Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA JOÃO SOUSA E FARO | ||
| Descritores: | MAIOR ACOMPANHADO REVISÃO REVISÃO OFICIOSA | ||
| Data do Acordão: | 12/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário: I. A revisão periódica das medidas de acompanhamento configura uma garantia de que as mesmas se mantêm adequadas, pertinentes e úteis para o beneficiário; II. Essa revisão destina-se, outrossim, a apreciar o desempenho do acompanhante nomeado e em caso de se concluir que tal prestação se revela nociva aos interesses do acompanhado, decidir pela sua substituição. III. Os relevantes propósitos da revisão impedem que a mesma fique dependente da iniciativa processual do acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no nº 1 do artigo 141º do Cód. Civil e demandam que a mesma tenha carácter oficioso. | ||
| Decisão Texto Integral: | 1023/24.0T8ABT.E1
ACÓRDÃO I – RELATÓRIO 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO, requerente, na acção especial de acompanhamento de maior deduzida contra AA, dissentindo da sentença aí proferida na parte em que determinou “a revisão da presente decisão no prazo de cinco anos, a contar do seu trânsito em julgado, apenas terá lugar a requerimento do Ministério Público, da Acompanhante ou dos Vogais do Conselho de Família e não oficiosamente pelo Tribunal”, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões: 1. Os presentes autos correm termos a favor de AA– Assento de nascimento junto aos autos. 2. AA foi declarado “maior acompanhado”mediante sentença de 19.10.2025/refª 10107228. 3. Vem o presente recurso interposto da sentença, no segmento: Da periodicidade da revisão da medida de acompanhamento: Nos termos do disposto no artigo 155.º do Código Civil, a medida de acompanhamento ora decretada será revista, no prazo de cinco anos, desde que a requerimento do Ministério Público, do Acompanhante ou pelos Vogais do Conselho de Família, e não oficiosamente pelo Tribunal, sem prejuízo de, a todo o tempo e sempre que a evolução do beneficiário o justifique, se poder proceder ao termo e alteração das medidas, o que não é expectável uma vez que o atraso mental de que o beneficiário padece é desde o nascimento e é permanente (artigo 149.º, do Código Civil, e artigo 904.º, do Código de Processo Civil). 4. No segmento do dispositivo em que exara a seguinte menção: g) determinar que a revisão da presente decisão no prazo de cinco anos, a contar do seu trânsito em julgado, apenas terá lugar a requerimento do Ministério Público, da Acompanhante ou dos Vogais do Conselho de Família e não oficiosamente pelo Tribunal; 5. Não consta do texto do artigo 155ºCC que a medida de acompanhamento ora decretada será revista, no prazo de cinco anos, desde que a requerimento do Ministério Público, do Acompanhante ou pelos Vogais do Conselho de Família, e não oficiosamente pelo Tribunal, sem prejuízo de, a todo o tempo e sempre que a evolução do beneficiário o justifique, se poder proceder ao termo e alteração das medidas. 6. Nem tampouco a norma ao fixar uma revisão independente do requerimento Ministério Público, do Acompanhante ou pelos Vogais do Conselho de Família, impede a revisão oficiosa, como se refere, a nosso ver, incorretamente na sentença. 7. Contraria o texto da norma afirmar que a revisão da medida “não é expectável uma vez que o atraso mental de que o beneficiário padece é desde o nascimento e é permanente (artigo 149.º, do Código Civil, e artigo 904.º, do Código de Processo Civil)”. 8. E, porque o artigo 155ºCC alude a revisão, oficiosa, sem a condicionar a requerimento de sujeitos concretos, também devem ser expurgadas as expressões acerca da previsibilidade de que a medida não irá ser revista porque o sujeito tem atraso mental de que padece desde o nascimento. 9. A letra da lei é a base da sua interpretação – cfr. o artigo 9ºCC. 10. O Tribunal, por seu lado, deve obediência à lei e esse “dever não pode ser afastado sob o pretexto de ser injusto” – cfr. o artigo 8º, nº2 CC. 11. Deve ainda, na interpretação da Lei, “o tribunal reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” – cfr. o artigo 9º, nº2 CC. 12. Não corresponde à letra, à unidade do sistema, ao que o legislador, inspirado no direito internacional terá querido. 13. O artigo 12º, nº4 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência implica a intervenção dos Estados no assegurar das garantias à prossecução dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. 