Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | EMBARGO DE OBRA NOVA CORTE ILEGAL DE ÁRVORES CITAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 03/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - O corte de árvores constitui ato material suscetível de embargo de obra nova; - Aquele que se arroga titular do direito de preferência pode opor-se ao corte de árvores no prédio objeto da transação visada na ação de preferência após a citação do adquirente na referida ação, já que, - A procedência da ação de preferência tem como resultado a substituição do adquirente pelo autor, com efeito retroativo, no contrato celebrado; - A citação faz cessar a boa fé do adquirente, com o que este passa a não ser admitido a fazer seus os frutos naturais percebidos. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Requerente: (…), SA Recorridas / Requeridas: (…) Floresta – Gestão e Exploração de Recursos Florestais, Lda. e (…) O processo consiste em procedimento cautelar para ratificação de embargo de obra nova e restituição provisória da posse, com inversão do contencioso, no qual foram formuladas as seguintes pretensões: «a. Serem os Requeridos condenados a reconhecer o embargo dos trabalhos em curso e, consequentemente, a absterem-se de continuar aqueles ou quaisquer outros trabalhos na parcela em apreço, designadamente de qualquer corte, rechega e transporte de madeira, b. Serem condenados a restituir, imediata e provisoriamente, à Requerente, a posse da parcela em apreço. c. Deve ser reconhecido o direito da Requerente à madeira em produção na área em apreço e, consequentemente, ser ordenado aos Requeridos que se abstenham de proceder, por si ou através de terceiro, ao corte de qualquer madeira na parcela melhor identificada no documento 1 e nos mapas anexos e, bem assim, que se abstenham de qualquer outra ação sobre a aludida área até que se mostre decidida a pretensão da Requerente quanto à preferência que lhe assiste (…) com inversão do contencioso, dispensando a Requerente da propositura da ação principal.» Para tanto, vem alegado o seguinte: - o embargo de obra foi promovido pelo legal representante da Requerente no dia 27 de maio de 2023, pelas onze horas, relativamente ao corte de madeira que a 1.ª Requerida se encontrava a concretizar na propriedade denominada (…), relativamente à qual a Requerente é proprietária de metade da propriedade; - a restituição provisória da posse da parcela em que aquela 1.ª Requerida procedia ao corte de eucaliptos funda-se no facto de a Requerente, comproprietária do imóvel, pretender exercer o direito legal de preferência na venda da outra metade da propriedade à primeira Requerida; - o reconhecimento do direito legal de preferência na ação principal faz retroagir os seus efeitos à data da escritura de compra e venda, momento em que eucaliptos e pinheiros em corte faziam parte integrante do prédio; - a 2.ª Requerida, além de ser uma das vendedoras de metade do prédio (…) à primeira Requerida, no momento do embargo encontrava-se no local e referiu em voz alta que era ela que, enquanto anterior proprietária, estava a dar indicações para prosseguir a obra; - a área propriedade da Requerente tem cerca de setenta e quatro hectares de plantação de eucaliptos e é uma parte correspondente sensivelmente a metade do prédio, a qual foi objeto de escritura de justificação notarial relativa à aquisição, por usucapião, por parte da Requerente; - a quota parte correspondente à outra metade foi vendida pela 2.ª Requerida e outros à 1.ª Requerida com inobservância do direito de preferência que assiste à Requerente nessa transação; - o corte de árvores e colocação destas em molhes para recolha por máquina de rechega de madeira estava a ter lugar em parcela de terreno que é parte integrante da propriedade denominada (…), parcela esta que terá entre cinco e seis hectares e que integra a área que sempre foi gerida pela Requerente; - havia entendimento entre os antecessores no sentido da divisão física da propriedade; - a Requerente, com o conhecimento dos vendedores, regularizou o seu direito sobre a parte da respetiva propriedade que lhe cabe por usucapião com vista a preparar o processo de destaque; - processo que foi sustado perante a informação pelos comproprietários da área adjacente de que estavam vendedores da respetiva quota parte; - a Requerente declarou pretender adquirir mediante o exercício do direito de preferência; - os vendedores informaram não pretenderem vender-lhe; - teve lugar a venda à 1.