Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
679/19.0T8BJA.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PATRIMÓNIO
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A união de facto não é suscetível de, por si só, originar um património comum.
2 – Pode existir património comum dos unidos de facto mas por via de institutos do direito comum como o da compropriedade. Neste caso, haverão que ser alegados e demonstrados os factos correspondentes, não bastando apenas a referência a uma vivência comum e ao facto de ambos os elementos da união de facto terem contribuído, monetariamente ou através do trabalho respetivo, para a aquisição dos bens.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 679/19.0T8BJA.E1
(1.ª Secção)
Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), autora na ação declarativa sob a forma de processo comum que moveu contra (…) e (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual julgou a ação parcialmente procedente e, em conformidade, declarou a autora titular de um direito real de uso e habitação do prédio sito na Rua de (…), n.º 8, Pias bem como de um direito de uso do respetivo recheio pelo período de 35 anos, 11 meses e 11 dias e absolveu as rés do demais peticionado.

Na ação, a autora tinha pedido que o tribunal a declarasse:
1) Comproprietária dos bens móveis, imóveis e capitais adquiridos na pendência da união de facto com (…) e, consequentemente, fossem as rés condenadas a reconhecerem os direitos de sua mãe, ora autora, e, por força disso, alterarem o modelo I do IS onde consta a relação de todos os bens do de cujus;
2) Titular de um direito real de uso da habitação e de um direito de uso do recheio uma vez que é proprietária da outra metade do imóvel e respetivo recheio.
Para fundamentar a sua pretensão a autora alegou o seguinte: viveu em união de facto com (…), desde 1 de julho de 1981 e até à data do falecimento do mesmo, ocorrido em 11 de junho de 2017, e dessa união nasceram duas filhas, as oras rés; durante todo aquele período de tempo, a autora sempre trabalhou com o de cujus na agricultura e na exploração pecuária, nunca tendo auferido qualquer salário pago pelo segundo, nem efetuado quaisquer descontos pelo seu trabalho para a Segurança Social; (…) faleceu no estado de solteiro e deixou como herdeiras apenas as duas rés; à autora foi atribuída uma pensão de sobrevivência, no valor mensal de € 186,88, em consequência do óbito do companheiro de facto; a autora e (…) sempre trabalharam juntos no negócio da família; quando a autora e o de cujus começaram a viver juntos, em 1 de junho de 1981, o seu companheiro tinha apenas um direito à herança dos seus pais e avós e ela não tinha qualquer bem em seu nome; ao longo da sua vida em comum, a autora e o de cujus foram adquirindo, com o trabalho de ambos, todos os bens que compõem a herança do seu companheiro, com exceção do direito às heranças dos pais e avós de (…), designadamente, a casa de morada de família sita em Pias, na Rua de (…), n.º 8, inscrita na matriz predial urbana sob o art. (…), da freguesia de Pias, concelho de Serpa, nove prédios rústicos, todos denominados “(…)”, sitos na freguesia de Pias, concelho de Serpa, na secção (…), com os artigos matriciais respetivos n.ºs (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), todo o recheio existente na casa de morada de família, vários veículos automóveis e ciclomotores – um deles, um trator, já vendido após o óbito de (…) –, diverso equipamento destinado à sua atividade agrícola – que identificou – , no valor total de € 13.055,00, ovelhas, já vendidas pelo valor de € 30.000,00 e um meloal, cuja venda, no valor de € 25.000,00 foi depositado em conta da herança; à data do óbito havia débitos resultantes de mútuos titulados pelo de cujus mas também da responsabilidade da autora que foram todos liquidados com verbas da herança; todas as contas bancárias eram tituladas pelo de cujus, sendo que à data do óbito exista uma conta com saldo de € 276,00, aberta quando ambos já viviam juntos; a autora e o de cujus candidataram-se a subsídios agrícolas e de pecuária e no período compreendido entre 30.11.2017 e 31.12.2017 foram pagos por transferência bancária e por cheques subsídios no valor global de € 28.822,45 e, em 3 de maio de 2018, foram pagos e creditados na conta titulada em nome de herdeiros de (…) as quantias de € 10.000,00, € 27.435,15, € 28.000,00, € 20.000,00 e € 10.000,00 pagos pelo Crédito (…) Vida, Companhia de Seguros de Vida, SA, pelo falecimento do primeiro. Mais alegou a autora que, na qualidade de cabeça-de-casal, a filha mais velha encontra-se na posse de todos os bens, a qual também está a explorar as terras e a usar as máquinas agrícolas, auferindo os subsídios de apoio à agricultura e à pecuária, e ela apenas tem acesso à casa de morada de família e seu recheio.