14. Ao mencionar a exclusão da revisão oficiosa e a não menção de alarmes no processo para controlo do prazo de cinco anos após o trânsito em julgado com vista à revisão oficiosa, a sentença está a impedir o controlo periódico estadual da compressão de direitos a que a pessoa portadora de deficiência está sujeita (Conv.de Nova York de 13.12.06 que entrou em vigor para Portugal em 23 de outubro de 2009 após a assinatura a 30 de março de 2007e o depósito do seu instrumento de ratificação em 23 de setembro de 2009, aprovada pela Assembleia da República através da Resolução n.º 56/2009, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, ambos publicados em 30 de julho de 2009, aplicável na ordem interna por força do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa). 15. Ainda, no âmbito nacional, a decisão viola o disposto nos artigos 138º, 141 nº 1, 143.º; 145.º, 147.º em especial o artigo 155º, todos do Código Civil e artigos 904º, nº2, este com remissão para o artigo 892.º e seguintes do Código de Processo Civil, porquanto desatende o controlo periódico pelo tribunal da autonomia do acompanhado, negando a tutela da revisão da medida de acompanhamento. 16. O artigo 155.º do Código Civil, sob a epígrafe “Revisão Periódica”, dispõe que “O Tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos”. 17. Deste último preceito resulta, como é pacificamente entendido, que as medidas são revistas no máximo, com uma periodicidade de cinco anos, após o trânsito em julgado da sentença que as fixou. 18. Devem os segmentos da sentença mencionados em 3. e 4. (este último, parte do “dispositivo) serem revogados, por violação de lei e ser ordenada a substituição, no “dispositivo” de menção que determine “alarme o processo para, volvidos cinco anos desde a data de trânsito em julgado, ser aberto termo de vista ao Ministério Público, seguido de conclusão”. Sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. será feita Justiça.”. 2. A defensora do requerido pronunciou-se favoravelmente à pretensão do Ministério Público. 3. O objecto do recurso - delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) ) reconduz-se apenas à apreciação da questão de saber se nos termos do disposto no artigo 155.º do Código Civil, a medida de acompanhamento decretada não pode deixar de ser oficiosamente revista pelo Tribunal. II. FUNDAMENTAÇÃO 4. É a seguinte a factualidade assente na decisão recorrida: “1. O requerido nasceu a ........1995 é natural da freguesia de S. João, concelho de Cidade 1. 2. O requerido é solteiro. 3. O requerido padece de atraso mental ligeiro de natureza congénita desde ........1995 e dificuldade de personalidade (imaturidade e impulsividade) e de planeamento, organização e gestão de actividades da vida mais complexa como gerir bens e finanças, gestão de carreira profissional, responsabilidade sobre medicação e gestão de educação de filhos, situações clínicas que são permanentes. 4. O requerido necessita de tratamento psiquiátrico para controle comportamental e beneficiar de medida psico-educativas e de reabilitação social tendentes a melhoras a sua capacidade de coping, de gestão de impulso e o seu desempenho pessoal e laboral. 5. O requerido tem um filho e as responsabilidades parentais foram totalmente atribuídas à progenitora. 6. O requerido está actualmente a cumprir medida de segurança no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. 7. O requerido tem bom relacionamento com o seu avô paterno. 8. O requerido aufere pensão social. 9. O requerido não tem património imobiliário. 10. O requerido necessita de apoio de terceiros para se alimentar. 11. O requerido não toma medicação sem o auxílio de terceiros, pelo que não é capaz de seguir prescrição médica que lhe é imposta pelo seu presente estado de saúde. 12. O requerido não executa tarefas domésticas, não efetua compras de alimentos, vestuário ou medicação. 13. O requerido consegue ler ou escrever, efectua contas, mas não é capaz de movimentar contas bancárias, levantando dinheiro, efetuando depósitos ou outros movimentos. 14. O requerido aufere uma pensão social, mas não administra a pensão. 15. O requerido não outorgou testamento público. 16. O requerido não outorgou testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.”. 5. Do mérito do recurso Conquanto já tardiamente, a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto introduziu alterações significativas no regime das incapacidades, tendo revogado os institutos da interdição e da inabilitação e estabelecido, em sua substituição, o regime jurídico do maior acompanhado. Na verdade, já desde 2009 que vigorava em Portugal a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência aprovada pela Assembleia Geral em 13 de Dezembro de 20061 com o objectivo de “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” mas só em 2018 é que o legislador nacional acatou as observações finais do Comité e procedeu a uma transformação do paradigma das incapacidades. A Convenção apesar de não oferecer uma definição precisa e rigorosa de deficiência refere, todavia, que as pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros (cfr. art.