Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉRGIO CORVACHO | ||
Descritores: | PROVA PERICIAL COACÇÃO SEXUAL ABUSO SEXUAL INDEMNIZAÇÃO CIVIL SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 05/15/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
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Sumário: | 1. Os relatórios médicos, psicológicos e outros similares que os sujeitos processuais frequentemente fazem juntar aos autos, elaborados por pessoas da sua escolha e destinados a fazer a demonstração de factos que lhes aproveitem, não valem como prova pericial. 2. Para o preenchimento dos crimes de coacção sexual ou de abuso sexual de pessoa internada, é irrelevante que o agente logre satisfazer o seu propósito libidinoso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 320/09.6PBSTR.E1 ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Relatório No Processo Comum nº 320/09.6PBSTR, que correu termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém, por acórdão do Tribunal Colectivo proferido em 12/4/11, foi decidido: 6.1. – Parte criminal Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência: 6.1.1. – Condenar o arguido A, pela prática de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de três (3) anos de prisão. 6.1.2. – Condenar o arguido A, pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. pelo artigo 166.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão, absolvendo-o do crime de coacção sexual que lhe era imputado. 6.1.3 – Em cúmulo jurídico, condenar o arguido A na pena de quatro (4) anos de prisão, cuja execução se suspende, pelo mesmo período de tempo, na condição de o arguido pagar à demandante B a quantia de 6 050,00 €, no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão. 6.1.4. – Condenar, ainda, o arguido, no pagamento de 7 UCs de taxa de justiça e nos encargos do processo, com procuradoria correspondente a 1/2 daquela taxa de justiça a favor do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, tudo nos termos dos artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do C.P.P. e 82.º, 85.º, n.º 1, al. a), 89.º, n.º 1 e 95.º, n.ºs 1 e 2 do Código das Custas Judiciais (C.C.J.) e em 1% da taxa de justiça, nos termos do artigo 13.º, n.º 3 do DL 423/91, de 30.10. 6.2. – Parte cível Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante B e, em consequência, condenar o demandado A a pagar-lhe a quantia de 6 050,00 € (seis mil e cinquenta euros), a título de danos morais e patrimoniais. 6.2.2. – Custas do pedido cível a cargo da demandante e do demandado, na proporção do respectivo decaimento. Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados: 1. O arguido exercia, à data dos factos, a profissão de enfermeiro no Hospital Distrital de Santarém. 2. No exercício dessas suas funções, o arguido trabalhava por turnos, quer no apoio à enfermaria, quer no Serviço de Urgência. 3. No dia 23 de Março de 2009, o arguido encontrava-se de serviço tendo feito o turno das 08 horas até às 16,15 horas. 4. Nesse dia 23 de Março, pelas 02 horas da manhã, C recorreu ao Serviço de Urgências do Hospital Distrital de Santarém por estar com fortes dores, tendo passado toda a madrugada em observações. 5. A hora não exactamente apurada, mas que se situa após as 09 horas da manhã, C foi levada para uma sala de tratamento onde acabou por adormecer. 6. Passado algum tempo acordou na mesma sala, mas num recanto isolado dos demais doentes por cortinas que se encontravam corridas, tendo junto de si o arguido, vestido com a túnica de serviço de enfermeiro. 7. Nesse mesmo momento, C, que se encontrava deitada de lado, sentiu que tinha algo estranho na sua mão direita, apercebendo-se que era o pénis erecto do arguido, que este encostou à referida mão, após o que, subitamente, adormeceu. 8. O arguido aproveitando-se do facto de C se encontrar deitada na maca, debilitada fisicamente, e aproveitando-se, ainda, das funções que exercia como enfermeiro no Hospital de Santarém e de aquela se encontrar momentaneamente ao seu cuidado, praticou sobre ela os factos supra referidos, visando obter satisfação sexual. 9. No mesmo dia 23 de Março, pelas 14,40 horas, B recorreu às Urgências do Hospital por ter sido acometida por forte dor. 10. Depois de ter sido atendida pelo médico, B foi colocada numa maca e levada para a sala de observação do Serviço de Urgência enquanto aguardava por meios complementares de diagnóstico. 11. O arguido, devidamente uniformizado com calça e túnica de serviço, aproximou-se, então, de B, correu as cortinas de resguardo de modo a isolar a doente, procedeu à recolha de sangue para análises, ligou-a a um frasco de soro e, pelo mesmo tubo, administrou-lhe uma substância desconhecida, mas que tinha na sua composição química “benzodiazepinas”, para lhe induzir o sono e assim poder praticar actos para sua satisfação sexual sem qualquer oposição. 12. Quando B começou a ficar relaxada e sonolenta, o arguido aproveitando-se desse facto e, ainda, da circunstância de aquela se encontrar na maca imobilizada com o soro no braço, sem conseguir reagir, colocou-lhe o seu pénis erecto na mão, enquanto lhe perguntava se gostava de “broches”, “punhetas”, ou “sexo anal”, momento em que aquela adormeceu subitamente. 13. Ao agir como supra se descreve, o arguido actuou sempre deliberada e conscientemente, com o propósito de obter satisfação sexual, como obteve, estando perfeitamente ciente que actuava contra a vontade das ofendidas, aproveitando-se do facto de se encontrarem acamadas e débeis fisicamente, para administrar a B substância que não foi possível identificar mas que tem na sua composição química a “benzodiazepinas”, que lhe induziu o sono e a colocou sem conseguir, por isso, opor-se aos seus intentos de satisfação sexual, os quais concretizou, assim como da sua profissão de enfermeiro para, da mesma forma, relativamente à ofendida C, satisfazer os seus instintos sexuais, o que levou a efeito. 14. O arguido actuou, ainda, aproveitando-se do facto de ser enfermeiro para ter acesso às doentes, pois que por causa dessa função as mesmas nele depositavam confiança. 15. Bem sabia o arguido que as suas condutas são proibidas e que desse modo não cumpria os seus deveres de enfermeiro e profissional de saúde. 16. À data dos factos, a assistente B tinha 18 anos de idade, era uma jovem alegre e descontraída, optimista e com um vasto círculo de amigos. 17. Frequentava o último ano de Técnica de Marketing, na Escola Profissional de Vale do Tejo, em Santarém, que conseguiu concluir nesse ano lectivo, mas com uma classificação inferior à sua média anterior. 18. Nos dias imediatamente a seguir aos factos, a assistente B faltou às aulas por não conseguir enfrentar amigos e professores. 19. Desde a data dos factos que a assistente B se sente revoltada, irritável e chora, afastando-se da quase totalidade dos amigos. 20. Nos dias a seguir aos factos, a assistente B não dormiu bem. 21. A assistente B foi a uma consulta de psicologia, em 29 de Outubro de 2010 e da qual resultou o relatório de Psicologia de fls. 524 e seguintes dos autos. 22. Ali se conclui que a assistente B é uma pessoa perturbada pelos factos que vivenciou e objecto destes autos, o que tem prejudicado o seu funcionamento psicossocial e desencadeado várias fobias associadas ao trauma original. 23. O arguido submeteu-se a uma avaliação psicológica de personalidade da qual resultou o relatório de fls. 546 e seguintes dos autos. 24. Naquele se concluiu que o arguido é uma pessoa que pretende dar uma imagem favorável de si, sendo este facto indiciador de rigidez cognitiva e utiliza a racionalização para assinalar respostas aceitáveis, não se apercebendo das impressões que os outros podem ter dele, o que poderá potenciar uma visão ingénua e perfeccionista de si e até promover alguma defensividade. 25. Conclui, ainda, que o arguido é um sujeito imaturo (na gestão das emoções e afectos), ingénuo e egocêntrico, carece de insight relativamente a si próprio e com os outros, acabando por ser manipulado para satisfação das suas necessidades pessoais. 25. Conclui, finalmente, que o perfil do arguido não é revelador de perigosidade, nem de comportamento delinquente. 26. O arguido não tem antecedentes criminais. 27. O arguido vive com os pais; encontra-se suspenso de funções desde 14 de Junho de 2010 e não se encontra a exercer qualquer outra profissão. 28. O arguido é considerado por médicos e colegas uma pessoa responsável, competente e compreensiva. A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados: - Que o arguido injectou uma substância desconhecida, indutora de sono, no tubo usado para a entrada do soro, na ofendida C. - Que em consequência da conduta do arguido, a demandante B foi obrigada a frequentar consultas de psicologia, mantendo nesta data a necessidade desse acompanhamento psicológico e que ficou desmotivada a continuar os seus estudos. Do acórdão proferido interpôs recurso a assistente e demandante civil B, com a devida motivação, tendo formulado as seguintes conclusões: 1 – A indemnização que o ARGUIDO foi condenado a pagar à ASSISTENTE deve ser de montante superior aos seis mil euros fixados, atendendo à idade da vítima, circunstâncias do crime e prejuízos não patrimoniais sofridos pela vítima e dados como provados no douto Acórdão recorrido. 2 – A pena de prisão aplicada ao ARGUIDO, de cuja medida não se discorda, deve ser efectiva, não se aplicando a suspensão da mesma, dado o perigo real de continuação da actividade criminosa do ARGUIDO. O MP respondeu á motivação da assistente, tendo formulado, por sua vez, as seguintes conclusões: a) Quanto ao quantum indemnizatório questionado pela assistente / recorrente, o Ministério Público está carecido de legitimidade e não tem fundamento nem interesse em agir (res inter alios acta); b) Sempre que possível, o tribunal deverá optar por aplicação de medidas / penas que não coarctem a perda de liberdade física; c) Sendo a suspensão da execução da pena um substitutivo, particularmente, adequado das penas privativas de liberdade, o tribunal deverá deitar mão do respectivo instituto se e quando, mediante uma prognose social favorável ao arguido e um juízo formulado ex ante, ocorrer a esperança e a expectativa, séria, de que este sentirá a sua condenação como uma advertência e de que não cometerá no futuro / devir nenhum outro crime; d) Relevando e ponderando todo o quadro factual subjacente e descrito no douto acórdão, outra conclusão / decisão não se imporia que não fosse a da suspensão da execução da pena, mediante condição, nos termos e fundamentos em que o foi; e) A assistente / recorrente não indicou, como devia e era de lei (vide art.º 412º, n.º 2, al. a), do C. P. Penal), qualquer norma ou normas jurídicas violadas o que, contudo, salvo melhor opinião, não levará, sem mais, à rejeição do recurso; f) No mais, não terá sido violado qualquer inciso normativo; g) Por via disso, negando-se provimento ao recurso, será feita justiça. O arguido foi notificado nos termos do nº 6 do art. 411º do CPP, não tendo exercido o seu direito de resposta. Do acórdão proferido o arguido e demandado A interpôs também recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões: 1. O Tribunal a quo fez uma má valoração da prova traduzida e produzida em sede de julgamento. 2. Não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido abusou sexualmente de pessoa internada apenas com base no testemunho de uma pessoa que se encontrava, primeiro sonolenta e, depois, em estado de sonolência grave e confusão mental devido ao medicamento que lhe foi ministrado, de acordo com a prescrição médica. 3. Do mesmo modo, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido tenha administrado à assistente «uma substância desconhecida, mas que tinha na sua composição química “benzodiazepinas”, para lhe induzir o sono», para dela poder abusar sem oposição, pois não se pode considerar como provado que lhe foi, de facto, ministrado uma substância desconhecida. 4. O Tribunal a quo não teve em consideração o processo clínico das assistente e ofendida, e que faz parte dos autos a fls. 475 e 476 e 487 – 490, respectivamente, pois se o tivesse feito, teria concluído que ambas foram medicadas, entre outros, e segundo indicação do médico responsável, com Metoclopramida, que é um medicamento antagonista de bloqueamento da segregação da dopamina. 