Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ DE CARVALHO | ||
Descritores: | CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA RESTITUIÇÃO DO SINAL EM DOBRO MORA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO | ||
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Data do Acordão: | 03/27/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1. O sinal funciona como fixação das consequências do incumprimento, uma vez que se a parte que constitui o sinal deixar de cumprir a sua obrigação, a outra terá o direito de fazer sua a coisa entregue. Se o não cumprimento partir de quem recebeu o sinal, tem este que o devolver em dobro. 2. A resolução da promessa e as sanções da perda do sinal ou da sua restituição em dobro (artigo 442.º do Código Civil) só têm lugar no caso de inadimplemento definitivo da promessa, pelo que, havendo simples mora da parte de algum dos promitentes, já não se aplica o disposto no n.º 2 do referido artigo. 3. O não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil. 4. A excepção de não cumprimento do contrato promessa só opera quando a recusa do devedor se tenha por definitiva, de forma certa e irrevogável, quando ele não aproveita uma segunda oportunidade de cumprimento. 5. Para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do artigo 805.º do Código Civil, (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do artigo 808.º do Código Civil: perda do interesse do credor apreciada objectivamente e (iii) o decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória). (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3908/23.1T8PTM.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central de Competência Cível de Portimão – J1 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório: Na presente acção declarativa de condenação proposta por (…) contra (…) e (…), a Autora veio interpor recurso do saneador-sentença proferido. * A Autora pediu que os Réus fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), que lhe deveria ter sido entregue juntamente com a devolução do sinal de igual valor, por força do seu incumprimento culposo de contrato-promessa. * Em benefício da sua pretensão, a Autora invocou que, em 04/03/2023, celebrou com os Réus um contrato promessa de compra e venda, por via do qual estes lhe prometeram vender o prédio misto, sito em (…), em (…), Monchique, pelo valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), tendo na data da outorga do referido contrato feito entrega da quantia de € 50.000,00, a título de sinal. Adiantou ainda que foi convencionado que a escritura de compra e venda se devia realizar no prazo de 140 dias após a celebração do contrato promessa, mas que o prédio prometido vender foi alvo de obras não legalizadas realizadas pelos Réus após a data em que o adquiriram, as quais eram obstativas da outorga da escritura pública nos termos acordados, designadamente uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina, o que gerou a completa perda de confiança nos Réus. Por isso, a Autora enviou uma comunicação escrita, primeiro via email e depois através de carta registada com aviso de recepção, aos demandados, informando-os que considerava o contrato definitivamente incumprido por facto que lhes era imputável e que o resolvia, tendo reclamado o pagamento do sinal em dobro, o qual apenas lhe foi restituído em singelo. * Regularmente citados, os Réus apresentaram contestação, tendo alegado que as obras ilegais se cingiam a um tanque, o que era do conhecimento da Autora, que aceitou tal construção e a um alpendre amovível em madeira. Confrontados com o teor da notificação da Câmara Municipal de Monchique, os Réus afirmaram que contrataram de imediato um arquiteto com o propósito da obtenção de uma nova certidão camarária, que foi pedida em Setembro de 2023 e que em 24/07/2023, não obstante a resolução operada pela Autora, estavam disponíveis para celebrar o contrato prometido numa nova data. Os Réus defenderam que, ao avançar de imediato para a comunicação de rescisão contratual, a conduta da Autora foi infundada e que nunca ocorreu uma situação de mora, nem esta foi convertida em incumprimento definitivo. * Foi designada data para a realização de audiência prévia e o Tribunal a quo decidiu:a) julgar a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido que foi formulado pela Autora. b) declarar inexistir litigância de má-fé que seja imputável à Autora. * A recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:«A) O presente recurso tem por objecto o despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da causa, tendo julgado a presente acção improcedente e absolvido os RR. do pedido formulado pela A. B) A Autora alegou na sua p.i., essencialmente, que era impossível proceder à celebração do contrato definitivo em virtude de o prédio cuja venda lhe foi prometida conter obras ilegais, entre outros vícios, facto grave que os Réus lhe ocultaram, assim provocando a sua total quebra de confiança nos mesmos, e também devido ao teor do despacho camarário datado de 28 de Junho de 2023, segundo o qual a legalização de tais obras apresentava enorme dificuldade, dele constando um conjunto de obstáculos à celebração do contrato definitivo nos termos acordados (fosse no prazo contratualmente previsto, fosse num prazo mais alongado mas considerado razoável para a Autora ou para o homem médio colocado em idêntica situação), designadamente: · O prédio em apreço encontra-se localizado em espaço afecto à Reserva Agrícola Nacional e à Reserva Ecológica Nacional, pelo que, tendo sofrido alterações, não só carecia de licenciamento camarário, mas também de parecer favorável da Direcção Regional da Agricultura e da CCDR; · Desconformidade das áreas constantes das cadernetas urbanas de ambos os mencionados prédios urbanos (com os artigos matriciais n.