprio, na medida em que tem em vista a prática de factos (ou a omissão de factos) por quem tem um dever especial de agir para acautelar o perigo.

IV. O tipo objetivo consiste na sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a sua vida, integridade física ou saúde, com violação dos deveres emanados de regras previstas na lei ou nos regulamentos.

V. Denotando o tipo subjetivo três dimensões: quando o agente age com dolo de perigo (§ 1.º), quando age com negligência de perigo (§ 2.º) ou quando age com dolo de perigo e negligência em relação ao resultado agravante (§ 3.º e 4.º).

VI. A omissão dos deveres legais que impendem sobre a entidade empregadora, sociedade comercial, cuja realização competia ao seu gerente acautelar, estende-se a ambos, refletindo-se a mesma na atividade e responsabilidade destes (artigo 11.º, § 2.º, al. a), § 4.º e § 7.º CP).

VII. Não podem valorar-se no processo penal declarações testemunhais prestadas num outro processo não penal, confrontando as testemunhas do processo penal com o que terão declarado no processo não penal, como se foram prestadas no mesmo processo.

VIII. Essa «prova emprestada» é inaproveitável, na exata medida em que a chamada prova testemunhal «circulada» ou «migrada» de processos sem as garantias do processo penal não é válida neste, conforme desde logo decorre dos artigos 125.º, 355.º e 356.º CPP e 32.º, § 1.º da Constituição.

Decisão Texto Integral:
- Relatório

a. No termo do inquérito o Ministério Público acusou AA; e BB, Lda., ambos com os sinais dos autos, imputando ao primeiro a prática, como autor, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado, «previsto no artigo 152.º-B, § 1.º, 2.º e 4.º, al. b) do Código Penal (CP), conjugado com o que se dispõe nos artigos 281.º, § 1.º, 2.º e 3.º do Código de Trabalho, no artigo 15.º, § 1.º e 2.º, als. a), b), c), d), § 3.º, § 4.º e § 10.º, da Lei n.º 102/2009, com a redação dada pela Lei n.º 3/2004, de 28 de janeiro; no artigo 20.º, no art.71.º, 72.º-A e 73.º, § 1.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, e artigo 67 do Decreto Lei n.º 41/81, de 11 de agosto de 1958). Imputando a segunda arguida o mesmo ilícito, com as assinaladas referências normativas, nos termos do artigo 11.º, § 2.º, al. a), § 4.º e § 7.º CP.»

Os arguidos requereram a abertura da instrução, por considerarem inexistir nexo causal entre a sua própria conduta e o sinistro, pois os factos que levaram à ocorrência desta não lhes serem imputáveis na medida em que ocorreram à sua revelia, sem o seu consentimento e até sem o seu conhecimento, mas serem causa de atuação de CC e da sociedade DD, Lda. Requerendo, em consequência, a sua não pronúncia e a pronúncia dos arguidos CC e da sociedade DD, Lda., relativamente aos quais o Ministério Público arquivou o processo.

Recebidos os autos em Juízo, na circunstância no ….º Juízo (1) de Instrução Criminal de …, procedeu-se à instrução, no termo da qual o Mm.o Juiz considerou não ter resultado suficientemente indiciado que tenha sido o arguido AA a dar instruções aos trabalhadores (designadamente ao sinistrado) para executarem os trabalhos dos quais resultou a fatalidade em referência, nem sequer que ele tivesse tido conhecimento do início desses trabalhos naquela data, pelo que não há nexo causal entre a conduta do arguido AA e o perigo a que o ofendido foi exposto e, consequentemente, ao resultado morte que daí adveio, de onde não se lhe pode assacar responsabilidade criminal por este ilícito. O que de igual modo exclui a responsabilidade criminal da arguida sociedade, pois esta advinha da atuação do arguido AA que em conformidade com a acusação, teria agido em nome e no interesse desta, na qualidade de seu gerente, nos termos e para os efeitos do artigo 11.º, § 1.º, 2.º, al. a) e 4.º CP.

b. Inconformado com tal decisão o Ministério Públio interpôs o presente recurso, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª A questão que importa dilucidar no presente recurso consiste em saber se os elementos probatórios contidos nos autos indiciam suficientemente ou não que o arguido AA cometeu um crime de violação de regras de segurança p. e p. pelos arts. 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b, 14º, nºs 1 e 3, 15º, 26º, 3ª parte, todos do CP, conjugados com os arts. 281.º, n.º1, 2, 3 do Código de Trabalho, o art. 15.º, n.º1, n.º2, a), b), c), d), n.º3, n.4, n.º 10, da Lei n.º 102/2009, com a redação dada pela Lei n.º 3/2004, de 28 de Janeiro; o art. 20.º, o art.71.º, o art. 73.º, n.º1 e art. 72.ºA da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, o art. 67 do Decreto Lei n.º 41/81 de 11 de Agosto de 1958, e que a arguida BB, Lda é criminalmente responsável pela prática do mesmo crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo artigos 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b, por referência ao artigo 11.º, n.ºs 2, al. a), 4, 7, todos do Código Penal e demais preceitos legais indicados quanto à imputação ao primeiro arguido.

2.ª Está em causa no presente recurso o douto despacho de não pronúncia, proferido em 08.09.2022, referência …, no qual se concluiu que “(…) não se indicia suficientemente que tenha sido o arguido AA a dar instruções aos trabalhadores (incluindo o sinistrado) para executarem os trabalhos dos quais resultou a fatalidade que aqui se conhece, nem tão pouco se indicia suficientemente que este tivesse tido conhecimento do início desses trabalhos nessa data.”

3.ª Tendo-se ainda concluído no mesmo despacho ora em recurso que não há relação causal entre a conduta do arguido AA e o perigo a que o ofendido foi sujeito e, consequentemente, ao resultado morte que daí adveio, de onde não se lhe pode assacar responsabilidade criminal por este ilícito.”

4.ª Para, também se excluir “(…) a responsabilidade criminal da arguida sociedade, pois esta advinha da responsabilidade do arguido AA que, nos termos da acusação, teria agido em nome e no interesse desta, na qualidade de seu gerente, ou seja, pessoa que ocupa “posição de liderança” na sociedade, nos termos e para os efeitos do artigo 11º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 4, do Código Penal.

5.ª Reconhecendo-se a complexidade da matéria e da análise da intervenção dos arguidos no conjunto global dos factos e das circunstâncias indiciadas, bem como, ponderando-se o resultado dos factos, a morte de um trabalhador por inobservância de regras de segurança que deveriam ter sido implementadas e obstado a esse desfecho entende-se que, em concreto, pode verificar-se contradição entre a fundamentação e a douta decisão sub judice.