A autora alega que mesmo que não fosse proprietária – como é – de metade da casa de morada de família, ela sempre poderia ali permanecer por força da Lei n.º 7/2001, de 11-05.
As rés foram citadas mas não contestaram e foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 567.º, n.º 2, do CPC, tendo a autora apresentado alegações, após o que foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. A recorrente não se conformou com a decisão que absolveu as RR de reconhecerem o seu direito a ½ dos bens que compõem a herança do seu falecido companheiro, adquiridos na pendência dos 36 anos em que viveram juntos.
2. A sentença padece de vícios que são suscetíveis de gerarem a sua nulidade porque não foi validada a prova apresentada nomeadamente a prova documental, tal como não foram ouvidas testemunhas arroladas em face da não realização da audiência de julgamento.
3. A recorrente viveu em união de facto com o pai das recorridas mais de 36 anos, compartindo com este casa, mesa e cama.
4. A recorrente trabalhou toda a sua vida, a par do seu companheiro, trabalhando com este no negócio que era dos dois.
5. A recorrente nunca foi empregada do seu companheiro, trabalhando com este no negócio que era dos dois.
6. Foi com os rendimentos adquiridos pelos dois que adquiriram o património que hoje consta como sendo apenas do seu falecido companheiro e pai das ora recorridas.
7. Os bens adquiridos, imóveis e móveis sujeitos a registo, encontram-se registados em nome do companheiro da Recorrente em face da cultura arcaica em que todos os bens deveriam estar em nome do cabeça-de-casal.
8. A recorrente é proprietária de facto de ½ dos referidos bens móveis e imóveis.
9. Os bens móveis não sujeitos a registo não foram tidos com pertença da recorrente pela doutra sentença, contudo estes sempre estiveram na posse e foram utilizados por ambos os membros do casal, na sua vida pessoal e na profissional.
10. O nome da recorrente consta no contrato-promessa de compra e venda quando ambos compraram o prédio urbano destinado à sua casa de morada de família.
11. Ao contrário do constante na sentença ora recorrida, existem elementos nos autos que permitem demonstrar o alegado pela recorrente quanto à propriedade dos bens.
12. No que concerne à indicação em sede de sentença que a recorrente deveria ter feito uso da figura do usufruto, importa dizer que a posse desta dos bens em causa não é titulada ao contrário da das recorridas, pelo que a fazer uso desta figura teria que concorrer com estas à propriedade dos bens.
13. A recorrente não contesta a propriedade do seu falecido companheiro e atualmente das filhas de ambos e ora recorridas, mas sim a sua compropriedade nos bens em questão.
14. A recorrente entende ser comproprietária dos bens mais que não seja de facto e como tal não pretendeu invocar a posse dos bens para dessa forma os adquirir por usucapião.
15. A recorrente pretende ver retificada a situação registral dos imóveis e dos móveis sujeitos a registo e ser declarada comproprietária dos demais bens.
16. Deste modo entende a recorrente que a douta sentença está viciada, sendo passível de nulidade já que a prova não foi valorada para a boa decisão da causa.
17. Assim sendo, encontra-se violado o art. 615.º, n.º 1, do CPC.»

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso interposto pelo autor foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença.
2 – Reapreciação do mérito da causa.

II.3.
FACTOS
O tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos:
1 - A Autora viveu em união de facto com (…), desde 1 de Julho de 1981 até ao dia 11 de Junho de 2017, data do falecimento deste.
2 - Dessa união nasceram duas filhas, as ora RR.
3 - A Autora e o falecido trabalhavam na agricultura e na exploração pecuária.
4 - Ao longo da vida do casal, através do trabalho de ambos, foram adquirindo bens, sendo certo que os sujeitos a registo se encontravam registados em nome do falecido.
5 - Ainda com o produto da vida profissional da Autora e do seu falecido companheiro, existiam vários subsídios agrícolas e de pecuária a que estes se candidatavam, sendo que todos os anos recebiam algumas quantias a este título, sempre reportando-se a anos anteriores aos do pagamento.
6 - Acontece que a filha mais velha e 1ª Ré, entende que a mãe não é proprietária de qualquer dos bens e como os pais não eram casados segundo esta, a totalidade dos bens em nome do pai, que compõem a herança deste, na qual esta é a cabeça-de-casal e sua herdeira a par da irmã, eram só deste.
7 - A única coisa a que a Autora tem acesso, no momento presente, é à casa morada de família e ao seu recheio.
