Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | SEGURO DE GRUPO CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL INVALIDADE TERCEIRO | ||
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Data do Acordão: | 12/15/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A cláusula contratual geral de um contrato de seguro de grupo que introduz um prazo dentro do qual a reclamação deve ser apresentada para o caso de cessação do contrato, consubstancia-se numa cláusula híbrida que associa, a um seguro na base da ocorrência do facto gerador no período de vigência da apólice, uma regra contratual quanto ao limite temporal de exercício do direito à prestação emergente do sinistro, de modelo e efeito prático semelhante a um sistema claims made. II - As razões de proteção do lesado perante actos e omissões geradores de responsabilidade civil profissional por parte dos agentes de execução, que levaram o legislador a impor o seguro obrigatório, só se satisfazem com a inoponibilidade da cláusula que limita temporalmente o direito de reclamação da prestação da seguradora, mediante um termo a quo em que a caducidade do direito de exigir a prestação indemnizatória garantida pelo seguro começa a correr e pode completar-se num momento em que o lesado desconhece o facto ilícito. IIII - Num contrato constituído na base do facto gerador, uma caducidade por estipulação negocial como a estipulada na parte final da cláusula 5ª das Condições Gerais da apólice, considera-se estabelecida em matéria subtraída à disponibilidade das partes – o segurador e o tomador e o segurado incluído no seguro de grupo – por frustrar a finalidade ínsita no caracter obrigatório do seguro – a proteção ao lesado. IV - Uma tal cláusula é inválida, face ao disposto nos arts. 329º e 330º do Código Civil, que constituem regime geral a que o contrato de seguro se encontra submetido e, por isso consubstancia, além das disposições especiais, mais um limite ao princípio da liberdade negocial, nos termos do art. 11º do RJCS. V - A cessação do contrato não iliba o segurador da obrigação de realizar a prestação decorrente da cobertura do risco, conquanto o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação, nem prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato – arts. 106º, nº 2, e 108º, do RJCS. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO Glas-Mayer Gesellsahft mit Beschrankter Haftung & Compagnie Kommanditgesellshaft, instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, Ocidental – Companhia de Seguros, S.A., e Fundo de Garantia dos Agentes de Execução, património autónomo, pedindo que: a) Se declare que a ré AA[1] violou, na qualidade de agente de execução nomeada no proc. n.º 345/07.9TBSTC que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, deveres a que se encontrava obrigada pelo Estatuto da Câmara dos Solicitadores em vigor à data da prática dos factos, designadamente os deveres de honestidade, integridade e diligência, previstos nos artigo 109.º, alíneas h), i) e j) e artigo 123.º, alínea e); b) Que a ré Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. seja condenada a pagar à autora: 1- A título de danos patrimoniais causados pela 1ª ré no exercício das suas funções, o valor correspondente à diferença entre aquilo que a Autora vier a receber no âmbito do proc. n.º 345/07.9TBSTC da Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, após liquidação integral do escritório da primeira Ré e o valor do seu crédito, atualmente € 39.570,45, a liquidar em execução de sentença ou como incidente autos, se for entretanto possível; 2 - A título de danos patrimoniais causados pela 1ª ré no exercício das suas funções, o valor correspondente a todas as custas processuais e despesas suportadas pela Autora com o processo-crime que corre os seus termos com o n.º 227/12.2T3STC no Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 4 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, bem como relativos ao pagamento do patrocínio forense em tal processo, quer a título de honorários e correspondente IVA, quer a título de despesas, a liquidar em execução de sentença ou como incidente autos, se for entretanto possível; 3 - A título de danos não patrimoniais causados pela 1ª ré, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros); 4 - Os juros vencidos e vincendos - nos termos do título executivo constituído pela decisão judicial proferida pelo Tribunal de Huenfeld, na Alemanha, a qual consta de título executivo europeu - sobre os valores devidos a título de danos patrimoniais a que se refere a alínea b)-1 do pedido, desde a data da constituição em mora e até efetivo e integral pagamento; juros vincendos sobre os valores devidos a que se refere a alínea b)-2 desde a data da liquidação e até efetivo e integral pagamento; juros vincendos sobre os valores devidos a que se refere a alínea b)-3 desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; caso assim não se entenda, em qualquer dos casos, deve ser condenada a mesma ré no pagamento de juros vencidos e vincendos desde a data da constituição em mora e até efetivo e integral pagamento. Subsidiariamente ao pedido formulado em b)-1: - Deve o réu Fundo de Garantia dos Agentes de Execução, cumpridos que estejam os pressupostos a que se refere o n.º 5 do artigo 3.º do Regulamento n.º 172/2014, da Câmara dos Solicitadores, publicado no Diário da República, 2.ª série, parte E, de 23 de Abril de 2014, acima elencados em 82º, ser condenado a pagar à Autora o valor correspondente à diferença entre aquilo que a Autora vier a receber no âmbito do proc. n.º 345/07.9TBSTC da Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, após liquidação integral do escritório da primeira Ré e o valor do seu crédito, atualmente € 39.570,45, a liquidar em execução de sentença ou como incidente autos, se for entretanto possível, acrescido de juros vincendos desde a data da liquidação. Alega para tanto, em síntese, que a 1ª ré exerceu a profissão de solicitadora de execução/agente de execução, num processo em que a autora era exequente e onde foram objeto de penhora bens, tendo aquela ré se locupletado com dinheiro do processo executivo que deveria ser entregue aos credores, após a venda do imóvel, sendo que a conduta da mesma obrigou a autora a ter custos, tais como o pagamento do patrocínio forense, quer a título de honorários e correspondente IVA, quer a título de despesas, designadamente o tempo de trabalho e a deslocação a Portugal de um dos seus membros, na qualidade de testemunha no processo-crime, atendendo à essencialidade dos factos que conhecia, a que acrescem danos não patrimoniais, nomeadamente a grande preocupação e angústia com que a autora tem tentado, ao longo de todos os anos decorridos, receber o seu crédito. Mais alega que a ré Ocidental é a seguradora junto da qual a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução tinha contratado, à data dos factos em causa nos presentes autos, um seguro de responsabilidade civil profissional para os agentes de execução, sendo por isso responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados à autora, e se assim não for entendido, deverá o réu Fundo de Garantia ser responsabilizado subsidiariamente. Contestou apenas a ré Ocidental, impugnando toda a factualidade alegada, por desconhecimento, mais referindo que a atuação da segurada 1ª ré, nos termos alegados, constitui um ilícito de natureza disciplinar e criminal, razão pela qual não se encontram preenchidos os requisitos de acionamento da cobertura de responsabilidade civil da apólice, constantes nos artigos 2.