6.ª O Ministério Público proferiu despacho final, no qual, para além do mais, deduziu acusação contra o arguido AA e contra a arguida BB, Lda. porquanto considerou suficientemente indiciados os factos objetivos e subjetivos que elencou na acusação formulada nos autos, com base nos quais entendeu indiciar-se que:

- incorreu o arguido AA, na prática, em autoria e na forma consumada, de um crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelos artigos 14.º, n.ºs 1 e 3, 15.º, 26.º, 3.ª parte, 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b), todos do Código Penal conjugados com os arts. 281.º, n.º1, 2, 3 do Código de Trabalho, o art. 15.º, n.º1, n.º2, a), b), c), d), n.º3, n.4, n.º 10, da Lei n.º 102/2009, com a redação dada pela Lei n.º 3/2004, de 28 de Janeiro; o art. 20.º, o art.71.º, o art. 73.º, n.º1 e art.72.ºA da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, o art. 67 do Decreto Lei n.º 41/81 de 11 de Agosto de 1958; e que,

- a sociedade “BB, Lda” é criminalmente responsável pelo crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo artigos 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b, por referência ao artigo 11.º, n.ºs 2, al. a), 4, 7, todos do Código Penal (conjugados com os arts. 281.º, n.º1, 2, 3 do Código de Trabalho, o art. 15.º, n.º1, n.º2, a), b), c), d), n.º3, n.4, n.º 10, da Lei n.º 102/2009, com a redação dada pela Lei n.º 3/2004, de 28 de Janeiro; o art. 20.º, o art.71.º, o art. 73.º, n.º1 e art.72.ºA da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, o art. 67 do Decreto Lei n.º 41/81 de 11 de Agosto de 1958).

7.ª Afigura-se existir contradição entre o ponto 9 da matéria considerada indiciada “9. No dia 30.04.2019 pelas 10h:30, EE encontrava-se a trabalhar para a sociedade arguida (destaque e sublinhado da signatária), no local da Herdade de …, freguesia …, sita na …, em …, em execução das tarefas necessárias à colocação de uma nova cancela, mediante instalação de poste de madeira, na entrada da antedita Herdade.” e a fundamentação do douto despacho recorrido.

8.ª Ou seja, se por um lado se reconhece que a relação entre o dono da obra e os trabalhadores não era típica face ao tipo de empreitada de construção concreta também se considerou a partir do depoimento da testemunha FF que o dono da obra era “(…) “patrão de facto” in loco, quase como se de uma cedência de trabalhadores se tratasse” com relações de confiança informais que alteram a dinâmica de poder e controlo que resulta do contrato de trabalho e dos seus vínculos jurídicos.”

9.ª Toda esta situação atípica, de disponibilidade da afetação dos trabalhadores por CC para a execução da empreitada em apreço já se verificava há algum tempo e era do pleno conhecimento do arguido AA que a aceitava, mas não o desonerava do dever de garantir o cumprimento das regras de segurança, por ser entidade patronal, independentemente das concretas circunstâncias da prestação de trabalho por parte do trabalhador falecido.

10.ª Nessa medida o arguido AA e a sociedade BB, Lda. afigura-se, salvo o devido respeito, deveriam ter sido pronunciados por referência às imputações jurídico–penais que concreta e respetivamente lhe foram assacadas, termos em que se requer a revogação do despacho de não pronúncia e a sua substituição por despacho de pronúncia dos arguidos.

No entanto, Vossas Excelências melhor decidirão conforme for de JUSTIÇA!»

c. Admitido o recurso, os arguidos/acusados responderam pugnando pela sua improcedência, aduzindo, que:

I. É convicção dos arguidos que o despacho de não pronúncia não merece qualquer reparo e muito menos padece de qualquer contradição, mas antes labora o Ministério Público em erro porquanto faz uma análise deficiente, bastante superficial e redutora daquilo que foi a prova produzida em instrução.

II. Já na fase de inquérito o Ministério Público laborou em erro grave e grosseiro ao ter arquivado o processo quanto aos então arguidos DD, LDA. e CC com o fundamento de que “(…) não se prefigura ilustrado o nexo de causalidade adequado entre a conduta e/ou omissão daqueles e a dinâmica do evento, tendo por assente, sempre, a dimensão da obra (…)”;

III. Porquanto os aqui arguidos carrearam para os autos prova indiciária suficiente para se concluir sem grande esforço e com o minino de honestidade intelectual, exatamente o oposto;

IV. O Ministério Público ao não acusar os supra identificados arguidos, afastou do processo precisamente aqueles que foram os responsáveis pelo desfecho fatídico que originou a morte de EE;

V. Na Quinta … era o dono da obra CC que dava ordens e instruções aos trabalhadores da Sociedade Arguida – FF e EE - sobre aquilo que deveriam ou não fazer e, bem assim, o modo como deveriam executar tais trabalhos;

VI. O arguido AA sabia que os referidos trabalhadores estavam na Quinta … a efetuar trabalhos para o dono da obra CC e que este lhes dava ordens sobre o modo de execução do trabalho e da disponibilidade daqueles para seguirem as suas ordens nos trabalhos a realizar na Quinta …;

VII. Fruto da relação de confiança existente, o arguido AA conformava-se que a situação na Quinta … se passasse desta forma uma vez que todas as questões, nomeadamente, as relacionadas com a segurança estavam já asseguradas pelo dono da obra;

VIII. Nos trabalhos a realizar na Quinta …, o dono da obra CC, no fundo, punha e dispunha dos já identificados trabalhadores e com a autorização e concordância do arguido AA, sócio gerente da sociedade arguida BB;

IX. O dono da obra não tinha qualquer poder ou legitimidade e muito menos autorização ou concordância do arguido AA para alterar o local de trabalho daqueles trabalhadores e mandar executar um determinado trabalho – que deu origem ao acidente mortal – sem ter, previamente, estabelecido e acordado o início desses trabalhos e o modo de execução dos mesmos – o que não aconteceu;

X. Não foi por ordens ou instruções do arguido AA – emitidas na qualidade de legal representante da Sociedade arguida BB, LDA. – que o ofendido se encontrava a executar os trabalhos que deram origem ao fatídico acidente nas conhecidas circunstâncias de tempo e lugar;

XI. O arguido AA – na qualidade de representante legal da sociedade arguida – não teve conhecimento que nessas circunstâncias de tempo e lugar o ofendido estivesse nesse local a executar tais trabalhos, sem que previamente tivessem sido definidas as condições de segurança necessárias para o efeito;

XII. Foi o dono da obra CC que por sua livre e espontânea vontade, de forma unilateral e sem ter consultado ninguém nem tão pouco tentado obter o consentimento ou a autorização do arguido AA, que ordena aos trabalhadores a mudança de local de trabalho;

XIII. Foi o dono da obra CC que ordena aos supra identificados trabalhadores a execução e o modo de execução, inclusive, fornecendo-lhes os seus instrumentos de trabalho, da famigerada tarefa que deu origem ao falecimento de EE;

XIV. Foi o próprio dono da obra CC que entende que o facto de estar uma pedra de grandes dimensões perto do local onde ordenou os trabalhadores abrirem um buraco, não constituía qualquer perigo;

XV. E tudo isto à total revelia do sócio gerente da sociedade arguida BB – o arguido AA - visto que o dono da obra – CC - nem sequer tentou obter o seu consentimento para a realização e o modo de realização de tais trabalhos.

XVI. Não existiu qualquer conduta, ativa ou omissiva da parte do arguido AA que tenha dado causa a esse perigo concreto e que resultou no óbito de EE.