5. A dopamina é um importante neurotransmissor no cérebro, produzido por um grupo de células nervosas, chamadas de Neurónios Pré-Sinapticos, que actuam no cérebro promovendo, entre outros efeitos, a sensação de prazer e de motivação. Em caso de dor, existe uma maior segregação de dopamina, estimulando assim a actividade do sistema nervoso central - a dopamina é um precursor natural da adrenalina. 6. A Metoclopramida é utilizada para bloquear a segregação de dopamina, produzindo um efeito de relaxamento, dando assim lugar a sonolência e a confusão mental. 7. A Metoclopramida tem como reacções adversas: confusão mental, sonolência grave, espasmos musculares, tique, efeitos extrapiramidais (tremores e sacudidelas das mãos), podendo ainda aparecer constipação, tonturas, cefaleias, erupção cutânea, irritabilidade não-habitual. A administração intravenosa deste medicamento é de absorção rápida pelo sistema nervoso central, levando assim ao adormecimento imediato do doente, facto que é consistente com o alegado pelas ofendida e assistente. 8. Além de sonolência grave, a Metoclopramida leva a um estado de confusão mental, o que impossibilita, desde logo, que o doente seja capaz de efectuar raciocínios lógicos ou que venha, a posteriori, lembrar factos que tenham sido praticados no imediatamente pré e após à entrada do medicamento no sistema nervoso central. 9. Não obstante a ficha clínica de ambas se encontrar junta ao processo, a fls. 475 e 476 e 487 – 490, facto é que o Tribunal a quo não teve tal facto em consideração, como devia, quedando-se apenas numa substância - “benzodiazepinas” - que foi encontrada horas depois na urina da assistente. 10. As “benzodiazepinas” são um grupo de fármacos ansiolíticos utilizados como sedativos, hipnóticos, relaxantes musculares, para amnésia anterógrada e actividade anticonvulsionante. 11. Este medicamento, para se encontrar na urina da assistente por volta das 21 horas do mesmo dia, teria que ser tomado até cerca 2 horas antes da realização da análise, não sendo, em consequência, possível que a medicação ministrada 6 horas antes ainda tivesse vestígios na urina. 12. Relativamente à existência desta substância, o Tribunal a quo entendeu ser verdade que a assistente nunca tomou «qualquer medicação, nomeadamente, da categoria dos ansiolíticos ou anti-depressivos». 13. Contudo, e mais uma vez, não tomou o Tribunal a quo em consideração o depoimento da Dra. D, médica neurologista no Hospital Distrital de Santarém, que refere que «atendeu a ofendida B na Urgência no dia 23 de Março de 2009, aduzindo que a mesma se queixava de dores de cabeça, tórax e perna, não havendo um síndrome específico, pelo que lhe receitou um anti-depressivo que trata as cefaleias tipo tensão e deu-lhe alta» (negrito e sublinhado nosso). 14. Como facilmente se pode ver, o Tribunal a quo podia e devia ter dado como provado que a ambas as ofendida e assistente foi ministrada um medicamento que causa sonolência grave e confusão mental, medicamento este prescrito pelo médico de serviço. 15. Do mesmo modo, o Tribunal a quo podia e devia ter dado como provado que a substância encontrada na urina da assistente – “benzodiazepinas” – teve como origem a toma de medicamente anti-depressivo prescrito pela médica neurologista. 16. Não podia, pois, o Tribunal a quo ter dado como provado que tal substância foi ministrada pelo arguido para, sem qualquer oposição, poder abusar sexualmente da assistente. 17. Igualmente, e tendo em conta o estado de confusão mental em que se encontrava, devido à administração de Metoclopramida, não podia ter o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido tenha questionado se a assistente gostava de “broches”, “punhetas” ou “sexo anal”. Mais, 18. Não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que a ofendida «se encontrava deitada de lado», não referindo contudo sobre que lado; que a ofendida «sentiu que tinha algo estranho na sua mão direita», com isto pressupondo que estaria a agarrar/segurar, sem, contudo, dizer como: se tinha a mão aberta e o pénis do arguido em cima da mão ou se tinha a mão por cima do pénis; que o pénis do arguido «se encostou à referida mão», ficando assim sem se perceber se afinal a ofendida “tinha” o pénis na mão ou se o pénis “se encostou” à mão daquela, pois que não é fisicamente possível algo “estar” e ao mesmo tempo “se encostar”. Ainda, 19. Tendo em conta que o relatório de psicologia efectuado ao arguido refere que o mesmo «não é revelador de perigosidade, nem de probabilidade de passagem ao acto, nem revelador de comportamento delinquente», que o mesmo é dizer que o recorrente não apresenta qualquer comportamento sexual desviante, nunca poderia o Tribunal a quo dar como provado que os factos descritos pelas ofendida e assistente são idóneos à obtenção de «satisfação sexual» por parte do arguido e que o mesmo obteve essa mesma «satisfação sexual». 20. Não apresentando o arguido qualquer comportamento sexual desviante, a simples menção pelas ofendida e assistente da sua prática não é suficiente para a prova dos mesmos. 21. E mais, para se poder, em todo caso admitir a concretização dessa satisfação, necessário seria que tivesse havido ejaculação, o que não aconteceu, pois não foi encontrado qualquer vestígio de sémen. 22. Entendeu também o Tribunal a quo considerar que a exiguidade do espaço, a falta de privacidade e a concorrência ao serviço por todas as testemunhas de defesa enunciada não é indicio suficiente de que tais factos não tenham sido praticados. 23. O relatório de psicologia efectuado à assistente no dia 29 de Outubro de 2010, constante de fls. 524 – 528 dos autos não podia ter servido para fundamentar a decisão de condenação por falta de distanciamento da Técnica Superior de Psicologia no caso concreto, tendo em conta que a mesma e a mandatária da assistente não só têm o mesmo apelido (…), como possuem domicílio profissional exactamente na mesma morada: (…). 24. Atento tudo o exposto, é por demais evidente que o Tribunal a quo fez não só uma apreciação incorrecta da prova trazida e produzida em sede de julgamento, como, em consequência, fez uma aplicação errada do Direito. 25. Caso tivesse atendido a toda a prova produzida e ora descrita, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o arguido, pelo menos, em cumprimento do princípio in dubio pro reo. 26. O princípio in dubio pro reo, enquanto princípio geral do direito processual penal, é a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, nos termos do artigo 32°, n.º 2 da CRP, significando isto que não existindo um verdadeiro ónus da prova que recaia em qualquer dos sujeitos processuais, e devendo o tribunal investigar autonomamente toda a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre prova do facto para além de toda a dúvida razoável. Dizendo de outro modo, na dúvida, deve julgar a favor do réu. Nestes termos, e demais de Direito, face a todo o exposto, deve o acórdão recorrido ser revogado conforme descrito, e, em consequência, absolver o arguido/recorrente dos factos sobre os quais foi condenado. O MP a assistente e demandante civil B responderam à motivação do arguido, tendo formulado, respectivamente, as seguintes conclusões: MP a) Não tendo o recorrente, nas suas conclusões, indicado, como devia e era exigível (art.º 412º, n.º 2, al. a), do C. P. Penal), qualquer norma jurídica que tivesse ou pudesse ter sido violada, nos termos do art.º 417º, n.º 3, do C. P. Penal, poderá levar ao convite da reformulação / aperfeiçoamento, na parte em referência, das mesma conclusões, sob pena de o mesmo recurso poder ser rejeitado ou não conhecido na parte afectada, atento o disposto no art.º 420º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma legal; b) Impugnando-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente está adstrito ao ónus da impugnação especificada; c) Não o tendo feito, como foi o caso, estará o tribunal ad quem impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo tribunal a quo, não se verificando quaisquer dos vícios a que alude o art.º 410º, do C. P. Penal; d) O que, a ser assim, levará ao não conhecimento / rejeição do recurso; e) Caso tal não se entenda, sempre se dirá que o recorrente não terá qualquer boa e atendível razão nos fundamentos que invoca; f) A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento só poderá levar, como levou, à condenação do recorrente nos termos, fundamentos e extensão em que o foi, não se verificando qualquer non liquet, o que afasta a aplicação do invocado princípio in dubio pro reo; g) Nos crimes de trato sexual, quando credível e corroborado em aspectos periféricos por outros meios de prova, o depoimento da vítima ou vítimas pode, só por si, fundamentar uma condenação; h) Verificar-se-ão todos os requisitos típicos dos crimes pelos quais o arguido foi condenado; i) As penas arbitradas, quer individualmente, quer unitariamente, encontrar-se-ão no seu ponto óptimo de equilíbrio, mostrando-se adequadas aos respectivos fins; j) Por tudo isso, não se conhecendo / rejeitando-se o recurso, nos termos e fundamentos da resposta, ou negando-se provimento ao mesmo, será feita justiça. B 1 – A motivação de recurso do Recorrente nada traz de novo em relação à prova produzida. 2 – O acórdão recorrido faz uma exaustiva e correta descrição dos factos provados, aplicando à conduta do Recorrente, traduzida na prática de tais factos, a correta moldura penal. 3 – Pelo exposto deve ser mantido o acórdão recorrido no que respeita à condenação do Recorrente. Ambos os recursos interpostos foram admitidos com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo. A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso em presença, no sentido da respectiva improcedência. O parecer emitido foi notificado aos recorrentes, a fim de se pronunciarem, o que não fizeram. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, as quais deixámos enunciadas supra. Encontramo-nos perante dois recursos interpostos do acórdão proferido em julgamento, um encabeçado pelo arguido e demandado e outro da iniciativa da assistente e demandante B. O acórdão recorrido condenou o arguido, pela prática de dois crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexuais, um deles em detrimento da ora assistente, em penas de prisão, que foram objecto de cúmulo jurídico, tendo a pena única dele resultante sido condicionalmente suspensa na sua execução, e em indemnização à demandante, para ressarcimento de danos patrimoniais e não patrimoniais. O recurso interposto pelo arguido tem por finalidade a sua absolvição, pura e simples dos crimes por que foi condenado e de pedido de indemnização civil. Por seu turno, o recurso encabeçado ela assistente visa, por um lado, a elevação do montante indemnizatório, que lhe foi arbitrado, e, por outro lado, a denegação da suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado. Assim sendo, verifica-se que a apreciação do recurso interposto pelo arguido assume prioridade lógica sobre a do recurso apresentado pela assistente, pois a procedência do primeiro terá por consequência necessária a improcedência do segundo. Por essa razão, começaremos por conhecer do recurso interposto pelo arguido e demandado. A sindicância da sentença recorrida, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, centra-se, de forma praticamente exclusiva, na impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente. O MP junto da primeira instância, na resposta à motivação do recorrente, pugnou pelo não conhecimento ou rejeição do recurso do arguido, em matéria de facto, porquanto, no seu entender, o recorrente não observou o ónus de indicação imposto pelas disposições dos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP, o qual se reporta aos pontos de facto que o recorrente entenda terem sido incorrectamente julgados e os meios probatórios que, na sua opinião, reclamam decisão diversa da tomada pelo Tribunal «a quo». Salvo o devido respeito, não comungamos de tal entendimento, pois as conclusões formuladas pelo recorrente arguido, se bem que de forma pouco precisa, vão deixando transparecer, ainda assim, os factos sobre os quais recaiu o juízo de prova que ele pretende ver revertido, bem