Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
843/23.7T8ENT-B.E1
Relator: FILIPE AVEIRO MARQUES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
FUNDAMENTOS
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:

Tendo sido a embargante condenada por sentença judicial à prestação de um facto, a eventual impossibilidade originária de cumprimento é matéria que teria de ter sido discutida naquela acção, não podendo fundar uma oposição à execução.

Decisão Texto Integral: Apelação n.º 843/23.7T8ENT-B.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.º Adjunto: Francisco Xavier


2.º Adjunto: António Fernando Marques da Silva


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


HERANÇA ILÍQUIDA ABERTA POR ÓBITO DE AA E BB, embargante que se opôs à execução que “Hotel 1, LDA.” havia intentado contra ela, veio recorrer do despacho saneador proferido em 20/05/2025 pelo Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém na parte em que julgou improcedente a excepção de impossibilidade originária da prestação de facto quanto à “Afinação dos vãos envidraçados em caixilharia de madeira, incluindo o aplainamento das superfícies e revisão das dobradiças: € 500,00 + IVA”.

I.B.

A recorrente apresentou alegações (em 17/06/2025 – REFª: 52655994) onde termina com as seguintes conclusões:

“a) O artigo 595º, do C.P.C., permite que, no despacho saneador, o Tribunal conheça imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

b) No caso dos autos, atenta a natureza da oposição à execução, o alegado pela apelante no que respeita às caixilharias em madeira constitui um pedido: de extinção da obrigação exequenda que consta do título executivo por impossibilidade originária.

c) O tribunal julgou tal pedido improcedente, apenas tendo em consideração a seguinte factualidade:

(…)

d) Revela-se mal julgada a decisão relativa ao facto que consta em 1) na parte “(...) peticionando o pagamento da quantia global de 19.644 euros, apresentando como título executivo sentença condenatória de 10/07/2022, transitada em julgado em 10/10/2022, proferida na ação de processo comum n.º 3250/19.2... do Juízo Central Cível de Santarém (J4), aqui dada por reproduzida.”

e) O que a exequente peticionou foi a fixação de prazo de 30 dias para que a executada realizasse as obras identificadas no requerimento executivo, com a sanção pecuniária compulsória não inferior a € 100,00 diários, por cada dia após esse prazo sem que a prestação de facto se encontre cumprida.

f) Assim, ainda que o Tribunal a quo, a final, decida julgar a oposição à execução improcedente, não pode ordenar o prosseguimento de execução com finalidade diferente da peticionada no requerimento executivo.

g) No limite, e no pressuposto da improcedência da oposição à execução, o Tribunal ordenará, nos autos principais de execução, que seja a exequente notificada para realizar determinadas obras, no prazo de 30 dias, sob cominação da aplicação de sanção pecuniária compulsória no valor de 100 euros diários por cada dia de atraso.

h) O Tribunal julgou demonstrado um facto que excede o alegado pelas partes, designadamente pela exequente no requerimento executivo, pelo que a decisão proferida em 1) dos factos provados é nula, o que se requer seja declarado – artigos 609º e 6015º, nº 1, alínea e), do C.P.C.

i) No que respeita à apreciação da decisão recorrida no âmbito da aplicação do direito, revela-se manifesto que o Tribunal não podia conhecer de imediato do mérito da causa sem dar possibilidade à apelante de produzir prova.

j) Basta observar a quantidade de janelas e portas em caixilharia de madeira que estão em causa na referida obra para se concluir por tal impossibilidade mas, ainda que o Tribunal não tenha essa percepção através do senso comum, impunha-se que permitisse à apelante demonstrar o que alega, o que não fez.

k) Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 595º, 1, alínea b), do C.P.C.

Pelo que se requer a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a ampliação dos temas da prova por forma a que incluam a questão de saber se se revela impossível o cumprimento, pela autora, da obrigação “Afinação dos vãos envidraçados em caixilharia de madeira, incluindo o aplainamento das superfícies e revisão das dobradiças: € 500,00 + IVA” e, em caso afirmativo, em que termos.”

I.C.

A recorrida apresentou contra-alegações (em 1/07/2025 – REFª: 52791249) onde defende a improcedência do recurso.


I.D.


O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.


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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a. Nulidade da decisão recorrida;

b. Verificação dos requisitos para a decidir pela “inexequibilidade da obrigação exequenda por impossibilidade originária”.


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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Nulidade da decisão recorrida:

a) Invoca a recorrente a nulidade da decisão recorrida por violação da alínea e), do artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Estabelece o artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil que:

“É nula a sentença quando: (…)

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.

A nulidade prevista na referida alínea e) está relacionada com a violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.


Dir-se-á, no entanto, que a decisão recorrida (sobretudo na parte recorrida) não condenou e muito menos em quantidade superior ou objecto diverso do pedido, pois que se limitou a conhecer de excepção invocada pela embargante (e de que tinha, por isso, de tomar conhecimento).