XVII. Consequentemente, o arguido AA não tinha o ónus de garantir o cumprimento de regras de segurança de uma obra que não deu ordens para a realizar e nem tão pouco teve conhecimento do início das mesmas, tendo a mesma sido iniciada e executada à sua completa revelia;

XVIII. Não há relação causal entre a conduta do arguido AA e o perigo a que o ofendido foi sujeito e, consequentemente, ao resultado morte que daí adveio, de onde não se pode assacar responsabilidade criminal por este ilícito.

XIX. Tal exclui também a responsabilidade criminal da arguida sociedade, pois esta advinha da responsabilidade do arguido AA que, nos termos da acusação, teria agido em nome e no interesse desta, na qualidade de seu gerente, ou seja, pessoa que ocupa “posição de liderança” na sociedade, nos termos e para os efeitos do artigo 11º, n.º 1 e 2, al. a) e 4 do Código Penal.

Nestes termos e deste modo, não assiste qualquer razão ao Recorrente, motivo pelo qual se afigura não merecer qualquer reparo o douto despacho de não pronúncia recorrido.

Assim farão, V. Exas. a esperada e costumada JUSTIÇA!»

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, emitiu parecer nos termos seguintes:

«Ponderando os termos da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, concordando-se com a substância dos argumentos ali explicitados, manifesta-se o parecer de que deve este recurso obter provimento, revogando-se a decisão recorrida.»

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, nada se acrescentou.

Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência, importando conhecer e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º CPP), desse modo delimitando o âmbito do recurso. De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos haver apenas uma questão aportada ao conhecimento desta instância: - saber se os autos contêm indícios suficientes da autoria pelos arguidos AA; e BB, Lda., de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado, previsto no artigo 152.º-B, § 1.º, 2.º e 4.º, al. b) CP, conjugado com as demais normativos indicados.

B. A acusação do Ministério Público, colocada em crise pela decisão recorrida, tem o seguinte teor:

«1. A “BB, Lda.”, ora arguida, é uma sociedade por quotas, contribuinte fiscal n.º …, cujo objecto social consiste na reparação e construção de edifícios.

2. A 30.04.2019, bem como nos anos anteriores, o arguido desempenhava as funções de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, praticando diversos actos intrínsecos à gestão da sociedade, nomeadamente, os respeitantes à observância dos princípios e obrigações gerais da entidade empregadora previstos na lei, no que respeita à segurança no trabalho.

3. O arguido, em representação da sociedade arguida, estava legalmente obrigado a identificar e avaliar os riscos, bem como a promover as condições de segurança adequadas à realização de trabalhos, designadamente, avaliando os riscos próprios de cada tarefa a executar com a consequente, informação e formação aos trabalhadores das medidas de prevenção a aplicar, coordenando em segurança pelo exercício da actividade, disponibilizando equipamentos adequados, para tanto, contratando serviços organizados em matéria de segurança e segurança no trabalho e da formação adequada dos trabalhadores, idónea a alertá-los para os riscos inerentes à actividade e a informá-los sobre a forma de a executar em segurança.

4. EE era trabalhador da sociedade arguida mediante vínculo assente em contrato de trabalho de termo incerto desde 6.12.2018, exercendo as funções inerentes à categoria de servente de construção civil, sob as ordens, direcção e fiscalização do arguido e no interesse do ente colectivo identificado.

5. Por contrato de empreitada, a sociedade “DD, Lda.”, adjudicou à sociedade arguida, designadamente, os seguintes trabalhos a executar no local da Herdade …, freguesia …, sita em …, em …:

a) Instalação de 8 bebedouros para gado, em alvenaria, de 2,00x0,80x0,50;

b) Colocação de nova cancela de entrada.

6. O arguido, em nome e interesse da sociedade arguida celebrou tal contrato de empreitada, pese embora, saber que não tinha organizados os serviços de segurança no trabalho, nem contratado tais serviços a empresa da especialidade.

7. O arguido, na qualidade de gerente da sociedade arguida, decidiu que tais trabalhos seriam executados por EE e por FF, durante o mês de Abril de 2019.

8. No dia 15.03.2019, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, deslocou-se à Herdade …, acompanhado do trabalhador FF e de CC, e procederam à verificação no terreno dos trabalhos a executar, nomeadamente, o local de colocação de nova cancela, tendo, para o efeito, constatado o sítio onde seria instalado o poste de madeira e verificado a existência no local de uma pedra, com cerca de 2,10 metros de comprimento, 80 centímetros de largura e 1,60 metros de comprimento, e com peso de 2 a 4 toneladas.

9. No dia 30.04.2019 pelas 10h:30, EE encontrava-se a trabalhar para a sociedade arguida, no local da Herdade …, freguesia …, sita na …, em …, em execução das tarefas necessárias à colocação de uma nova cancela, mediante instalação de poste de madeira, na entrada da antedita Herdade.

10. No local, junto ao sítio onde estava a ser aberto o buraco, pelo ofendido, encontravam-se quatro pedras, a mais próxima, com 2,10 metros de comprimento, com cerca de 80 centímetros de largura, 1,60 metros de comprimento e cerca de 2 a 4 toneladas de peso.

11. O terreno, em que o ofendido trabalhava e onde se encontrava a mencionada pedra era composto por terra e gravilha, sem consistência.

12. Assim, abriu a vítima um buraco no solo, com cerca de 35/40 cms por 35/40 para colocação de pedra e cimento e implantação de poste de madeira, a encher com cimento e que serviria para fixar a cancela, sem entivação do solo, com recurso a ferramentas manuais, utilizando uma pá e um instrumento vulgarmente conhecido como “abre covas”, desprovido de equipamentos mecânicos, como seja, perfurador que permitiria ao sinistrado, desde logo, não se posicionar ao nível do solo.

13. De seguida, de forma não concretamente apurada, enquanto o ofendido se encontrava no interior do buraco, a referida pedra rolou e caiu sobre o mesmo, soterrando-o, provocando-lhe lesões traumáticas que lhe causaram a morte imediata.

14. Competia ao arguido verificar as condições de segurança de todos os equipamentos de trabalho, elaborar um plano para a sua conformidade, dar formação/sensibilizar todos os colaboradores para os riscos a que se encontram sujeitos e para os procedimentos de higiene e segurança a adoptar, averiguar as condições do terreno onde procederia à escavação e movimentação de terras, informar os trabalhadores sobre os riscos existentes no local de trabalho, logo no momento da admissão do trabalhador e início do desempenho, adotando uma estratégia correcta da execução da tarefa, o que implicaria, inclusive, a utilização de maquinaria pesada, como escavadoras ou retroescavadoras.

15. O arguido ao omitir a implementação dos mecanismos e instrumentos necessários a garantir a segurança colectiva e individual na zona do sinistro, não dispondo de serviços organizados em matéria de segurança no trabalho, não selecionando o tipo de equipamento adequado a cada tarefa agiu em violação do dever de cuidado, que se lhe impunha observar, o que podia e devia ter feito e era capaz de assegurar.

16. O arguido, sabedor de que os trabalhos na Herdade …, decorreriam no mês de Abril, com a duração previsível de duas semanas, não efectou qualquer análise dos equipamentos adequados para a execução dos referidos trabalhos, aferindo da necessidade de recorrer a equipamentos mecânicos para a abertura de buraco para a colocação do poste.