ª Requerida; - a Requerente vai exercer o seu direito legal de preferência no prazo que a lei lhe confere; - a consequência do exercício deste direito é o retroagir dos efeitos da preferência ao momento da celebração do negócio e outorga da escritura; - a parcela em apreço (e árvores nela implantadas, que se encontravam a ser cortadas), na qual decorriam os trabalhos embargados, faz parte integrante da propriedade (…); - verificando-se uma situação de compropriedade e de pretensão de unificação de parcelas entre si contíguas, ambas com área inferior à unidade de cultura, independentemente da parte em que seria integrável a parcela onde decorriam os trabalhos, entende-se que a pretensão da Requerente é legítima e adequada, desde logo porque visa a preservação da propriedade tal qual esta se encontrava no momento da venda. As requeridas deduziram oposição pugnando pela improcedência do procedimento cautelar. Sustentaram o seguinte: - a falta de legitimidade da Requerente para requerer a ratificação do embargo, já que não é proprietária da parcela de terreno em causa (que integra o prédio adquirido pela 1.ª Requerida), mas antes pretendendo exercer um eventual direito de preferência; - naquela parcela de terreno já anteriormente foram cortadas árvores; - a falta de legitimidade da 2.ª Requerida, uma vez que esta já não é proprietária do terreno, tendo vendido o mesmo à 1.ª Requerida, estando apenas no local e terá dito que “os trabalhos iam continuar”; - a irregularidade do embargo por não ter sido alegado quem, em representação da Requerida e na sua qualidade de proprietária do terreno, foi notificado no local do embargo extrajudicial; - a não verificação dos pressupostos do decretamento da providência de restituição provisória da posse, pois a posse é e sempre foi das requeridas (em cada momento de propriedade), que lá sempre amanharam terras, cortaram árvores, apanharam frutos e usaram os imóveis; - a ilegalidade do pedido de reconhecimento do direito à madeira em produção no terreno que tem em compropriedade com as requeridas, pois que o mesmo baseia-se na hipotética preferência que poderá vir a exercer, nunca tendo a requerente beneficiado de quaisquer frutos do mencionado terreno. A Requerente exerceu direito de resposta. II – O Objeto do Recurso Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando o procedimento cautelar improcedente, decidindo não ratificar o embargo extrajudicial de obra nova. Inconformada, a Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes: «A. Coloca-se em apreço no presente recurso a sentença recorrida na parte em que decidiu não ratificar o embargo extrajudicial de obra nova com os fundamentos aí expostos, designadamente por entender que a Requerente não demonstrou a aparência da titularidade do domínio invocado. B. A sentença recorrida merece os reparos e a censura que resultam do presente recurso porque limita-se a uma apreciação fundada no direito de propriedade e a Requerente, na sua petição inicial, o que invocou como fundamento primordial para a ratificação do referido embargo, não foi a sua propriedade ou compropriedade, mas o exercício do direito de preferência (permitindo-se, com esse exercício, a unificação de toda a propriedade …). C. E no tocante a este fundamento (exercício do direito de preferência) invocado para a procedência do embargo, a sentença é totalmente omissa, o que tem como consequência que se invoque a nulidade desta, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC, porque nesta parte a Mm.ª Juiz a quo deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. D. Atenda-se que em sede de petição inicial da providência cautelar, a Requerente contextualizou assim a sua pretensão: i. Em causa nos presentes autos está, a ratificação do embargo de obra promovido pelo legal representante da Requerente (…), efetuado no dia 27 de maio de 2023, pelas onze horas, relativamente ao corte de madeira que a sociedade Requerida se encontrava a concretizar na propriedade que melhor se identifica adiante, denominada (…), relativamente à qual a Requerente é proprietária de metade da propriedade. ii. Está igualmente em apreço a restituição provisória da posse da parcela em que aquela primeira Requerida procedia ao corte de madeira (eucaliptos), porquanto, além da Requerente ser comproprietária do imóvel, tendo, entretanto, tido conhecimento da