º e 3.º das Condições Gerais da Apólice, encontrando-se por seu lado preenchida a exclusão de os danos resultarem “de perda ou extravio de valores monetários, objetos preciosos ou outros valores de qualquer natureza, confiados ao Segurado”. Mais alega que, nos termos do artigo 5.º das Condições Gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Âmbito Temporal”, a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato, sendo que o presente sinistro não lhe foi participado, tendo apenas dele tomado conhecimento com a citação para a presente ação. Alega, por último, que a 1ª ré foi expulsa da Câmara dos Solicitadores em 30.11.2011, tornando-se a decisão proferida definitiva em 06.06.2012, sendo que “[o] contrato de seguro caduca automaticamente na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Câmara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução…”, pelo que a partir da data em que a apólice cessou os seus efeitos, em 06.06.2012, a garantia concedida pelo contrato de seguro apenas se manterias três anos após a sua cessação, desde que reclamado o sinistro, ou seja, até 06.06.2015, devendo em consequência tal reclamação considerar-se extemporânea, por caducado se encontrar o direito de apresentar reclamações. Termina pedindo que a ação seja julgada totalmente improcedente, ou, assim não sendo entendido, que ao montante a eventualmente arbitrar para efeitos de indemnização, seja deduzida a correspondente franquia contratual, a qual, tendo em conta o período do seguro em questão, corresponderá a 10% do valor dos prejuízos, no mínimo de € 500,00 e no máximo de € 1.250,00. Teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência final, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, decido: a) Julgar procedente a excepção dilatória atípica resultante da formulação ilegal do pedido genérico e em consequência absolver a ré Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. da instância, no que respeita ao pedido formulado na alínea c) da petição inicial. b) Declaro que a ré AA violou, na qualidade de agente de execução nomeada no proc. n.º 345/07.9TBSTC que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, deveres a que se encontrava obrigada pelo Estatuto da Câmara dos Solicitadores em vigor à data da prática dos factos, designadamente os deveres de honestidade, integridade e diligência, previstos no artigo 109.º, alíneas h), i) e j) e artigo 123.º, alínea e); c) Condenar a ré Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. a pagar à Autora, a título de danos patrimoniais causados pela ré AA no exercício das suas funções, o valor correspondente à diferença entre aquilo que a Autora vier a receber no âmbito do proc. n.º 345/07.9TBSTC da Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, após liquidação integral do escritório da primeira Ré e o valor do seu crédito exequendo (acrescido de juros vencidos e vincendos, nos termos do título executivo, desde a data da constituição em mora e até efectivo e integral pagamento), no que vier a ser liquidado no respectivo incidente; d) Absolver os Réus do demais peticionado. * Custas a cargo de Autora e das rés AA e Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., na proporção de 1/5 para a primeira, 1/5, para a segunda e 3/5 para a terceira (artigo 527.º, n.º 2 e 528.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).»Inconformada, a ré Ocidental apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem. «1. Nos termos do artigo 5.º das Condições Gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Âmbito Temporal”, a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por actos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato. 2. O presente sinistro não foi participado à ora Recorrente, que dele apenas tomou conhecimento com a citação dos presentes autos. 3. Por outro lado, a Ré Agente de Execução foi expulsa da Câmara dos Solicitadores em 30.11.2011, tornando-se a decisão proferida, definitiva, em 06.06.2012. 4. Conforme dispõe o artigo 8.º n.º 4 das Condições Gerais do contrato de seguro: “O contrato de seguro caduca automaticamente na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Câmara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução…” (com destaque nosso). 5. Com efeito, a partir da data em que a apólice cessou os seus efeitos, em 06.06.2012, a garantia concedida pelo contrato de seguro apenas se mantinha nos três anos após a sua cessação, desde que reclamado o sinistro, ou seja, até 06.06.2015. 6. Não está aqui em causa, em primeira linha, a não reclamação dentro dos 3 (três) anos contados desde a cessação do contrato- 7. O que está em causa, verdadeiramente, é a inexistência de contrato de seguro, o qual caducou com a expulsão da Ré Agente de Execução. 8. Aqui chegados, então, sempre seria de admitir que, para que o contrato caduco pudesse ser accionado, teria de sê-lo através de uma participação, no prazo de 3 (três) anos, o que também não sucedeu. 9. Ou seja, não estamos a falar da prescrição do direito da Autora por via da falta de reclamação ou da falta de participação da segurada Agente de Execução, havendo ainda um contrato válido e eficaz, mas antes, de uma situação em que NÃO existe um contrato válido e eficaz – tendo o mesmo cessado por caducidade – e que, para que o mesmo pudesse garantir o risco, teria de ter sido accionado no prazo de 3 (três) anos após a sua cessação – o que não sucedeu. 10. No limite, considerar que a referida excepção da caducidade, nos citados termos, é inoponível à Autora, é o mesmo que admitir que um contrato que já caducou, pode ser sempre accionado, a todo o tempo. 