Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | RICARDO MIRANDA PEIXOTO | ||
| Descritores: | FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS OMISSÃO DE FACTOS CONTROVERTIDOS NULIDADE DA DECISÃO | ||
| Data do Acordão: | 05/08/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. Em cumprimento do dever constitucional previsto no n.º 1 do artigo 205.º da CRP, de fundamentação de facto e de direito das decisões judiciais, de forma a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se a indicação dos factos provados, dos factos não provados, do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do julgador na decisão de facto e dos pressupostos jurídicos subjacentes ao direito em apreciação, aos quais subsumir a matéria de facto. II. A omissão da indicação dos factos que o tribunal considera provados e não provados, bem como das razões de direito que ditam a improcedência da pretensão, determina a nulidade por falta de fundamentação, da decisão proferida em incidente de reclamação contra a relação de bens em processo de inventário, na qual o juiz, sem remeter as partes para os meios comuns, considerou ser possível uma segura resolução das questões nele suscitadas. III. No que respeita à matéria de facto, a nulidade verificada não é passível de aplicação da regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no artigo 665.º do CPC, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede da decisão da matéria de facto. (Sumário do Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Apelação 70/22.0T8ORM.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Tomar * Sumário (cfr. artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)*** * Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendoRelator: Ricardo Miranda Peixoto; 1º Adjunto: Ana Pessoa; e 2º Adjunto: Filipe César Osório. * I. RELATÓRIO*** * A.Nos autos de inventário propostos para partilha da herança aberta por óbito de António Joaquim Ideias, falecido em 02.09.1998, e de (…), falecida em 03.08.2015, vieram os interessados (…) e (…) apresentar reclamação da relação de bens, invocando, em síntese, que: - A cabeça de casal não relacionou a totalidade dos bens, estando omissos os discriminados pelo Reclamante; - As verbas n.ºs 1 e 2 – saldos de contas bancárias – devem ser excluídas e substituídas por uma só, uma vez que o dinheiro depositado nessas contas foi retirado e colocado em nova conta que indica, por acordo de todos os irmãos; - Deve ser acrescentado também o valor do subsídio de funeral, depositado na conta bancária da herança; - As verbas n.ºs 11 e 14 a 17, não apresentam valor correspondente ao real; e - Deve ser acrescentado o passivo que elenca. B. Notificada para se pronunciar, a cabeça-de-casal respondeu. Aceitou relacionar: o veículo automóvel matrícula (…), marca Opel, modelo Corsa, os armários/guarda vestidos da verba n.º 22; a mala da verba 28; os objectos das verbas 26, 31, 33, 34, 35, 37, 39, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 64, 65, 66, 67 e 71; uma porta em madeira; e o crédito no valor de € 213,86 (duzentos e treze euros e oitenta e seis cêntimos). Impugnou o restante conteúdo da reclamação. C. O Reclamante exerceu o contraditório, mantendo a posição expressa na reclamação. D. Designada data para o efeito, realizou-se a inquirição de testemunhas, seguida da prolação de decisão que julgou improcedente o incidente de reclamação contra a relação de bens. E. Inconformado com o decidido, (…) interpôs o presente recurso de apelação. Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem): “(…) a) A sentença recorrida cai em nulidade atenta a falta de fundamentação. b) As Verbas n.º 3 a 20 da Reclamação consistem em quinhão hereditário que faz parte da herança dos inventariados e deveriam ser incluídas na Relação de Bens. c) A Cabeça-de-Casal reconhece que os imóveis descritos naquelas verbas fazem parte da herança de (…), mãe do Inventariado (…). d) Pelo que o quinhão hereditário que cabe ao Inventariado (…) na herança da sua falecida mãe compõe, também, a herança daquele. e) Deveriam ter sido incluídos na Relação de Bens, mas com a descrição de quinhão hereditário composto pelos prédios descritos nas Verbas n.º 3 a 20 da Reclamação da Relação de Bens. f) Em discussão, temos as Verbas n.º 23, 24, 25, 32, 36, 63, 69, 70, 72 e 73. g) A Cabeça-de-Casal alega desconhecer em absoluto os bens descritos nas Verbas n.º 23, 24, 25, 32, 36, 63, 69 e 73. h) Quanto à Verba n.º 23, o Recorrente juntou aos autos prova documental que demonstra a existência do bem e o conhecimento que a Cabeça-de-Casal tem do mesmo. i) Dúvidas não restam que o bem existe, está na posse da Recorrida que ao mesmo tem acesso – tanto que fez chegar ao Recorrente cópia de algumas das fotografias. j) Pelo que a Verba n.º 23 deverá ser incluída na Relação de Bens, atenta a prova documental junta aos autos. k) Quanto às Verbas n.º 24, 25, 32, 36, 63, 69 e 73, as testemunhas (…) e (…), netos dos Inventariados, “elencaram diversos bens (coincidentes com alguns dos referidos na reclamação contra a relação de bens) que afirmam que constavam em casa dos inventariados”. l) Depoimento que não foi considerado porque falaram “com recurso a apontamentos”. m) As testemunhas perguntaram se poderiam recorrer-se de notas que tinham tomado com indicação dos bens que constituíam o recheio da casa dos avós, aqui Inventariados. n) O que foi autorizado pelo tribunal a quo. o) O recurso a notas ou apontamentos está previsto no n.