venda da outra metade da propriedade à primeira Requerida, é sua intenção exercer o direito legal de preferência que por lei lhe assiste. E. E, como é consabido, juridicamente, o deferimento deste direito legal de preferência faz retroagir os seus efeitos (e direitos do preferente) à data da escritura de compra e venda; e conforme se explanará e é claro do que se expõe nos presentes autos, na data da escritura de compra e venda aquelas árvores em corte (eucaliptos e pinheiros) faziam parte integrante do prédio. F. Ou seja, a Requerente contextualizou a sua pretensão na compropriedade do (…) e na circunstância de, pelas razões expostas, ir exercer o seu direito de preferência. Concretizou que a parte da propriedade de que a Requerente tem a posse, tem cerca de setenta e quatro hectares de plantação de eucaliptos, que é uma parte correspondente sensivelmente a metade do prédio denominado (…). Que esta parte da propriedade da Requerente se encontra inscrito na matriz sob os artigos (…), da secção (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob a descrição (…). G. Para além disso, resulta dos autos, designadamente dos documentos que constam da certidão judicial junta no dia 02 de setembro de 2023, designadamente até folhas 83, que: i. O prédio denominado (…) foi, na proporção de metade, vendida à Requerente no final dos anos oitenta do século XX e que entre a Requerente, os então vendedores e demais comproprietários foi estabelecida convenção pela qual cada uma das partes passou a fruir de uma das partes da propriedade em apreço. Que o remanesce daquela propriedade (…) foi até 2022 mantido na esfera jurídica dos comproprietários e sucessores destes comproprietários do final da década de oitenta. ii. Que estes, quando tomaram a decisão de venda, sabedores do especial interesse da Requerente, comunicaram-lhe essa intenção, o preço e que esta Requerente aceitou as condições propostas e que estes, apesar da aceitação das condições de venda pela Requerente, designadamente do preço proposto, acabaram por se recusar a cumprir a venda à Requerente, tendo vendido a sua parte da propriedade à Requerida. iii. Por isso, a Requerente equacionou o exercício do direito legal de preferência, que além do mais vai permitir a unificação do prédio mãe, ou seja, de duas áreas confinantes entre si, ambas com área inferior à unidade de cultura e com a mesma condução cultural (povoamento florestal com predominância de eucaliptos). H. Atenda-se, ainda, que em termos de centralidade para apreciação do presente recurso, invocou-se no artigo 34º da petição inicial que: a. A Requerente vai exercer o seu direito legal de preferência no prazo que a lei lhe confere; b. Que a consequência do exercício deste direito é o retroagir dos efeitos da preferência ao momento da celebração do negócio e outorga da escritura; c. Que a parcela em apreço (e árvores nela implantadas, que se encontravam a ser cortadas), na qual decorriam os trabalhos embargados, faz parte integrante da propriedade (…). I. Ou seja, atento ao que se mostra invocado pela Requerente e o que se extrai da sentença, verifica-se, de forma clara e inequívoca, que esta sentença se pronuncia e aprecia o direito da Requerente à luz do “direito de propriedade” e “posse da parcela onde decorriam os trabalhos no momento do embargo”, omitindo, por completo, qualquer referência à razão central pela qual foi intentado o embargo. Mas, conforme atrás delimitado, este foi feito com o fundamento referido em 34º da petição inicial, atrás referenciado e citado, mostrando-se, assim, verificada a nulidade invocada (cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC). J. Atento este contexto, parece inequívoco para a Recorrente que para apreciação destes fundamentos, haveria de se apurar – em termos fatuais – se a Requerente exerceu, ou não, o seu direito legal de preferência sobre a propriedade (…); e, ainda, se a parcela onde decorriam os trabalhos no momento do embargo, faz ou não parte da propriedade (…), isto porque o referido no ponto b, daquele artigo 34º, atrás transcrito – ou seja, que a consequência do exercício deste direito é o retroagir dos efeitos da preferência ao momento da celebração do negócio e outorga da escritura – é uma questão jurídica, que deveria ser apreciada sem necessidade de prova. K. E da prova produzida em audiência resulta, de forma inequívoca, que devem ser dados como provados os pontos a) e c) daquele artigo 34.