11. Ora, diga-se que, tal entendimento parece-nos absolutamente atentatório dos direitos da Recorrente, a qual já não mantém qualquer vínculo contratual que abranja os riscos da actividade da Ré – que já nem se encontra inscrita na Câmara dos Solicitadores desde 2012. 12. Tendo o contrato de seguro caducado automaticamente com a expulsão definitiva da Ré Agente de Execução, em 06.06.2012, as garantias concedidas através da apólice em causa abrangem, apenas, os sinistros reclamados até 3 (três) anos após a cessação do contrato. 13. Apesar de a Recorrente apenas ter tomado conhecimento do sinistro em causa com a citação para contestar a presente acção (ou seja, falta de participação), o que está em causa é a caducidade do direito da lesada em virtude do decurso do prazo de 3 (três) anos, contados sobre a cessação do contrato. 14. Tratando-se de um seguro obrigatório, a Autora Recorrida sempre teria o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador – ora Recorrente. 15. Assim, são-lhe oponíveis, nomeadamente, as causas de cessação do contrato, no caso, a caducidade por via do art. 8.º, n.º 4 das Condições Gerais. 16. Os factos em causa nos presentes autos reportam-se ao ano de 2011, tendo a Ré Agente de Execução sido definitivamente expulsa da Câmara dos Solicitadores em 06.06.2012. 17. Pelo que, não é legítimo que apenas em 18.05.2017 a Autora tenha diligenciado no sentido de demandar a aqui Recorrente. 18. A Autora Recorrida apresentou, em 22.05.2012, queixa-crime contra a aqui Ré Agente de Execução, bem com deduziu pedido de indemnização civil, nunca contra a ora Recorrente. 19. Por outro lado, a Autora Recorrida teve conhecimento da liquidação do escritório da Ré Agente de Execução, o que sucedeu na sequência da sua expulsão, sempre, sem nunca demandar a aqui Recorrente, o que apenas decidiu anos mais tarde, já em 18.05.2017, volvidos 5 anos da expulsão da Ré Agente de Execução e, bem assim, do terminus da vigência da apólice em causa. 20. Neste conspecto, nos termos do art. 298.º, n.º 2 do CC, quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade. 21. Como facto extintivo de direitos, a caducidade verifica-se quando o direito não é exercido dentro de um dado prazo fixado por lei ou convenção. 22. Nestes termos, manter a condenação da aqui Recorrente, consubstancia um profundo desequilíbrio entre as prestações das partes contratantes, frustração da confiança inerente à celebração do contrato de seguro, revelando-se claramente atentatório da boa-fé – sendo abusivo o entendimento do Tribunal a quo, de que um contrato que já cessou por via da caducidade. 23. O princípio do equilíbrio das prestações postula um princípio de proporcionalidade na execução dos contratos. 24. Tendo o contrato em causa caducado em 2012, sem que a seguradora recebesse qualquer montante a título de prémio – por via da expulsão da Agente de Execução – condenar aquela a assumir um risco que já não se encontra garantido, resulta na assumpção forçada de garantir um risco já tendo cessado quaisquer relações contratuais que obriguem a seguradora. 25. Ora, verificando-se a caducidade do direito da Autora relativamente à aqui Recorrente, sempre deveria esta ter sido absolvida do pedido, nos termos do art. 576.º, 3 do CPC), recaindo a responsabilidade apenas e só sobre a Ré Agente de Execução. 26. Assim, entende a Recorrente que foram violados, por incorrecta aplicação, os artigos 298.º, n.º 2 do CC, art. 576.º, 3 do CPC e art. 101.º, n.º 4 da LCS, e mal interpretadas as cláusulas 5.ª e 8.ª, n.º 4 das Condições Gerais do contrato, porquanto, nos termos expostos, dever-se-á concluir que a excepção da caducidade é oponível à Autora, verificando-se a inexistência do contrato com base no qual fundamenta o seu pedido e, ainda, não tendo havido qualquer reclamação/participação, no período de 3 anos após operar a cessação do contrato por via da expulsão da Agente de Execução. Nesta medida, e atentos os fundamentos invocados, deverá ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se procedente a excepção da caducidade invocada pela Recorrente e, bem assim, considerar-se a mesma oponível à Autora Recorrida, e, consequentemente, ser revogada a douta sentença recorrida, absolvendo-se a aqui Recorrente do pedido, só assim se fazendo JUSTIÇA!» Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se caducou o direito da autora/recorrida, em virtude do decurso do prazo de 3 (três) anos, contados sobre a cessação do contrato de seguro sub judice. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Na 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos: 1. A Autora é exequente no processo de execução para pagamento de quantia certa que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal com o n.º 345/07.9TBSTC. 2. A primeira Ré exerceu a profissão de solicitadora de execução/agente de execução, utilizando o nome profissional AA e sendo portadora da cédula profissional n.º ...70. 3. A Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. é uma sociedade anónima que se dedica, para além do mais, à atividade seguradora, junto da qual a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução tinha contratado, à data dos factos em causa nos presentes autos, um seguro de responsabilidade civil profissional para os agentes de execução. 4. No dia 27 de Março de 2007, pelas 15:26:11 horas, a Autora entregou o requerimento executivo com a referência n.º 479835 no (extinto) Tribunal Judicial de Santiago do Cacém, do qual foi lavrada nota de entrada em 28 de Março de 2007 e que foi distribuído ao 2.º Juízo do referido Tribunal com o n.º 345/07.9TBSTC, conforme doc. n.º 1 que se junta e se dá por reproduzido. 5. Tal processo encontra-se atualmente ainda pendente, tendo corrido os seus termos no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Santiago do Cacém da comarca do Alentejo Litoral e correndo atualmente termos, com o mesmo número e após nova reorganização judiciária, no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, conforme doc. n.º 1 junto e doc. n.º 2 que se junta e se dá por reproduzido. 6. A referida ação executiva tem como título executivo decisão judicial proferida pelo Tribunal de Huenfeld, na Alemanha, a qual consta de título executivo europeu. 7. A quantia exequenda na referida execução era, à data da instauração da execução, de € 22.310,49 (vinte e dois mil trezentos e dez euros e quarenta e nove cêntimos), correspondendo € 21.449,79 a capital e € 860,70 a juros vencidos até à data de entrada do requerimento executivo, calculados às taxas constantes do título (14,5% ao ano sobre o capital de € 20.388,29 e 11,5% ao ano sobre a quantia de € 1.051,50), tudo acrescido de juros vincendos calculados às mesmas taxas até efetivo e integral pagamento. 