8 - A Autora entende ser comproprietária de todos os bens que atualmente compõem a herança do seu falecido companheiro, com exceção dos direitos às heranças deste por parte dos pais e avós e que as RR deverão retificar junto do Serviço de Finanças competente, a Mod.1 do Imposto de Selo por óbito do pai, os referidos bens declarados, como sendo os que compõem a herança do seu pai, para ½, já que a outra ½ pertencerá à sua mãe e ora Autora.

Resultou, ainda, da análise dos autos que:
1 – As rés foram citadas para a ação e não contestaram nem constituíram mandatário.
2 – Foi ordenado o cumprimento do art. 567.º, n.º 2, do CPC, por despacho proferido em 12.09.2019.
3 – Na sequência do despacho acima mencionado, a autora juntou aos autos alegações por escrito.
4 – O tribunal de primeira instância ordenou a notificação da autora para juntar aos autos os registos relativos a todos os veículos identificados na petição inicial.
5 – Na sequência do despacho acima referido, a autora juntou certidões dos registos dos veículos com exceção do motociclo de matrícula 09-(…)-13.
6 – Em sede de sentença, o Tribunal de primeira instância julgou provados, por ausência de contestação, os factos constantes da petição inicial.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Nulidade da sentença
Neste domínio, e invocando o disposto no art. 615.º, n.º 1, do CPC, a apelante alega que «a sentença padece de vícios que são suscetíveis de gerarem a sua nulidade porque não foi validada a prova apresentada, nomeadamente a prova documental, tal como não foram ouvidas as testemunhas arroladas em face da não realização de julgamento».
Se bem entendemos as alegações de recurso, a apelante defende que a nulidade da sentença resulta do facto de o tribunal a quo não ter ponderado a prova documental junta aos autos, concretamente o contrato-promessa de compra e venda relativo à casa de morada de família e declarações de rendimentos da apelante e do seu companheiro de facto, e de não ter ordenado a produção de prova testemunhal que ela-apelante arrolou.
A apelante não invoca um vício da decisão sobre a matéria de facto, arguição que deve ser realizada nos termos do art. 640.º do CPC, mas uma nulidade da sentença por nela não ter sido atendida a prova documental e a prova testemunhal que foram por ela oferecidas. E invoca genericamente o n.º 1 do art. 615.º do CPC, não enquadrando em qualquer das alíneas daquele normativo a(s) nulidade(s) de sentença que invoca.
Liminarmente se dirá que os alegados “vícios” arguidos pela apelante não se enquadram em qualquer uma das previsões constantes do art. 615.º, n.º 1, do CPC.
Dispõe aquele normativo, sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença, que:
«É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
Ainda que, porventura, a apelante pretendesse enquadrar o vício arguido na alínea d), dir-se-á que para o efeito da nulidade de sentença ali prevista «relevam como questões as pretensões formuladas e as exceções deduzidas ou que sejam de conhecimento oficioso, umas e outras integradas pelos respetivos fundamentos, mais precisamente as causas de pedir e as causas excetivas» – Ac. TRL de 04.10.2011, processo n.º 107/2001.L1-7, relator Tomé Gomes, consultável em www.dgsi.pt. (itálico nosso).
Nessa medida, a ausência de ponderação de prova documental apresentada pela autora/recorrente não constitui, para aquele efeito, uma «questão», podendo, eventualmente, traduzir-se num erro de julgamento, a apreciar em sede de mérito da causa.
Quanto à não produção da prova testemunhal arrolada pela autora, na ação não foi realizada audiência de julgamento, arena para a produção da prova constituenda. Pelo que o tribunal não podia atender àquele meio probatório para fundamentar a sua convicção quanto aos factos provados. E não se realizou aquele ato processual apenas por força do regime processual vigente o qual, no art. 567.º, estatui que em caso de revelia operante consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e o processo é facultado para exame, pelo prazo de 10 dias, primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu (quando o houver), para alegarem por escrito, após o que é proferida sentença, julgando o juiz a causa conforme de direito.
A revelia diz-se operante quando produz efeitos quanto à composição da lide e inoperante quando a falta de contestação nada implica quanto à decisão da causa.
Como se disse, as rés não contestaram a ação. Também não ocorre qualquer uma das situações que, nos termos do disposto no art. 568.º do CPC, tornaria a revelia inoperante - nem a verificação de alguma das situações ali previstas foi invocada pela autora/apelante.
Assim, a prolação da sentença não tinha, in casu, de ser antecedida de audiência final.
Por conseguinte, não ocorreu qualquer infração processual que pudesse conduzir a um erro de julgamento já que a não realização da audiência final é uma decorrência da situação de revelia operante das rés.