como os meios que exigem tal reversão. Em suma, o que o arguido pretende é que o Tribunal «ad quem», ao arrepio da sentença impugnada, julgue não provado, em homenagem ao princípio «in dubio pro reo», que ele praticou os actos de conotação sexual descritos nos pontos 7, 8, 12 e 13 da matéria assente. Se bem compreendemos, a emissão de juízo probatório negativo impor-se-ia, em razão, muito em síntese, dos seguintes fundamentos: a) Desvalorização da prova pessoal proveniente das ofendidas C e B, a primeira das quais depôs como testemunha e a segunda prestou declarações como assistente, nomeadamente, em virtude de, ao tempo em que terão ocorrido os factos questionados, se encontrarem sob a influência de um fármaco denominado «Metoclopramida», que lhes foi prescrito pelo médico competente e que é susceptível de provocar, entre outros efeitos, confusão mental; b) Desvalorização da prova decorrente da análise à urina da ofendida B, que detectou a presença da substância «benzodiazepinas», a qual, no entender do recorrente, só pode ser proveniente do medicamento anti-depressivo tomado, na ocasião, pela ora assistente, sob prescrição da médica neurologista, de acordo com o depoimento testemunhal desta; c) Ausência de prova de que o arguido, por via dos actos referidos em a) tenha obtido satisfação sexual, por não terem sido encontrados vestígios de sémen; d) Relatório de perícia psicológica efectuada ao arguido, o qual concluiu que o examinado não é «revelador de perigosidade, nem de probabilidade de passagem ao acto, nem … de comportamento delinquente»; e) Desvalorização do relatório psicológico relativo à assistente B (fls. 524 a 528), por falta de distanciamento da sua autora, que tem o mesmo apelido e a o mesmo domicílio profissional da ilustre mandatária da interessada. Para fundamentar o juízo probatório emitido, o Tribunal «a quo» expendeu (transcrição com diferente tipo de letra): Ao motivar a decisão de facto que tomou, o Tribunal tem de dizer o porquê decidiu de um modo e não de outro. E esta obrigação é ainda mais obrigação na decisão sobre a matéria de facto. O Tribunal tem nesta decisão sobre a matéria de facto de deixar claramente expressas as razões do julgamento que fez. Tem obrigação de expor aos destinatários o julgamento que faz. O tribunal não tem qualquer poder arbitrário, secreto, não controlado de dizer este facto está provado e aquele facto não está provado. O Tribunal tem de esclarecer porque é que um está provado e o outro não está. O Tribunal tem de deixar às claras o caminho da decisão. Não basta dizer que a convicção se baseou no depoimento das testemunhas. É necessário esclarecer porque é que um depoimento mereceu crédito e outro não. O princípio da prova livre só quer dizer que o Tribunal livremente aprecia as provas (mas as provas), sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos. Não há qualquer convicção íntima do juiz que não se alicerce nas provas produzidas. Está afastado qualquer julgamento com base em meras opiniões ou conjecturas do julgador. Por outro lado, o Tribunal na apreciação das provas, na reflexão dos factos, deve utilizar o seu saber da experiência, a sua capacidade de raciocínio, a reflexão nas regras da experiência comum, a sua compreensão das coisas. Mas esta essencial actividade só lícita na apreciação das provas e nunca se lhes substitui. Volvendo ao caso concreto. A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados, formou-se com base, essencialmente, na análise crítica, ponderada e conjugada de toda a prova testemunhal e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum. Cumpre desde logo referir que, pela sua própria natureza, os crimes sexuais, em sede de sua comprova, não assentam geralmente em prova directa, donde que, por via disto, assume, neste campo, papel decisivo o princípio da livre convicção na apreciação da prova, posto que se traduza em termos inculcadores de não ser essa convicção estribada em meras presunções ou em impressivos simplesmente mentais, resultado de um imotivável juízo apreciativo mas, antes, de uma base de apoio objectiva, criteriosa e susceptível de motivação e controlo. O arguido prestou declarações para negar de forma peremptória os factos de que se encontra acusado, relatando que não administrou qualquer substância às ofendidas que não fossem as prescritas pelo médico, admitindo, assim, que prestou cuidados de saúde pelo menos à ofendida B (aliás, o arguido afirmou que no caso da ofendida C nem sequer se aproximou dela no Hospital na data que consta da acusação, afirmando que a conheceu apenas na audiência de julgamento). Esclareceu a forma como se processava a admissão às urgências, a triagem que se efectuava, a entrada na sala de tratamentos, caracterizando esta como muito pequena que por vezes comportava mais macas do que as admissíveis por serem muitos os doentes que recorrem ao serviço de urgência, em especial às segundas feira. Especificou, ainda, a que tratamentos de enfermagem procedeu no que se refere à ofendida B, sendo certo que nunca esteve sozinho com a mesma na sala de tratamentos porque se trata de um compartimento onde entram e saem pessoas constantemente, não só utentes (que normalmente ali estão à espera de efectuar ou a aguardar resultados de meios complementares de diagnóstico), como também pessoal médico, de enfermagem, auxiliares de acção médica, etc. Em conclusão, o arguido negou a prática dos factos, alegando, também em sua defesa, que era impossível factos desta natureza ocorrerem no Serviço de Urgência do Hospital de Santarém, a uma segunda – feira e naquela sala reduzida, sempre cheia de gente e sem qualquer privacidade. Para a prova dos factos foram, desde logo, determinantes os depoimentos da assistente e da ofendida, respectivamente, B e C, ouvidas em sede de audiência de julgamento. Foi possível apreender a sua vergonha e repulsa relativamente aos factos que tiveram que relatar, o que fizeram de uma forma absolutamente espontânea, rigorosa e isenta, no entender do tribunal. Prestou declarações a primeira que explicitou de forma pormenorizada, coerente, convicta e esclarecedora os factos vertidos na acusação e de que foi vítima por parte do arguido, desde a sua entrada nas urgências hospitalares até à sua saída, no próprio dia, pelas 18 horas. Esclareceu convenientemente como ocorreram os factos, especificamente os que respeitam ao que o arguido lhe sussurrou ao ouvido e ao modo como este lhe colocou na mão o pénis erecto, assim como o adormecer de imediato. A assistente esclareceu as circunstâncias concretas em que ocorreram os factos, explicando pormenores importantes para a consistência do relato e para a sua credibilidade. Inquiriu-se como testemunha a segunda, que de uma forma serena e convicta, desapaixonada relatou os factos de que foi vítima por parte do arguido, esclarecendo, convenientemente a sua passagem pelas Urgências do Hospital de Santarém, na data que consta da acusação, as circunstâncias em que ocorreram os factos e o modo de actuação do arguido relativamente à sua pessoa. As duas ofendidas em causa, B e C mereceram ao tribunal inteira credibilidade pela forma como depuseram e pela postura que assumiram em tribunal e em aspectos colaterais e em factos secundários os seus testemunhos foram corroborados por outras testemunhas também inquiridas. Ademais, ambas afirmaram que de um momento para o outro adormeceram e ambas referiram que quando saíram do Hospital, após a alta, não se recordaram de imediato do que lhes sucedeu, apenas algum tempo depois: a ofendida B no trajecto de regresso a casa, a ofendida C no dia seguinte porque no próprio dia tinha tanto sono que adormeceu pela tarde do dia 23 de Março e só acordou no dia seguinte. O depoimento de testemunhas oferecidas pela acusação e que infra se identificam, demonstrou, também, que as ofendidas sempre mantiveram a mesma versão, inalterada e coerente, dos factos, desde a data em que os tornaram públicos. Da ponderação da credibilidade dos depoimentos das ofendidas, resultou a clara convicção de que os fados relatados pelas mesmas correspondem à verdade; durante os seus depoimentos as ofendidas mantiveram uma postura séria e um discurso coerente e lógico, que não pareceu determinado a distorcer a realidade em favor da sua versão dos factos; deram respostas ponderadas, admitindo uma ou outra vez não se recordarem de pormenores que lhe eram perguntados; não incorreram em contradições na resposta às muitas questões que lhe foram colocadas pelos sujeitos processuais intervenientes na audiência de julgamento, bem como pelo tribunal. Ouviu-se como testemunha E, que na data dos factos trabalhava sob alçada da ofendida C (esta era sua coordenadora), a qual de forma credível confirmou em audiência alguns pormenores importantes para o apuramento dos factos e para a prova dos que constam da acusação, mormente no que tange a um telefonema que recebeu da ofendida C pelas 09 horas da manhã, que se dirigiu ao Hospital e que por volta das 11 horas do dia 23 de Março esteve com aquela, a qual se encontrava na sala de tratamento das mulheres, a dormir numa maca, de uma forma estranha, agitada e profunda, fechada com as cortinas existentes, e nem deu conta da sua presença, confirmando, igualmente, o telefonema de uma colega de trabalho, de nome F, para a ofendida C. Depôs G, Enfermeira no Hospital de Santarém há 30 anos, colega do arguido há 6 e à data dos factos integrava a Direcção do Departamento da Urgência. Referiu como funcionava a admissão de doentes no Serviço de Urgência, a farda que os enfermeiros usavam e usam neste serviço e assistiu ao “reconhecimento” feito no dia 27 de Março de 2009 pela B, sendo certo que o arguido foi chamado a uma sala, onde aquela se encontrava, e assim que o mesmo apareceu a B identificou-o de imediato e teve uma reacção de medo que lhe pareceu sincero. Esclareceu que a substância denominada “benzodiazepinas”, detectada no corpo de B, é eliminada do corpo de uma forma lenta, existe no Serviço de Urgência e é de acesso fácil e do conhecimento que tem não causa alucinações. Foram inquiridos H e I (a primeira é irmã da assistente B e este é namorado daquela), que de forma desapaixonada, desprendida e convicta relataram os factos de que tinham conhecimento dado que foram as pessoas que acompanharam a ofendida B ao Hospital de Santarém, cerca das 13 horas, depois de esta lhes ter telefonado, da Escola, referindo-lhes que estava com uma dor muito forte na perna, pelo que ali a levaram ficando a aguardar e simultaneamente trocando mensagens escritas pelo telemóvel com ela; que a partir das 15 horas a B deixou de responder às mensagens e não atendia o telemóvel; que passada mais de uma hora e meia a B saiu, a cambalear, necessitando de ser ajudada para entrar na viatura. Referiram que quando já estavam a abandonar as instalações do Hospital, a B começou a chorar convulsivamente, muito nervosa, contando o que se havia passado na sala de tratamento, nomeadamente, as palavras obscenas que o arguido lhe dirigiu enquanto estava deitada na maca e a introduzir-lhe algo no tubo do soro, assim como a colocação da sua mão no pénis daquele, referindo-lhes também que antes ficou sonolenta, sem reacção, e depois adormeceu. Disseram que voltaram de imediato ao Hospital, tendo a B entrado sozinha porque não deixaram entrar um acompanhante e posteriormente dirigiram-se a casa, a B tomou banho e de seguida adormeceu; que cerca das 20,30 horas foram à P.S.P. apresentar queixa e dirigiram-se de novo ao Hospital onde a B efectuou análises à urina. No que se reporta ao comportamento posterior da ofendida B, a testemunha H, sua irmã, referiu que nos dias seguintes aquela não saiu de casa, faltou às aulas do 12.