8. Tal execução foi instaurada contra BB, de nacionalidade alemã e residente na Alemanha. 9. Cujo único património conhecido foi indicado à penhora, correspondendo ao prédio misto denominado “...”, situado na freguesia e concelho de Sines, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines com o n.º ...99 da referida freguesia e inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob o artigo ...5 Secção Y e na matriz urbana sob o artigo ...65. 10. No requerimento executivo foi indicada a primeira Ré como solicitadora de execução, a qual aceitou a sua nomeação em 3 de abril de 2007. 11. Também no decurso do processo, a pedido da primeira Ré, a exequente e ora Autora entregou-lhe o valor total de € 911,40 a título de provisão, sendo que: 12. O valor de € 321,85 foi creditado na conta SE a 05.09.2007; 13. O valor de € 350,00 foi creditado na conta da primeira Ré n.º ...15 do Banco Millennium BCP no dia 24.07.2009; e 14. O valor de € 239,55, no dia 30.11.2010, foi creditado na conta bancária da primeira Ré n.º ...42 do Banco Millennium BCP; 15. No exercício das suas funções, a primeira Ré providenciou pela venda do imóvel penhorado, acima identificado, tendo as aberturas de propostas, após adiamentos sucessivos, ocorrido em 18 de janeiro de 2011 e 8 de fevereiro de 2011. 16. O imóvel penhorado foi adjudicado a CC pelo preço de € 57.000,00, 17. Tendo nos atos de abertura de propostas o adquirente entregue à primeira Ré o cheque n.º ...62, datado de 18 de janeiro de 2011, no valor de € 4.000,00, na abertura de propostas de 18.01.2011, e efetuado um depósito autónomo no valor de € 7.200,00 (abertura de propostas de 08.02.2011). 18. Esse cheque foi depositado pela primeira Ré, no dia 09.02.2011, na sua conta bancária, n.º...42, do Banco Millenium BCP, em vez de o depositar na conta bancária profissional. 19. Todavia, a primeira Ré nunca fez o depósito autónomo a que se obrigou. 20. O adquirente efetuou o pagamento do remanescente do preço por transferência bancária - no dia 14.03.2011 foi creditado na conta bancária profissional da primeira Ré o valor de € 25.000,00 e no dia seguinte o valor de € 20.800,00. 21. Assim, no dia 15 de março de 2011 a primeira Ré tinha na sua posse a quantia de € 49.800,00 (€ 25.000,00 + € 20.800,00 + € 4.000,00), a qual, somada ao depósito autónomo efetuado, perfazia a totalidade do valor pelo qual o imóvel penhorado foi adquirido. 22. Por sentença de 21 de setembro de 2011, proferida no âmbito do apenso “A” do referido processo, o crédito da ora Autora ficou graduado em primeiro lugar, conforme doc. n.º 8 que se junta e se dá por integralmente reproduzido. 23. Em 26.09.2011, a primeira Ré informou aos autos executivos que o adquirente havia feito a transferência para a conta profissional no valor total de € 45.800,00 e que existia um depósito autónomo no valor de € 7.200,00, omitindo qualquer informação relativamente à falta do depósito autónomo que se comprometera fazer. 24. Embora tenha solicitado à ali exequente e aqui Autora o cálculo dos juros devidos e a indicação do NIB para transferência do crédito devido, conforme doc. n.º 9 que se junta e se dá por reproduzido, no mesmo dia 26 de Setembro de 2011 comunicou aos autos que aguardava a confirmação do cálculo dos juros para proceder à entrega do dinheiro. 25. No dia 05.12.2011, a ora Autora informou a primeira Ré dos elementos necessários para proceder à transferência do dinheiro, bem como informou que a quantia exequenda era, em 25.11.2011, de € 22.693,59 e à data de abertura de propostas de € 20.079,08. 26. Mais informou que a quantia exequenda nos termos do título executivo vence juros no valor diário de € 8,43, os quais acrescem ao valor acima indicado até à data da entrega à exequente e ora Autora da quantia em dívida; 27. Por último, convicta de que os autos estavam a terminar, requereu à primeira Ré a elaboração da competente nota discriminativa e justificativa, tudo conforme documento que se junta como doc. n.º 10 e se dá por integralmente reproduzido. 28. Apesar de interpelada por várias vezes, conforme doc. n.º 11 que se junta e se dá por integralmente reproduzido, a primeira Ré nada entregou à aqui Autora, 29. O que não fez porque não quis. 30. Até à presente data a aqui Autora não recebeu qualquer quantia, encontrando-se a execução por si instaurada e acima identificada pendente a aguardar a integral liquidação do escritório da primeira Ré. 31. A primeira Ré foi expulsa da Camara dos Solicitadores por decisão proferida em 30 de novembro de 2011 e que se tornou definitiva em 6 de junho de 2012. 32. Assim, a primeira Ré recebeu nas suas contas grande parte do produto da venda do imóvel penhorado e, ao invés de entregá-lo à exequente e ora Autora, utilizou tais quantias para uso pessoal, custos diversos de funcionamento do seu escritório e outros pagamentos noutros processos. 33. Não entregando à aqui Autora tais valores, apesar de sempre ter tido saldo para o efeito e se alguma vez tal não aconteceu deveu-se à utilização irregular das contas bancárias. 34. Veja-se, desde logo, que a primeira Ré efetuou o último movimento a débito na conta bancária SE a 6 de março de 2012, data na qual a conta apresentava o saldo positivo de € 289.127,88. 35. O escritório da primeira Ré encontra-se em liquidação, por ser um processo complexo. 36. A verba disponível a final será distribuída por rateio, pelo que não é ainda possível à ora Autora saber qual o valor que conseguirá receber a final. 37. Por outro lado, foi a atuação da primeira Ré que originou a queixa crime apresentada, com a qual a Autora teve custos não apenas em sede de custas processuais, como relativos ao pagamento do patrocínio forense, quer a título de honorários e correspondente IVA, quer a título de despesas. 38. Por outro lado, desde o início a Autora contratou um escritório de cobranças na Alemanha, que exerceu diversas diligências de cobrança e intermediou todos os assuntos relacionados com a execução em Portugal. 39. Caso a Autora tivesse recebido da primeira Ré o valor correspondente ao produto da venda, como deveria, não teria que suportar todos os custos subsequentes com os serviços prestados por tal escritório, 40. Designadamente o tempo de trabalho e a deslocação a Portugal de um dos seus membros, na qualidade de testemunha no processo-crime, atendendo à essencialidade dos factos que conhecia. 41. Ainda nesta data a Autora se mantém assessorada por tal escritório, exclusivamente pela inadimplência da primeira Ré. 42. Com efeito, é com grande preocupação e angústia que os representantes da Autora têm tentado, ao longo de todos os anos decorridos, receber o seu crédito. 