*
Em face do exposto, e porque a sentença não padece da nulidade que lhe foi imputada pela apelante, improcede este segmento do recurso.

II.4.2.
O Direito
A apelante insurge-se contra a sentença recorrida por não ter sido reconhecido o seu direito de propriedade a metade dos bens que foram adquiridos durante os 36 anos em que ela e o seu companheiro viveram juntos, em situação de união de facto.
Defende a apelante que existem elementos nos autos que permitem demonstrar os factos que alegou relativos à propriedade dos bens, reconhecendo que «não pretendeu invocar a posse dos bens para dessa forma os adquirir por usucapião» (cfr. conclusão n.º 14 das alegações de recurso).
A recorrente coloca, pois, ênfase no ónus probatório a seu cargo – que entende ter cumprido –, afirmando que a prova documental por si apresentada é suficiente para que se possa concluir que ela é comproprietária, na proporção de metade, dos bens móveis e imóveis que identifica na petição inicial, na medida em que «os mesmos foram adquiridos com o produto do trabalho dela e do seu falecido companheiro». Ou seja, a apelante sustenta que a prova documental por si junta aos autos permitiria ao tribunal considerar que todos os bens que fazem parte da herança do seu falecido companheiro, com exceção do direito à herança dos pais e avós deste último, foram adquiridos com o produto do trabalho de ambos, o que, por sua vez, permitiria reconhecer o direito de propriedade dela sobre metade de tais bens, apesar de, simultaneamente, reconhecer que os bens imóveis e os bens móveis sujeitos a registo estavam todos registados em nome do seu falecido companheiro.
Ao passo que o tribunal a quo, tendo até julgado provado que a autora e o falecido trabalhavam na agricultura e na exploração pecuária e que os bens adquiridos ao longo da vida do casal, o foram com o produto do trabalho de ambos, julgou que «a apelante não alegou, em sede de petição inicial (logo não os poderá provar), os pertinentes factos essenciais que lhe permitiam adquirir o pretenso direito de compropriedade de que se arroga titular sobre os imóveis e móveis que aí identifica, nos termos gerais, isto é, mediante o funcionamento do instituto da usucapião» (sic).
Dito de outra forma, o tribunal a quo entendeu que a autora não cumpriu devidamente o (seu) ónus de alegação dos factos constitutivos do direito de propriedade que se arroga sobre os bens em questão na medida em que não alegou (consequentemente, não podia demonstrar) factos relativos a uma posse que permitisse a aquisição dos bens por usucapião.
Não é controvertido que a autora/apelante viveu em união de facto com (...) desde 1 de julho de 1981 e até ao dia 11 de junho de 2017, data do falecimento deste último, como foi julgado provado pelo tribunal a quo.
É consabido que a «união de facto» não é suscetível de, por si só, originar um património comum. Com efeito, embora a Lei n.º 7/2001, de 11.05 – que foi alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30.08 – tenha regulado a situação jurídica de duas pessoas que vivam em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos (cfr. art. 1.º), e tenha adotado medidas de proteção da união de facto, não a equiparou ao casamento e, por conseguinte, e ao contrário do que sucede no âmbito do casamento celebrado sob o regime da comunhão geral de bens ou da comunhão de adquiridos, na união de facto não existe um património comum dos membros daquela união, pese embora, a maior parte das vezes, os bens hajam sido adquiridos com dinheiro de ambos ou com o esforço de ambos.
Como é salientado por Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, 5.ª Edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 69: «Sabendo-se que vários países consagravam uma equiparação da união de facto registada e o casamento, a opção moderada do legislador português foi realmente uma escolha. O legislador terá ponderado que os interessados podem não querer uma regulação extensa da sua vida, desde que optaram por não celebrar um casamento; não deveriam ser introduzidos efeitos imperativos em áreas que podem ser regidas pelos seus membros – estes preferiram a união de facto, devem organizar-se privadamente como quiserem».
Desta forma, o regime português da união de facto continua a não ter normas designadamente sobre regime de bens, administração de patrimónios e efeitos sucessórios, não sendo legítimo, nestas áreas, estender à união de facto as normas referentes ao casamento.
Por conseguinte, uma vez cessada a união de facto, e porque aqui não vale o regime previsto nos arts. 1688.º[1] e 1689.º [2]do Código Civil, para proceder à partilha do património dos «unidos de facto» haverá que recorrer àquilo que haja sido acordado no contrato de coabitação, quando o houver, e, na falta deste, ao regime geral das relações obrigacionais e reais[3].