º ano que frequentava, tornou-se uma pessoa mais fechada, com medo de sair, tornou-se uma pessoa revoltada e chora quando fala dos factos de que foi vítima, tinha pesadelos e acordava durante a noite a chorar. Inquiriu-se J , Sub-Chefe da P.S.P. que recebeu a queixa apresentada pela ofendida B, cerca das 20,30 horas do dia 23 de Março de 2009, acompanhando-a ao Hospital de Santarém a fim de a mesma se submeter a análises clínicas à urina, aduzindo, ainda, que a mesma estava um pouco “encolhida” querendo dizer com a expressão que utilizou que a ofendida sentia-se envergonhada, incomodada de ali estar a relatar os factos de que tinha sido vítima. Ouviu-se K, Professora na Escola Profissional de Vale do Tejo, em Santarém, professora da ofendida B nos anos lectivos de 2007/2008 e 2008/2009, que de forma credível, espontânea e merecedora de credibilidade, referiu que num dia de Março de 2009 que não soube precisar em concreto, encontrou a B sentada no corredor da Escola a queixar-se de muitas dores numa perna, pelo que telefonou a um familiar dela que a veio buscar. Afirmou saber que ela se dirigiu ao Hospital, nessa sequência, e que nos dias que se seguiram a B faltou às aulas, sendo que uns dias depois a mesma falou consigo e contou-lhe o que se passou no Hospital de Santarém, demonstrando dificuldade em fazê-lo porque se emocionava facilmente, apercebendo-se que os factos que lhe relatou a deixaram num estado emocional muito grave, dado que a B era uma jovem extrovertida, faladora e após os factos a mesma apresentava-se triste, deprimida e sem conviver com colegas, baixando o rendimento escolar relativamente ao ano anterior. A testemunha concluiu dizendo que tem mantido contacto com a B e tudo o que se passou “mexeu” com ela, inclusive a nível físico, pois está mais magra, psicologicamente mais melindrosa e introvertida. Foi inquirida como testemunha L, cidadã de nacionalidade moldava que, não tendo conhecimento dos factos objecto deste processo, nem conhecendo as ofendidas, depôs apenas sobre factos que lhe sucederam no Hospital de Santarém em circunstâncias mais ou menos idênticas às ora apreciadas nestes autos imputando ao arguido uma actuação semelhante à que as ofendidas B e C agora imputam ao arguido, não tendo dúvidas em afirmar que foi o arguido o autor dos factos de que foi vítima. Depôs M, amiga da ofendida B há cerca de 10 anos, que, no essencial, relatou a convivência que tem com a B, a sua personalidade antes e após os factos, que a mesma lhe relatou, chorando, com emoção, crendo no que ouviu, aduzindo, ainda, que a B mudou o seu comportamento em virtude dos factos de que foi vítima tornando-se numa pessoa mais desconfiada, mais medrosa, mais irritável. Inquiriu-se, finalmente, por banda da assistente B, N, irmã daquela que, apesar dos laços familiares, depôs de uma forma espontânea, isenta e credível no sentido de confirmar alguns dos factos relatados pela ofendida B e pela sua irmã H, mormente os que se prendem com a formalização da queixa na P.S.P., a ida ao Hospital de Santarém para efectuar análises à urina, assim como o estado psíquico da ofendida, que chorava, estava triste, fazendo-lhe companhia no dia seguinte, sendo que faltou ao seu trabalho e a B à escola. Referiu também que comportamento da sua irmã se alterou, tornando-se uma pessoa desconfiada, introvertida e insegura. Arroladas pela defesa do arguido ouviram-se como testemunhas: - O, auxiliar de acção médica no Hospital Distrital de Santarém há 21 anos, que no dia 23 de Março esteve a trabalhar na sala de tratamento entre as 08 horas e as 16 horas. Referiu que nesse dia estavam também nesse turno a Enfermeira P e o arguido, respectivamente, adstritos ao balcão de mulheres e ao balcão de homens, sendo o seu trabalho prestado essencialmente na sala de tratamento. Esclareceu, depois, qual a função desta sala de tratamento, os actos de enfermagem que ali se praticavam, a grande afluência de utentes àquela sala e, ainda, referiu a impossibilidade objectiva de ali se passar algo fora do normal, nomeadamente, actos da natureza dos que ao arguido são imputados até porque se recordava perfeitamente da B, em que maca a mesma se encontrava depois de ter sido confrontada com a fotografia de fls. 545, assistindo à colocação do soro por parte do Enfermeiro A, ora arguido, que não fechou qualquer cortina e tendo posteriormente o maqueiro a levado para realizar exames complementares de diagnóstico. Relatou estes factos, de que se recordava na perfeição, depois de referir que pela sala de tratamento passam inúmeros doentes diariamente e nas segundas – feira é mesmo intensa a afluência àquela sala, sendo certo que os factos ocorreram a uma segunda – feira, aduzindo, ainda, que não esteve sempre na referida sala, foi pelo menos almoçar, não sabendo identificar quem era a pessoa que estava numa maca ao lado daquela onde se encontrava a ofendida B. - P, Enfermeira no Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Santarém há 5 anos, que no dia 23 de Março esteve de turno entre as 08 horas e as 16 horas a prestar serviço no balcão de mulheres e o seu colega A, no mesmo turno, a prestar serviço no balcão de homens, sem prejuízo da entreajuda que se processava entre ambos na sala de tratamento, nomeadamente. Esclareceu que no citado dia foi um dia de muita afluência às urgências como são, aliás, todas as segundas – feira, recordando-se bem da ofendida B que foi levada para a sala de tratamento por um médico que pediu uma maca para a deitar uma vez que estava a aguardar uma TAC ao crânio (e foi este facto que a fez reparar na B – uma jovem fazer uma TAC ao crânio), e o arguido foi colocar-lhe o soro e posteriormente o maqueiro levou-a para o corredor a aguardar para ir efectuar o referido exame, assim como um RX pedido. Referiu que nesse período nunca viu as cortinas fechadas e voltou a ver a B mais tarde, num corredor, acordada. Disse, também, que é possível fazer electrocardiograma na sala de tratamento, à semelhança do que referiu a ofendida B (que fez este exame na sala de tratamento) e neste caso a cortina fecha-se por uma questão de privacidade do doente, mas não se recordava deste facto. Admitiu que se ausentou da sala de tratamento por 10 minutos para tomar pequeno-almoço e meia hora para almoço. Com interesse esclareceu, ainda, a farda que é usada pelos enfermeiros. - Q, Enfermeiro no Hospital Distrital de Santarém, trabalhando com o arguido há cerca de 7 anos. Esclareceu como se processa a admissão dos doentes à urgência do hospital para o qual presta serviço – triagem, depois balcão de homem ou mulher, consoante o sexo do doente, e ali é atendido pelo médico que prescreve o que o doente deve fazer, designadamente na sala de tratamento – sendo que no caso da ofendida B foram tomados esses procedimentos. No mais explicitou a relação de amizade que manteve e mantém com o arguido a quem atribuiu sempre uma conduta correcta e a quem nunca conheceu qualquer comportamento que indicie um desvio de personalidade. - D, médica neurologista no Hospital Distrital de Santarém, há 15 anos, que atendeu a ofendida B na Urgência no dia 23 de Março de 2009, aduzindo que a mesma se queixava com dores de cabeça, tórax e perna, não havendo um síndrome especifico, pelo que lhe receitou um anti – depressivo que trata as cefaleias tipo tensão e deu-lhe alta médica. Aduziu que ela não lhe mencionou ter sido vítima de qualquer agressão sexual no interior do Hospital, e viu-a sair da sala de mulheres um pouco combalida, com uma marcha não muito normal, ligeiramente curvada. - R, Enfermeira no Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Santarém, trabalhando com o arguido durante 5 anos, entre 2004 e 2009, que, no essencial, explicitou como funciona a sala de tratamento do serviço de urgência do hospital, como é composta, os actos que ali são praticados, a farda que é usada pelos enfermeiros, aduzindo, ainda, que o arguido sempre foi um colega exemplar, responsável, confiável, compreensivo com os doentes. - S, Médica de Medicina Interna no Hospital Distrital de Santarém há 25 anos, sendo um dos médicos responsável pelo Serviço de Urgência, que corroborou os testemunhos anteriores, quer no que respeita ao funcionamento do Serviço de Urgência, quer no que respeita à sala de tratamento propriamente dita. Ademais, referiu que o arguido é profissionalmente muito competente e mentalmente são. As testemunhas de defesa, como ponto comum aos respectivos depoimentos, afirmaram todas que era praticamente impossível o arguido praticar os factos de que se encontra acusado: a sala de tratamento não tem a mínima privacidade, é uma sala onde a afluência de doentes e de pessoal médico, de enfermagem e auxiliar é uma constante; a cortina que eventualmente poderá isolar um doente não tem como objectivo a privacidade do profissional que está a praticar um acto, antes a privacidade do doente relativamente aos olhares de outros doentes que ali se encontrem. Por outro lado, disseram que a passagem do doente pela sala de tratamento tem que ser muito rápida, muito rotativa pois que estão sempre doentes à espera de lugar naquela sala. Porém, tais depoimentos não foram impeditivos da prova dos factos acima descritos. A prova dos factos resultou, ainda, da conjugação da prova oral produzida em audiência de julgamento com a prova documental e pericial pré – constituída nos autos, a saber: a cópia da reclamação apresentada no Hospital de Santarém de fls. 29, a ficha clínica da ofendida B Hospital de Santarém relativa ao dia 23.03.2009, de fls. 30 a 32, a carta do Hospital de Santarém dirigida ao reclamante em resposta à reclamação por ele apresentada, de fls. 40, a cópia da deliberação tomada pelo Hospital de Santarém sobre a referida reclamação, de fls. 41 e 42, resultado da análise à urina realizada à ofendida B, de fls. 45, relatório completo de episódio de urgência da ofendida C, de fls. 46 a 49, resultados das análises clínicas realizadas à ofendida C a quando da sua admissão à urgência, de fls. 50 a 54, processo interno do Hospital de Santarém relativo a L, de fls. 65 a 77, informação sobre os turnos dos enfermeiros no dia 23 de Março de 2009, de fls. 106 a 109, cópia do contrato de trabalho celebrado entre o arguido e o Hospital de Santarém de fls. 110 a 113, listagem de dentes admitidos na urgência do Hospital de Santarém nos dias 23 e 24 de Março de 2009, de fls. 443 a 466, relatório completo de episódio de urgência da ofendida B, de fls. 473 a 477, exposição escrita da ofendida C à Administração do Hospital de Santarém, de fls. 480 a 483, mapa com as escalas dos enfermeiros, de fls. 483 a 486, relatório de avaliação psicológica da ofendida B, de fls. 524 a 528, foto da sala de tratamento da urgência do Hospital de Santarém à data dos factos, de fls. 545, relatório de avaliação psicológica do arguido, de fls. 546 a 552, a cuja análise se procedeu. Analisando, agora, criticamente a prova produzida em audiência de julgamento dir-se-á, primeiramente, que a defesa do arguido foi toda ela organizada e baseada, em primeiro lugar, numa “cabala”, qual seja a da mãe da ofendida ser amiga de uma antiga namorada do arguido, ambas frequentarem, juntamente com a ofendida C, uma Igreja Adventista em Santarém, e quererem prejudicá-lo. Não se fez a mínima prova destes factos, frontal e convictamente negados pelas ofendidas, assim como pela testemunha E, esta sim, Secretária daquela Igreja, que referiu que aquelas nunca a frequentaram e em quem o tribunal acreditou. Em segundo lugar, o arguido fundou a sua defesa na impossibilidade objectiva de poderem ser praticados actos da natureza igual aos que lhe são imputados, na sala de tratamento da Urgência do Hospital de Santarém, não só pela composição da referida sala, da afluência de doentes que ali acorre diariamente, em especial às segundas – feira, como foi dia 23.03.2009, ao número de profissionais que ali entram de forma constante, mas também porque não existe a mínima privacidade para que possam ser cometidos actos de natureza sexual contra doentes. Pois bem, tais argumentos são facilmente abalados e nem sequer trazemos agora à colação as declarações prestadas pela assistente B e testemunho da ofendida C que, já o dissemos, nos mereceram inteira credibilidade. Parece-nos a nós que não é a circunstância de a sala de tratamento estar cheia de doentes ou mesmo com um, dois ou três profissionais de saúde que impedem a prática dos factos pelo arguido. Os referidos factos, tal como estão descritos na acusação, cometem-se em dois ou três minutos e melhor ainda se houver maior confusão como parecia ser o caso. Depois, não é de maneira nenhuma impossível um profissional de saúde, como o arguido, estar sozinho naquela sala: ou porque a colega se ausentou para tomar um café, para ir à casa de banho ou para fazer qualquer outra coisa fora da sala. Por outro lado, ainda, não é