º da petição inicial. L. Para prova do facto delimitado no artigo 34º, ponto a), da petição inicial da Requerente, invoca a prova documental, designadamente a certidão que comprova a ação de preferência intentada pela Requerente que corre termos pelo Juiz 3, do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, sob o n.º 2491/23.2T8STR. M. E invoca os depoimentos das testemunhas (…) – Registo Sonoro do dia 20 de setembro de 2023 (minutos de gravação 14:28 a 15:12), nos registos de minutos de gravação 10.00 a 10:20 e o depoimento de (…), com o Registo Sonoro do dia 20 de setembro de 2023 (15:12 a 15.40), nos registos de gravação 5:20 a 5:35 e de 25:55 a 26:30, que de forma expressam referiram que a Requerente decidiu que exerceria o seu direito de preferência. N. Para prova do Ponto c) do artigo 34 da petição inicial invoca a prova testemunhal produzida, designadamente a seguinte: i. Testemunha (…), cujo Registo Sonoro do dia 20 de setembro de 2023 consta da gravação 14.28 a 15:12, nos registos de gravação 5:38 a 5:57, de 7:12 a 9:01, 9:34 a 09.50, 14.40 a 15:50, 17:40 a 19:31 e 19:56 a 21.00. ii. Testemunha (…), cujo registo Sonoro do respetivo depoimento prestado no dia 20 de setembro de 2023 consta de 15:12 a 15:40, nos respetivos registos de gravação 1:41 a 3:00. iii. Testemunha (…), cujo depoimento se encontra registado no dia 20 de setembro de 2023 (15.59 a 1625), com os respetivos registos de gravação 2:20 a 2:55 de 3:25 a 3:55 e 7:01 a 8:11 e 11:40 a 12:16. iv. A testemunha (…), cujo Registo Sonoro do dia 20 de setembro de 2023 consta de 16.26 a 16:38, nas partes do respetivo depoimento que constam de minutos 1:20 a 4:16. v. E, por fim, (…), cujo Registo Sonoro do dia 20 de setembro de 2023, de 16.38 a 17:14, no respetivo registo de gravação, de 4:12 a 10:37 O. É claro do depoimento de todas as testemunhas ouvidas, seja das indicadas pela Requerente, seja das indicadas pela Requerida, que o (…) era uma única propriedade, que fruto de partilhas ocorridas antes da década de setenta do século XX, foi repartida por duas irmãs dos proprietários originais, uma das quais vendeu à Requerente a respetiva quota parte (e a outra quota parte continuou na esfera jurídica da outra comproprietária, no caso da esposa do sr. …, cujos herdeiros, no ano transato, a venderam à Requerida). P. Aliás, constando esta matéria – relativamente ao histórico do registo predial do (…) – de um documento junto aos autos (certidão judicial que comprova a pendência da ação de preferência)[1] e resultando esta matéria de um documento com força probatória específica – no caso de uma certidão do registo predial e das certidões das escrituras juntas, que haverá, ainda, de ser considerado provada a seguinte matéria: i. A Requerente é na proporção de metade proprietária do (…), que desde tempos que a memória dos vivos não alcança constitui um único prédio. ii. Este prédio (…) foi adquirido por via sucessória ocorrida em final da década de setenta do século XX, deferida por inventário judicial[2], na proporção de ½ para cada um, a (…) e a (…). iii. Em 16 de novembro de 1980, a autora adquiriu a quota parte de metade da parte da propriedade, aos herdeiros de (…) e mulher (…). iv. Naquela data, pelo preço de 3.750.000$00 (três milhões, setecentos e cinquenta mil escudos), prometeu adquirir na proporção de metade uma propriedade de terra de semeadura e pousio com oliveiras, figueiras, vinha, mato, pinheiros, casa de habitação e outras casas, denominada (…), partindo do Norte com (…), Sul com (…), Nascente com … (caminho) e do Poente com (…), inscrito na matriz sob o artigo (…) Urbano e (…) Rústico (Metade Cada); e metade de casa de habitação no (…) com 4 divisões no rés-do-chão, confrontando de todos os lados com o próprio, inscrito na matriz sob o artigo (…). v. Por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial da Figueira da Foz de 12 de junho de 1987, a Ré (…), SA concretizou a atrás referida aquisição daquela metade de todo o referido prédio (…). vi. Por seu lado, por escritura de doação efetuada por (…), outorgada no dia 09 de janeiro de 2002, no Cartório Notarial de Tomar, que consta da escritura lavrada a folhas (…) e seguintes, do Livro (…), os antecessores da Requerida adquiriram a outra metade do aludido prédio (…). vii. A Requerida apresenta-se, atualmente, desde muito recentemente, como compradora da metade detida pelos antecessores referidos em vi. Q. Ou seja, para efeitos