43. Se o processo executivo que instaurou tivesse prosseguido os seus termos normais, há muito que a Autora havia recebido o seu crédito, desde logo porque está graduada em primeiro lugar e foi depositado um valor de venda do imóvel penhorado que sempre seria mais que suficiente para o integral pagamento. 44. A Autora, alemã, através dos seus representantes, confiou no sistema judicial português e nunca havia equacionado a hipótese de acontecer o que aconteceu; 45. Foram inúmeros os contactos estabelecidos com diversas entidades no sentido de tentar compreender e resolver o sucedido, designadamente a Câmara dos Solicitadores, a Câmara do Comércio Alemão, a Embaixada da Alemanha em Portugal, entre outros. 46. A responsabilidade civil pelos danos provocados pela primeira Ré no exercício das suas funções encontrava-se, à data, transferida para a segunda Ré seguradora, por contrato de seguro com a apólice RC84033100. 47. A Câmara dos Solicitadores tinha, à data da prática dos factos em causa nos autos, contratado um seguro de responsabilidade civil profissional para os agentes de execução com a Ré Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. – (identificado como doc. de fls. 138 a 145, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), sob a apólice RC84033100 onde se estabelecia: Artigo 2.º - Objecto do Contrato O presente contrato tem por objecto a garantia de responsabilidade civil que, seja imputável ao segurado enquanto na qualidade ou no exercício da actividade profissional de solicitador de execução, nos termos da legislação aplicável Artigo 3.º - Garantias O presente contrato de harmonia com o estipulado nas Condições Gerais, Especiais e Particulares, tem por objecto a garantida das indemnizações emergentes da responsabilidade civil, que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões materiais e/ou corporais que sejam causados a terceiros, decorrentes exclusivamente de acções ou omissões no exercício profissional da actividade de solicitador de execução, conforme definido na legislação em vigor. Artigo 5.º - Âmbito Temporal A garantia concedida pelo presente contrato abrange sinistros causados por actos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice de seguro, desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato. Artigo 6.º - Exclusões O presente contrato não cobre: (…) Os danos (…) b) resultantes da perda ou extravio de valores monetários, objectos preciosos ou outros valores de qualquer natureza, confiados ao segurado, seus estagiários, colaboradores, ou empregados; d) decorrentes de custas e quaisquer outras despesas provenientes de procedimento criminal, fianças, coimas, multas, taxas ou outros encargos de idêntica natureza; e) ocorridos em consequência de guerra, greve, “lock-out, tumultos, comoções civis, assaltos em consequência de distúrbios laborais, sabotagem, terrorismo, actos de vandalismo, insurreições civis ou militares ou decisões de autoridades ou de forças usurpando autoridade, assaltos e “hi-jacking”. 48. A Autora não teve, até 15.05.2017, conhecimento da existência de contrato de seguro para cobertura dos danos emergentes de responsabilidade civil profissional da primeira Ré. E foram considerados não provados os seguintes factos: a) No decurso do processo foram pagas pelo ali executado algumas quantias diretamente à ali exequente e ora Autora, sendo o valor em dívida, em 29 de abril de 2010, de € 23.556,44, considerando o montante de juros vencidos até tal data e os valores entretanto pagos; b) Na presente data o valor em dívida é de € 39.570,45 (trinta e nove mil quinhentos e setenta euros e quarenta e cinco cêntimos), considerando os pagamentos efetuados acima referidos e os juros calculados nos termos do título executivo; c) A atuação da primeira Ré terá necessariamente custos futuros em sede de processo criminal não apenas em sede de custas processuais, como relativos ao pagamento do patrocínio forense, quer a título de honorários e correspondente IVA, quer a título de despesas. d) Considerando a pendência do processo-crime, todos os custos inerentes, são ainda desconhecidos na sua totalidade. e) Não é igualmente é possível determinar a totalidade dos custos que a assessoria contratada representa até ao final do processo-crime. O DIREITO No presente recurso não subsiste qualquer controvérsia sobre a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil do segurado (1ª ré) por facto ilícito praticado no exercício da atividade profissional de agente de execução, nem sobre a ocorrência dos factos geradores do dano de que a autora se quer ver ressarcida num período em que a apólice estava em vigor. Assim, toda a discussão se resume à exceção da caducidade do direito da autora/lesada de exigir a indemnização à Seguradora - a aqui ré Ocidental -, que decorreria de o sinistro não ter sido reclamado a esta no prazo de três anos após a cessação do contrato, como estipulado na cláusula 5ª das Condições Gerais da apólice. Começando pela caracterização do contrato de seguro em causa, importa considerar que no artigo 123º, al. l), do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei nº 88/2003, de 26 de abril – e que na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, passou a constituir a al. n), do mesmo preceito -, estabelece-se, como dever do solicitador de execução/agente de execução, o de contratar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional. E tendo esse diploma sido revogado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro, que transformou a Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, continua a prescrever-se no art. 123º do novo Estatuto, como dever do associado, celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua atividade, cobrindo os montantes cujos critérios aí se estabelecem. Assim, podemos concluir que estamos perante um contrato de seguro de grupo – art. 76º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, instituído pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril [RJCS], porque intervém como tomador a associação pública profissional, a que os segurados estão ligados pelo vínculo de inscrição necessária ao exercício da profissão, com a natureza de seguro obrigatório, visto que a existência de um seguro de responsabilidade civil é imposto por lei para o exercício da profissão regulada de agente de execução. Escreveu-se no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2022[2]: «Essa qualificação resulta, desde logo, do elemento literal de interpretação, inscrevendo a norma estatutária entre os deveres dos agentes de execução o de contratar e manter seguro de responsabilidade civil profissional. Aliás, sobre o caracter