crível que quando um enfermeiro isola um doente, com a cortina tantas vezes falada nas várias sessões de audiência de julgamento, outro colega ou outro profissional de saúde se vá ali intrometer. Foi dito por algumas testemunhas de defesa que a cortina tinha como objectivo isolar um doente que fosse ser sujeito a um acto privado, que o olhar dos outros doentes pudesse ser incomodativo (uma mudança de fralda, por exemplo), mas não tinha como fim privar outros profissionais de saúde de ali acederem. Mas sabemos, porque assim resulta das regras da experiência comum, que se um profissional de saúde isola um doente para realizar qualquer intervenção um outro não vai intervir. O arguido argumentou, ainda, que a substância que foi detectada no corpo da B no dia dos factos – “benzodiazepinas” – não causava na mesma o efeito que foi por ela descrito (deixou de sentir o corpo, só via e ouvia, estava completamente sem reacção), o que foi também referido por algumas das testemunhas de defesa inquiridas. Porém, o que é facto é que a ofendida B, no dia dos factos, apresentava no organismo tal substância, cujo acesso é livre no Hospital, não precisa de qualquer registo de levantamento e em doses excessivas não se sabe o efeito que pode provocar. Nem as senhoras médicas ouvidas em audiência de julgamento souberam dar essa resposta. À partida, as “benzodiazepinas” são um relaxante muscular, é uma substância que faz parte da composição química dos ansioliticos, mas nada foi referido quando tomada em dose excessiva. Finalmente, diga-se que a assistente B foi peremptória em afirmar que nunca tomou qualquer medicação, nomeadamente, da categoria dos ansioliticos ou anti – depressivos e as suas declarações mereceram-nos credibilidade, também nesta parte. Portanto, também por aqui não ficam beliscadas as declarações da assistente B. Assim como também não é colocado em causa o depoimento da ofendida C quando todas as testemunhas, profissionais do Hospital de Santarém, ouvidas em audiência, afirmaram que na sala de tratamento está sempre muito barulho, nunca em silêncio, quando aquela afirmou que quando a levaram para esta sala, cerca das 09 horas, havia silêncio e conseguiu adormecer. Não são estes factos, estes pormenores que poderão colocar em crise os testemunhos das ofendidas que, como já se disse, foram credíveis e são corroboradas por outros meios de prova, quer testemunhal, quer pericial, quer documental. Ou seja, foram depoimentos coerentes, serenos e consistentes, mesmo quando contraditados com elementos de somenos pormenor, que levou o tribunal a convencer-se que os factos ocorreram nos moldes em que foram considerados provados. A demais prova produzida em audiência de julgamento, na convergência dos depoimentos prestados, documentos e relatórios periciais são bem demonstrativos de que as ofendidas não falaram de forma leviana ou infundada, ou de modo a levantar suspeitas sobre a sua personalidade. Para além disso, há que referir que neste tipo de crimes, referentes à intimidade e à vida sexual das pessoas existe, em regra, por parte das testemunhas/vítimas uma certa dificuldade em falar e abordar o assunto. Para além das declarações em si há que reter a dinâmica do comportamento não verbal de cada uma das ofendidas. Na verdade, essa dinâmica revelou-se importante para o apuramento da respectiva credibilidade, nomeadamente ao nível do tom de voz, pausas entre respostas, olhares, ruborização, movimentos corporais, coerência de raciocínio e reacção imediata à posição contrária, defesa e reafirmação de situações de conhecimento comum; em suma: elementos de prova cuja transcrição seria impossível e que puderam ser apreendidos pelo tribunal. A este propósito, basta recordar a forma como a ofendida B se apresentou perante o tribunal, sobretudo quando falou sobre os factos: rosto ruborizado, chorosa, nervosa e a sua expressão corporal, particularmente ao nível como colocava e manuseava a mãos, reveladora de que falava verdade. Para além disso, há que salientar que esta descreveu os factos ocorridos de forma pormenorizada e emotiva, o que lhe confere uma dimensão de experiências vivenciadas revelando que os mesmos terão ocorrido e pela forma como os descreveu. O mesmo se diga da ofendida C. A credibilidade destes depoimentos, além de resultar da sua naturalidade intrínseca, atenta a postura das ofendidas em julgamento, foi corroborado pela prova testemunhal produzida e a quem as ofendidas relataram os factos logo após a sua ocorrência, e no que tange à ofendida B pela realização de análises à urina. O tribunal não deu com provado que o arguido administrou à ofendida C uma substância desconhecida que lhe induziu o sono. Na verdade, ao contrário do que sucedeu com a ofendida B, a ofendida C não realizou qualquer análise à urina que permitisse chegar àquela conclusão. E julgamos que só através da prova pericial poderia provar-se este facto. Não se provou, igualmente, que a demandante B tenha tido acompanhamento psicológico após os factos, porquanto não foi feita prova nesse sentido. De facto, apenas a testemunha H depôs sobre este facto para dizer que a sua irmã B nunca consultou psicólogos ou psiquiatras, nem antes, nem depois dos factos, razão pela qual o tribunal deu como provado apenas que a demandante B foi a uma consulta de psicologia, em 29 de Outubro de 2010. Atento tudo o que ficou dito, e acrescido do que não se pode explicar por palavras, os elementos que sempre se tem em conta na valorização judiciária dos depoimentos, e que se prende com as garantias da sua imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a sua verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências e as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio cultural, a linguagem gestual, a interpretação dos olhares, das pausas dos depoentes, tudo foi atendido e ponderado, em ordem a aceitar um sentido e uma versão dos factos (a da acusação). Na sequência da concretização de factos descritos na acusação, processualmente comunicada ao arguido, veio este arrolar três testemunhas que foram inquiridas, quais sejam T, enfermeira, U e V, médicos, todos profissionais de saúde do Hospital de Santarém e que estiveram no Serviço de Urgência no dia 23 de Março de 2009 e que praticaram actos de enfermagem e médicos, respectivamente, na ofendida C, mas nada de relevante lhes chamou a atenção, aduzindo que se tratou de uma doente como qualquer outra que atenderam, nada lhes tendo chamado a atenção. Estes depoimentos não colocaram em causa os factos em causa, em nada contribuindo para o apuramento dos mesmos Como normalmente sucede quando está em causa a demonstração de factos integradores de crimes contra liberdade e autodeterminação sexuais, o depoimento ou as declarações das vítimas assumiram, no caso presente, uma relevância essencial no processo de formação da convicção do Tribunal, o que implica uma redobrada exigência na sua apreciação crítica. No segmento da decisão recorrida, que deixámos transcrito, o Tribunal «a quo» explicita com abundância de argumentos os motivos que o levaram a conferir poder de convicção ao depoimento testemunhal da ofendida C e às declarações prestadas na qualidade de assistente pela ofendida B, motivos esses que se nos apresentam como razoáveis, racionais e não arbitrários, sendo compatíveis com os critérios que devem presidir à apreciação da prova, mormente, as regras da experiência comum (art. 127º do CPP). De acordo com a linha de defesa que sustentou em julgamento, o arguido procurou minar a credibilidade da prova pessoal proveniente das ofendidas com base na alegação de uma combinação entre elas e a mãe de uma antiga namorada sua, com vista a prejudicá-lo, hipótese que o arguido parece de alguma forma ter «deixado cair», em sede de recurso. Na actual fase do processo, a defesa do arguido privilegiou o questionamento de tais elementos de prova no plano da sua fiabilidade objectiva, alegando que, ao tempo em que os factos em discussão terão ocorrido, as ofendidas poderiam estar atingidas de «confusão mental» que poderia ter-lhes sido induzido pelo medicamento «Metoclopramida», que lhes foi ministrado pelo estabelecimento hospitalar onde então se encontravam. Com efeito, os boletins clínicos de cada uma das ofendidas C e B confirmam que o referido fármaco lhes foi efectivamente ministrado, na ocasião. No entanto, não deixa de causar estranheza que a eventual confusão mental de que as ofendidas possam ter sido acometidas, por via da toma de tal medicamento, as tenha levado, cada uma por seu lado, a imputar a uma mesma pessoa, que se encontrava então de serviço no local (o ora arguido) um comportamento essencialmente uniforme. Mais ainda, sendo no essencial uniforme o comportamento do arguido relatado por cada uma das ofendidas, não é, contudo, absolutamente coincidente, em todos os seus aspectos (por exemplo, não há menção, por parte da ofendida C, das expressões verbais de significado sexual, referidas pela ofendida B), o que, de acordo com a experiência comum, só pode reforçar a crença na genuinidade e veracidade de tais meios de prova pessoal. Nesta conformidade, importa concluir, sem necessidade de mais considerações, pela irrelevância da objecção suscitada pelo recorrente à credibilidade da prova pessoal proveniente das ofendidas, com fundamento na toma por parte delas do medicamento «Metoclopramida». Em sede de julgamento, a produção de prova requerida pela defesa do arguido foi dirigida no sentido de demonstrar que, nas condições concretas que se verificavam no local onde as condutas incriminadas teriam sido levadas a efeito, no momento da respectiva ocorrência, em termos de afluência de pessoas e exiguidade de espaço, os factos em causa não poderiam ter acontecido de forma como a acusação os descreve. No ponto 22 das conclusões da motivação do seu recurso, o arguido refere que o Tribunal «a quo» considerou «que a exiguidade do espaço, a falta de privacidade e a concorrência ao serviço por todas as testemunhas de defesa enunciada não é indicio suficiente de que tais factos não tenham sido praticados», mas não questiona, pelo menos expressamente, a bondade desse juízo. De todo modo, sempre diremos que, no trecho supra transcrito do acórdão recorrido, o Tribunal «a quo» procede a uma análise aprofundada da prova oferecida pela defesa do arguido, que versou sobre as condições de espaço e afluência de pessoas, nas circunstâncias de tempo e local em que os factos incriminados terão acontecido, tendo concluído, ao arrepio daquilo que o arguido pretendia provar, não ser impossível que ele tivesse praticado tais factos, naquele momento e lugar. Semelhante conclusão apresenta-se devidamente alicerçada nas regras da lógica e da experiência comum, não vislumbrando nós razão válida para a pôr em causa. Idêntico juízo deverá ser formulado acerca da questão suscitada pelo recorrente a respeito da substância denominada «Benzodiazepiuas», detectada na urina da ofendida B. Tal questão foi expressamente discutida pelo Tribunal «a quo» no segmento do acórdão recorrido dedicado à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, tendo concluído em termos de excluir que a presença de tal substância da urina da ora assistente possa ter sido originada por outra causa que não a sua administração pelo arguido, no contexto e para a finalidade dados como provados, nomeadamente, a toma pela assistente de algum medicamento anti-depressivo ou ansiolítico que lhe tenha sido medicamente prescrito. Semelhante conclusão afigura-se-nos correctamente alicerçada na prova submetida à apreciação do Tribunal «a quo», não nos ocorrendo qualquer argumento relevante em sentido contrário, pelo que nada mais nos resta decidir do que confirmar o juízo formulado pela primeira instância nesta parte. A respeito do relatório pericial psicológico, que versou sobre a pessoa do arguido, importa dizer que, como nos parece evidente, as conclusões nele formuladas em nada obstam, por si mesmas, a que o Tribunal tenha dado como provado que o arguido praticou os actos de conotação sexual descritos na matéria de facto assente. Aquilo que é possível razoavelmente inferir-se do aludido relatório pericial é, apenas, que o arguido não possui propensão particular para a prática de actos da natureza daqueles por que responde, mas tal