de apreciação da pretensão da Requerente de ver parados os trabalhos em curso numa parcela que faz parte de uma propriedade relativamente à qual pretende exercer o seu direito legal de preferência, haverá de se considerar demonstrada, para efeitos do deferimento da ratificação do embargo, a provável existência do direito invocado pela Requerente. R. Em termos de centralidade, não pode deixar de se reconhecer que constituem requisitos do embargo de obra nova, não apenas a titularidade de um direito de propriedade, mas igualmente de ou outro direito real ou pessoal de gozo, ou na sua posse, por parte do requerente; e, ainda, que cabe neste conceito de outro direito real ou pessoal de gozo o exercício do direito de preferência invocado pela Requerente. S. A este respeito, já noutras ocasiões a nossa jurisprudência se pronunciou sobre esta matéria, do exercício do direito de preferência, de ser legitimo ao Requerente que pretende usar do direito de preferência na venda, poder opor-se, por meio de embargos de obra nova, ao corte de árvores que o adquirente tem em curso[3]. T. De qualquer forma, apesar do grau de exigência de prova ser menor, ainda assim, resultam dos autos factos evidenciadores bastantes para se dever considerar provado o requisito essencial para a procedência da ratificação do embargo de obra nova, que na situação dos autos se traduz não só na aparência da titularidade do domínio invocado – no caso a aparência do direito de preferência da Requerente, mas igualmente que este direito de preferência está, de facto, a ser exercido (atento a que se demonstrou ter sido intentada a competente ação de preferência). U. Assim, não podem subsistir quaisquer dúvidas ao tribunal quanto a qualquer juízo de forte probabilidade acerca dessa titularidade que possa ser feito e que, por via disso, que os pedidos da Recorrente devem proceder.» As Recorridas apresentaram contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que inexistem fundamentos de facto e de direito que permitam acolher a pretensão deduzida no recurso. Cumpre conhecer das seguintes questões: i) da nulidade da sentença; ii) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; iii) do direito da Requerente ao embargo do corte de árvores pela 1.ª Requerida. III – Fundamentos A – Os factos provados em 1.ª Instância: 1. No dia 16/07/2021, foi celebrada escritura de justificação notarial mediante a qual a Requerente (através de procuradora) declarou estar na posse do prédio sito em (…), freguesia de (…), descrito sob o n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…), da secção (…), da mesma freguesia, desde “por volta de mil novecentos e oitenta, por compra meramente verbal aos herdeiros de (…), residente que foi em Tomar. Que não foi, nem lhe é possível, agora legalizar a referida compra por título válido, mas o certo é que desde a referida entrada na sua posse, portanto há mais de vinte anos, tem a sociedade justificante vindo a possuir o identificado bem, colhendo lenha, roçando matos, cortando e plantando pinheiros e eucaliptos, amanhando-o, semeando-o e plantando-o, colhendo os frutos e produtos e procedendo à sua limpeza, e avivando estremas, praticando todos os atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sempre com o conhecimento da generalidade das pessoas, sem oposição ou intromissão de quem quer que seja, e sem interrupção, portanto sob uma forma pública, pacífica e contínua.” 2. Foram testemunhas do declarado acima (…), (…) e (…). 3. Através da Ap. (…), de 2021/09/03, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Tomar a favor da Requerente Celulose (…) Industrial (…), SA a aquisição por usucapião do prédio rústico, sito em (…), freguesia de (…), aí descrito, sob o n.º (…), como tendo a área descoberta de 76.2680 m2, como sendo composto por mato, sobreiros, eucaliptal, cultura arvense de sequeiro, figueiras, oliveiras, citrinos, hortejo, mata, capela, vinha, pinhal e construções rurais e como confrontando do norte, nascente e poente com caminho, e do sul com (…) e outros, inscrito na matriz predial sob o artigo (…), da secção (…). 4. No dia 01/07/2022, foi celebrada escritura de justificação notarial mediante a qual a segunda Requerida (…) e demais herdeiros, em representação da herança aberta por óbito de (…), declararam que “são donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou de direito, de metade do prédio urbano sito em (…), na freguesia de (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), não descrito na Conservatória do Registo Predial.” 