17. O arguido não deu qualquer instrução ao sinistrado sobre os equipamentos de trabalho a utilizar na abertura do buraco para colocação do poste, nem sobre as regras de segurança a observar.

18. As referidas tarefas, que os trabalhadores, entre os quais, o ofendido, executavam, sob as ordens do arguido e no interesse da sociedade arguida, faziam-no contrariando normativos imperativos de segurança no trabalho, mormente o art. 281.º, n.º1, 2, 3 do Código de Trabalho, o art. 15.º, n.º1, n.º2, a), b), c), d), n.º3, n.4, n.º 10, da Lei n.º 102/2009, com a redação dada pela Lei n.º 3/2004, de 28 de Janeiro; o art. 20.º, o art.71.º, o art. 73.º, n.º1 e art. 72.ºA da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, o art. 67 do Decreto Lei n.º 41/81 de 11 de Agosto de 1958.

19. Como consequência directa e necessária desta violação, por parte dos arguidos, das normas legais de segurança em vigor, o ofendido EE sofreu, designadamente, as seguintes lesões traumáticas: cabeça múltiplas placas escoriações apergaminhadas, dispersas na cabeça e hemi face direita, infiltração sanguínea generalizada no tegumento pilosos e periósteo que cobre a abóbada craniana; fractura do occipita, hemorragia subdural e suaracnoideia envolvendo o encéfalo; tórax e abdómen múltiplas placas escoriações apergaminhadas, com vários formatos, tamanhos e direcções, dispersas na região peitoral e abdómen; membros superiores, cluna vertebral fractura da 5.º vértebbra dorsal .

20. Tais lesões, crânio meningo encefálicas, toraco abdomnoais e raqui medulares, no seu conjunto determinaram directa e necessariamente a morte do ofendido.

21. O arguido agiu, de forma livre, deliberada e consciente, por conta e no interesse da sociedade arguida, na execução da resolução de não da observância das normas legais de segurança no trabalho e, consequente, não fornecimento aos seus trabalhadores dos meios e conhecimentos adequados para a laboração.

22. Sabia, destarte, da omissão do cumprimento daqueles princípios e obrigações patronais, bem como que, em virtude de tal omissão, os seus trabalhadores eram expostos a riscos desnecessários para a sua vida, integridade física e/ou saúde, e, ainda assim, não se coibiu de o fazer, violando os deveres de cuidado que lhe eram impostos, determinantes das lesões físicas, de gravidade variada, não prevendo, como podia e devia, a possibilidade da ocorrência de sinistro, em última instância, da perda da vida do ofendido.

23. Ao actuar da forma descrita, o arguido procedeu de forma livre, permitindo que os funcionários em geral e o ofendido em particular, executasse trabalhos manuais, em terreno ao ar livre, ladeado de pedra de consideráveis dimensões e peso, desconforme às regras legais e regulamentares, não dando qualquer formação adequada aos seus funcionários, entre os quais o ofendido, ou instruções adequadas sobre a forma de executar tal serviço, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado, para evitar um resultado que representou, que sabia ser possível, mas com o qual não se conformou, dando assim causa a que o ofendido sofresse as lesões supra descritas, sujeitando-o ao perigo concreto e concretizado de perda de vida.

24. Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

Face ao exposto, incorreu o arguido AA, na prática, em autoria e na forma consumada, de um crime de violação das regras de segurança, (…) e, a sociedade “BB, Lda.” criminalmente responsável pelo crime de violação das regras de segurança (…)»

C. Por seu turno o despacho recorrido, na parte para aqui relevante, mostra-se elaborado nos termos seguintes:

«(…)

II – Da fase processual da instrução; critérios de decisão:

A presente fase processual visa, nos termos do artigo 286º, n.º 1 Código de Processo Penal “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa ou não a julgamento.”

O critério determinante de tal decisão extrai-se do artigo 283º, n.º 1, do mesmo código, norma que estabelece que a decisão de deduzir acusação é tomada se dos autos resultarem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

O n.º 2 do citado artigo determina então que os indícios se consideram suficientes “sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Deve então a decisão instrutória ser determinada pelos mesmos critérios que, nos termos da lei, determinam a decisão de acusar ou arquivar os autos, fazendo o julgador um juízo de prognose face à prova constante dos autos de inquérito e aos seus efeitos em audiência de julgamento, ponderando juntamente com esta, a prova que foi produzida no âmbito da instrução, para determinar quais as probabilidades de um eventual julgamento resultar na aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

III – Os factos:

Compulsados os autos, resultam suficientemente indiciados os seguintes factos relevantes para a decisão:

1. A “BB, Lda.”, ora arguida, é uma sociedade por quotas, contribuinte fiscal n.º …, cujo objeto social consiste na reparação e construção de edifícios.

2. A 30.04.2019, bem como nos anos anteriores, o arguido desempenhava as funções de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, praticando diversos atos intrínsecos à gestão da sociedade, nomeadamente, os respeitantes à observância dos princípios e obrigações gerais da entidade empregadora previstos na lei, no que respeita à segurança no trabalho.

3. O arguido, em representação da sociedade arguida, estava legalmente obrigado a identificar e avaliar os riscos, bem como a promover as condições de segurança adequadas à realização de trabalhos, designadamente, avaliando os riscos próprios de cada tarefa a executar com a consequente, informação e formação aos trabalhadores das medidas de prevenção a aplicar, coordenando em segurança pelo exercício da atividade, disponibilizando equipamentos adequados, para tanto, contratando serviços organizados em matéria de segurança e segurança no trabalho e da formação adequada dos trabalhadores, idónea a alertá-los para os riscos inerentes à atividade e a informá-los sobre a forma de a executar em segurança.

4. EE era trabalhador da sociedade arguida mediante vínculo assente em contrato de trabalho de termo incerto desde 6.12.2018, exercendo as funções inerentes à categoria de servente de construção civil, sob as ordens, direção e fiscalização do arguido e no interesse do ente coletivo identificado.

5. Por contrato de empreitada, a sociedade “DD, Lda.”, adjudicou à sociedade arguida, designadamente, os seguintes trabalhos a executar no local da Herdade …, freguesia …, sita em …, em …:

a) Instalação de 8 bebedouros para gado, em alvenaria, de 2,00x0,80x0,50;

b) Colocação de nova cancela de entrada.

6. O arguido, em nome e interesse da sociedade arguida celebrou tal contrato de empreitada e, à data dos factos, não tinha organizados os serviços de segurança no trabalho, nem contratado tais serviços a empresa da especialidade para esta empreitada.

7. O arguido, na qualidade de gerente da sociedade arguida, comprometeu-se a iniciar esses trabalhos, durante o mês de abril de 2019, em data a combinar.

8. No dia 15.03.2019, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, deslocou-se à Herdade …, acompanhado do trabalhador FF e de CC, e procederam à verificação no terreno dos trabalhos a executar, nomeadamente, o local de colocação de nova cancela, tendo, para o efeito, constatado o sítio onde seria instalado o poste de madeira e verificado a existência no local de uma pedra, com cerca de 2,10 metros de comprimento, 80 centímetros de largura e 1,60 metros de comprimento, e com peso de 2 a 4 toneladas.