ºs … e …) com as áreas certificadas pela Câmara Municipal de Monchique em 2004; · Foi verificado através de ortofotografias do local que ocorreu uma ampliação, uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina, entre outras alterações não licenciadas pelos Réus. C) A Autora teve conhecimento destes vícios no dia 08 de Julho de 2023, a escassos dias do termo do prazo estabelecido no contrato-promessa para a celebração do contrato definitivo. D) Foi esta situação de impossibilidade culposa, exclusiva e objectivamente imputável aos RR. que determinou o incumprimento definitivo do contrato promessa, pelo que a A. considerou o mesmo imediatamente resolvido, o que comunicou aos RR., que interpelou para procederem à devolução do dobro do sinal, sendo que estes lhe devem metade desse valor, ou seja, € 50.000,00 (cinquenta mil euros). E) A A. invocou ainda, de forma meramente cautelar e subsidiária, que, neste contexto, a verificar-se que as obras em causa seriam susceptíveis de legalização, não seria razoável para a mesma aguardar meses até que a mesma ocorresse (resultou provado que o pedido de legalização dos Réus só foi deferido no dia 07 de Novembro de 2023). F) A Mma. Juiz a quo considerou que a Autora emitiu a declaração resolutiva sem sequer permitir que ocorresse uma qualquer situação de mora e sem que fosse previamente aferida a natureza legalizável das obras. G) No seu entendimento estavam em causa obras “aparentemente de pequena relevância – uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina”, “(…) de cariz aparentemente secundário (já que se desconhece em que termos concretos ocorreu a ampliação dos imóveis)”, (sublinhado nosso) pelo que o que seria razoável, e conforme com a boa fé negocial, seria que a Autora, após conhecimento da posição do Município, a Autora tivesse concedido um prazo razoável aos Réus para procederem à legalização das obras, sob pena de, caso assim não procedessem, o contrato promessa se considerar definitivamente incumprido. H) Segundo a decisão recorrida só o incumprimento definitivo e culposo comina o regime previsto no artigo 442.º, n.º 2, do CC, não tendo o mero atraso no cumprimento das obrigações contratuais assumidas (que entende nem sequer ter existido no caso em apreço) aptidão para fundamentar o exercício do direito de resolução, exercido pela A. no dia 13 de julho de 2023. I) Isto é, que, caso as obras ilegais que se afiguravam impeditivas da obtenção de documento necessário à formalização da escritura pública, fossem legalizáveis, impunha-se, de acordo com a boa fé negocial, que a A. tivesse, antes de emitir a sua declaração resolutiva, interpelado os RR. para proceder à sua legalização, sob pena de, não o fazendo, a obrigação de celebração do contrato prometido se ter como definitivamente por não cumprida, considerando que a mesma exerceu precocemente o seu direito de resolução do contrato-promessa já que ainda não existia qualquer situação de mora. J) Para o Tribunal a quo, a Autora não tinha qualquer fundamento para a alegar a existência de perda de interesse objetivo no cumprimento do contrato em consequência de uma situação de mora por esta não ter existido existiu, tendo a mesma agido como se o termo fixado para a celebração da escritura fosse essencial, sendo que tal essencialidade tem que ser expressamente prevista no contrato. K) Com o devido respeito, que é muito, não pode a Autora conformar-se com tal decisão. L) No entendimento da Autora o saneador-sentença em apreço encontra-se ferido de nulidade por omissão de pronúncia e por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento. M) O Douto Tribunal nunca se pronunciou sobre a sua perda de confiança da A. nos RR. em virtude de estes lhe terem mentido, ocultando a existência de obras ilegais, desconformidades de áreas e o facto de o imóvel em causa se situar em espaço afecto à Reserva Agrícola Nacional e à Reserva Ecológica Nacional, N) O que fizeram para a persuadir de que o prédio em apreço estava em condições de ser vendido na data fixada (quando bem sabiam que não estava), tendo inclusive tentado que esta marcasse a escritura no Cartório Notarial de Lagoa, que achavam que não exigiria uma certidão camarária actualizada por nele terem arquivada a sua própria escritura de aquisição daquele imóvel, susceptível de atestar não ser obrigatória a apresentação de licença de utilização para aquele prédio em 2004; O) Referiu a Mma. Juíza a quo que se impunha à Autora, em nome da “boa fé negocial”, conceder aos Réus um prazo razoável para estes procederem à legalização das obras, o que é incompreensível porquanto a mesma jamais se pronunciou sobre a má fé dos RR. na sua conduta para com a A. (por esta devidamente alegada), o que lhe competia apreciar em audiência de discussão e julgamento, o que não sucedeu. P) Ao proferir decisão de mérito com base em factos que admitiu desconhecer, como é o caso das obras ilegais nos termos por si descritos, mal andou o Tribunal a quo já que conheceu de questões que não lhe competia apreciar por não estar munido de elementos de prova imprescindíveis para tanto. Q) O Tribunal a quo proferiu decisão de mérito em momento em que o estado do processo não lho permitia, por carecer de mais provas. R) A decisão recorrida está ferida de nulidade (quer por omissão, quer por excesso de pronúncia), conforme dispõem os artigos 595.º, n.º 1, alínea b), 608.º, n.º 2 e 615.º do C.P.C., pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que conheça adequadamente das questões suscitadas, após realização de audiência de julgamento. Sem jamais prescindir, ad cautelam, S) A decisão em crise violou o disposto nos artigos 801.º, 808.º, 442.º, 762.º e 236.º, todos do C.C. e 595, n.º 1, alínea b), do C.P.C.. T) Para o Tribunal a quo as obras ilegais (que foram ocultadas da Autora) eram “aparentemente de pequena relevância – uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina” e “(…) de cariz aparentemente secundário (já que se desconhece em que termos concretos ocorreu a ampliação dos imóveis)”, o que demonstra que o mesmo alicerçou a sua convicção em factos que eram insuficientes para que pudesse proferir uma decisão de mérito. U) Caso V. Exas. assim não entendessem, o que não se concebe, mas equaciona por dever de cautela de patrocínio, sempre deveria a presente acção ser considerada procedente, com a condenação dos RR. no pedido por se ter verificado a impossibilidade objectiva e culposa de cumprimento, imputável em exclusivo aos Réus. V) Os Réus, que se comprometeram a ter o imóvel nas condições legalmente exigíveis para a sua venda, não cumpriram tal obrigação devido a factos que os mesmos causaram culposamente (deles tendo, logicamente, perfeito conhecimento), sendo que o contrato prometido deixou