não equivale a dizer que seja de todo incapaz de os cometer, o que, se bem compreendemos, nenhuma perícia psicológica é susceptível de garantir. Quanto à questão de saber se o arguido, por via dos comportamentos apurados e a que nos vimos referindo, logrou obter satisfação sexual, cumpre salientar que a circunstância de não terem sido descobertos vestígios de sémen nos locais onde tais condutas foram levadas a efeito, não são de molde a demonstrar que o arguido, nessas ocasiões, não tenha ejaculado, porquanto não foi efectuada nesses locais, em tempo útil, qualquer recolha de indícios e, mesmo que o tivesse sido, sempre poderia o arguido fazer desaparecer esses sinais da sua actuação libidinosa, o que, em princípio, não lhe seria difícil. De todo o modo, o vazio probatório constatado, quanto à matéria que agora nos ocupa, não permite confirmar que o arguido, quando praticou na pessoa das ofendidas C e B os actos de conotação sexual por cada uma relatados, tenha ejaculado, constituindo a ejaculação, como é sabido, o sinal objectivo exterior da satisfação sexual nos indivíduos do sexo masculino. Como tal, não deveria o Tribunal «a quo» ter dado como demonstrado que o arguido, com os comportamentos incriminados, logrou obter satisfação sexual, conforme consta do ponto 13 da matéria de facto provada. Pelo contrário, não se nos afigura ser de pôr em causa que o arguido tenha actuado movido pelo propósito de obter tal satisfação, já que só nessa perspectiva se compreendem os actos praticados pelo arguido nas pessoas das ofendidas. Assim sendo, será determinada a alteração da matéria de facto provada e não provada, em conformidade com o juízo que acaba de ser formulado. No que refere ao relatório psicológico relativo às consequências que os factos apurados terão tido para a assistente B, importa ter presente que a prova pericial, que, nos termos do art. 160º do CPP, é aquela que pressupõe especiais conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos, deve ser produzida, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo subsequente, em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, ou, se tal não foi possível, com o concurso de pessoa constante de lista oficial de peritos ou ainda de pessoa de reconhecida competência e honorabilidade, que o Tribunal nomeia para o efeito. Nesta conformidade, os relatórios médicos, psicológicos e outros, que os sujeitos processuais (arguidos, assistentes e partes civis) frequentemente fazem juntar aos autos, elaborados por pessoas da sua escolha e que se destinam, normalmente, a fazer a demonstração de factos que lhes aproveitam, não valem como prova pericial, não podendo ser-lhes reconhecido o especial poder vinculativo atribuído por lei a esta, a qual se presume subtraída à livre apreciação do julgador, nos termos do nº 1 do art. 163º do CPP. No entanto, nada impede que os Tribunais, no processo de formação da sua convicção, tomem em consideração os referidos relatórios, os quais se encontram, por sua vez, sujeitos ao aludido princípio da livre apreciação, consagrado no art. 127º do CPP. O que acabámos de afirmar é válido em tese geral, não constituindo a existência de um aparente laço familiar entre a subscritora do relatório em discussão e a ilustre mandatária da assistente e a circunstância de partilharem o mesmo endereço profissional razão especial para denegar poder de convicção a tal meio probatório. O relatório a que vimos aludindo relevou apenas para a formação da convicção do Tribunal apenas relativamente aos pontos 21 e 22 da matéria de facto assente. Ora, as conclusões do mesmo relatório, resumidas no ponto 22, representam a tradução num juízo científico de determinados factos empíricos, a que o Tribunal «a quo» teve acesso por outros meios de prova e que se encontram vertidos, nomeadamente, no ponto 19 da matéria provada. Neste contexto, não se nos afigura que o Tribunal tenha ido, na atribuição de poder de convicção ao relatório de fls. 524 e seguintes, mais longe do que a prudência aconselha. Verifica-se, assim, que, abstraindo do pormenor relativo à obtenção de satisfação sexual pelo arguido, improcedem os fundamentos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo recorrente arguido. Alegou o arguido que o acórdão recorrido, em atenção ao princípio «in dubio pro reo», devia ter julgado não provados os comportamentos geradores da sua responsabilidade criminal. Tal postulado constitui um corolário, ao nível da apreciação da prova, do princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado pelo nº 2 do art. 32º da CRP. A este propósito interessará dizer que, ao contrário do que muitas vezes se pretende fazer crer, não é a mera existência de declarações ou depoimentos contraditórios entre si sobre determinado facto, desfavorável ao arguido, que impõe ao julgador o dever de julgar tal facto não provado, em homenagem ao princípio cuja preterição poderá estar em causa. O que Tribunal tem que fazer, nessas circunstâncias, é proceder ao exame crítico da prova, separando os elementos que lhe merecem credibilidade daqueles que não são, em seu juízo, dignos dela, formando a sua convicção probatória em função do resultado desse exame. O julgador só deve fazer apelo ao princípio «in dubio pro reo» quando, após o exame crítico da prova, prevaleça uma dúvida razoável e insanável sobre se o facto probando ocorreu ou não, devendo entender-se que tal dúvida se justifica, sempre que permaneça em aberto uma hipótese factual alternativa à probanda, que não seja repelida pelos critérios gerais de apreciação do material probatório, nomeadamente, os dados da experiência comum e as regras da lógica geralmente aceite. Em face da análise da prova efectuada na decisão recorrida e que o presente acórdão corroborou, com uma alteração pontual, inexiste, a nosso ver, espaço lógico para semelhante hipótese alternativa, pelo que não nos encontramos perante uma dúvida susceptível de justificar o funcionamento do princípio «in dubio pro reo». Importa, então, determinar a alteração da matéria de facto provada e não provada de acordo com o juízo que acima se emitiu. Consequentemente, o ponto 13 da matéria provada passará a ter o seguinte teor: «Ao agir como supra se descreve, o arguido actuou sempre deliberada e conscientemente, com o propósito de obter satisfação sexual, estando perfeitamente ciente que actuava contra a vontade das ofendidas, aproveitando-se do facto de se encontrarem acamadas e débeis fisicamente, para administrar a B substância que não foi possível identificar mas que tem na sua composição química a “benzodiazepinas”, que lhe induziu o sono e a colocou sem conseguir, por isso, opor-se aos seus intentos de satisfação sexual, assim como da sua profissão de enfermeiro para, da mesma forma, relativamente à ofendida C, satisfazer os seus instintos sexuais». De igual modo, será aditado á matéria de facto não provada um ponto com o seguinte teor: «Ao agir da forma descrita nos pontos 6, 7, 8, 11 e 12 da matéria de facto provada, o arguido logrou obter satisfação sexual». Passaremos agora a averiguar se alteração introduzida na factualidade provada e não provada é de molde a pôr em causa os fundamentos da responsabilidade criminal do arguido, tal como apurada na decisão sob recurso. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de coacção sexual p. e p. pelo art. 163 nº 1 do CP (em detrimento da ofendida C) e de um crime de abuso sexual de pessoa internada p. e p. pelo art. 166º nº 1 al. b) do CP (contra a ofendida B). Sob a epígrafe «Coacção sexual» dispõe o n.º 1 do art. 163.º do CP: Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Por seu turno, o nº 1 al. b) do art. 166º do CP estatui: Quem, aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém em: a) …; b) Hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; c)…; praticar acto sexual de relevo com pessoa que aí se encontre ao seu cuidado é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos No centro da tipicidade objectiva dos dois crimes, por cuja prática o arguido foi condenado, encontra-se o conceito de «acto sexual de relevo». A esse propósito, recordaremos o ensino de Jorge de Figueiredo Dias («Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, pág. 447 a 449), que, em anotação ao art. 163º do CP, sendo as considerações extensivas à tipificação do nº 1 do art. 166º, expende: «§ 7 a) Como se disse já o cerne do tipo objectivo de ilícito é constituído pelo acto sexual de relevo. “Acto sexual” é, no sentido do art. 163º, todo aquele (comportamento activo, só muito excepcionalmente omissivo: talvez, p. ex., em certas circunstâncias, permanecer) que, de um ponto de vista predominante objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica. A questão que se suscita é a de saber se a esta conotação objectiva deve acrescer uma outra subjectiva, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer em si ou em outrem, a excitação sexual (dita também intenção libidinosa). (…) § 9 À interpretação objectivista deve conferir-se prevalência decidida, considerando irrelevante, por consequência, o motivo da actuação do agente. Sem todavia deixar de acentuar-se que a circunstância de se não conferir relevo típico à intenção libidinosa não significa, atenta que multiplicidade formas que a sexualidade pode assumir, que o carácter sexual do acto deva ser examinado na sua pura individualidade exterior; relevante para a determinação do seu conteúdo e significado pode ser também o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativa. (…) § 12 … Ao exigir que o acto sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido (função positiva); é dizer que determine – ainda aqui de um ponto vista objectivo – se o acto representa um entrave com importância para liberdade de determinação sexual da vítima (assim também S/ S/ LENCKER § 184c 14 na esteira da própria definição contida naquele preceito do CP alemão: são actos sexuais “só aqueles que, em função do respectivo bem jurídico protegido, assumam um certo relevo”). Com o que ficam excluídos do tipo actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima» (negritos e itálicos no original). Não teremos que tomar aqui posição na querela entre a posição objectivista e a subjectivista, quanto ao que deva entender-se por «acto sexual de relevo», porquanto ficou também provada a chamada «intenção libidinosa», relativamente às apuradas condutas do arguido que tiveram por alvo, respectivamente, as ofendidas C e B,, concretizadas no propósito, que o orientou, de obter satisfação sexual. O que é irrelevante para o preenchimento da tipicidade de qualquer dos crimes em causa é que o agente consiga ou não realizar tal propósito. De resto, a conduta empreendida pelo arguido em relação às referidas ofendidas, a saber o ter ele colocado o seu pénis erecto na mão de cada uma delas, assume, por si mesma, uma conotação óbvia com a sexualidade, independentemente do contexto em que tenha lugar. Além disso, diremos que as condutas do arguido em apreço, não obstante o seu carácter isolado e momentâneo, consubstanciam uma interferência na intimidade sexual de cada uma das visadas suficientemente significativa em termos de a sociedade não a poder obrigar a tolerá-la, antes devendo mobilizar em defesa do direito violado os meios coercivos do direito penal. A formulação dos juízos que acabámos de emitir não é minimamente afectada pela circunstância de não se ter provado que o arguido tenha obtido satisfação sexual das condutas por que responde. Por fim, a ausência de prova desse facto tão pouco colide com o preenchimento dos restantes elementos constitutivos de qualquer dos tipos de crime em causa, concretamente, os meios típicos de que arguido se serviu para sujeitar cada uma das ofendidas aos seus intuitos, contra vontade dela, e o dolo com que actuou. De igual modo, a não prova de o arguido ter logrado obter satisfação sexual, através das condutas a que nos vimos referindo, em nada obsta à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no nº 1 do art. 483º do CC: uma conduta ilícita, um dano, o nexo de causalidade entre aquela e este e a culpa do lesante. Consequentemente, importa concluir que a alteração introduzida por este acórdão na matéria de facto julgada provada e não provada pelo Tribunal «a quo» não é