A circunstância de dar como provado um facto não integra esse vício da decisão.


Improcede, por isso, esta parte da apelação.


b) Parece invocar a recorrente que não foi dada oportunidade de produzir prova sobre a matéria de facto alegada e que esta é essencial para conhecer do mérito.


Por força do que se estabelece no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (aplicável ao caso por força do artigo 732.º, n.º 2, do mesmo diploma), pode ser imediatamente conhecido o mérito da causa no despacho saneador (ou seja, sem necessidade de julgamento) “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.


Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1] defendem que: “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo. Tal pode acontecer por inconcludência do pedido (…), procedência ou improcedência de exceção perentória (…) e procedência ou improcedência do pedido. (…) Esse conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa (…)”.


Paulo Pimenta[2] defende que se justifica que “o juiz só conheça do mérito da causa no despacho saneador quando «possa emitir uma decisão segura que, em princípio, não seja afetada pela evolução posterior» do processo, designadamente, em via de recurso. Por uma questão de cautela, e para esse efeito, o juiz deverá usar um critério objetivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema”.


Paulo Ramos de Faria[3] defende que: “o tribunal superior pode chegar oficiosamente à conclusão de que ainda se encontram controvertidos factos necessários ao julgamento da lide – quer tenham sido erradamente dados por assentes, quer não tenham sido sequer considerados. Constatando esta deficiência, deve lançar mão das ferramentas processuais colocadas ao seu dispor para a ultrapassar. O tribunal da Relação deve anular a decisão antecipada (art. 662.º, n.º 2, al. c))”.


Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/01/2018, (processo n.º 18084/15.5T8LSB.L1.S2[4]): “Deve ser anulado, por erro de procedimento (violação da disciplina processual), o despacho saneador onde o julgador conheceu do mérito da causa, se ainda não tinha à sua disposição todos os factos que interessam à resolução das várias questões de direito suscitadas na acção, não permitindo o estado do processo esse conhecimento, sem necessidade de mais provas”.


O juízo a fazer depende, por isso, da relevância dos factos controvertidos para a apreciação do mérito da causa, o que se fará após apreciação das restantes questões a resolver.


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Porém, em face do teor do requerimento executivo e, mesmo, do relatório feito a propósito do conhecimento da excepção, verifica-se que foi instaurada execução para prestação de facto, pelo que se deve alterar a redacção do ponto 1 dos factos provados e, onde se lê “para pagamento de quantia certa” deve passar a constar “para prestação de facto” e, em vez de “peticionando o pagamento da quantia global de 19.644 euros” deve passar a constar “para que a executada dê cumprimento e proceda à realização das obras descritas e pediu a fixação do prazo em 30 dias para a prestação de facto em que foi condenada a executada, com a sanção pecuniária compulsória não inferior a € 100,00 diários, por cada dia após esse prazo sem que a prestação de facto se encontre cumprida”.


Trata-se de alteração a que se deve proceder oficiosamente, em face do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


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III.B. Fundamentação de facto:

Factos provados:

Considera-se a seguinte matéria de facto provada:

1. A exequente Residencial CC, Lda., instaurou por via eletrónica em 09/03/2023 neste Tribunal Judicial a presente execução de decisão judicial condenatória para prestação de facto, contra a executada herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AA e BB, para que a executada dê cumprimento e proceda à realização das obras descritas e pediu a fixação do prazo em 30 dias para a prestação de facto em que foi condenada a executada, com a sanção pecuniária compulsória não inferior a € 100,00 diários, por cada dia após esse prazo sem que a prestação de facto se encontre cumprida, apresentando como título executivo sentença condenatória de 10/07/2022, transitada em julgado em 10/10/2022, proferida na ação de processo comum n.º 3250/19.2... do Juízo Central Cível de Santarém (J4), aqui dada por reproduzida.

2. Consta do dispositivo da sentença condenatória:

“1) condena-se a Ré Herança Liquida aberta por óbito de AA e BB, representada por DD, residente na Avenida 1, nº 46, 1º esq., ... Cidade 1,EE, residente na Avenida 1, nº46, 1º esq. ... Cidade 1 e FF, residente na Avenida 1, nº 46, 1º esq., ... Cidade 1, a executar no prédio urbano inscrito sob o artigo 3224 da União de Freguesias de Cidade 2, sito em ..., correspondente actualmente à Avenida 2 nº49, as seguintes obras,

com os seguintes custos:

a) Pintura exterior do edifício do gradeamento das varandas, portões das garagens e limpeza das pedras macias de capeamento das guardas: €13.350,00 + IVA;

b) Afinação de funcionamento dos dois portões de garagem, incluindo reparação das calhas deslizantes e todos os trabalhos necessário ao seu correto funcionamento: €500,00 + IVA;