de se realizar porque os RR. fizeram obras sem cumprirem a lei e tentaram esconder tal facto da Autora, em clara má fé! W) Não fora a recusa dos Cartórios de Portimão consultados pela A. em celebrar a aludida escritura com um documento camarário de 2004 e o facto de a A. os obrigar a pedir uma nova certidão camarária, os RR. nada fariam, crentes de que conseguiriam vender o imóvel sem que as ilegalidades do mesmo fossem expostas (tanto assim foi que tentaram persuadir a Autora a celebrar a escritura no Cartório Notarial de Lagoa nos termos acima descritos), o que não sucedeu pois a A. tinha-se obrigado contratualmente a agendar a escritura num Cartório Notarial em Portimão, tendo estranhado nenhum cartório sito nessa localidade aceitar celebrar o acto. X) Está em causa a impossibilidade objectiva de cumprimento já que os RR. assumiram conscientemente o risco da impossibilidade de concretização do contrato definitivo por existência de obras ilegais, o que só a eles é imputável, bem sabendo da sua clandestinidade. Y) Os RR. viram a situação exposta pelo despacho camarário datado de 28 de Junho de 2023, de que a A. só teve conhecimento a 08 de Julho de 2023, tendo a mesma concluído que só lhe restava resolver o contrato-promessa sub iudice em virtude de ter ocorrido um incumprimento objectivo e doloso das obrigações dele advindas, exclusivamente imputável aos Réus. Z) A Autora não necessitava que ocorresse o término do contrato para saber que entre a data em que enviou a sua declaração resolutiva aos RR. e a data até à qual poderia ser celebrado o contrato definitivo (no espaço de apenas dez dias) os vícios verificados no imóvel prometido vender subsistiriam. AA) O Tribunal a quo não podia olvidar que as obras que a A. descobriu estarem ilegais a poucos dias da outorga do contrato definitivo existiam por culpa única e exclusiva dos RR., circunstância esta à qual os mesmos não eram logicamente alheios, contudo considerou que cabia àquela proceder à sua interpelação, em nome da boa fé negocial, asserção esta que se entende como contrária à lei. BB) O incumprimento definitivo não ocorre apenas quando o devedor não cumpre no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor ou quando o credor perde o interesse objectivo na prestação em virtude de a mesma não ser realizada ou de ocorrer um atraso na sua concretização (i.e., quando ocorre mora), verificando-se igualmente nos casos em que o devedor adopta uma conduta manifestamente incompatível com o cumprimento ou declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito. CC) Em ambos os casos há incumprimento definitivo por causa imputável ao devedor, sendo o mesmo responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação (artigo 801.º do Código Civil). DD) A conduta que os Réus adoptaram é manifestamente incompatível com o cumprimento do contrato, ademais atenta a sua má fé negocial. EE) Neste caso, não é necessário que o credor confira ao devedor um prazo suplementar para haver incumprimento definitivo: o comportamento do devedor é suficiente para se perceber que não realizará a sua prestação nos termos contratualizados. FF) Cumprir a obrigação é realizar a prestação devida, ao abrigo dos princípios da boa fé e da integralidade, pelo que credor e devedor estão ambos vinculados a um dever de actuar de boa fé, nos termos do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil. GG) A decisão recorrida violou o disposto no artigo 762.º do C.C. por não apreciar a conduta dos RR. ao abrigo do dever de boa fé a que estavam adstritos. HH) De acordo com o n.º 1 do artigo 801.º do C.C., a resolução por incumprimento implica o incumprimento definitivo, sendo que a prestação se torna impossível por causa imputável ao devedor, o qual é responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. II) Determina o n.º 2 do mesmo preceito que, se a obrigação tiver por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato, independentemente do direito à indemnização. JJ) Tendo ocorrido o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa sub iudice, a Autora agiu de forma totalmente justificada e legítima ao comunicar aos Réus que se verificou a resolução do contrato por força da sua conduta culposa, assistindo-lhe, por isso, o direito a deles exigir o dobro do que prestou, como prevê o n.º 2 do artigo 442.° do Código Civil. KK) Não se verificou nos presentes autos o mero não cumprimento, que acarretaria a simples mora, inexistindo necessidade de fixação de prazo pela Autora ou de invocação de perda de interesse objectivamente considerado. LL) Esta última hipótese foi subsidiariamente equacionada pela Autora na eventualidade de o Tribunal a quo entender não lhe assistir o direito de resolver o contrato-promessa em causa, nomeadamente por a sua declaração de resolução contratual da Autora não produzir quaisquer efeitos por falta de fundamento legal. MM) Neste cenário, e sem olvidar que os RR. não tinham quaisquer condições de celebrar o contrato prometido na data fixada (24 de Julho de 2023), bem sabendo que a legalização das obras em causa levaria meses, como se veio a confirmar documentalmente, a Autora invocou que lhe assistiria o direito de invocar a perda objectiva de interesse. NN) Conforme consta do ofício camarário junto aos autos a pedido do Tribunal, os Réus nunca cumpririam o prazo acordado no contrato - promessa de compra e venda sub iudice (o seu pedido de legalização só foi deferido só a 07 de Novembro de 2023). OO) Caso o Tribunal a quo entendesse que os factos alegados pela Autora não consubstanciavam uma situação de incumprimento definitivo, o teor do ofício camarário por si solicitado veio comprovar que foram precisos meses para a reposição da legalidade pelos Réus, o que a decisão recorrida desvalorizou. PP) Não era expectável a ninguém, nas condições em que a Autora se encontrava, esperar sensivelmente quatro meses para poder mudar-se com a sua família. QQ) A Autora elencou na sua p.i. os transtornos que a ocultação das ilegalidades levada a cabo pelos Réus lhe causou pois, por neles ter confiado completamente, planeou iniciar a sua mudança, em conjunto com a sua família, em Agosto, tendo, inclusive, matriculado os seus três filhos menores num colégio próximo da localização do prédio em análise, tudo com base em expectativas que os Réus permitiram que se criassem na mesma. RR) Os RR. bem o sabiam pois autorizaram a A. a ir ao prédio em causa com um empreiteiro para que iniciasse melhoramentos na parte habitacional assim que fosse celebrado o contrato definitivo (visita essa em que estiveram presentes), o que reforça a gravidade da sua actuação culposa. SS) Quanto à questão do prazo, entendeu o tribunal a quo que a sua essencialidade só poderia existir se resultasse do teor do contrato-promessa em apreço, contudo, de acordo com o disposto no artigo 236.