obrigatório deste seguro também não há controvérsia. A consagração da obrigatoriedade deste seguro acompanhou o novo paradigma do processo civil executivo, centrado na figura do solicitador/agente de execução a quem passaram a ser atribuídos relevantes poderes públicos para a efectivação coactiva dos direitos patrimoniais dos cidadãos e das empresas, que constitui um âmbito persistentemente crítico da prestação do sistema de Justiça. Ao exercício dessas funções que envolvem poderes de iniciativa funcional para praticar os actos necessários à satisfação do direito do credor exequente, alguns dos quais são gravemente intrusivos no património dos executados, anteriormente cometidos a oficiais de justiça sobre a imediata direcção do juiz do processo – incluindo, a penhora, a venda executiva, a arrecadação e a guarda de valores e bens afectos aos fins da execução –, é inerente o risco de causar danos aos intervenientes processuais ou a terceiros, por erro, negligência ou conduta desviante, como aquela que deu azo ao presente processo. O legislador teve em conta essa potencialidade de risco e o desamparo a que seriam votados os lesados, perante a impossibilidade ou dificuldade de satisfação das indemnizações correspondentes por parte dos agentes de execução responsáveis, impondo como condição para esse exercício profissional a cobertura da responsabilidade do agente por um seguro obrigatório que “normaliza” o risco em termos comunitariamente suportáveis. Esse seguro poderia ser contratado individualmente ou, como no caso sucedeu, pela respectiva associação pública profissional como tomador, sendo segurado cada um dos agentes de execução com inscrição em vigor.» Assim, está em causa no presente recurso a interpretação de uma cláusula de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, em que figura como tomador a associação pública profissional e em que são segurados todos os agentes de execução nela inscritos e que, embora protegendo também o segurado dos riscos em que pode incorrer no exercício da sua atividade, tem como finalidade essencial garantir a proteção de terceiros lesados pela atuação do agente de execução considerado[3]. O contrato de seguro de responsabilidade civil exige a determinação de um âmbito objetivo (risco coberto), de um âmbito subjetivo (segurador, tomador, segurado quando não coincida com o tomador) e um âmbito temporal (período coberto pela garantia). No que concerne ao período de cobertura do seguro, que é o elemento em discussão no presente recurso, estatui o art. 139º do RJCS: «Artigo 139.º - Período de cobertura 1 - Salvo convenção em contrário, a garantia cobre a responsabilidade civil do segurado por factos geradores de responsabilidade civil ocorridos no período de vigência do contrato, abrangendo os pedidos de indemnização apresentados após o termo do seguro. 2 - São válidas as cláusulas que delimitem o período de cobertura, tendo em conta, nomeadamente, o facto gerador do dano, a manifestação do dano ou a sua reclamação. 3 - Sendo ajustada uma cláusula de delimitação temporal da cobertura atendendo à data da reclamação, sem prejuízo do disposto em lei ou regulamento especial e não estando o risco coberto por um contrato de seguro posterior, o seguro de responsabilidade civil garante o pagamento de indemnizações resultantes de eventos danosos desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato, ainda que a reclamação seja apresentada no ano seguinte ao termo do contrato.» Como se observa no citado acórdão do STJ de 14.07.2022, «[d]aqui decorre que a cobertura pode ser temporalmente delimitada em função da ocorrência do facto gerador do dano (action committed basis), da ocorrência do dano (loss occurrence basis) ou da apresentação da reclamação (claims made). O critério supletivo é o do facto gerador - n.º 1 -, o que significa que são abrangidos os pedidos de indemnização que resultem de acções e omissões ocorridos no período de vigência do contrato, sem quaisquer outros limites temporais à exigibilidade da prestação do segurador senão os que possam decorrer da prescrição. A principal novidade do art.º 139.º do RJCS consistiu em o legislador nacional ter tomado posição sobre a legalidade da chamada cláusula claims made – n.ºs 2 e 3 –, que se traduz na delimitação temporal da garantia em função data da reclamação do sinistro. A delimitação temporal com base neste elemento desencadeador (trigger) é oriunda da prática da indústria seguradora dos países anglo-saxónicos no último quartel do século passado, sobretudo no domínio do seguro de responsabilidade por actividades, cujos riscos se protraem no tempo ou emergem de processos causais complexos. Em ordens jurídicas que nos são próximas (v.g. Espanha, França, Bélgica) os termos da sua admissibilidade ou validade suscitaram viva controvérsia jurisprudencial, com os tribunais a rejeitarem essa configuração ou certas versões dessa configuração do âmbito temporal da garantia e o sector segurador a reclamar a liberdade de estipulação para adequação da actividade aos novos padrões de responsabilidade e de integração concorrencial num mundo globalizado. A intenção do legislador está claramente assumida no seguinte parágrafo do texto preambular do regime jurídico do contrato de seguro: “Quanto ao período de cobertura, assente no regime base occurrence basis, admitem-se as cláusulas claims made , embora com cobertura obrigatória de reclamações posteriores; deste modo, clarifica-se a admissibilidade das cláusulas claims made (ou base-reclamação) tentando evitar o contencioso sobre a admissibilidade de tais clásulas havida em ordenamentos comparados próximos. A aceitação destas cláusulas determina a obrigação de cobertura do risco subsequente (ou risco de posteridade) relativo às reclamações apresentadas no ano seguinte à cessação do contrato, desde que o risco não esteja coberto por contrato de seguro subsequente”. Na sua modalidade pura, um seguro na base da reclamação abrange os sinistros reclamados pela primeira vez durante a vigência do contrato – lapso temporal entre o início e o termo do período contratual considerado – ou até um ano após esse termo (mínimo imperativo do risco de posteridade, no ordenamento nacional – art.º 13.º, n.º 1, do RJCS –, ainda que o facto gerador do dano seja anterior ao início do período contratual (risco de anterioridade), desde que desconhecido das partes no momento da celebração do contrato – cfr., como exemplo de um seguro deste tipo, o apreciado no Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. n.