No caso sub judice, a autora alega que é comproprietária, na proporção de metade, de todos os bens que foram sendo adquiridos ao longo dos 36 anos que ela e (…) viveram juntos.
A compropriedade é definida no art. 1403.º, n.º 1 do Código Civil como a situação em que duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Neste caso, os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais embora possam ser quantitativamente diferentes, presumindo-se, porém, como quantitativamente iguais se o título constitutivo não referir o contrário (art. 1403.º, n.º 2).
A compropriedade, como direito de propriedade que é, pode ser constituída por negócio jurídico, por um facto jurídico não negocial, por sentença judicial ou por disposição da lei[4] (cfr. art. 1316.º do CC).
A compropriedade constitui-se por negócio jurídico sempre que seja atribuída por contrato ou testamento o direito de propriedade sobre uma coisa simultaneamente a vários titulares; constitui-se em resultado de um facto jurídico não negocial nas hipóteses da usucapião, ocupação, achamento por acessão e pode resultar diretamente da lei quando esta estabelece presunções de comunhão (vd. arts. 1358.º, n.º 1, 1359.º, n.º 2 e 1371.º, todos do CC).
In casu, a alegante alegou como facto constitutivo do efeito jurídico que pretende ver reconhecido, a saber, a constituição/aquisição de um direito de propriedade sobre metade dos bens que compreendem a herança do seu companheiro (com exceção do direito à herança dos pais e avós deste último), e relativamente a todos os bens imóveis, móveis sujeitos a registo e móveis não sujeitos a registo, tão só que todos os bens foram adquiridos com os proveitos do trabalho dela e do seu companheiro de facto na agricultura e na pecuária.
Está provado que todos os bens imóveis e móveis sujeitos a registo (prédios, veículos automóveis e ciclomotores) foram registados apenas em nome do companheiro da autora e resulta das escrituras de compra e venda juntas aos autos que é apenas o companheiro da autora que figura nas mesmas como comprador dos imóveis, sendo, por conseguinte, irrelevante que a autora surja como outorgante no contrato promessa de compra e venda relativo à casa de morada de família.
Não sendo a mera contribuição da apelante – seja monetária, seja em trabalho – para a aquisição dos referidos bens uma forma de constituição/aquisição de um direito de propriedade sobre os mesmos, deveria aquela ter alegado factos constitutivos de uma posse duradoura suscetível de gerar a aquisição do direito de (com)propriedade por via da usucapião.
Relativamente aos bens móveis não sujeitos a registo e à conta bancária aberta em 20.07.1992, também relativamente a tais bens a autora invocou como facto constitutivo do seu alegado direito de compropriedade sobre os mesmos apenas a circunstância de os mesmos terem sido adquiridos com o produto do trabalho dela e do falecido (…). O que, como referido supra, é insuficiente para sustentar a aquisição de um direito de propriedade sobre os mesmos.
Por todo o exposto, não merece censura a sentença do tribunal de primeira instância ao julgar improcedente o pedido da autora para ser declarada comproprietária dos bens móveis, imóveis e capitais, adquiridos na pendência da união de facto e o pedido de condenação das rés no reconhecimento desse direito com a subsequente obrigação de alterarem o modelo I do IS, onde consta a relação dos bens do de cujus.

Sumariando:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas porquanto a recorrente beneficia de apoio judiciário.
Notifique.
23 de abril de 2020
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato
__________________________________________________
[1] O art. 1688.º, sob a epígrafe Cessação de relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, estatui: «As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento, sem prejuízo das disposições deste Código relativas a alimentos; havendo separação judicial de pessoas e bens, é aplicável o disposto no artigo 1795.º-A.»
[2] O art. 1689.º, sob a epígrafe Partilha do casal. Pagamento de dívidas, estatui que: «1 – Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património. 2 – Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes. 3 – Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.»
[3] Como é sublinhado no Acórdão do STJ de 24.10.2017, processo n.º 3712/15.0T8GDM.P1.S1, relator Ana Paula Boularot, consultável em www.dgsi.pt: «[…] a união de facto não é suscetível de, só por si, originar um património comum. Isso pode até acontecer, mas por força do funcionamento dos institutos do direito comum, nomeadamente através do regime próprio da compropriedade, ou, eventualmente, no âmbito do conceito de uma sociedade de facto. Mas, para tal, haverão que ser alegados e demonstrados os factos correspondentes, não bastando apenas a referência à vivência comum e ao facto de ambos os elementos da união de facto contribuírem para os gastos diários» (itálicos nossos).
[4] Menezes Leitão, Direitos Reais, 2017, 6.ª edição, Almedina, p. 194.