º do C.C., o significado da estipulação de um prazo para execução de um contrato varia consoante o caso concreto, impondo-se averiguar sempre, através das regras de interpretação do negócio jurídico, a precisa intencionalidade da fixação desse prazo. TT) Impunha-se ao Tribunal a quo apreciar o caso concreto à luz do alegado pela A., lançando mão da actividade interpretativa referido na citado preceito legal, de forma a apurar se estaria ou não em causa um prazo absolutamente fixo, ou fatal, o que não fez, assim violando o disposto no artigo 236.º do Código Civil. UU) O comportamento da Autora era suficiente para que os Réus percebessem da essencialidade que o prazo tinha para si, o que cabia ao Tribunal aquilatar, mediante produção de prova a realizar no âmbito de audiência de julgamento. VV) Optou o mesmo por apreciar do mérito da causa sem ter ao seu dispor todos os elementos probatórios para tanto imprescindíveis, assim proferindo uma decisão injusta. WW) A decisão recorrida incorreu na violação das normas constantes dos artigos 801.º, 808.º, 442.º, 762.º e 236.º, todos do C.C. e 595.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C.. XX) Normativos legais impunham ao Tribunal a quo determinar a prossecução dos autos para que fosse realizada audiência de julgamento com vista à produção da prova imprescindível à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. YY) A celebração do contrato definitivo tornou-se impossível por causa objectivamente imputável aos RR., que bem sabiam que o prédio que prometeram vender à Autora padecia de vícios graves que impediam a outorga da escritura de compra e venda, o que esconderam da Autora, com clara má fé negocial. ZZ) O despacho camarário de 28.06.2023 demonstrava à saciedade que a eventual regularização de tais vícios seria complexa e lenta. AAA) A descoberta destas ilegalidades pela A. ocorreu no passado dia 08 de Julho de 2023, a escassos dias do termo do prazo estabelecido no contrato promessa para a celebração do contrato definitivo. BBB) Foi esta situação de impossibilidade culposa, exclusiva e objectivamente imputável aos RR., que determinou o incumprimento definitivo do contrato promessa, o que determinou a emissão da declaração resolutiva pela Autora. CCC) Dispõe o artigo 442.º, n.º 2, do C.C. que, se o não cumprimento do contrato for devido ao contraente que não constituiu o sinal, isto é, o promitente vendedor, tem o outro contraente (promitente comprador) a faculdade de exigir o dobro do que prestou. DDD) A douta decisão recorrida julgou, erradamente (com todo o respeito) não existir incumprimento definitivo por impossibilidade culposa, exclusiva e objectivamente imputável aos Réus.. EEE) Pelo que, ao julgar a presente acção improcedente violou os artigos 801.º, 808.º, 442.º, 762.º e 236.º, todos do C.C. e 595.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C.. FFF) Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da acção, com a baixa dos autos à 1.ª Instância, para apreciação e julgamento do peticionado pela Autora. Só assim se fazendo a costumada Justiça!». * Os Recorridos apresentaram resposta em que defenderam a manutenção da decisão recorrida, alegando, para além do mais, que foi apresentada factualidade nova em sede de recurso e que nunca se verificou um quadro de mora nem de incumprimento definitivo. * Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso: É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma). Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de: a) Nulidade por omissão de pronúncia. b) Nulidade por excesso de pronúncia. c) Erro na apreciação da matéria de direito. * III – Dos factos apurados: 3.1 – Factualidade provada: Estão provados, com base na prova documental, com relevo para a decisão a proferir os seguintes factos: 1) Através de documento particular, datado de 04 de Março de 2023, foi celebrado entre as partes, acordo epigrafado de «contrato promessa de compra e venda», por via do qual os Réus, na qualidade de promitentes vendedores, se comprometeram a vender, à Autora, na qualidade de promitente compradora, o prédio misto sito em (…), em (…), na freguesia de (…) e concelho de Monchique, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), e nas matrizes prediais urbanas sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…), da freguesia de (…), pelo valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros). 2) A aquisição do imóvel identificado em 1) foi registado a favor dos Réus (…) e (…), na competente Conservatória, através apresentação n.º (…), de 06/05/2004. 3) Foi pago pela Autora aquando da subscrição do contrato referido em 1), a título de sinal e princípio de pagamento, com referência ao preço convencionado, o valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), sendo o restante valor, segundo o estipulado, pago aquando da celebração da escritura notarial de compra e venda – cfr. cláusula terceira do contrato. 4) Ainda segundo o acordado, a escritura de compra e venda seria outorgada no prazo de 140 dias, a contar da data da assinatura do contrato, ou seja, até 24 de Julho de 2023, num Cartório Notarial de Portimão, em hora e dia a indicar pela promitente compradora, ficando os promitentes vendedores onerados com o dever de facultar toda a documentação necessária à realização da escritura pública, nomeadamente certidões, caderneta predial, certificado energético – cfr. cláusula quarta do contrato. 5) Previram ainda as partes que o incumprimento definitivo do contrato pelos promitentes vendedores conferiria à Autora o direito de resolução do contrato promessa de compra e venda e o direito de exigir dos Réus/vendedores a restituição em dobro das importâncias entregues a título de sinal – cfr. cláusula nona do contrato. 