Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
714/24.0T8FAR.E1
Relator: MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
TRANSMISSÃO DO CONTRATO
NRAU
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – O regime da transmissão do arrendamento para habitação é o vigente no momento do falecimento daquele que é, à data, o arrendatário.
II – O NRAU, por força do disposto no seu artigo 59.º, n.º 1, aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nesta data, sem prejuízo nas normas transitórias, que constam dos artigos 26.º a 58.º do NRAU.
III – A um contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU, previsto no artigo 27.º do NRAU, é aplicável o regime de transmissão de arrendamento previsto no artigo 57.º do mesmo diploma, e não o regime previsto no artigo 1106.º do Código Civil.
IV – A Lei n.º 31/2012, de 14.08, suprimiu a regra do “duplo grau de transmissibilidade do direito ao arrendamento” para os descendentes, anteriormente estabelecida no n.º 4 do artigo 57.º do NRAU, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 714/24.0T8FAR.E1 - Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido – Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro - Juiz 1
Recorrente – (…)
Recorrido – (…)
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Sumário: (…)

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Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO
(…) instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (…), pedindo que:
a) Seja declarado e o réu condenado a reconhecer que o autor é o exclusivo proprietário da fração autónoma designada pela letra “A” pertencente ao prédio constituído em propriedade horizontal, sita em Olhão, na Rua (…), n.º 78, r/c-Dto., a que corresponde o artigo urbano (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob a ficha n.º (…), da freguesia de (…);
b) O réu seja condenado a entregar-lhe a referida fração, livre e devoluta e em bom estado de conservação; e,
c) O réu seja ainda condenado ao pagamento de € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega da referida fração ao autor.

O Réu contestou. Pugnou pela improcedência da ação, o que fez com fundamento no direito à transmissão do contrato de arrendamento e por se verificarem os pressupostos a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 1106.º do Código Civil, na redação que considera ser a aplicável ao caso dos autos.


Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) Declarou que o autor (…) é dono e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra “A” pertencente ao prédio constituído em propriedade horizontal, sita em Olhão, na Rua (…), n.º 78, r/c-Dto., a que corresponde o artigo urbano (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob a ficha n.º (…), da freguesia de (…);
b) Condenou o réu a entregar-lhe a referida fração livre e devoluta, no estado em que se encontrava à data do óbito da arrendatária; e,
c) Absolveu o réu do demais peticionado.
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O Réu, inconformado com esta decisão, dela veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo:
A) A questão fundamental a analisar é, em suma, a seguinte: tem o Réu ora recorrente direito em 22.08.2020 à transmissão do arrendamento, por morte de sua mãe à qual o arrendamento celebrado em 01/07/1986 com o marido desta (e pai do Réu) na qualidade de inquilino se havia transmitido em 05.10.2000? O Tribunal recorrido entendeu que não. Entendimento com o qual o R. discorda.
B) Na contestação, como se resume na douta sentença, o réu pugnou pela improcedência da ação, o que fez com fundamento no direito à transmissão do contrato de arrendamento e por se verificarem os pressupostos a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 1106.º do Código Civil, na redação que considera ser a aplicável ao caso dos autos.
C) Resulta do ponderado e decidido que o Tribunal a quo aplicou de forma automática o regime do artigo 57.º do NRAU ao caso sub iudice, o que ao Réu não se afigura juridicamente correcto.
D) No entender do ora Recorrente, das disposições legais contidas nos artigos 59.º, n.º 1, 27.º, 28.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, do NRAU resulta que, ao contrário do que acontece nos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aos quais nos termos do artigo 26.º do NRAU, o regime deste é aplicável automaticamente, nos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU a submissão destes ao regime do NRAU carece de iniciativa do senhorio para tanto nos termos daqueles preceitos legais.
E) Tal significa que, se o senhorio nunca tomou a iniciativa de comunicar ao inquilino pretender que o contrato em curso, celebrado anteriormente ao RAU transitasse para o NRAU, não podem ser aplicadas as normas deste regime.
F) Em momento algum em primeira instância o Autor alegou e consequentemente não provou haver alguma vez tomado a iniciativa de que o contrato de arrendamento sub iudice transitasse para o NRAU nos termos do disposto no artigo 30.º da Lei n.º 6/2006.
Competia ao Autor alegar e provar tal facto por se tratar de facto constitutivos do direito alegado, i. e., facto constitutivo do regime jurídico que pretendia ver aplicado in casu (artigo 342.º, n.º 1, do C.C.).
G) Nas suas alegações orais que encerraram a discussão em primeira instância e que se encontram gravadas, o Réu invocou a falta de alegação e prova da iniciativa de transição para o NRAU por parte do Autor senhorio como facto impeditivo da aplicação do regime do artigo 57.º do NRAU.
H) Não podendo ser aplicáveis quaisquer normas próprias do regime instituído no NRAU, sempre teria de ter sido aplicado por morte da (…) o regime da transmissão do arrendamento estabelecido no artigo 1106.º do C.C. na redação da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro (com início de vigência a 13 de Fevereiro de 2019).
I) Como o Réu referiu na contestação, este dispositivo legal, ao não fazer referência ao “primitivo arrendatário” mas apenas ao “arrendatário”, refere-se àquele que ocupe a posição de arrendatário e faleça após a entrada em vigor desta norma.
J) Resulta da matéria de facto provada, em especial dos factos provados 12 a 14 e 25 que o Réu sempre viveu em economia comum com os seus pais, e em especial com a sua mãe há mais de um ano à data da morte desta. Facto que a sentença aliás reconhece, ao referir “…Revertendo para o caso dos autos e não obstante a prova relativa à vivência em comum por um período superior a um ano e ao grau de incapacidade do réu superior a 60%, …
K) Não podendo ser aplicado ao presente caso, como fica demonstrado, o regime previsto no artigo 57.º do NRAU, sempre deveria ter sido aplicado o regime estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 1106.º do C.C. como pugnado pelo Réu.
L) É pois que, com fundamentação de direito em parte diferente da alegada pelo Réu na contestação, à qual, de resto, o Tribunal não está vinculado (artigo 5.º, n.º 3, do C.P.C.), deveria a presente ação ter sido julgada totalmente improcedente.
M) O Tribunal recorrido errou na aplicação do regime jurídico, devendo ter julgado a ação totalmente improcedente por não provada pelos fundamentos invocados nas conclusões anteriores”.