5. No dia 22/09/2022, foi celebrada escritura de compra e venda, mediante a qual a primeira Requerida (através de representantes legais) adquiriu à segunda Requerida (…) e demais herdeiros, em representação da herança aberta por óbito de (…), o prédio urbano, sito em (…), na freguesia de (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão, inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…), da freguesia de (…). 6. No âmbito da escritura de doação, data de 29/01/2002, consta que “em 25 de Março de 1983 (…) foi declarado único herdeiro de sua falecida mulher (…) que do acervo da herança fazem parte os seguintes bens, situados neste concelho de Tomar (…) ONZE: terra de mato, eucaliptal e vinha, com 664.920 m2, no (…), freguesia de (…), a confinar a norte com (…), SA, a sul com (…) e outros, a nascente com (…) e outros, e a ponte com (…) e outros, inscrito na matriz sob o artigo (…), secção F. (…) foi dito que, com reserva do usufruto para o representado doador (…) fazem as seguintes doações: (…) ao outorgantes (…) doam os prédios das verbas (…) ONZE (…).” 7. No dia 27 de maio de 2023, pelas 11:00 horas, a primeira Requerida (…), através de trabalhador contratado para o efeito, encontrava-se a proceder ao corte de eucaliptos em prédio sito em (…), freguesia de (…). 8. Nesse mesmo dia, a Requerente, através de advogado e na presença de dois militares da GNR e de duas testemunhas, (…) e (…), dirigiu-se ao funcionário da Requerida (e não a representante da mesma, por não se encontrar presente), dizendo-lhe para parar o referido corte de eucaliptos. Mais está documentalmente provado que: 9. A ação de preferência relativa ao contrato de compra e venda referido no ponto 5 foi intentada pela Requerente a 31/08/2023. B – As questões do Recurso i) Da nulidade da sentença A Recorrente sustenta que a sentença enferma de nulidade por falta de pronúncia por se ter limitado a apreciar a pretensão deduzida por referência à titularidade do direito de propriedade sobre a faixa de terreno que estava a ser intervencionada, e não já levando em conta o exercício do direito de preferência e respetivos efeitos retroativos. Na verdade, assim é. Em 1.ª Instância exarou-se que «a requerida iniciou o corte de eucaliptos numa parcela de terreno que não se provou pertencer à requerente, por não se encontrarem definidas as estremas entre os prédios de ambos, não se podendo assim concluir pela probabilidade séria da existência do direito invocado, nem pela atuação ilícita da requerida. Falhando, desde logo, o primeiro requisito de que depende o decretamento do embargo de obra nova e a ratificação do embargo extrajudicial (…) impondo-se a imediata improcedência do presente procedimento cautelar com a consequente não ratificação judicial do embargo de obra nova efetuado pela requerente.” Tendo a Requerente invocado, no requerimento inicial, que declarou pretender adquirir, mediante o exercício do direito de preferência, a outra parcela da propriedade (…), que os vendedores informaram não pretenderem vender-lhe, que teve lugar a venda à 1.ª Requerida, que vai exercer o seu direito legal de preferência no prazo que a lei lhe confere, que os efeitos da preferência retroagem ao momento da celebração do negócio e outorga da escritura, que a parcela em apreço (e árvores nela implantadas, que se encontravam a ser cortadas), na qual decorriam os trabalhos embargados, faz parte integrante da propriedade (…). Afigura-se que o regime inserto no artigo 608.º/2, do CPC impõe a apreciação do direito à ratificação do embargo de obra nova por referência ao exercício do direito de preferência e respetivos efeitos, sob pena de se verificar a nulidade prevista no artigo 615.º/1/al. d), do CPC. Termos em que se procederá, nesta sede, ao conhecimento da mencionada questão, que constitui o objeto da presente apelação – artigo 665.º/1, do CPC. ii) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto A Recorrente sustenta que deve dar-se como provado o que alegou nas alíneas a) e c) do artigo 34º do requerimento inicial, a saber: a) A Requerente vai exercer o direito legal de preferência no prazo que a lei lhe confere; c) A parcela de terreno em apreço (e as árvores nela implantadas, que se encontravam a ser cortadas), na qual decorriam os trabalhos embargados, faz parte integrante da propriedade (…). Em face do que se mostra afirmado sob os n.