º 5440/15.8T8PRT-B.P1.S1, em www.dgsi.pt, respeitante à responsabilidade profissional dos advogados.» Porém, no caso em apreço não se está perante uma típica apólice claims made, uma vez que o contrato não enuncia a “primeira reclamação” como fator desencadeador, não cobre o “passado desconhecido”, como tipicamente sucede com contratos deste tipo. Antes, identifica como tal os «(…) sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice», o que corresponde a uma cobertura na base do facto gerador (action comited basis). Fazemos uma vez mais nossas, data venia, as seguintes palavras do acórdão do STJ de 14.07.2022: «O que sucede é que, em vez da sujeição da exigibilidade da prestação da seguradora às regras que decorreriam do regime geral face a um seguro de responsabilidade civil na base da ocorrência, que consiste na possibilidade de reclamação a todo o tempo com o limite da prescrição, as partes introduziram um prazo dentro do qual a reclamação deve ser apresentada para a hipótese da cessação do contrato. Trata-se de uma cláusula híbrida que associa, a um seguro na base da ocorrência do facto gerador no período de vigência da apólice, uma regra contratual quanto ao limite temporal de exercício do direito à prestação emergente do sinistro, de modelo e efeito prático semelhante a um sistema claims made. Na verdade, está-se perante uma disposição contratual que não respeita à definição do evento que gera o risco coberto ou que desencadeia a prestação do segurador – o facto gerador do dano –, mas perante uma limitação temporal, estabelecida por vontade das partes, para o exercício do direito ou, visto pelo lado passivo, de extinção da obrigação correspondente. Assim, o dispositivo que a Recorrente (segurador) pretende opor ao Recorrido (lesado) é uma estipulação contratual de caducidade, conforme art.º 298.º, n.º 2 e art.º 330.º do Código Civil (CCivil).» O artigo 147º do RJCS dispõe, no nº 1, que o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro. E, no n.º 2, especifica que, para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador: (i) a invalidade do contrato, (ii) as condições contratuais (iii) e a cessação do contrato. A recorrente parece pretender enquadrar a situação na previsão legal de cessação do contrato, mas este enquadramento jurídico é inexato, pois a cessação do contrato que pode ser oposta à lesada/autora, ao abrigo do mencionado preceito legal, «é a que se tenha verificado antes da ocorrência do sinistro, não a que tenha lugar depois de ele ter ocorrido. O decurso do prazo previsto na parte final da cláusula 5.ª das Condições Gerais da Apólice, é realidade diversa. Não afecta a existência, a validade ou vigência do contrato, extingue ou pretende extinguir os efeitos dele decorrentes.» E, está provado que o sinistro[4] ocorreu no período de vigência do contrato e das suas prorrogações, ou seja, num momento em que a 1ª ré/segurada estava inscrita como agente de execução na Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e as ações e omissões que integram o facto ilícito complexo, gerador do dano pelo qual a autora quer obter indemnização, respeitam ao exercício dessa mesma atividade profissional. Sob este prisma, tem de entender-se que a recorrente, embora fazendo referência à inexistência e à cessação do contrato de seguro, o que defende só pode juridicamente corresponder à oponibilidade ao lesado do facto extintivo da não reclamação no prazo contratualmente estabelecido pela cláusula 5ª das Condições Gerais da apólice, isto é, dentro do período de três anos, após a cessação do contrato em consequência da expulsão definitiva da segurada como agente de execução pela Ordem dos Solicitadores. Dito de outro modo, «a seguradora pretende socorrer-se da oponibilidade de uma das “condições contratuais”, um dos meios de defesa enumerados no artigo 147.º, n.º 2, do RJCS»[5]. Ora, entre os meios de defesa do segurador emergentes de facto do segurado mais frequentemente esgrimidos, situa-se o que respeita à violação de deveres contratuais relativos à “participação do sinistro” [arts. 100º e 101º do RJCS), cujos efeitos contratuais o nº 4 do art. 101º, estabelece serem inoponíveis ao lesado. Neste preceito estipula-se a inoponibilidade aos lesados, no âmbito dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, das consequências contratuais do incumprimento dos deveres ou obrigações acessórias de participação do sinistro. Convém aqui referir que a reclamação a que se refere a cláusula 5ª das Condições Gerais da Apólice não se confunde ou identifica com a participação do sinistro. Com efeito, «[a] participação é um ato de comunicação ao segurador da ocorrência de uma situação susceptível de ser qualificada como sinistro, explicitando as circunstâncias da sua verificação, as eventuais causas e as respectivas consequências, dirigido pelo tomador, segurado ou beneficiário de participação, tendo a natureza de um dever contratual ou obrigação acessória. A reclamação é um acto de interpelação, judicial ou extrajudicial, ao segurador para efectuar a prestação decorrente da cobertura do sinistro. Tem a natureza de ónus, não de dever contratual. Assim sendo, não pode retirar-se directamente do n.º 4, do art.º 101.º, a inoponibilidade da cláusula em análise ao lesado, porque não se está perante a consequência a retirar de qualquer incumprimento de deveres contratuais de informação por parte do segurado para com o segurador. Todavia, as disposições do n.º 1, do art.º 147.º, em articulação com o n.º 4, do art.º 101.º, do RJCS, já interessam, enquanto lugar próximo interpretativo a que o intérprete pode recorrer, por revelarem a intencionalidade do sistema jurídico quanto à protecção ao lesado, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil. Na verdade, apesar de não se tratar de caso directamente subsumível nos art.ºs 100.º e 101.º do RJCS, a oponibilidade ao lesado da falta de reclamação por aplicação tout court da cláusula de caducidade, aplicada com a rigidez própria da caducidade (art.º 328.º, do CCivil), independentemente do conhecimento do facto gerador da responsabilidade, teria um resultado equivalente ao que o n.º 1, do art.º 147.º, quer evitar, ao limitar a oponibilidade ao lesado a factos ocorridos anteriormente ao sinistro. O lesado ficaria privado da protecção que o legislador quis conferir-lhe ao instituir a obrigatoriedade do seguro relativamente a danos causados por factos lesivos ocorridos no domínio de vigência da apólice, mas em cuja ignorância pode ter permanecido no decurso do prazo de caducidade. Deste modo, as razões de protecção do lesado perante actos e omissões geradores de responsabilidade civil profissional por parte dos agentes de execução, que levaram o legislador a impor o seguro obrigatório, só se satisfazem com a inoponibilidade da cláusula que limita temporalmente o direito de reclamação da prestação da seguradora, mediante um termo a quo em que a caducidade do direito de exigir a prestação indemnizatória garantida pelo seguro começa a correr e pode completar-se num momento em que o lesado desconhece o facto ilícito e, portanto, o direito que lhe compete.»