susceptível de influir na decisão jurídica da causa, seja na sua vertente criminal, seja na civil, soçobrando, em geral a pretensão recursiva formulada pelo arguido. Aqui chegados, conheceremos do recurso interposto pela assistente e demandante. A sindicância do acórdão recorrido, que emerge das conclusões da recorrente assistente, não versa sobre matéria de facto e tem como finalidade exclusiva a produção dos seguintes efeitos jurídicos: a) Elevação do montante indemnizatório arbitrado; b) Não suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado. Quanto ao valor da indemnização, importa recordar que a ofendida B deduziu contra o arguido pedido indemnizatório, peticionado a condenação dele a pagar-lhe o montante de 50.000 euros, a título de ressarcimento de danos não patrimoniais, e aquilo que viesse a apurar-se em execução de sentença, em sede de danos patrimoniais. O acórdão recorrido condenou o arguido e demandado no pagamento à demandante de uma indemnização global de 6.050 euros, compreendendo 6.000 euros para reparação de danos não patrimoniais e o restante de danos patrimoniais. No primeiro ponto das suas conclusões, a recorrente assistente refere: «a indemnização que o ARGUIDO foi condenado a pagar à ASSISTENTE deve ser de montante superior aos seis mil euros fixados, atendendo à idade da vítima, circunstâncias do crime e prejuízos não patrimoniais sofridos pela vítima e dados como provados». Ora, da formulação reproduzida infere-se que aquilo que a recorrente impugna é, exclusivamente, a contabilização dos danos não patrimoniais, tendo-se conformado com aquilo que lhe foi atribuído pelo Tribunal «a quo» para ressarcimento dos danos patrimoniais. Assim, incumbe a este Tribunal ajuizar da bondade da fixação feita pelo Tribunal «a quo» do valor da indemnização por danos não patrimoniais, em face da factualidade apurada e do direito aplicável, tendo como limite máximo o montante originariamente peticionado de 50.000 euros. Para o efeito da fundamentação jurídica da decisão recorrida, em matéria de responsabilidade civil, na parte que pode interessar à questão a dirimir, o Tribunal «a quo» expendeu (transcrição com diferente tipo de letra): Perante a redacção do art.º 71.º do Código Penal, o regime imposto no que concerne à indemnização a fixar pela prática de um crime, é o da via de adesão obrigatória da acção civil na acção penal. E dispõe o art.º 129.º do mesmo diploma que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. É que a responsabilidade civil é, do ponto de vista conceptual, autónoma da responsabilidade criminal, isto pela própria essência e compreensão dos conceitos. Contudo, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal, tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal[1]. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que mesmo no caso de absolvição de responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil – cfr. art.º 377.º do C.P.P. -, que é daquela autónoma, o que advém de razões processuais, nomeadamente de economia, e para evitar julgados contraditórios[2]. Importa acrescentar que, na medida em que o art.º 129.º do Código Penal remete a regulação de indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a lei civil, esta só pode ser o art.º 483.º do Código Civil, que apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, ou a da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na lei, mas com total exclusão da responsabilidade contratual. Nos termos da lei civil e em sede de responsabilidade aquiliana, estatui-se que, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente os direitos de outrem é obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação – cfr. art.º 483.º do C.C. –. Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão – art.º 563.º do C.C. –, sendo os danos não patrimoniais indemnizáveis, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art.º 496.º, n.º 1 do mesmo Código – . No que à responsabilidade com base na culpa diz respeito, cabe ao demandante, o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito – art.º 342.º do C.C. – os quais são: a existência de um acto voluntário do agente; a ilicitude, a imputação do facto ao agente; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. O direito que a demandante B pretende fazer valer, inscrevendo-se no domínio da responsabilidade civil extracontratual, impõe a verificação cumulativa de cinco pressupostos, a saber: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade (cfr. art.º 483.º do CC). A obrigação de reparar um dano supõe assim a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano, tomada esta expressão no sentido de dano real. Rege esta matéria o disposto o art.º 563.º do Código Civil, disposição que consagrou a nominada teoria da causalidade adequada, isto é, o autor do facto será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido (cfr. A. Varela, Manual das Obrigações em Geral, 6.ª ed. pág. 869). A demandante peticiona indemnização por danos de natureza não patrimonial e patrimonial. A indemnização por danos morais, há que referi-lo, não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado, contendo ainda uma componente sancionatória da conduta do lesante. Correspondem àquilo que, na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris, ou ressarcimento tendencial da angústia, da dor física, da doença ou do abalo psíquico-emocional, resultante de uma situação de «luto». Tal como é pacificamente entendido, a reparação dos danos não patrimoniais, não visa uma reparação directa dos danos sofridos, porque estes são insusceptíveis de ser contabilizados em dinheiro. O dano em apreço tem por suporte a pessoa humana, no seu lado subjectivo, e situa-se no pólo oposto à felicidade do homem. Quem sofre um desgosto, quem se incomoda, quem sente as torturas da dor ou da falta de saúde, perde um bem anímico: essa perda é o dano moral ou não patrimonial – Oliveira Matos, Código da Estrada, pág. 504 – é um dano que afecta a personalidade moral nos seus valores específicos – Dario Almeida, Manual de Acidentes de Viação, pág. 224. A indemnização pelo dano em apreço não é uma verdadeira indemnização no sentido de repor, reconstituir as coisas no estado anterior à lesão. Com a indemnização pretende-se dar ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe situações ou momentos de prazer e alegria que neutralizem, quanto possível, a intensidade da dor física e psíquica – Vaz Serra, BMJ n.º 78, pág. 83 e 278, pág. 182. Através dela visam-se compensar prejuízos como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, os complexos de ordem estética, numa palavra, todos os danos causados à saúde, ao bem estar, à liberdade, à beleza, ao bom nome e honra do indivíduo – A. Varela, Das Obrigações em Geral, 1970, p. 424. Na fixação do “quantum” indemnizatório manda a nossa lei atender, através da remissão para o disposto no art.º 494.º, ao grau de culpa do lesante, situação económica de lesante e lesado, flutuações do valor da moeda, etc., devendo ser proporcionada à gravidade do dano e tomando em conta, na sua fixação, “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida” (vide A. Varela e Pires de Lima, CC anotado, 4.ª ed., pág. 501). Para além do sofrimento infligido à demandante são tambem previsíveis consequências na área da sua sexualidade, tudo danos com indiscutível relevo, a justificar a tutela do direito. No caso dos autos, atentos os factos provados, designadamente, a conduta do arguido, o local e o contexto da mesma, a idade da demandante à data dos factos (18 anos) e fazendo apelo a critérios de normalidade e razoabilidade, entende este Tribunal fixar a indemnização por danos não patrimoniais devidos à mesma, pelo crime de coacção sexual de que foi vítima nos presentes autos, na quantia global de € 6 000,00 (seis mil euros). A fixação do montante indemnizatório terá de atender, além do mais, aos parâmetros previstos no art. 494º do CC, para os quais remete o nº 3 do art. 496º e que são: - o grau de culpabilidade do lesante; - a situação económica deste; - a situação económica do lesado; - outras circunstâncias que se mostrem relevantes. A actuação do arguido a que nos reportamos causou sofrimento visível à ofendida B, o que é espelhado nas consequências que acarretou para esta e que mostram descritas nos pontos 16 a 20 e 22 da matéria de facto provada. O grau de culpabilidade do lesante é elevado, desde logo por estar em causa uma conduta que lhe é imputável a título de dolo, na sua variante mais gravosa, dolo directo. Para além disso, todo o comportamento do arguido, em relação à assistente, é revelador de uma múltipla violação dos deveres a que ele se encontrava adstrito. Com efeito, o arguido pratica os factos no exercício das funções, de que então estava investido, num estabelecimento hospitalar a que a ofendida havia recorrido, a fim de que lhe fossem prestados os cuidados de saúde de que carecia. O descrito contexto é necessariamente de molde a fragilizar as capacidades de defesa da ofendida e fazia impender sobre o arguido, enquanto profissional de saúde do estabelecimento em causa, um especial dever de zelar pelo bem-estar físico e psíquico daquela utente, o qual ele flagrantemente transgrediu. Para colocar a ofendida na impossibilidade resistir aos seus intuitos libidinosos, o arguido lançou mão de um meio particularmente insidioso, a saber uma droga a que tinha acesso em razão das suas funções de enfermeiro e que ministrou à vítima a pretexto dessa qualidade profissional. Os referidos aspectos da apurada conduta do arguido fazem situar a seu grau de culpabilidade num nível particularmente elevado, o que milita de forma determinante a favor de uma agravação do montante da indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais, independentemente de não terem sido averiguados dados concretos sobre a condição económica quer do lesante, quer da lesada. Entre as decisões dos Tribunais Superiores que, recentemente, se ocuparam da questão da contabilização da indemnização por danos morais, emergente da vulneração de bens jurídicos pessoais ligados á sexualidade, poderemos indicar, com eventual interesse para a solução da questão que estamos tratando, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/12, proferido no processo nº 476/09.0PBBGC.P1.S1 e relatado pelo Exmº Conselheiro Dr. Santos Carvalho (Fonte: Base de Dados do ITIJ). O referido aresto computou em 100.000 euros o valor da indemnização por danos não patrimoniais, em que foi condenado um médico psiquiatra que, no interior do seu consultório, praticou actos sexuais, a saber a introdução do pénis erecto na boca e cópula vaginal completa, na pessoa de uma sua paciente, que padecia de doença depressiva e se encontrava na 34ª semana de gravidez, contra a vontade dela. Consideramos que existe algum paralelismo entre a situação agora em apreço e aquela que foi tratada no citado Acórdão do STJ, salvaguardando sempre as devidas proporções e sem esquecer que a segunda é incomensuravelmente mais grave do que a primeira. Nesta ordem de ideias, e sem termos necessariamente de subscrever a bondade do cálculo do valor indemnizatório feito pelo STJ no caso concreto, o citado Acórdão é susceptível de nos proporcionar alguns marcos de referência para podermos chegar à conclusão de que os danos não patrimoniais infligidos pelo arguido à assistente e demandante B foram de algum modo subavaliados pelo Tribunal «a quo», impondo-se, por isso a elevação do montante da respectiva indemnização. Tendo em conta os critérios legais aplicáveis e as circunstâncias concretas do caso, somos de entender que a justa e adequada compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida B deverá satisfazer-se com uma indemnização no valor de 12.000 euros. Consequentemente, o recurso interposto pela assistente e demandante procede, em matéria cível, procede nessa medida. Passemos, então, à apreciação da questão suscitada pela mesma recorrente, acerca da suspensão da execução da pena única em que o arguido foi condenado. O acórdão recorrido fundamentou a decisão de suspender a execução da pena global, nos seguintes termos (transcrição com diferente tipo de letra): Dispõe o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às consequências deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” É líquido que a suspensão da execução da pena de prisão constitui ela própria uma verdadeira pena de substituição e que estas ganham particular importância por força da orientação político-criminal de restrição da aplicação da pena de prisão, orientação esta que o Código Penal decididamente seguiu no tocante à pequena e média criminalidade. A suspensão da execução da pena assenta num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, efectivado no momento da decisão. O juízo de prognose fundamentar-se-á, cumulativamente, na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto. Parte-se, em resumo, de um juízo de prognose social favorável ao agente, pela fundada expectativa de que ele, considerado merecedor de confiança, há-de sentir a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir, através de uma vida futura ordenada e conforme ao direito. A finalidade do instituto é, fundamentalmente, a de afastar o delinquente da criminalidade. Todavia, ainda que em tal sentido apontem as considerações retiradas da prevenção especial de socialização, a suspensão não deverá ser decretada se com ela se postergarem as necessidades de reprovação e de prevenção do crime: “Estão aqui em causa não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa da ordem jurídica” – cfr. Figueiredo Dias, “Velhas e Novas Questões sobre a pena de suspensão de execução da prisão” in RLJ, Ano 124.