6) O Réu, em 9 de Junho de 2023, solicitou ao Município de Monchique que certificasse, para efeitos notariais, que os prédios urbanos inseridos no prédio misto prometido vender, com os artigos (…) e (…), haviam sido construídos anteriormente à data de entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas. 7) Por despacho datado de 28 de Junho de 2023, o Município de Monchique indeferiu a emissão da certidão requerida, com fundamento no facto dos prédios urbanos se encontrarem localizados em espaço afecto à Reserva Agrícola Nacional e à Reserva Ecológica Nacional, as áreas constantes das cadernetas urbanas de ambos os mencionados prédios urbanos não se encontrarem em conformidade com as áreas certificadas pela Câmara Municipal de Monchique em 2004; os prédios terem sofrido alterações que careciam de licenciamento, bem como de parecer favorável da Direção Regional da Agricultura e da CCDR, em razão da sua localização, por do mesmo constarem alterações não licenciadas pelos Réus, nomeadamente, uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina, tendo os Réus sido notificados de que tinham 60 (sessenta) dias úteis a contar da data de recepção do invocado ofício da Câmara Municipal de Monchique para apresentar junto da mesma um requerimento de legalização instruído com um projeto das operações urbanísticas levadas a cabo sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento. 8) No dia 13 de Julho de 2023, a Autora remeteu aos Réus e-mail no qual invocou que o prédio cuja venda foi prometida se encontrava ilegal, sendo, por isso, atenta a proximidade do termo do prazo para tanto estabelecido no contrato-promessa, impossível proceder à celebração do contrato definitivo, o que alegou consubstanciar uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, motivo pelo qual exigiu o pagamento, no prazo de cinco dias úteis, do dobro do sinal que havia prestado. 9) Por carta registada, com aviso de recepção, datada de 14/07/2023, a Autora repetiu o envio da comunicação referida em 8). 10) Os Réus em 24/07/2023 remeteram via postal, uma missiva que dirigiram à mandatária da Autora e que foi pela mesma rececionada a 26/07/2023, dando-lhe conhecimento de que não haviam feito obras adicionais que fossem para além de um alpendre e de um tanque de rega (sendo que a existência desta última construção era do seu conhecimento), que não obstante a resolução unilateral do contrato promessa, estavam ainda disponíveis para celebrar o contrato prometido numa nova data, nomeadamente, assim que fosse emitida nova certidão a emitir pela Câmara Municipal. Sendo que, em alternativa, caso a Autora mantivesse a intenção de desistir definitivamente da celebração do contrato prometido, os Réus estavam igualmente disponíveis para procederem à restituição do sinal em singelo. 11) Devolução do sinal foi concretizada pelos Réus, ante invocação de ausência de resposta à carta referida em 10), no dia 02/09/2023, tendo os mesmos remetido via postal, no dia 04/09/2023, à mandatária da Autora, o respectivo comprovativo da restituição do sinal. 12) Em 29 de Setembro de 2023, os Réus solicitaram novamente a emissão de declaração que fosse certificativa que o imóvel prometido vender havia sido construído em data anterior a entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Dec. Lei n.º 38382, de 07/08/1951. 13) Em 17 de Outubro de 2023, a Ré comunicou ao Município de Monchique que havia sido reposta a legalidade, e em 07 de Novembro de 2023 foi deferido pelo Município de Monchique o pedido de emissão da certidão referida em 6) e 12), a qual viria a ser emitida com data de 13 de Janeiro de 2024. * 3.2 – Factualidade não provada[1]: Inexiste. * IV – Fundamentação: 4.1 – Da nulidade por omissão e excesso de pronúncia: De acordo com a primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a sentença é nula, quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». Entende a recorrente que o Tribunal a quo violou a sobredita norma, por não se ter pronunciado sobre a sua perda de confiança da Autora, em virtude de os Réus lhe terem mentido, ocultando a existência de obras ilegais, desconformidades de áreas e o facto de o imóvel em causa se situar em espaço afecto à Reserva Agrícola Nacional e à Reserva Ecológica Nacional, nem sobre a má fé dos promitentes vendedores. É a violação daquele dever que torna nula a decisão e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz em denegação de justiça e o excesso de pronúncia configura uma violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes. Questões submetidas à apreciação do Tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, as quais correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa estipulada no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Na esteira do preconizado por Alberto dos Reis há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. Na realidade, «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão»[2]. Amâncio Ferreira evidencia que se trata da nulidade mais invocada nos tribunais, «originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda»[3]. Deste modo, o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas[4] [5]. É jurisprudência consolidada e absolutamente pacífica que não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o Tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras[6]. E na hipótese vertente existe uma identidade absoluta entre as pretensões deduzidas pelas partes e a matéria solucionada pelo Tribunal e, por conseguinte, não existe omissão de pronúncia. * A recorrente pugna igualmente que a decisão recorrida peca por excesso de pronúncia, ao ter conhecido de questões que não lhe competia apreciar em virtude de não se encontrar munida de elementos de prova necessários e imprescindíveis para tanto. O excesso de pronúncia trata-se de um mero corolário do princípio do dispositivo, numa área que constitui o núcleo irredutível deste princípio[7], infringindo a regra segundo a qual ne eat iudex vel extra petita partium. E na hipótese vertente existe igualmente uma identidade absoluta entre as pretensões deduzidas pelas partes e a decisão. Se a interpretação e a relevância que o saneador-sentença deu a certos factos e se a conclusão que deles se extraiu foram, ou não, as mais correctas, é questão que