Pede que, na procedência do recurso, seja “revogada a decisão recorrida e em consequência” (…) “proferido acórdão que julgue a ação totalmente improcedente”.

Não foi apresentada resposta.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
Perante as conclusões das alegações do Recorrente, a única questão que importa apreciar é a de saber se ao caso são aplicáveis as normas do RAU relativas à transmissão do arrendamento.

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Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
O Tribunal deu como provados os seguintes factos:
1. Em 1962, (…) celebrou com (…) um acordo verbal com vista ao arrendamento do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua (…), com o n.º 78.
2. Acordo que seria formalizado, através de documento escrito datado de 1/12/1967, em nome de (…), no estado de casada com (…) e (…), no estado de casada com (…).
3. Entretanto, em 19/6/1967, nasceu o réu.
4. Em 01/07/1986, (…) celebrou um novo acordo reduzido a escrito, com vista ao arrendamento do rés-do-chão do prédio sito na mesma rua, com o n.º 76, a (…), com início no dia 1 de julho desse ano.
5. A fração autónoma adveio à propriedade do autor em 27/11/1995, por doação de (…), o qual reservou para si o usufruto vitalício, o que foi levado ao registo, pela Ap. (…), de (…).
6. (…) foi proprietário de todo o prédio, ininterruptamente até à referida doação, sem oposição de outrem.
7. (…) faleceu a 30/09/1998.
8. No ano de 2011, o réu sofreu um acidente vascular cerebral isquémico.
9. E, no ano de 2018, sofreu um novo acidente vascular cerebral hemorrágico.
10. Em 05/10/2000, (…) faleceu no estado de casado com (…).
11. O autor passou a emitir os recibos de renda em nome de (…) e a receber dela, pontualmente, a renda.
12. O réu sempre viveu com os seus pais, no locado.
13. A mãe do réu auferia uma pensão do falecido marido conseguida em França e outra pensão de reforma, em Portugal, rendimentos que lhe permitiam fazer face aos encargos da sua vida e do réu.
14. No final da vida da sua mãe, depois de a esta ter sido amputada uma perna, foi o réu quem, no locado, passou a realizar a lide doméstica e quem tomou conta dela.
15. Em 22/8/2020, faleceu (…).
16. Facto que o réu ocultou do autor.
17. De que o autor apenas veio a ter conhecimento, através de telefonema realizado em 27/12/2023, para o número fixo do locado, em que o réu foi seu interlocutor.
18. Com efeito, o autor vivia em França, totalmente desligado de Olhão, cidade em que não tem família nem amigos (faz breves e anuais passagens pela …, sua terra natal, apenas).
19. (Após o falecimento de sua mãe) o réu continuou a ocupar a fração autónoma, pagando a renda em nome da falecida inquilina (sua mãe).
20. O réu tinha a sua morada fiscal no locado.
21. O réu recusa-se a fazer a entrega do imóvel.
22. Atualmente, a fração autónoma designada pela letra “A” do prédio constituído em propriedade horizontal, sita em Olhão na Rua (…), n.º 78, r/c-Dto., a que corresponde o artigo urbano … (anterior artigo …), descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob a ficha n.º (…), da freguesia de (…), encontra-se registada a favor do autor.
23. A fração autónoma compõe-se de um fogo de habitação, com entrada independente, com sala, dois quartos, cozinha e casa de banho, com a área privativa de 48,80 m2.
24. As sequelas dos AVCs que o réu sofreu determinaram que, com referência a 22/8/2020, apresentasse um grau de déficit funcional permanente fixável em 60 pontos.
25. Só em 02/09/2020, o réu conseguiu que lhe fosse atribuída uma pensão de invalidez, no valor de € 336,79 (trezentos e trinta e seis euros e setenta e nove cêntimos)”.