9. No dia 30.04.2019 pelas 10h:30, EE encontrava-se a trabalhar para a sociedade arguida, no local da Herdade …, freguesia …, sita na …, em …, em execução das tarefas necessárias à colocação de uma nova cancela, mediante instalação de poste de madeira, na entrada da antedita Herdade.

10. No local, junto ao sítio onde estava a ser aberto o buraco, pelo ofendido, encontravam-se quatro pedras, a mais próxima, com 2,10 metros de comprimento, com cerca de 80 centímetros de largura, 1,60 metros de comprimento e cerca de 2 a 4 toneladas de peso.

11. O terreno, em que o ofendido trabalhava e onde se encontrava a mencionada pedra era composto por terra e gravilha, sem consistência.

12. Assim, abriu a vítima um buraco no solo, com cerca de 35/40 cms por 35/40 para colocação de pedra e cimento e implantação de poste de madeira, a encher com cimento e que serviria para fixar a cancela, sem entivação do solo, com recurso a ferramentas manuais, utilizando uma pá e um instrumento vulgarmente conhecido como “abre covas”, desprovido de equipamentos mecânicos, como seja, perfurador que permitiria ao sinistrado, desde logo, não se posicionar ao nível do solo.

13. De seguida, de forma não concretamente apurada, enquanto o ofendido se encontrava no interior do buraco, a referida pedra rolou e caiu sobre o mesmo, soterrando-o, provocando-lhe lesões traumáticas que lhe causaram a morte imediata.

14. Nomeadamente:

- na cabeça: múltiplas placas escoriações apergaminhadas, dispersas na cabeça e hemi face direita, infiltração sanguínea generalizada no tegumento pilosos e periósteo que cobre a abóbada craniana; fratura do occipital, hemorragia subdural e subracnoideia envolvendo o encéfalo;

- no tórax e abdómen: múltiplas placas escoriações apergaminhadas, com vários formatos, tamanhos e direções, dispersas na região peitoral e abdómen; membros superiores, coluna vertebral fratura da 5.º vértebra dorsal.

15. Tais lesões, crânio meningo encefálicas, toraco abdominais e raqui medulares, no seu conjunto determinaram direta e necessariamente a morte do ofendido.

Não se indiciaram outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente:

que tivesse sido por ordens ou instruções do arguido AA, (emitidas na qualidade de legal representante da sociedade BB, Lda.”) que o ofendido se encontrava a executar os trabalhos referidos em 9. a 12., nas circunstâncias de tempo e lugar aí descritas, e que o arguido AA (como legal representante da arguida sociedade) soubesse que nessas circunstâncias de tempo e lugar o ofendido estivesse nesse local a executar tais trabalhos, sem que previamente tivessem sido definidas as condições de segurança necessárias para o efeito;

Não se respondeu a matéria conclusiva, de direito, meramente instrumental ou que ficasse prejudicada pelas respostas negativas supra dadas.

Motivação de facto:

O Tribunal respondeu à matéria de facto relevante tendo em conta a globalidade da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum.

Quanto aos factos indiciados, estes não mereceram controvérsia nos autos e resultam da prova documental junta aos autos, nomeadamente:

- da certidão permanente de fls. 31;

- do relatório de averiguação da ACT, de fls. 152 ss.;

- do contrato de trabalho de fls. 142;

- do orçamento/contrato de fls. 144 e vº;

- do assento de óbito de fls. 164 e relatório de autópsia de fls. 106.

Da conjugação de todos estes factos, parece, num primeiro momento, tudo apontar para a responsabilidade criminal do arguido AA e da arguida sociedade, pois o primeiro representava a sociedade (entidade patronal do sinistrado, e este último faleceu num acidente de trabalho na execução empreitada adjudicada à arguida sociedade, na qual não tinha havido prévia definição das condições de segurança necessárias.

Nota-se desde logo que o ofendido foi contratado pela “BB, Lda.” a termo incerto, com funções de servente, sendo que nos termos desse contrato:

i. Se mencionava a necessidade temporária da empregadora em virtude da execução de trabalhos de construção civil, durando o contrato por todo o tempo necessário à execução dos trabalhos;

ii. O local de prestação do trabalho “será em obra sita na Quinta …, …, …”;

e não, portanto da Herdade …, onde ocorreu o sinistro (o que foi reafirmado pelo arguido em instrução).

O arguido nega ter ordenado ao ofendido e à testemunha FF que executassem os trabalhos em causa no dia dos factos, tendo apenas tido conhecimento de que estes estavam na Herdade … quando lhe foi comunicado o sinistro (julgando que estavam na Quinta …).

A prova produzida em instrução veio dar uma visão da situação, sendo que a relação entre a sociedade e o dono da obra (CC) e entre este último e os trabalhadores da sociedade arguida não era típica no âmbito deste tipo de empreitadas.

Isto porque a testemunha FF (trabalhador que se encontrava a exercer funções junto do sinistrado) refere que trabalhou cerca de 5 a 6 anos com o dono da obra (CC) e que ele e o ofendido na altura dos factos, estavam a trabalhar noutra obra sita na Herdade das …, na construção de vivendas.

Mais refere que o dono da obra (CC) é que estava normalmente presente no local e era este que dava instruções concretas em obra, e era com ele que a testemunha falava quanto a faltas e para marcação de férias e era dele que recebia o pagamento, tudo dando a entender que o dono da obra é que era o seu “patrão de facto” in loco, quase como se de uma cedência de trabalhadores se tratasse.

Tais declarações estão em consonância com as declarações prestadas no foro laboral, no âmbito do proc. n.º 1340/19.0… que correu termos no Juízo de Trabalho de … – Juiz …, cujo registo áudio consta de fls. 708.

São também parcialmente corroboradas pelas declarações do próprio CC, no processo de trabalho suprarreferido.

Quanto à questão de saber qual foi a pessoa concreta que deu a ordem para, no dia do sinistro, iniciar os trabalhos na Quinta da …, a testemunha FF refere que foi o Dr. CC (o dono da obra) que lhe deu tais instruções.

Já o dito CC, em sede de instrução, refere que quem deu essas instruções foi a entidade patronal (o seja, o arguido AA).

No entanto as suas declarações nesta seja estão em contradição com as que havia prestado no âmbito do processo n.º 1340/19.0…, suprarreferido, onde é clara uma primeira resposta evasiva, quando diz “na altura não houve nada para fazer na … e resolveu-se ir fazer o outro trabalho” dizendo também “decidiu-se, não sei se fui eu ou o senhor AA ou o senhor FF”.

Quando advertido pelo Juiz que essa resposta era intencionalmente evasiva, referiu então “Pronto, eventualmente eu com o sr. AA”, dizendo que “acha” e “tem uma ideia” que falou com o arguido AA.

Mais afirma não se recordar de quem transmitiu as instruções aos trabalhadores.

No entanto, refere que já na Quinta da …, era ele quem estava presente e que deu instruções para a abertura daquele buraco, entendendo que a presença daquela pedra nas proximidades não representava perigo.

Parece, pois, que a passagem do tempo não degradou a memória da testemunha, pois passou de não se lembrar, no processo do foro laboral, para depois afirmar claramente que quem deu as ordens para ir à Quinta da … foi a entidade patronal.