º 1º). Nesta senda, o art.º 138º do Código Civil passou a estabelecer que “[o] maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”. Há assim uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais ou com quaisquer outras limitações que afectem a sua capacidade jurídica.2 A este propósito convém recordar o que o art.º12.º da Convenção (“Reconhecimento igual perante a lei”) estabelece: “1 - Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar. 2 - Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida. 3 - Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica. 4 - Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa. 5 - Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.” (realce nosso). O que releva, no espírito da Convenção, não é indagar se uma pessoa tem capacidade mental para exercer os seus direitos mas sim apurar de que apoios carece para os exercer. “Proteger sem incapacitar” constitui hoje a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão.3 Tal como já sucedia anteriormente com a interdição e a inabilitação, é o Tribunal que decide se há lugar ou não ao regime do acompanhamento e, no caso afirmativo, que escolhe e adequa , em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir par alcançar o seu objectivo que é o de assegurar o bem-estar, a recuperação e pleno exercício da capacidade de agir do beneficiário.4 Outra das grandes novidades do novo regime é a introdução da revisão periódica, em obediência ao disposto no artigo 12.º, n.º 4, da Convenção. Por consequência, no artigo 155º do Cód. Civil, na redacção dada pela referida lei, estabeleceu-se a obrigatoriedade de revisão periódica da medida de acompanhamento nos seguintes termos: “O tribunal revê as medidas de acompanhamento de acordo com a periocidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.” Prevê-se, também, no art.º 149º do mesmo código que: “O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justifiquem” (nº 1) e que: “Podem pedir a cessação ou modificação do acompanhamento o acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no nº 1 do artigo 141º (nº 3). Por seu turno, prescreve o art.º 904º do C.P.C.: 1. (…); 2. As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique. 3. Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto no art.º 892º e seguintes, correndo os incidentes respectivos por apenso ao processo principal.”. O legislador previu, assim, que a situação do acompanhado possa evoluir, de forma negativa ou positiva, o que determinará a exigência da sua revisão periódica. É que a revisão periódica das medidas de acompanhamento configura uma garantia de que as mesmas se mantêm adequadas, pertinentes e úteis para o beneficiário o que demanda que a mesma assuma carácter oficioso. Essa revisão destina-se, outrossim, a apreciar o desempenho do acompanhante nomeado e em caso de se concluir que tal prestação se revela nociva aos interesses do acompanhado, decidir pela sua substituição. Em suma: Os relevantes propósitos da revisão impedem que a mesma fique dependente da iniciativa processual do acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no nº 1 do artigo 141º do Cód. Civil. Na decisão recorrida entendeu-se que “a medida de acompanhamento ora decretada será revista, no prazo de cinco anos, desde que a requerimento do Ministério Público, do Acompanhante ou pelos Vogais do Conselho de Família, e não oficiosamente pelo Tribunal (…)”. Porém, pelas razões apontadas, a mesma no segmento da iniciativa da revisão não pode subsistir. III. DECISÃO Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação procedente e, em consequência, se elimina o segmento do dispositivo da sentença que determinou que a revisão “apenas terá lugar a requerimento do Ministério Público, da Acompanhante ou dos Vogais do Conselho de Família e não oficiosamente pelo Tribunal”. Sem custas. Évora, 16 de Dezembro de 2025 Maria João Sousa e Faro (relatora) Manuel Bargado Ana Pessoa
______________________________________ 1. E aprovada por Resolução da Assembleia da República nº 56 2009 de 7.5 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009 de 30.7.).↩︎ 2. Neste sentido, Pinto Monteiro in “ Das incapacidades ao maior acompanhado- Breve apresentação da Lei nº 49/2018 in RLJ , nº 4013 pag.71.↩︎ 3. Idem, Pinto Monteiro no cit. Estudo, pag. 77.↩︎ 4. Idem, Pinto Monteiro no cit. Estudo, pag. 82.↩︎ |