tem a ver com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que nada tem a ver com o cometimento de uma nulidade decisória. Saber-se se o processo se encontrava em condições de ser proferida decisão imediata e se existe a necessidade de produção de prova adicional é questão que não se enquadra na figura da nulidade por excesso de pronúncia. O Tribunal a quo limitou-se assim a resolver de forma diferente daquela que foi requerida pela Autora, mas dentro do arco de protecção do objecto processual alargado pelo conteúdo da defesa apresentada pelos Réus. E todo o desenvolvimento argumentativo da 1ª Instância assenta claramente nos fundamentos balizadores da causa. Nesta ordem de ideias, não se verifica a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, tanto na perspectiva da omissão como do excesso de pronúncia. * 4.2 – Do erro de direito – Da resolução contratual e do direito ao sinal em dobro: As partes celebraram, entre si um contrato-promessa de compra e venda relativo a um imóvel e a escritura pública de compra e venda deveria ser celebrada até 24 de Julho de 2023. É frequente associar-se à celebração do contrato-promessa de compra e venda a entrega de quantias por parte do promitente comprador, com vista a assegurar que, em caso de incumprimento por parte de um dos contraentes, a parte faltosa fica vinculada a ressarcir o credor em montante previamente determinado que será equivalente ao valor da quantia entregue a título de sinal ou ao dobro desta, consoante os casos, estipulando-se, dessa forma, antecipadamente, o valor da sanção pecuniária destinada a ressarcir o lesado. As partes previram que o incumprimento definitivo do contrato pelos promitentes vendedores conferiria à Autora o direito de resolução do contrato promessa de compra e venda e o direito de exigir dos vendedores a restituição em dobro das importâncias entregues a título de sinal. Aquando da subscrição do contrato em causa, a título de sinal e de princípio de pagamento, a Autora procedeu à entrega de € 50.000,00, quantia essa que foi devolvida no dia 04/09/2023. Ainda antes do termo final para a celebração do contrato definitivo, no dia 13/07/2023, a Autora remeteu aos Réus e-mail no qual invocou que o prédio cuja venda foi prometida se encontrava ilegal, sendo, por isso, atenta a proximidade do termo do prazo para tanto estabelecido no contrato-promessa, impossível proceder à celebração do contrato definitivo, o que alegou consubstanciar uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa. Por carta registada, com aviso de recepção, datada de 14/07/2023, a Autora repetiu o envio da referida comunicação. Em 24/07/2023, os Réus remeteram via postal, uma missiva que dirigiram à mandatária da Autora, na qual davam conhecimento que, não obstante a resolução unilateral do contrato promessa, estavam ainda disponíveis para celebrar o contrato prometido numa nova data. A alegada ilegalidade estava relacionada com uma obra de impermeabilização do solo e com a construção de uma piscina, as quais foram objecto de uma intervenção posterior reconstitutiva por parte dos Réus. Nessa sequência, em 17/10/2023, a Ré comunicou ao Município de Monchique que havia sido reposta a legalidade e, em 07/11/2023, foi deferido pelo Município de Monchique o pedido de emissão da certidão necessária para a celebração da escritura. A certidão em causa foi emitida em 13/01/2024. Aquilo que se pergunta é se a Autora tem direito à devolução do sinal em dobro? * Num esforço de síntese das posições assumidas pela doutrina mais avalizada podemos defender que o incumprimento é uma categoria da violação contratual positiva que abraça realidades diversas axiologicamente distintas como: a) O incumprimento definitivo, propriamente dito; b) A impossibilidade de cumprimento; c) A conversão da mora em incumprimento definitivo – artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil; d) A declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não; e) E, segundo outros, o próprio cumprimento defeituoso. O direito de resolução, diz-se, é um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento. O que significa que precisa de se verificar um facto que crie este direito – melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo. Tal facto ou fundamento é aqui, obviamente, o facto de incumprimento ou situação de inadimplência[8]. Brandão Proença disserta que «paradigma do fundamento resolutivo é o incumprimento superveniente, culposo, total ou parcial, traduzido na falta definitiva de cumprimento (por impossibilidade ou recusa de cumprimento) dos deveres de prestação e de certos deveres de conduta tidos por relevantes no contexto contratual»[9]. Adianta ainda que «essa exigência de um fundamento importante, de um fundamental breach, na linguagem anglo-saxónica, isto é de um incumprimento com determinada gravidade (apreciada sobretudo pela intensidade da possível culpa, pela amplitude, pelas consequências o reiteração da violação e, portanto, em função do todo da relação contratual) está em sintonia com a finalidade do instituto da resolução (ratio extrema ou ultima ratio) e permite submeter a figura a um controlo axiológico balizado pela boa fé e, mais concretamente, pelo abuso do seu exercício perante um incumprimento insignificante, pouco prejudicial, ou alegando o credor mera conveniência pessoal ou um aproveitamento das circunstâncias. Há que valorar a natureza do dever violado (podemos estar perante um dever principal ou um dever acessório impeditivo do cumprimento do principal, um dever de prestação sujeito a um termo essencial ou absolutamente fixo, um dever lateral importante, etc.), a forma como se manifesta (estamos a pensar na recusa intencional, clara e inequívoca de cumprimento manifestada por um dos contraentes) tudo em ordem à afectação negativa da substância do contrato e a fundar, enquanto causa adequada, a pretendida ou declarada cessação negocial»[10]. Assim, para que ocorra uma situação transformadora da situação jurídica estabelecida num contrato, a lei exige a eclosão de um estado patológico da relação contratual que torna impossível a continuação do sinalagma que se havia estabelecido entre os sujeitos da relação contratual. Não basta, portanto, um estado subjectivo paralisante da relação, mas, outrossim, que o nível ou grau de incumprimento de uma das partes seja de tal modo relevante e influente na relação jurídica que torne inviável e invadeável a sua manutenção, ou seja uma “substantial failure to perform”[11]. A resolução (contratual) é uma forma condicionada, vinculada e retroactiva de extinção dos contratos: condicionada por só ser possível quando fundada em lei ou convenção; vinculada por requerer que se alegue e demonstre determinado fundamento e retroactiva por operar desde o início do contrato (artigo 433.