[6] Nestes termos, é de concluir que a exceção que decorre da parte final da cláusula 5ª das “Condições Gerais” da apólice, não é oponível à autora/lesada. Contrapõe ainda a recorrente que manter a sua condenação «consubstancia um profundo desequilíbrio entre as prestações das partes contratantes, frustração da confiança inerente à celebração do contrato de seguro, revelando-se claramente atentatório da boa-fé – sendo abusivo o entendimento do Tribunal a quo», considerando que o contrato já cessou por via da caducidade. Não colhe, porém, a argumentação da recorrente. Senão vejamos. O segurador só tem direito ao prémio durante a vigência do contrato. Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um determinado risco, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso da ocorrência do evento aleatório previsto no contrato e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente [art. 1º do RJCS]. É este o sinalagma estrutural do contrato de seguro. Cessado o contrato, cessa a cobertura posterior do risco e cessa o direito ao prémio [art. 106º, nº 1, do RJCS]. Ora, não obstante o contrato ter cessado, o segurador continua adstrito a efetuar a prestação resultante de um sinistro ocorrido antes do termo do vínculo, como consta do nº 2 do art. 106º do RJCS, e também não prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato [art. 108º, nº 1, do RJCS]. O segurador deixa de estar exposto ao risco, mas tem de honrar a prestação resultante de sinistros ocorridos no seu período de vigência da apólice porque foi em contrapartida disso que recebeu o prémio. Só pode opor ao lesado os limites temporais resultantes da prescrição, nos termos do art. 145º do RJCS, o qual imperativamente estipula que «[a]os direitos do lesado contra o segurador aplicam-se os prazos de prescrição regulados no Código Civil». Escreveu-se a este propósito no acórdão do STJ de 14.07.2022: «Aliás, o efeito prático produzido por um dispositivo contratual com o teor do que está em apreciação, quando acoplado a um seguro na base do facto gerador, equivale a facilitar, em benefício do segurador, os termos em que o tempo se repercute sobre a possibilidade de efectivação dos direitos do lesado. Designadamente, através da instituição de um prazo de caducidade, as disposições contratuais subtraem o segurador às vicissitudes atendíveis no regime da prescrição, designadamente, de suspensão e interrupção a que estaria normalmente sujeito. Pelo que, apreciada na substancialidade dos seus efeitos, a cláusula em apreço tem o efeito equivalente a uma derrogação do disposto no art. 145º do RJCS, que se refere à prescrição dos direitos do lesado contra o segurador. Ora as disposições relativas à prescrição são inderrogáveis pelo que a disposição em causa tem de considerar-se, objectivamente, fraudatória desse regime e, por isso, inaplicável (art.ºs 300.º e 330.º, n.º 1 do Código Civil). Reconhece-se a compreensível preferência das empresas seguradoras, em certos domínios de actividade, nomeadamente aquelas em que o dano emerge de processo causal complexo ou de prognose incerta – v.g. a responsabilidade por danos ambientais, a responsabilidade do produtor, a responsabilidade civil médica, de construtores, de administradores e similares, de actividades de risco catastrófico como a nuclear. Neste sentido, Margarida Lima Rego, Contrato de Seguros e Terceiros, pág. 114, nota 258, por seguros de base claims made e a progressiva conformação dos ordenamentos jurídicos a essa realidade. Mas o contrato dos autos não é um contrato desse tipo, embora a cláusula inoponível tivesse um objectivo equivalente quanto aos risques de posteriorité. E não pode dizer-se que uma solução que, afinal, reconduz os efeitos do contrato ao figurino legal correspondente ao modelo escolhido (seguro na base do facto gerador), quebre intoleravelmente o equilíbrio financeiro do contrato, de molde a considerar-se contrária ao princípio da boa-fé. A inaplicabilidade ou inoponiblidade da cláusula de caducidade a um contrato deste tipo, pode tornar o contrato economicamente menos vantajoso para o segurador, por prolongar os custos de administração, agravar o montante das reservas técnicas a prover, porventura afectar as condições de resseguro, mas não introduz no sinalagma funcional um efeito desproporcionado que não caiba nos riscos do negócio, acauteláveis por uma gestão criteriosa e prudente.» Afiguram-se também oportunas as palavras de Margarida Lima Rego: «[a] pretensão do terceiro não se funda no contrato, embora pressuponha a sua existência, e as partes não podem afastá-la, pelo que seria absurdo que pudessem, por via da redacção das disposições contratuais, criar meios de defesa que fizessem precludir, em certas circunstâncias, o direito do terceiro. A oponibilidade de meios de defesa pelo segurador tem, pelo contrário, de resultar directamente da lei»[7]. O que vale por dizer que só é legítimo a seguradora escusar-se a responder ou limitar a sua responsabilidade perante o lesado em situações muito contadas. E isto porque «todo o seguro, ou melhor a atribuição característica de todo o seguro, tem como 'função típica' a satisfação de uma necessidade»[8] e, entre as necessidades a satisfazer, deve ter-se especialmente em conta, no caso do seguro obrigatório, o interesse do lesado em ser ressarcido. Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas ou quaisquer outras. Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas pela recorrente. * Évora, 15 de dezembro de 2022 (Acórdão assinado digitalmente no Citius) Manuel Bargado (relator) Albertina Pedroso (1º adjunto) Francisco Xavier (2º adjunto) __________________________________________________ [1] Doravante 1ª ré ou simplesmente ré. [2] Proc. 1138/16.8T9STC.E1.S1, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto. [3] Neste sentido, para contrato de seguro com funcionalidade idêntica, celebrado pela Ordem dos Advogados, vd. acórdão do STJ de 17.06.2021, proc. 15017/14.0T2SNT.L1.S1. [4] Cfr. art. 99º do RJCS. [5] Cfr. acórdão do STJ de 14.07.2022 a que vimos aludindo. [6] Cfr. acórdão do STJ de 14.07.2022, que vimos seguindo. [7] Contrato de Seguro e terceiros – Estudo de Direito Civil, Lisboa, 2008, p. 558 [citação do acórdão do STJ de 17.10.2019, proc. 5992/13.7TBMAI.P2.S2.] [8] Ibidem, p. 204. |