c) Afinações dos vãos envidraçados em caixilharias de madeira, incluindo o aplainamento das superfícies e revisão das dobradiças: €500,00 + IVA;

d) Afinação da porta de entrada ao nível do piso -1, com fixação da almofada solta e colocação de batentes no perímetro do fecho: €300,00 + IVA;

e) Vedação perimetral da caixilharia de alumínio em marquise, incluindo remoção de silicone existente e colocação de novo silicone, garantindo a melhorias das condições de funcionamento deste elemento: €300,00 + IVA;

f) Impermeabilização da superfície de varandas com limpeza e refechamento de juntas em ladrilhos, aplicação de primário compatível com o suporte posterior de aplicação de camada de poliuretano incolor: €1.000,00 + IVA;

Tudo no montante total de € 15.950,00 + IVA = €19.618,50;”

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III.C. Fundamentação jurídica:


A execução a que estes embargos foram apensos teve por base, como título executivo, uma sentença condenatória. Daí que os fundamentos de oposição só possam ser os elencados no artigo 729.º do Código de Processo Civil.


Pode haver lugar à execução judicial de uma prestação quando o dever de prestar consta de um título, o título executivo (pressuposto de carácter formal que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito) e quando a prestação se mostra certa, exigível e líquida (pressuposto de caracter material que intrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito).


Assim, no âmbito da ação executiva importa distinguir entre exequibilidade do título e exequibilidade da pretensão exequenda, isto é, entre exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título (exequibilidade extrínseca) e validade ou eficácia do acto nele titulado (exequibilidade intrínseca) – ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/01/2018 (processo n.º 2548/16.6T8SNT-A.L1-2[5]).


A inexequibilidade do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica; a inexequibilidade da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar.


Tratando-se de sentença judicial de condenação transitada em julgado, estão claramente preenchidos os requisitos formais para que o documento possa servir de base à execução. E, sobretudo, os factos extintivos ou modificativos da obrigação terão de ser posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração e têm de ser provados por documentos (cf. artigo 729.º, alínea g), do Código de Processo Civil).


Percorrendo o teor da petição de embargos, verifica-se que a embargante não alega o cumprimento da prestação relativa à alínea c) da sentença condenatória (“c) Afinações dos vãos envidraçados em caixilharias de madeira, incluindo o aplainamento das superfícies e revisão das dobradiças”), mas apenas invoca que não encontrou empreiteiro que aceitasse fazer essa afinação pelo valor fixado na sentença (ver artigos 21.º e 22.º do seu requerimento inicial).


Pretende a executada que esse singelo facto constituiria uma impossibilidade originária da sua pretensão, mas sem qualquer razão: não encontrar um empreiteiro não é nem uma impossibilidade da prestação nem originária.


Mas será que deveria dar-se oportunidade, ainda assim, de a embargante provar a impossibilidade de encontrar empreiteiro para, assim, se poderem julgar procedentes os seus embargos? A resposta só pode ser negativa. A embargante foi, no processo declarativo, condenada na prestação de um facto. Essa obrigação (apesar de lhe ter sido dado um valor) não é de cumprimento impossível (por si ou por terceiros) nem, sobretudo, essa “impossibilidade originária” (como a qualifica a embargante) é matéria nova que não pudesse ter sido discutida na acção declarativa.


Ou seja, o fundamento dos embargos, nesta parte (que é a que agora importa) não se enquadra nos fundamentos do artigo 729.º do Código de Processo Civil.


O apuramento dos factos relativos a essa excepção sempre seria, por isso, inútil para a apreciação do mérito da acção, pelo que não está em causa qualquer necessidade de ampliar a decisão de facto nem, consequentemente, existem motivos para anular a decisão recorrida neste particular.


Como se diz na decisão recorrida, o apuramento do custo da prestação (se tiver de ser feito por terceiro) far-se-á na execução (cf. artigo 870.º do Código de Processo Civil) e não estará limitado ao valor indicado na sentença condenatória.


Improcede, por isso, o recurso.


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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da recorrente, por ter ficado vencida, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.


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IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão recorrida.


Condena-se a embargante/apelante nas custas do recurso.


Notifique.



Évora, 10 de Dezembro de 2025


Filipe Aveiro Marques


Francisco Xavier


António Fernando Marques da Silva

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1. “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 659-660.↩︎

2. Processo Civil Declarativo, Coimbra, Almedina, 2014, pág 257.↩︎

3. “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, Julgar Online, Outubro de 2019, págs. 40 e 47, acessível em https://julgar.pt/relevancia-das-outras-solucoes-plausiveis-da-questao-de-direito/.↩︎

4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/9DCBC2DEB9DC6A788025821A004AA264.↩︎

5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bc564be9f92c887e8025825e003270f2.↩︎