ºs 7 e 9 dos factos provados, não se reveste de utilidade consignar o teor das referidas alíneas. Mais a Recorrente pretende seja aditado ao rol dos factos assentes a factualidade que enuncia nas alíneas i. a vii. da alínea P das conclusões da alegação do recurso. Conforme se alcança do respetivo teor, é manifesto que se trata de matéria factual que nada de relevante, em face do objeto do litígio, acrescenta ao que consta dos n.ºs 1 a 9 dos factos provados. Não se acolhe, pois, a pretensão recursória esgrimida relativamente à matéria de facto fixada no presente procedimento cautelar. iii) Do direito da Requerente ao embargo do corte de árvores pela 1.ª Requerida Cumpre apreciar se existe fundamento para ratificar o embargo de obra nova em face do direito de compropriedade de que se arroga a Requerente e do exercício do direito de preferência – o fundamento primordial deste procedimento. Nos termos do disposto no artigo 397.º, n.º 1, do CPC, aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias, a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente. Segue o n.º 2 estatuindo que o interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar. O embargo de obra nova é a providência cautelar adequada a evitar a violação, ou a continuação da violação, dum direito, real ou pessoal, de gozo ou de posse duma coisa, por via de uma obra em curso.[4] Destina-se a salvaguardar a proteção do direito de propriedade e, bem assim, dos direitos reais de gozo (direito de usufruto, de superfície e de servidão predial), direitos pessoais de gozo (direitos de locatário e do comodatário, do promitente adquirente que tenha obtido a entrega da coisa) e da posse. Para além da provável existência desses direitos, impõe-se a existência de uma ofensa efetiva a tal direito por via da obra nova em curso. A opção legislativa foi no sentido de que as obras ou trabalhos em realização já tenham ofendido o direito (de entre os mencionados no n.º 1 do artigo 397.º do CPC, pois apenas esses são os tutelados por via deste específico procedimento), não bastando a ameaça da ofensa do direito. Por conseguinte, a ameaça de que a obra cause prejuízo pressupõe a existência de uma ofensa efetiva ao direito. Nas palavras de Abrantes Geraldes[5], “o embargo de obra nova tem como objetivo defender o interessado quando seja prejudicado no seu património, e não protegê-lo de todos os efeitos reflexos causados através da ofensa dos seus direitos materiais. Pode ser requerido quando tenha sido afetado o direito de propriedade, outro direito real ou pessoal de gozo, ou a posse formal, já não quando os atos, mesmo que ilícitos, apenas afetem o interessado na esfera dos seus direitos de personalidade.” No que respeita ao prejuízo, cumpre consignar que basta a ilicitude do facto, o que vale por dizer que a obra ou trabalho ofenda o direito ou a posse de que se arroga o embargante. Como ensina Alberto dos Reis[6], o prejuízo consiste exatamente nessa ofensa. Trata-se de dano jurídico, isto é, de dano derivado, pura e simplesmente, da violação do direito de propriedade, posse ou de fruição. Desde que o facto tem a feição de ilícito, porquanto contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade, numa posse ou fruição legal, tanto basta para que haja de considerar-se prejudicial para efeitos de embargo de obra nova. «A lei dirige-se a atos (obras, trabalhos ou serviços) que causem ou ameacem causar prejuízos nos bens a que tais direitos se reportam, abarcando designadamente as obras de construção, de demolição e de escavação ou a plantação ou o corte de árvores.»[7] Ora, não resultou provado, é certo, que o corte de árvores promovido pela 1.ª Requerida tenha tido lugar em parcela pertencente à Requerente. A Requerente não se apresenta comproprietária do prédio (…). Em face da escritura notarial de justificação judicial que promoveu, e cujo teor submeteu a registo, a requerente é tida como proprietária do prédio rústico, sito em (…), freguesia de (…), descrito sob o n.º (…), com a área descoberta de 76.2680 m2, composto por mato, sobreiros, eucaliptal, cultura arvense de sequeiro, figueiras, oliveiras, citrinos, hortejo, mata, capela, vinha, pinhal e construções rurais, inscrito na matriz predial sob o artigo (…), da secção (…). Em concretização da sua intenção de compra do prédio urbano sito em (…), na freguesia de (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão, inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…), da freguesia de (…), prédio este que, juntamente com o que lhe pertenceu, constituía a propriedade (…), a Requerente intentou ação de preferência. Pretende, por via disso, vir a substituir a 1.