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E, como não provado, que
a) Quando soube que o falecimento da mãe do réu já tinha ocorrido, o autor exigiu do réu a entrega da fração autónoma;
b) A fração encontra-se em bom estado de conservação;
c) Dela fazendo parte um quintal e varanda;
d) Possuindo um valor que, de acordo com o mercado imobiliário de Olhão, se estima em € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros); e,
e) Ter sido devido às sequelas dos AVCs que sofreu, que o réu ocultou ao autor o falecimento de sua mãe”.

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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O Recorrente não pede a reapreciação da matéria de facto. Não questiona igualmente a procedência do pedido de declaração e condenação no reconhecimento do direito de propriedade do autor (…) sobre o imóvel referido no ponto 1 dos factos provados.

O que diz é que o direito ao arrendamento se lhe transmitiu por morte de sua mãe (…), nos termos do artigo 1106.º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro. Sustenta que estão reunidos os pressupostos para aplicação da referida norma (convivência em comum há mais de um ano e grau de incapacidade igual ou superior a 60%), considerando ser possível interpretar o artigo 57.º do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro), tendo como ponto de partida o óbito do inquilino à data de entrada em vigor daquela lei (a sua mãe) e não o óbito do primitivo arrendatário (o seu pai).

Vejamos, pois, se existe causa que obste à procedência do pedido de condenação do Réu na entrega da fração ao Autor.
A transmissão da posição de arrendatário por morte do anterior titular é regulada pela lei em vigor no momento em que ocorre o facto constitutivo do direito à transmissão: o óbito do titular do arrendamento – Ac. da Relação do Porto de 25.01.2024, em www.dgsi.pt.

De acordo com os factos provados os dados temporais relevantes para a decisão da questão colocada são os seguintes:
- 01/07/1986, data em que (…) celebrou com (…), pai do Réu, um acordo reduzido a escrito com vista ao arrendamento da fração objeto dos presentes autos, com início no dia 1 de julho desse ano;
- 05/10/2000, data em que faleceu (…), no estado de casado com (…);
- 22/08/2020, data em que faleceu (…), mãe do Réu.

Concretizando.
O contrato de arrendamento foi celebrado pelo pai do Réu antes do início de vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
O óbito do pai do Réu ocorreu na vigência do RAU.
O óbito da mãe do Réu ocorreu na vigência do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27/02, com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: Lei n.º 31/2012, de 14/08, Lei n.º 79/2014, de 19/12, Lei n.º 42/2017, de 14/06, Lei n.º 43/2017, de 14/06, Lei n.º 12/2019, de 12/02, Lei n.º 13/2019, de 12/02 e Lei n.º 2/2020, de 31/03).

No caso concreto, demonstrou-se que o Réu vivia com a sua mãe há mais de um ano (facto provado n.º 12) e que apresentava, em 22/8/2020, um grau de déficit funcional permanente fixável em 60 pontos (facto provado n.º 24), com o que estariam preenchidos os requisitos enunciados no artigo 57.º, n.º 1, alínea e), do NRAU.
Sucede que nos termos do artigo 57.º do NRAU a transmissão do arrendamento apenas ocorre por morte do primitivo arrendatário, qualidade que não ocupava a mãe do Réu, a quem havia já sido transmitida a posição do seu marido, (…).

O que o Recorrente sustenta, nas alegações de recurso, é que o Tribunal recorrido não podia ter aplicado o regime previsto no artigo 57.º do NRAU, considerando que “das disposições legais contidas nos artigos 59.º, n.º 1, 27.º, 28.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, do NRAU resulta que, ao contrário do que acontece nos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aos quais nos termos do artigo 26.º do NRAU, o regime deste é aplicável automaticamente, nos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU a submissão destes ao regime do NRAU carece de iniciativa do senhorio para tanto nos termos daqueles preceitos legais”. E diz que em momento algum o Autor alegou que tomou a iniciativa de fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU nos termos do disposto no artigo 30.º da Lei n.º 6/2006, razão por que não podendo ser aplicadas as normas deste regime, sempre teria de ter sido aplicado por morte da (…) o regime da transmissão do arrendamento estabelecido no artigo 1106.º do C.C. na redação da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro (com início de vigência a 13 de Fevereiro de 2019).