A forma evasiva como a testemunha relatou estes factos, indicia claramente que está a tentar “sacudir a água do capote” e evitar a sua própria responsabilidade no sucedido.

De igual modo se nota que tanto a testemunha/dono da obra CC como a testemunha/trabalhador FF, afirmam que na Quinta das …, as ferramentas utilizadas eram do primeiro.

Tendo tudo isto em conta, a probabilidade de ter sido o dono da obra e dar instruções aos trabalhadores para, no dia do sinistro, irem à quinta da … e, no local lhes ter dados instruções para a abertura do buraco em causa, sem o conhecimento do arguido AA, apresenta-se como possível e com uma probabilidade razoável, o que gera dúvida razoável sobre os factos dados como não indiciados em a) e b).

Isto porque se, em regra, deve ser a entidade patronal que controla os trabalhadores e determina o tempo e modo como estes executam as suas funções, a realidade é muitas vezes desconforme ao dever ser formal que emerge do direito e geram-se relações de confiança informais que alteram a dinâmica de poder e controlo que resulta do contrato de trabalho e dos seus vínculos jurídicos.

O contrato de empreitada tem potencial para gerar estes conflitos de autoridade entre o dono da obra e o empreiteiro, para os funcionários do último, em especial em situações em que, como era o caso, os funcionários recebiam o seu vencimento do dono da obra.

IV – O Direito:

Vem imputada ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado, nos termos p. e p. pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal

A arguida sociedade será responsável pelo mesmo ilícito, nos termos do artigo 11º, n.º 2, al. a), do mesmo Código.

O citado artigo 152º-B do Código Penal tem a seguinte redacção:

“Violação de regras de segurança

1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.

3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:

a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.

4 - Se dos factos previstos nos n.os 1 e 2 resultar a morte o agente é punido:

a) Com pena de prisão de três a dez anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.”.

Trata-se pois de um crime de perigo concreto, que tem como bens jurídicos protegidos a vida e a integridade física.

Pode ser praticado por qualquer conduta humana, activa ou omissiva, que viole regras legais, regulamentares ou técnicas e que tenha como resultado a criação de perigo concreto para a vida ou perigo de ofensa grave à integridade física, como definida no artigo 144º, do Código Penal. Também é necessário que a pessoa sujeita ao perigo seja “trabalhador”, ou seja alguém que execute trabalho remunerado sob a autoridade e direcção de terceiro.

Ao nível subjectivo é um crime de estrutura complexa, exigindo-se no caso dos autos o dolo quanto à acção ou omissão que viole regras de segurança, e a negligência quanto à criação de perigo.

Por outro lado estamos também no caso dos autos perante uma agravação pelo resultado, que ocorre quando o perigo concreto referido no n.º 1 se vem a materializar na morte do ofendido. Naturalmente que o princípio da culpa exige que quanto ao resultado morte se verifique pelo menos negligência do agente.

No caso dos autos indicia-se que de facto o ofendido era à data dos factos trabalhador da arguida BB, Lda.

Mais se indicia que no decorrer do seu trabalho o ofendido foi sujeito a uma situação de perigo concreto para a sua vida, resultante do facto de estar a executar um trabalho de escavamento de um buraco junto a uma pedra de grandes dimensões.

Mais se indicia que foi precisamente a materialização desse perigo que veio a tirar a vida ao ofendido EE, que faleceu por esmagamento e traumatismo craneo-encefálico e torácico-abdominal, decorrente da queda dessa pedra.

Por outro lado, devemos apurar se existe alguma conduta, activa ou omissiva da parte do arguido pessoa singular que tenha dado causa a esse perigo concreto.

E é aqui que a cadeia de factos que poderiam sustentar a responsabilização criminal dos arguidos encontra um elo em falta.

De facto, não se indicia suficientemente que tenha sido o arguido AA a dar instruções aos trabalhadores (incluindo o sinistrado) para executarem os trabalhos dos quais resultou a fatalidade que aqui se conhece, nem tão pouco se indicia suficientemente que este tivesse tido conhecimento do início desses trabalhos nessa data.

Tal implica que não há relação causal entre a conduta do arguido AA e o perigo a que o ofendido foi sujeito e, consequentemente, ao resultado morte que daí adveio, de onde não se lhe pode assacar responsabilidade criminal por este ilícito.

Tal exclui também a responsabilidade criminal da arguida sociedade, pois esta advinha da responsabilidade do arguido AA que, nos termos da acusação, teria agido em nome e no interesse desta, na qualidade de seu gerente, ou seja, pessoa que ocupa “posição de liderança” na sociedade, nos termos e para os efeitos do artigo 11º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 4, do Código Penal.

V – Decisão:

Nestes termos e com os fundamentos expostos, não pronuncio os arguidos AA e “BB, Lda.”, pela prática do crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado, que lhes vinha imputado na acusação pública.»

D. Apreciando

Assinalemos de intróito, em traços gerais, em que consiste a fase processual de instrução. A instrução constitui uma fase processual não obrigatória, sendo, essencialmente, caracterizada por um controlo externo (jurisdicional) da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito. (2) Controlo esse que é levado a efeito pelo poder judicial, mas cujo objeto não abrange toda a atividade do Ministério Público na fase de inquérito, cingindo-se à decisão que se impugna, questionando-se o juízo que nela se encerra (arrigo 286.º, § 1.º CPP), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, aferindo nomeadamente se se ficou aquém ou se foi além dos indícios constantes dos autos da prática de crime. (3) Nas circunstâncias do presente caso, constatamos de imediato que as alterações à questão de facto efetuadas pelo despacho recorrido, assentam em matéria que já havia sido objeto de ponderação e cuidada valoração pelo Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito. Os arguidos acusados pelo Ministério Público e que foram os requerentes da abertura de instrução, não se limitaram a impugnar a pretensão do Ministério Público sintetizada na acusação pública. Quiseram «estender» a sua pretensão (defensiva) ao ponto de vestirem uma «camisola» que lhes não pertence, pois não se limitaram a requerer a sua não pronúncia, propondo também (como se foram assistentes) que fossem pronunciados outros! No presente recurso o recorrente assinala, muito bem, o erro de perspetiva que logo se surpreende na decisão recorrida. Vejamos como e porquê. A sociedade DD, Lda. tinha interesse em realizar uma determinada obra na sua propriedade. Para isso contratou a sociedade arguida BB, Lda., cujo gerente é o arguido AA. A proposta de orçamento de fls. 144 dá expressa nota do pretendido pelas partes no contrato de empreitada entre ambas celebrado, ali expressamente se consignando terem ficado a cargo (serem da responsabilidade) da entidade proponente BB, Lda., o fornecimento de «todos os materiais, toda a mão de obra, na execução de oito bebedouros em alvenaria, colocação de uma nova cancela e fazer toda a limpeza dos entulhos.» No contrato que serve de esteio à relação comercial referida a sociedade DD, Lda. é a dona da obra encomendada (id est a entidade por conta de quem a obra seria realizada), tendo nessa qualidade deveres próprios, previstos na lei (cf. artigos 1207.º ss. do Código Civil), mas distintos e inconfundíveis com os que cabem ao empreiteiro - a sociedade BB, Lda. - a quem cabe realizá-la. Tratava-se de obra de pequena dimensão (execução de bebedouros em alvenaria, colocação de nova cancela e limpeza de entulhos), cuja duração não excederia os 30 dias e em momento algum estariam em simultâneo, em obra, mais de 20 trabalhadores, pelo que não era sequer exigível a comunicação prévia da abertura do estaleiro (artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro). Nos termos do contrato referido cabia ao empreiteiro (à sociedade BB, Lda.) fornecer os equipamentos de trabalho, selecionar os métodos e meios que considerasse ajustados à realização de obra, incluindo definir a equipa de trabalho (a mão-de-obra) e decidir sobre a sua organização no estaleiro da obra. Se bem atentarmos nos factos indiciariamente assentes, talqualmente se consideraram no despacho recorrido, ali se não diz coisa diversa. Referindo-se, no respeitante à mão-de-obra, que «EE era trabalhador da sociedade arguida mediante vínculo assente em contrato de trabalho de termo incerto desde 6.12.2018, exercendo as funções inerentes à categoria de servente de construção civil, sob as ordens, direção e fiscalização do arguido e no interesse do ente coletivo identificado» - ponto 4. E depois no ponto 9. diz-se que no dia do sinistro: «EE encontrava-se a trabalhar para a sociedade arguida, no local da Herdade de …, freguesia …, sita na …, em …, em execução das tarefas necessárias à colocação de uma nova cancela, mediante instalação de poste de madeira, na entrada da antedita Herdade.»