º, p. 65 e ss. A suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. “O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, em anotação ao art.º 50.º). Os n.ºs 1 e 2 citados indicam-nos os elementos a atender nesse juízo de prognose: - A personalidade do arguido; - As suas condições de vida; - A conduta anterior e posterior ao facto punível; e - As circunstâncias do facto punível. E sendo essa conclusão favorável, o tribunal decidirá se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as finalidades da punição, caso em que fixará o período de suspensão. Neste sentido tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça: «o tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena, se conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente; às condições da sua vida, á sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste. Só deve decretar a suspensão da execução quando concluir, face a esses elementos que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade» (Ac. de 11.01.2001, proc. n.º 3095/00-5, www.dgsi.pt). No caso sub judice, tendo em conta todas as circunstâncias acima referidas que demonstram que o arguido não tem antecedentes criminais, que é jovem, social e familiarmente integrado e tendo em atenção que a prisão muitas vezes é mais estigamtizante do que ressocializadora, entende este tribunal colectivo suspender a pena de prisão ora aplicada ao arguido pelo igual período ao da condenação. O art.º 51.º do Código Penal autoriza, no seu n.º 1, a subordinação da suspensão da execução da pena ao cumprimento de deveres impostos ao condenado, e destinados a reparar o mal do crime. A título de exemplo, menciona-se na al. a) desse n.º 1, o pagamento em certo prazo de indemnização devida ao lesado, no todo ou em parte. De notar que se não está, neste domínio de deveres condicionantes da suspensão da pena, perante uma indemnização cível por perdas e danos, calculada e orientada pelos mesmos exactos propósitos desta. Está-se, pelo contrário, só perante uma “função adjuvante de realização das finalidades da punição”. Muito menos se estará perante a reedição da “tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime, que o art.º 129.º do citado Código quis postergar” – cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime p. 353). No acórdão do STJ de 11.06.1997, CJSTJ 1997, tomo 2, P. 226, toma-se posição sobre a natureza jurídica da indemnização, dizendo-se: «A quantia cujo pagamento pelo arguido ao lesado é condição da suspensão da pena não constitui aqui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição e a dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias. Por isso a modificabilidade do quantum arbitrado se tal vier a justificar-se – cfr. art.º 49.º, N.º 3, do CP de 1982 (art.º 51.º, n.º 3 do CP de 1995). E por isso também que o montante assim arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação de indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil), ou seja, a determinação do montante do quantum compensatório não está sujeito aos estritos critérios da lei civil e processual civil para a fixação da indemnização». Pois bem, a reparação do mal do crime passa também, no caso presente, pela entrega de uma quantia monetária à ofendida B que infra será fixada. Conforme é referido no trecho do acórdão sob recurso acabado de transcrever, a suspensão da execução da pena de prisão tem de ter por base, de acordo com disposto no nº 1 do art. 50º do CP, a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para satisfazer, quanto ao arguido em presença, as finalidades da punição. O nº 1 do art. 40º do CP define como finalidades da aplicação de penas a defesa de bens jurídicos, que se desdobra, no essencial, na prevenção geral e especial da prática de crimes e a reinserção social do condenado. Em sede de recurso, a assistente fundamentou a sua pretensão de aplicação ao arguido de uma pena de prisão efectiva na invocação do perigo real de continuação da actividade criminosa por parte dele, ou seja, dito por outras palavras, na insuficiência da pena de substituição aplicada, para satisfazer as exigências de prevenção especial que o caso suscita. A formulação pelo Tribunal «a quo» do juízo de prognose, que justificou a suspensão da execução da pena, baseou-se, essencialmente: a) Na ausência de antecedentes criminais do arguido; b) Na sua juventude; c) No grau de integração social de que beneficia. No presente processo, foi o arguido condenado pela pratica de dois crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexuais, ocorrida no mesmo dia, no contexto da prestação de trabalho pelo arguido, enquanto enfermeiro do estabelecimento onde os factos incriminados tiveram lugar. Há notícia de um outro episódio de natureza idêntica à daqueles por que o arguido agora respondeu, conforme se infere do depoimento de uma das testemunhas inquiridas em julgamento, mas não se sabe se deu origem a outro processo-crime. A pluralidade de crimes por que o arguido foi condenado permite, desde logo, inferir exigências de prevenção especial de algum relevo, mas a concentração temporal e circunstancial das condutas incriminadas pode, razoavelmente, ser interpretada como um indício do seu carácter episódico. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido, o que necessariamente milita a favor da emissão do juízo de prognose a que nos reportamos. O arguido nasceu em 7/4/81, pelo que contava 28 anos incompletos de idade, ao tempo da prática dos factos por que responde, e 30, aquando da prolação do acórdão condenatório em primeira instância. Perante os padrões de longevidade actualmente vigentes o arguido deve ser considerado um indivíduo jovem, mas há muito que ultrapassou aquela idade correspondente ao período de formação, que, para os efeitos da aplicação da lei penal, se situará entre os 16 e os 21 anos, ou seja, o escalão etário a que pode ser aplicado o regime penal especial para jovens delinquentes previsto no DL nº 401/82 de 23/9. Daí, a idade do arguido não reveste particular relevo para a questão que nos ocupa. Quanto ao grau de integração social de que o arguido beneficiará, sempre diremos que a experiência demonstra que a prática de crimes contra liberdade e a autodeterminação sexuais não se encontra preferentemente ligada a situações de desenquadramento social, pelo que as situações de sinal oposto não constituem em si garantia contra o ulterior cometimento de ilícitos dessa natureza. Contudo, também poderá dizer-se que um arguido sem antecedentes criminais que goze de um aceitável grau de integração social tenderá, em princípio a ser mais sensível à ameaça da perda da liberdade que um indivíduo socialmente desenquadrado, pois terá mais a perder do que este, no cumprimento de uma pena de prisão. O arguido não confessou os factos porque foi condenado, nem manifestou em relação a eles qualquer arrependimento. A perícia psicológica efectuada na pessoa do arguido permite caracterizá-lo como uma pessoa imatura e com pouca capacidade auto-crítica, mas sem especial propensão para o cometimento de crimes, contra bens jurídicos ligados à sexualidade ou outros. O acórdão recorrido condenou o arguido, em cúmulo jurídico, numa pena única de 4 anos de prisão. Dispõe o nº 3 do art. 53º do CP que a suspensão da execução da pena de prisão será obrigatoriamente acompanhada de regime de prova, sempre que, entre outras situações, a medida da pena em causa seja superior a 3 anos, aspecto que foi de todo ignorado pela decisão sob recurso. Assim, caso se decida manter a suspensão da execução da pena única aplicada, a mesma terá de ser necessariamente acompanhada da sujeição do arguido a regime de prova. A jurisprudência tem vindo a caracterizar o juízo de prognose referido no nº 1 do art. 50º do CP como a assunção pelo Tribunal de um «risco prudente». Haverá que reconhecer que, quando estão em causa crimes sexuais, a margem de risco prudente de que o Tribunal pode dispor é mais restrita do que noutros casos. Todo ponderado, afigura-se-nos que, ainda assim, haverá margem para poder acreditar que a censura do facto e a ameaça da prisão, mais esta do que aquela, constituirão meio dissuasor suficiente da ulterior prática de crimes pelo arguido, mostrando-se, de tal forma, também salvaguardadas as exigências de prevenção especial. Nesse sentido, impõe-se confirmar a decisão recorrida na parte em que determinou a suspensão da execução da pena emergente do cúmulo jurídico, sem prejuízo daquilo que ficou dito sobre a sujeição do arguido a regime de prova e da adaptação do decisório à elevação do montante da indemnização arbitrada à ofendida B. O acórdão sob recurso fez condicionar a suspensão da execução da pena, ao abrigo do disposto no art. 51º nº 1 al. a) do CP, ao pagamento pelo arguido às assistente e demandante da quantia de 6.050 euros, correspondente ao total da indemnização arbitrada, no prazo de 1 ano a contar do trânsito em julgado da decisão. Pelo presente acórdão, vai o arguido ser condenado no pagamento a B de uma indemnização global de 12.050 euros, compreendendo o valor de 12.000 euros, que aqui se computou necessário à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela mesma ofendida, e de 50 euros, correspondente aos danos não patrimoniais, que a demandante não impugnou em sede de recurso. Em conformidade, será a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento pelo arguido da totalidade do novo montante indemnizatório, mas elevando correspondentemente o respectivo prazo para 2 anos. III: Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: a) Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e determinar a alteração da matéria de facto provada nos termos preconizados a fls. 44 e 45 deste acórdão; b) Negar provimento ao mesmo recurso quanto ao mais; c) Conceder provimento parcial ao recurso interposto pela assistente e demandante B e revogar a decisão recorrida, nos seguintes termos: d) Condenar o arguido e demandado no pagamento à assistente e demandante de uma indemnização no valor total de 12.050 euros, sendo 12.000 euros para compensação de danos não patrimoniais e 50 euros para ressarcimento de danos patrimoniais; e) Suspender a execução da pena única de 4 anos de prisão em que o arguido foi condenado, pelo tempo da respectiva medida, sob a condição do pagamento pelo arguido à assistente da quantia de 12.050 euros, no prazo de 2 anos a contar do trânsito em julgado da decisão, e com sujeição do arguido a regime de prova. Sem custas. Notifique. Comunique a decisão à Ordem dos Enfermeiros para os efeitos tidos por convenientes Évora 15/5/12 (processado e revisto pelo relator) Sérgio Bruno Póvoas Corvacho João Manuel Monteiro Amaro ________________________________________________ [1] Vd. Ac.STJ, de 17.06.1999 in “DR – IS, de 03.08.1999” [2] Vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol.I – p. 77 e ss. |