Interessa, portanto, determinar qual o regime de transmissão por morte aplicável.
Tendo o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, entrado em vigor em 15 de novembro de 1990, estamos perante um contrato de arrendamento celebrado antes da vigência do RAU.
A Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU) devolveu o regime substantivo do arrendamento urbano ao Código Civil – repondo os artigos 1064.º a 1113.º do CC – e estabeleceu no artigo 27.º uma norma transitória no que respeita à transmissão por morte do arrendatário dos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou na vigência do RAU, mandando-lhes aplicar o artigo 57.º do NRAU (na redação dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro), que estabelece no que ao caso interessa:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA”.

O artigo 57.º, n.º 1, do NRAU, pese embora as várias alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro e pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, nomeadamente no que tange à transmissão do arrendamento aos filhos, manteve o sentido de que o regime transitório fixado no NRAU continua em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, só se aplicando o regime previsto no artigo 1106.º do Código Civil, aos contratos de arrendamento para habitação celebrado em data posterior – cfr., a este respeito os Acs. da Relação do Porto de 07.10.2019 e da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2011, também em www.dgsi.pt), onde se lê: “No atual regime do contrato de arrendamento para habitação a regra para os novos contratos é a de que o arrendamento se transmite aos sucessores do arrendatário – cfr artigo 1106.º do Código Civil – e o referido não é aplicável aos contratos celebrados antes do NRAU, valendo, para estes, como bem refere o Tribunal a quo, e como se acabou de analisar, o regime transitório consagrado, previsto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27/2, que estabelece condições muito restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional. O NRAU consagrou, assim, duas soluções aplicáveis aos contratos de arrendamento:
- uma aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor – a do artigo 1106.º do CC;
- outra aplicável aos arrendamentos celebrados antes da sua entrada em vigor – a estatuída pelo artigo 57.º do NRAU.(…)
(…) para os contratos que lhe são posteriores, o novo regime do C.Civil (artigo 1106.º) liberalizou a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário e fê-lo deliberadamente, certamente por ter tido em consideração que nestes novos contratos o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário (o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado – artigos 1096.º, n.º 2 e 1097.º do C.Civil – ou, não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos – artigo 1101.º, alínea c), do C.Civil).
O que bem se compreende, pois, que tendo findado o sistema de renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, deixaram de se justificar as limitações que antes eram impostas à transmissão do arrendamento. Mas como na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto for essa a vontade do arrendatário, considerou-se justificado diminuir, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento”.
A evolução legislativa caminhou no sentido de aligeirar a rigidez do regime do arrendamento vinculístico, de que são exemplo as regras consagradas no artigo 57.º do NRAU, as quais visam obviar a uma excessiva prorrogação da vigência dos contratos outorgados antes da entrada em vigor do RAU e do NRAU, reduzindo os casos de transmissão do arrendamento a situações justificadas por especiais razões assistenciais.
Enquanto o artigo 85.º do RAU permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade, o artigo 57.º do NRAU alterou este regime, já que passou a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60% e, a par disso, limitou a possibilidade de transmissão aos casos de morte do primitivo arrendatário.

Neste contexto, considerando que o primitivo arrendatário (o pai do Réu, tendo por referência o contrato de arrendamento celebrado em 01.07.1986) faleceu em 05.10.2000, e se transmitiu a sua posição à sua esposa (mãe do Réu), por força do disposto no artigo 57.º, n.º 1, do NRAU, não pode haver lugar a nova transmissão, desta feita ao Réu, por morte da esposa do primitivo arrendatário.

Sendo a lei vigente à data da morte do arrendatário que regula o direito à transmissão do arrendamento para o seu sucessor e sendo pacífico que o NRAU, instituindo normas transitórias de aplicação imediata aos contratos de arrendamento celebrados antes do RAU, uma delas o artigo 57.º, relacionado com a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, que alterou o regime que vigorava em sede de transmissão do arrendamento para habitação e aquando da morte do primitivo arrendatário – restringindo o universo dos transmissários e a dupla transmissão, deixando doravante o arrendamento de transferir-se por morte do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário para os descendentes na linha reta que com ele convivessem há mais de um ano –, é irrelevante a circunstância de o contrato de arrendamento não ter transitado para o NRAU e, portanto, inquestionável o acerto da decisão de primeira instância.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal de Relação de Évora em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo Recorrente.
Notifique.
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Évora, 30.10.2025
Miguel Jorge Vieira Teixeira
Anabela Raimundo Fialho
Cristina Dá Mesquita