º do Código Civil). Fala-se também por vezes em rescisão: esta equivale à resolução, sendo utilizada, preferencialmente, para designar a resolução fundada na lei[12]. No fundo, a resolução é a destruição da relação contratual operada por um dos contraentes com base num facto posterior à celebração do contrato e tem efeitos retroactivos[13]. A resolução caracteriza-se ainda por ser normalmente de exercício vinculado (e não discricionário), no sentido de que só pode ocorrer se se verificar um fundamento legal ou convencional que autorize o seu exercício (artigo 432.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, se ocorrer esse fundamento, o contrato pode ser resolvido. Se não ocorrer, a sua resolução não é permitida (artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil). O fundamento legal mais comum para a resolução do contrato é o incumprimento da outra parte (artigo 801.º, n.º 2, do Código Civil). No entanto, é ainda admissível a resolução com base na justa causa e um dos efeitos desta é a eficácia retroactiva, o que determina, a par da extinção do contrato, o surgimento de obrigações de restituição. Nos contratos bilaterais, o direito de resolução funciona, como uma constante, nos casos de incumprimento definitivo do devedor, em que a prestação já não é possível, enquanto que, nas hipóteses de mora, onde a prestação ainda pode ser realizada, a resolução está condicionada pela perda do interesse para o credor ou pelo decurso de um novo prazo razoável[14]. O problema que nos ocupa está relacionado com a substância da resolução e, como vimos, a resolução não é um acto livre e configura um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento. E a resolução feita pela aqui Autora foi precipitada, a realização da prestação era claramente possível e, como tal, na data e nos termos em que foi concretizada terá de ser considerada infundamentada. Na realidade, confrontada com uma dificuldade na obtenção de documentos necessários à realização do contrato de compra e venda, ainda antes do período estabelecido para a celebração do negócio prometido, sem realizar qualquer intimação da parte contrária para a celebração do acordo definitivo e não concedendo um prazo razoável para remoção dos entraves surgidos a Autora resolveu o contrato. Em adição, verifica-se que em menos de três (3) meses a situação estava regularizada e que em seis (6) meses foi disponibilizada a documentação que mostrava necessária para a conclusão do contrato prometido, sendo que, de acordo com as regras da normalidade negocial, o tempo decorrido era perfeitamente razoável e se situava no arco da protecção da boa fé negocial. Estávamos assim perante um cenário em que podia ainda ser executada a relação contratual, cuja resolução foi operada intempestivamente pela Autora e a perda de interesse sustentada pela compradora não têm os contornos legais, doutrinais e jurisprudencialmente exigidos para a respectiva operacionalização. Efectivamente, ainda que ocorresse um cenário de violação do dever de informação e de outros deveres associados nunca estariam presentes os elementos indispensáveis a concluir pela perda do interesse do credor, fosse ou não a questão submetida a julgamento. Caso prevalecesse entendimento contrário, a resolução infundada por parte da compradora impossibilitaria que o outro contraente tivesse a possibilidade de repor o equilíbrio contratual no campo da reconstituição da obrigação devida. O percurso analítico que é realizado no saneador-sentença agora impugnado é acertado quando, ao realizar uma leitura integrada dos termos do próprio contrato e do comportamento posterior dos contraentes vendedores, acaba por concluir que uma prorrogação de prazo razoável permitiria que o contrato não fosse rompido e a situação descrita não cabe na esfera de previsão do artigo 808.º do Código Civil. Na verdade, tal como consta do enunciado do acto recorrido, «afigura-se-nos que a autora emitiu a declaração resolutiva sem sequer permitir que ocorresse uma qualquer situação de mora e sem que fosse previamente aferida a natureza legalizável das obras, sendo que estava em causa obras aparentemente de pequena relevância – uma impermeabilização do solo e a construção de uma piscina. Pelo que o que seria razoável, e conforme com a boa fé negocial, era que tendo tido conhecimento da posição do Município, a autora, num contexto em que o termo fixado não tinha natureza essencial, tivesse concedido aos réus um prazo razoável para proceder à legalização das obras». Sousa Ribeiro sustenta, com um bom catálogo de argumentos, que a excepção de não cumprimento do contrato promessa só opera quando a recusa do devedor se tenha «por definitiva, de forma certa e irrevogável, quando ele não aproveita uma segunda oportunidade de cumprimento»[15]. Nas palavras de Antunes Varela, «a perda do sinal é uma sanção sempre colimada à falta de cumprimento da obrigação daquele que o constituiu», acrescentando ainda que «a perda do sinal imposta a quem o constituiu anda indissoluvelmente ligada à resolução ou à desistência (ao recesso, como lhe chamam os autores italianos) do contrato, ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo»[16]. Também a jurisprudência tem entendido que «a resolução da promessa e as sanções da perda do sinal ou da sua restituição em dobro (artigo 442.º do Código Civil) só têm lugar no caso de inadimplemento definitivo da promessa», pelo que, havendo simples mora da parte de algum dos promitentes, «já não se aplica o disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, embora o promitente lesado tenha direito a uma reparação pelos danos causados, nos termos do artigo 804.