Na motivação da sua convicção o tribunal recorrido contradiz o que afirma estar indiciado nos pontos 4. e 9.!

Mas no essencial temos que o arguido negou ter ordenado ao ofendido e à testemunha FF que executassem os trabalhos em causa no dia dos factos; afirmando não ter sequer conhecimento de que os seus trabalhadores estivessem na Herdade da ….

A testemunha FF (trabalhador que se encontrava a exercer funções junto do sinistrado), referindo-se a outras obras, disse que o gerente do dono daquela obra concreta (CC) já havia estado noutras obras e era ele quem dava instruções concretas em obra, dando a entender ele é que seria o seu “patrão de facto” in loco, quase como se de uma cedência de trabalhadores se tratasse.

Já a testemunha CC referiu que quem deu essas instruções relativas à obra de que aqui se cura foi a entidade patronal do sinistrado (o arguido AA).

O tribunal recorrido centrou a sua atenção no apuramento de saber quem foi (afinal) a pessoa concreta que deu a ordem para no dia do sinistro se iniciarem as obras na Quinta da …. Para tanto valorou declarações prestadas num outro processo, do foro laboral, confrontando as testemunhas com o que terão declarado nesse processo laboral, valorando as declarações de tal processo, como se foram prestadas neste processo!

E logo aqui se evidencia um desajustamento quanto à demonstração probatória dos indícios, porquanto essa «prova emprestada» é simplesmente inaproveitável nestes autos, na exata medida em que a chamada prova testemunhal «circulada» ou «migrada» de processos sem as garantias do processo penal não é válida neste, como desde logo decorre dos artigos 125.º, 355.º e 356.º CPP e 32.º, § 1.º da Constituição. (4)

Mais do que saber quem no dia concreto deu que ordens a quem, é saber ao serviço de quem o trabalhador sinistrado se encontrava a trabalhar.

Sabe-se de fonte probatória segura que a obra em causa estava adjudicada à sociedade arguida e que o sinistrado era empregado desta.

Se havia ou não um qualquer convénio informal entre o gerente da sociedade dona da obra e o gerente da sociedade arguida é algo controverso, que as provas não esclarecem. Mas a prova segura (documental) existente nos autos aponta no sentido inverso das conclusões da (motivação) decisão recorrida, firmada nas cogitações das testemunhas confrontadas («afrontadas»!) com o que terão dito em sede de processo laboral…

Afirma a decisão recorrida que: «a probabilidade de ter sido o dono da obra e dar instruções aos trabalhadores da arguida para, no dia do sinistro, irem à quinta da … e, no local lhes ter dado instruções para a abertura do buraco em causa, sem o conhecimento do arguido AA, apresenta-se como possível e com uma probabilidade razoável, o que gera dúvida razoável sobre os factos dados como não indiciados em a) e b).»

Os contornos da presença do dono da obra no local, a dar instruções aos trabalhadores não são, de todo, claros. Clara é a tentativa da sociedade empreiteira e do seu gerente, aqui arguidos, criarem uma situação que os desonere da responsabilidade criminal que lhes foi imputada. Tendo CC atitude defensiva contrária.

Mas estas divergências não são suscetíveis de arredar o que se mostra indiciariamente seguro e que sustenta os aludidos pontos 4. e 9.º da matéria de facto fixada no despacho recorrido. Id est: o contrato de empreitada para realizar aquela concreta obra (a que se estava a iniciar no dia e local do sinistro); o contrato de trabalho entre o sinistrado e a sociedade empreiteira/arguida; e a morte do sinistrado na execução dessa mesma obra.

Sabe-se que já noutras obras da sociedade arguida era CC quem orientava os trabalhadores daquela sociedade (testemunha FF). Pelo que tal não poderia ser do desconhecimento da sociedade empreiteira (BB, Lda.), aqui arguida.

A falta de esclarecimento dos contornos exatos dessa circunstância, por nenhuma das provas produzidas o permitir, não arreda que se mostram fortemente indiciados os factos essenciais:

- que EE era trabalhador da sociedade arguida, com vínculo estabelecido em contrato de trabalho de termo incerto desde 6.12.2018, exercendo as funções inerentes à categoria de servente de construção civil, sob as ordens, direção e fiscalização do arguido e no interesse do ente coletivo identificado (ponto 4 da factualidade indiciada);

- que no dia do sinistro esse trabalhador se encontrava ao serviço da sociedade arguida, em execução das tarefas necessárias à colocação de uma nova cancela, mediante instalação de poste de madeira, na entrada da antedita Herdade (ponto 9. dos factos indicados);

- que o trabalhador EE recebeu ordens para integrar uma brigada que se deslocou para o local, onde realizou os trabalhos que lhe foram assinalados e nas condições que lhe foram proporcionadas pela sua entidade patronal (a quem competia organizar os meios e prover às cautelas de organização do trabalho – dentre as quais as medidas de segurança ajustadas a prevenir o acidente que se verificou). E daí se conclui que no dia do sinistro o trabalhador EE, realizava trabalhos no âmbito da obra contratada, estando ao serviço, sob as ordens e responsabilidade da sua entidade patronal, que era a sociedade BB, Lda.

Não há rigorosamente qualquer indício de estar a trabalhar fora do contexto do contrato de trabalho que mantinha com a sociedade arguida. As circunstâncias e o modo concreto como a sociedade empreiteira, através da direção do arguido AA, organizou (ou deixou de organizar) a execução da obra é da exclusiva responsabilidade destes.