º 2 do artigo 461.º do Código de Processo Civil, para o qual remete o n.º 7 do artigo 516.º: “A parte não pode trazer o depoimento escrito, mas pode socorrer-se de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas.” p) A este propósito, atente-se ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 05-12-2023 (processo n.º 644/22.0PBEVR.E1): “A utilização pela testemunha de notas manuscritas com o propósito de auxiliar a sua memória e, consequentemente, o seu depoimento é legítima e regular, conquanto seja autorizada pelo tribunal. (…) Com efeito, não se nos apresenta como controverso que a testemunha pode fazer-se acompanhar de apontamentos ou notas com o propósito de auxiliar a sua memória e, consequentemente, o seu depoimento. Fazendo-o, terá, porém que solicitar autorização para as consultar. Ora, tal como refere o Ministério Público na sua resposta ao recuso, na situação dos autos a utilização pela testemunha de notas manuscritas foi legítima e regular, conquanto foi autorizada pelo tribunal, sem que tivesse sido invocada qualquer irregularidade ou qualquer outro vício relativamente ao depoimento em causa – no decurso do mesmo ou posteriormente – e sem que tivesse sido requerido qualquer esclarecimento sobre a origem ou autoria das mencionadas notas manuscritas. Nenhuma dúvida temos, pois, em concluir que o recurso às mencionadas notas de forma alguma inquina a validade ou a credibilidade do depoimento da ofendida. Subscrevemos inteiramente o entendimento exposto a tal propósito no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2013 no sentido de que “A testemunha pode servir-se, no seu depoimento, de documentos (que não apresente para serem juntos ao processo) ou de apontamentos (inclusivamente de datas) que a auxiliem nas respostas, como resulta da remissão do artigo 638.º, n.º 7, para o artigo 561.º, n.º 2, do CPC.” [atuais 516.º, n.º 7 e 461.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis aos presentes autos ex vi do artigo 4.º do CPP].” q) Deveria ter sido valorado o depoimento das testemunhas, concluindo-se pela inclusão das Verbas n.º 24, 25, 32, 36, 63, 69 e 73 na Relação de Bens. r) Quanto às Verbas n.º 70 e 72, a Cabeça-de-Casal deu conta da sua existência, mas alegou tratarem-se de bens próprios do Interessado (…). s) Mas não fez prova da propriedade dos bens a favor de (…). t) Também as Verbas n.º 70 e 72 da Reclamação deveriam ter sido incluídas na Relação de Bens. (…)”. F. Notificada das alegações, a Recorrida (…) contra-alegou, sustentando, em síntese que: - na impugnação da matéria de facto, Recorrente não dá cumprimento ao disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, pois não indica os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda e não cumpriu o disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), já que não localiza, na gravação, o momento temporal (minutos) correspondente aos depoimentos por referência à acta; - quanto à invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação, só a absoluta falta e, não a errada, incompleta ou insuficiente, acarreta a nulidade prevista pelo artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código do Processo Civil; - não é pelo facto de a Recorrida ter admitido a existência de bens que devem ser admitidos por acordo; - o Recorrente não fez prova de que as verbas 70 e 72 pertencem à herança como lhe cabia por via do ónus da prova estabelecido no artigo 342.º do Código Civil; - os bens imóveis que o Recorrente indica sob as verbas n.ºs 1 a 20, fazem parte do acervo hereditário deixado por óbito de (…), progenitora do Inventariado (…), não tendo que ser partilhados por não se verificar, nos presentes autos, cumulação e inventários. Pugnou pela manutenção da decisão recorrida. G. A sra. Juíza que proferiu a decisão recorrida, tomou posição sobre a invocada nulidade por falta de fundamentação, nos seguintes termos (transcrição integral): “Nas conclusões do recurso, que delimitam o seu objeto, os recorrentes vêm arguir as nulidades de que padeceria, em seu entender, a sentença proferida nestes autos. Porém, analisado o teor das alegações de recurso, constata-se que a argumentação em que se fundam os recorrentes, a fim de consubstanciar as referidas nulidades, se reconduz a mera discordância com o sentido da decisão prolatada, não tendo sido aduzidos atos que integrem as disposições legais que elencam a nulidades da sentença. Com efeito, os recorrentes manifestam o seu desacordo com a valoração da prova efetuada pelo Tribunal, o que, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, decidindo o juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Por estas razões, entendo não verificadas as invocadas nulidades. Porém, V. Exas., os Senhores Desembargadores, melhor decidirão.” H. Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos. * I. Questões a decidir O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC). Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação. Assim, são as seguintes as questões em apreciação no presente recurso: 1. Se a decisão proferida é nula por falta de fundamentação; 2. Se, em caso de resposta negativa à questão precedente, deve ser admitida a impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente nas suas alegações; 3. Se, em caso de resposta negativa à primeira e afirmativa à segunda, deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da decisão recorrida; 4. Se, em caso de resposta negativa à primeira, deve ser alterada a relação de bens da herança em conformidade com a reclamação apresentada pelos Interessados (…) e (…). * II. FUNDAMENTAÇÃO*** * A. De facto*** * Não se procede à reprodução dos factos provados por não constarem da decisão recorrida.* Da nulidade da decisão por falta de fundamentação *** * Invoca o Recorrente a nulidade da decisão por falta de fundamentação.A falta de fundamentação, de facto ou de direito, constitui um vício determinante da nulidade da sentença, nos termos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Trata-se de norma que “…a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 10-05-21, 3701/18, STJ 9.9.20, 1533.17, STJ 2011.19, 62/07, STJ 2.6-16, 781/11).” No caso, a decisão recorrida vem proferida em incidente, no processo especial de inventário, de reclamação sobre a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal (cfr. artigos 1104.º e seguintes do Código de Processo Civil). Como resulta das disposições dos artigos 292.º e 1091.º do CPC, na falta de regulação especial é aplicável ao incidente da instância em apreço o disposto nos artigos 293.º a 295.º do Código de Processo Civil. De acordo com o disposto no artigo 295.º do CPC, “finda a produção de prova, pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 607.º” (sublinhado nosso). Referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, em anotação o artigo em apreço, que “o juiz pronuncia-se sobre os factos que julga provados e não provados, procedendo à apreciação crítica dos meios de prova e à especificação dos que se mostrem decisivos para a formação da convicção, em termos semelhantes aos previstos para a decisão principal (artigo 607.º), seguindo-se a decisão de direito que ao caso convier” (sublinhados nossos).[1] Sendo aplicáveis à decisão do incidente de reclamação contra a relação de bens no processo de inventário, os requisitos de elaboração da sentença, importa-nos atentar nos números 2 a 4 do artigo 607.º do CPC: “2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar. 3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.” O dever geral de fundamentação dos despachos e decisões (sentenças) proferidos no processo, resulta do princípio constitucional previsto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que impõe a todas as decisões judiciais que não sejam de mero expediente a necessidade de fundamentação para assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da CRP). O cumprimento desse dever implica que o juiz especifique os fundamentos de facto e de direito da decisão que profere, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3 e 4, do CPC, a fim de que esta decisão seja perceptível para os seus destinatários e que estes, face à fundamentação exposta na sentença, possam impugná-la quer de facto (através do recurso previsto no artigo 640.º do C.P.C.) quer de direito. Para tanto, deve proceder à indicação dos factos provados, dos factos não provados e, ainda, do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. Com Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, “o importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Objetivo que encontra agora na formulação do preceito um apoio suplementar, já que o n.º 4, 2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma sequência desordenada de factos atomísticos (…).” E, mais adiante, “…o juiz deve sinalizar cada um dos factos essenciais que foram alegados no processo por cada uma das partes, de forma a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito e evitar que, em sede de recurso de apelação, seja sentida a necessidade de anulação da audiência final para ampliação da matéria de facto (artigo 662.º, n.º 2, alínea c), in fine)” – (sublinhados nossos).[2] Compulsados os termos da decisão recorrida, constata-se que esta não contém factos provados e não provados. A parte fundamentação de facto da decisão recorrida limita-se a tecer considerações sobre a prova testemunhal produzida em audiência, nos termos que se transcrevem: “Com efeito, foram ouvidas as testemunhas (…), filha do interessado (…), (…), cunhado do interessado (…) e (…), que acompanhou a inventariada antes de esta ir para o lar. Estas testemunhas nenhum conhecimento directo têm dos factos em apreço, sobre a existência ou não de bens ou passivo da herança, detendo um conhecimento apenas muito residual e contraditório sobre quem apoiava a inventariada. (…) e (…), netos dos inventariados e filhos do reclamante elencaram diversos bens (coincidentes com alguns dos referidos na reclamação contra a relação de bens) que afirmam que constavam em casa dos inventariados, falando com recurso a apontamentos. Estas testemunhas frequentavam a referida casa com pouca regularidade pois residiam em localidades mais distantes. Ora, este conhecimento indireto e transmitido com recurso à leitura de apontamentos é insuficiente para se considerar demonstrado o alegado, pelo que, não tendo o reclamante logrado produzir qualquer outra prova dos factos invocados, como lhe competia, atentas as regras de distribuição do ónus da prova, estabelecidas no artigo 342.