ª Requerida, adquirente, nessa transação, passando a proprietária do prédio onde, segundo as Requeridas, teve lugar o corte das árvores. Ora, “a procedência da ação tem como resultado, a substituição, com eficácia ex tunc, do adquirente pelo preferente. (…) O contrato celebrado entre o alienante e o adquirente produz a sua eficácia translativa normal, mas, em virtude da existência de um direito de opção, a posição jurídica do adquirente fica sujeita, por força da lei, a uma condição (conditio iuris) resolutiva (…): ele perderá o direito que adquiriu, se a preferência vier a ser triunfantemente exercida (…). Ora, sendo a aquisição feita sob condição resolutiva, há que aplicar o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 277.º, onde se estabelece, respetivamente, que «o preenchimento da condição não prejudica a validade dos atos de administração ordinária realizados, enquanto a condição estiver pendente, pela parte a quem incumbir o exercício do direito» e que «à aquisição dos frutos pela parte a que se refere o número anterior são aplicáveis as disposições relativas à aquisição dos frutos pelo possuidor de boa fé.»”[8] O efeito ex tunc associado à preferência significa que o preferente se subroga ou substitui ao terceiro adquirente na posição que este ocupa no contrato celebrado com o obrigado à preferência, tudo se passando juridicamente e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente.[9] A procedência da ação de preferência tem como resultado a substituição do adquirente pelo autor, com efeito retroativo, no contrato celebrado, tudo se passando, em princípio, como se o contrato tivesse sido celebrado ab initio entre o alienante e o preferente.[10] Ora, da aplicação conjugada do regime inserto nos artigos 277.º e 1270.º do CC (frutos na posse de boa fé), a par do artigo 564.º, alínea a), do CPC (efeitos da citação), resulta que, com a citação operada na ação de preferência, cessa a boa fé do adquirente, com o que este passa a não ser admitido a fazer seus os frutos naturais percebidos. Então, aquele que se arroga titular do direito de preferência só pode opor-se a que o adquirente, possuidor, faça seus os frutos que a coisa produziu a partir da citação que tenha lugar na ação de preferência. Não basta, pois, a manifestação da intenção de exercer o direito de preferência para inibir o adquirente do exercício dos plenos direitos inerentes à sua qualidade de proprietário e legitimo possuidor. Na medida em que, à data do embargo, a ação de preferência não tinha ainda sido intentada, afigura-se que não assistia à Recorrente o direito de embargar o corte de árvores pela 1.ª Recorrida. O que implica no indeferimento da pretensão de ratificação do embargo que foi efetuado. Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recurso. As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, mantendo-se o decidido em 1.ª Instância. Custas pela Recorrente. * Évora, 19 de março de 2024 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Francisco Matos Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] Vide, a este respeito, o Requerimento com a Refª Citius 9955463, de 02 de setembro de 2023, do qual consta como anexo 1, a Certidão com a Petição Inicial (págs. 84 a 126 do documento) e documentos juntos com esta ação de preferência (documentos que constam das págs. 2 a 83). [2] Em concreto, o Processo 59 de 1976, do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz e Coimbra. [3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de janeiro de 2000, proferido no âmbito do processo 319-B/99, do Tribunal Judicial da Comarca de Amarante, no qual foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Norberto Brandão, disponível em www.dgsi.pt. [4] CPC Anotado, Lebre de Freitas, Vol. II, 2001, pág. 136. [5] Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, 2.ª edição, pág. 246. [6] CPC Anotado, vol. II, pág. 64. [7] Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, 2.ª edição, pág. 491. [8] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 381. [9] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pág. 220. [10] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª edição, pág. 336. |