Na verdade, como bem refere a acusação pública, o arguido AA, na sua qualidade de gerente da sociedade comercial arguida, estava legalmente obrigado a identificar e avaliar os riscos, bem como a promover as condições de segurança adequadas à realização de trabalhos, designadamente, avaliando os riscos próprios de cada tarefa a executar com a consequente, informação e formação aos trabalhadores das medidas de prevenção a aplicar, coordenando em segurança pelo exercício da atividade, disponibilizando os equipamentos adequados, para tanto, contratando serviços organizados em matéria de segurança e segurança no trabalho e da formação adequada dos trabalhadores, idónea a alertá-los para os riscos inerentes à atividade e a informá-los sobre a forma de a executar em segurança. É à arguida BB, Lda. – e a nenhuma outra entidade – que a lei atribui o dever de prover os meios necessários a evitar os perigos que a execução da obra que aceitou realizar pudesse representar para a vida, para a integridade física ou para a saúde dos seus trabalhadores.

Daí que nada permita desonerar a sociedade empreiteira dos deveres que sobre ela recaem em direta decorrência da lei, no sentido de ser ela quem tinha de garantir o cumprimento das regras de segurança (definidas nomeadamente no artigo 281.º, §1.º, 2.º e 3.º do Código de Trabalho; nos artigos 15.º, § 1.º, 2.º als. a), b), c), d), § 3.º, 4.º e 10.º e artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro; nos artigos 71.º, 72.º-A, 73.º, §1.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, com a redação dada pela Lei n.º 3/2014, de 28 de janeiro; e no artigo 67.º do Decreto-Lei n.º 41/81, de 11 de agosto de 1958) - competindo ao empreiteiro o dever de programar a execução da obra em conformidade com aquelas, tendo na sua decorrência o dever de exercer vigilância e controlo necessários ao curso dos trabalhos, independentemente do modo como estes vêm a ser realizados. A sociedade empreiteira e o seu gerente, que se havia deslocado ao local em que se iria executar a obra eram conhecedores das condições objetivas existentes no terreno.

Breve: o acidente que vitimou mortalmente o trabalhador que naquele dia concreto ali estava ao serviço da sociedade comercial arguida/acusada, só ocorreu porque esta não delineou um plano de segurança para a realização dos trabalhos a que contratualmente se obrigou, nem assegurou as medidas elementares de segurança que as circunstâncias (descritas no alinhamento dos factos assentes) exigiam, decorrentes do perigo que a referida pedra representava.

Precisemos agora o recorte normativo do tipo de ilícito de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152.º-B CP:

«1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.

3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:

a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.

4 - Se dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 resultar a morte o agente é punido:

a) Com pena de prisão de três a dez anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.»

Este ilícito respeita precisamente à criminalização das condutas que por ação ou por omissão sejam violadoras das regras de segurança e com isso criadoras de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem. Caracteriza-se por ser um crime de perigo concreto, que tanto pode ter lugar por via de ação como por via de omissão, e decorrendo a tutela dos bens jurídicos (vida, integridade física e saúde psíquica e mental) (5) desde momento anterior ao início dos trabalhos destinados à realização da obra, com a prática de (ou a omissão de) certos atos incrementadores do risco de lesão de tais bens jurídicos. Sendo ainda um crime específico próprio, na medida em que tem em vista a prática de factos (ou a omissão de factos) por quem tem um dever especial de agir para acautelar o perigo.

O tipo objetivo consiste na sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a sua vida, integridade física ou saúde, com violação dos deveres emanados de regras previstas na lei ou nos regulamentos. E o tipo subjetivo denota três dimensões: o agente age com dolo de perigo (§ 1.º), ou age com negligência de perigo (§ 2.º) ou com dolo de perigo e negligência em relação ao resultado agravante (§ 3.º e 4.º).

Nas circunstâncias do caso a sujeição do trabalhador sinistrado à situação de risco que veio a culminar a perda da sua vida ocorreu nesta última modalidade. Ora, a responsabilidade pela omissão das medidas cautelares de segurança e pelo resultado danoso decorre para ambos os arguidos em razão de o arguido AA, em representação de BB, Lda., ter celebrado (como gerente dela) o contrato de empreitada com DD, Lda, no âmbito do qual aquela se obrigou para com esta a realizar a obra contratada, que consistia na «execução de oito bebedouros em alvenaria, colocação de uma nova cancela e fazer toda a limpeza dos entulhos». Aquela qualidade de gerente conferia ao arguido AA a especial obrigação de agir de modo a prevenir resultados danosos no âmbito da atividade e interesses da sociedade comercial que representava. A omissão dos deveres legais que impendiam sobre a arguida sociedade comercial, mas cuja realização competia ao seu gerente acautelar, estende-se a ambos, refletindo-se a mesma na atividade e responsabilidade destes (artigo 11.º, § 2.º, al. a), § 4.º e § 7.º CP).

Em suma: mostram-se indiciados os pressupostos da responsabilidade criminal da sociedade comercial BB, Lda. e do seu gerente AA, nos termos (bem) recortados e definidos na acusação do Ministério Público, deduzida no termo do inquérito. Pelo que importa revogar a decisão instrutória e determinar a remessa dos autos para julgamento, nos exatos termos já anteriormente definidos na acusação pública.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Revogar a decisão recorrida;

b) Determinar a remessa dos autos para julgamento, nos precisos termos da acusação pública oportunamente deduzida contra os arguidos.

c) Custas pelos arguidos/recorridos (artigo 513.º CPP), com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs por cada um deles.

Évora, 28 de junho de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

--------------------------------------------------------------------------------------

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Jorge de Figueiredo Dias: «Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais», in: AA. VV., Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, 1983, p. 225 e ss.; «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in: AA. VV., Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988 (reimp. 1993), p. 16; e «Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal», RPCC, 1998, Fasc. n.º 2, pp. 207 e 211. Cf. ainda Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, 1990, p. 241 e ss. e passim, Anabela Miranda Rodrigues, «A fase preparatória do processo penal – tendências na Europa. O caso português», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, BFDUC, 2001, p. 961, António Rodrigues Maximiano «Âmbito da instrução no novo Código de Processo Penal», RMP, n.º 50, 1992, p. 137, e Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção», in: Manuel da Costa Andrade et. al. (org.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1247 e s. (cit, por Nuno Brandão, RPCC, 2 e 3/2008, p. 227-255).

3 Neste sentido cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo penal, tomo III, 2.º ed., 2022, pp. 1241/1242.

4 Cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., 2023 (no prelo), em anotação ao artigo 125.º. Inês Fernandes Godinho, To be or not to be: Empréstimo da prova, circulação de prova e verdade em processo penal, RMP 168, 2021, p. 130 ss.; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2023, 5.ª ed. Atualizada, p. 488 (anotação 8. ao artigo 125.º); Gustava Badaró, Revista Brasileira de Ciências Criminais, jan-fev 2014, pp. 157 ss.; Roberto Portugal de Biazi, Prova emprestada em processo penal: uma análise dos limites de sua admissibilidade, Anais do Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais, 2017, pp. 834 ss.; Eduardo Talamini, Prova emprestada no processo civil e penal, Revista de Informação legislativa, n.º 35, 1998, pp. 145 ss.; Ada Pellegrini Grinover, A prova emprestada, Revista Brasileira de Ciências Criminais, out-dez 1993, pp. 145 ss.; Caíque Ribeiro Galícia & Eduardo Dalla Rosa, Prova emprestada no âmbito de Cooperação judiciária Internacional.

5 Cf. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 543.