º do Código Civil, deve manter-se a relação de bens.” Seguidamente, passa ao segmento dispositivo e, sem mais, julga totalmente improcedente o incidente de reclamação contra a relação de bens. A decisão recorrida elabora sobre a prova testemunhal produzida em julgamento sem a reportar a qualquer facto provado ou não provado por ser certo que os não inclui, sequer por remissão para os articulados do incidente de reclamação contra a relação de bens. Considerada a alegação, pelos Interessados (…) e (…), da existência de bens da herança não relacionados pela cabeça-de-casal, de que os valores por esta atribuídos não estão correctos e de que há bens relacionados que já não existem, impunha-se que a matéria de facto reflectisse como provada ou não provada a matéria de facto na qual o Interessado / Reclamante sustenta as suas posições. Acresce que, relativamente à fundamentação jurídica, a decisão recorrida se limita a uma exposição sobre a tramitação processual do incidente de reclamação contra a relação de bens para concluir “…ser possível uma segura resolução…” das questões nele suscitadas. Nenhuma consideração produz quanto aos pressupostos fáctico-jurídicos de ordem substantiva que seria necessário ao Reclamante demonstrar para que a sua reclamação procedesse. Deste modo, à absoluta omissão de factos provados ou não provados, junta-se a ausência de enquadramento jurídico sobre os pressupostos da titularidade, pela herança, dos bens objecto de reclamação. No sentido de que integra os fundamentos de nulidade previstos no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, só podendo “…ser sanada pelo tribunal e magistrado que proferiu a sentença, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto…”, a decisão que «…não contém a descrição dos factos não provados, adoptando uma formulação genérica e obscura referindo-se aos “demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra”, sem que se possa extrair desta formulação a que factos concretos se refere o sr. Juiz a quo, o que desde logo inviabiliza que possa o recorrente, nesta parte, lançar mão do disposto no artigo 640.º do C.P.C., óbice que igualmente se verifica em relação ao tribunal ad quem, pelo desconhecimento da realidade fáctica que o Sr. Juiz recorrido, considerou não provada…», pronunciou-se, em termos que aqui se acompanham, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.10.2023, relatado pela Desembargadora Cristina Neves no processo n.º 525/21.4T8LRA.C1.[3] No caso vertente, como vimos, a decisão em recurso não se limita a omitir os factos não provados, mostrando-se também ausentes os provados e a apreciação crítica jurídico-substantiva justificativa da total improcedência da reclamação. Violou, assim, as disposições legais dos números 3 e 4 do artigo 607.º, ex vi dos artigos 295.º e 1091.º, n.º 1, todos do CPC, impossibilitando aos seus destinatários: - a compreensão de quais os factos, provados ou não, que estiveram presentes no espírito do juiz quando versou a prova testemunhal produzida em audiência, assim como dos pressupostos jurídicos do arrogado direito que se não mostram preenchidos; - de exercerem o direito de impugnação da decisão da matéria de facto, cumprindo a exigência formal de indicação expressa da redacção dos factos objecto de discordância, imposta pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC como condição da admissibilidade do recurso. Estamos, por isso, perante uma decisão cujo quadro factual e jurídico em que deveria sustentar-se, se mostra totalmente ininteligível e, consequentemente, é nula por falta de fundamentação (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC). Devem, assim, os autos ser devolvidos à 1ª instância, a fim de ser proferida nova decisão, contendo, para além do mais, os seguintes elementos omitidos e previstos pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil: - indicação dos factos provados e não provados constantes da reclamação e da resposta; e - fundamentação jurídica referente aos pressupostos, preenchidos ou não, pela matéria de facto provada. * Em consequência da declaração de nulidade, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Recorrente.* III. DECISÃO*** * Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:1. Anular a decisão recorrida, ordenando a baixa dos autos à primeira instância, a fim de esta suprir as causas da nulidade acima identificadas. 2. Custas pela parte vencida a final. * Notifique.Évora, 08 de Maio de 2025 Ricardo Miranda Peixoto (Relator) Ana Pessoa (1ª Adjunta) Filipe César Osório (2º Adjunto) __________________________________________________ [1] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 3ª edição, Almedina, 2024, pág. 379, anotação 6 ao artigo 295.º. [2] In Op. Cit., volume I, pág. 771, anotações 7 e 8 ao artigo 607.º. [3] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/50ec74c6537e635280258a52003879fc?OpenDocument |