º do Código Civil»[17]. A jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que, salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil. Para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do artigo 805º do Código Civil, (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do artigo 808.º do Código Civil: perda do interesse do credor apreciada objectivamente e (iii) o decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória). Nas palavras de Menezes Cordeiro o interesse do credor deve ser apreciado objectivamente – artigo 808.º/2 – isto é, deve ser tomado como a aptidão que tenha a prestação para satisfazer as necessidades do credor[18]. De acordo com a mais avalizada jurisprudência «o caminho da resolução automática não se compadece com a rectidão contratual e com a lealdade de actuação, exigida a ambas as partes em todo o percurso negocial ou pré-negocial em que estão comprometidas, em negócios desta natureza e finalidade. Seria forçar a natureza das coisas e delas assimilar, por mau de mais, a realidade que projecta em certos contratos da vida corrente, pela consideração impositiva de um prazo absoluto ou peremptório, que, quase às cegas, os fizesse extinguir»[19]. Não se pode considerar a sanção legal como uma pura condição resolutiva automática[20] mas antes é necessário ponderar o uso social corrente do instituto e o conteúdo e as finalidades do contrato e, bem assim, as demais circunstâncias particulares em que se originou e se desenvolveu o negócio prometido. Por conseguinte, não releva uma simples perda subjectiva do interesse ou mudança da vontade do credor na prestação em mora, pois o direito de resolução depende do carácter objectivo, razoável ao comum da actuação negocial e que os contraentes ajam de acordo com os ditames da boa-fé, de lisura e probidade no trato negocial, ainda que em fase de mora. Todavia, como correctamente dizem os apelados, os vendedores nunca estiveram sequer em mora e «impunha-se à Apelante que tivesse notificado os Apelados para a celebração do contrato definitivo», sendo que a adquirente «devia ter procurado interpelação para efeito, num prazo razoável, para os Apelados cumprirem a promessa de venda, sob pena de perder o seu interesse, legitimando assim aquela a considerar o contrato definitivamente incumprido». Concorda-se assim com o entendimento que o direito de resolução do contrato promessa por parte da Autora foi efectivado de forma precoce, sem que tivesse sequer ocorrido uma qualquer situação de mora – a Autora emite a declaração resolutiva em 14/07/2023, antes do termo final para a outorga do contrato definitivo –, inexistindo assim uma situação de incumprimento definitivo, que viabilize a devolução do sinal em dobro. Retomando a questão da não produção de prova, na concepção de Lebre de Freitas o conhecimento imediato do mérito pode derivar de inconcludência do pedido, procedência ou improcedência de excepção peremptória e procedência ou improcedência do pedido[21]. O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto[22]. Porém, neste caso, tendo presente os dados acima assinalados (em particular, a questão da precocidade da declaração resolutiva, da não concessão de um prazo razoável para a celebração do contrato definitivo e a subsequente reparação do motivo que era temporalmente obstaculativo da realização da escritura na data acordada), ainda que houvesse julgamento, qualquer que fosse a matéria de facto acrescentada – sendo que, neste domínio, a matéria invocada ex novo neste recurso não poderia ser apreciada, por constituir uma nova causa de pedir –, a pretensão deduzida estaria condenada à improcedência. Nestes termos, confirma-se a decisão recorrida e julga-se improcedente o recurso interposto. * V – Sumário: (…) * VI – Decisão:Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante, nos termos e abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil. Notifique. * Processei e revi. * Évora, 27/03/2025 José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho Isabel Matos Peixoto Imaginário Mário João Canelas Brás __________________________________________________ [1] Ficou consignado na sentença que: «não se comprovou qualquer outra factualidade concreta que tivesse sido alegada, não tivesse sido impugnada e que assumisse relevo para a boa decisão da presente causa». [2] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Coimbra, 1981 (reimpressão), pág. 143. [3] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, pág. 57. [4] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), pág. 141. [5] A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 688. [6] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2004 e 02/12/2013, in www.dgsi.pt. [7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 675. [8] João Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em Homenagem ao Professor J. J. Teixeira Ribeiro, vol. II, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1979, págs. 348-349. [9] Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 288. [10] Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 290-291. [11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2015, in www.dgsi.pt. [12] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/12/2011, in www.dgsi.pt. [13] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 277. [14] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/02/2008, in www.dgsi.pt. [15] Sousa Ribeiro, O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442.º do Código Civil: incumprimento definitivo ou mora, in Boletim da Faculdade de Direito, 2002, págs. 209-232. [16] Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119, pág. 216, pág. 216. [17] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 1985 e de 10 de Novembro de 2005, in www.dgsi.pt. [18] António Menezes Cordeiro, tratado de Direito Civil, Vol. IX, 3.ª edição totalmente revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 235. [19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/2005, rec. 170/05, consultável em www.dgsi.pt. [20] Na esteira da distinção proposta por Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, in Estudos em Homenagem ao professor Teixeira Ribeiro, vol. II, págs. 343 e 405. [21] José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Gestlegal, Coimbra, 2017, n.º 13.1.4.A. [22] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/12/2023 (609/23.4T8LLE.E1), pesquisável em www.dgsi.pt. |