Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS ANULAÇÃO DA DECISÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A obrigação de fundamentação das decisões judiciais tem a função de permitir um controlo interno (das partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes. II - A fundamentação visa ainda expor os motivos determinantes da decisão para a opinião pública, devendo o juiz demonstrar a consistência dos vários aspetos da decisão, que vão desde o apuramento da verdade dos factos na base das provas, até à correta interpretação e aplicação da norma jurídica aplicável. III - A Relação pode oficiosamente anular a decisão que omita integralmente a matéria de facto. (Sumário elaborado pelo relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 7114/15.0T8STB.1.E1 Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I – RELATÓRIO Através de requerimento apresentado em 31.10.2019, veio AA, na qualidade de progenitor da criança BB, nascida em ../../2015, instaurar o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra CC, alegando, em síntese apertada, que, por culpa da requerida, não tem acesso a ver, estar ou pernoitar com a filha, mostrando-se violado o acordo anteriormente fixado, pedindo que a requerida seja obrigada a cumprir o mesmo, bem como a realização das diligências necessárias para o cumprimento coercivo e condenar-se a requerida em multa até 20 UCs e em indemnização a favor da filha e do progenitor. Na conferência de pais realizada no dia 07.05.2024, foi proferido o seguinte despacho: «Tendo em consideração as declarações prestadas pela Menor BB, considera o Tribunal que é a menor quem se recusa a estar com o progenitor, ao que acresce que nos termos do relatório pericial relativo à progenitora, elaborado no "Apenso A", se conclui que não existe evidência que haja alienação parental da parte da mesma. Perante o exposto considero como não verificado o incumprimento. Fixo à ação o valor processual de € 30.000,01. Custas pelo Requerente. Registe e Notifique.» Inconformado, o requerente/progenitor apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem: «a) A Requerida (Recorrida) desde pelo menos há cinco anos a esta parte que age voluntária e conscientemente, escudando-se na alegada vontade da filha menor, que ao longo dos anos foi toldando a vontade da menor, oprimindo-a e construindo uma imagem errada do pai, ao ponto da menor declarar junto do perito que não queria estar com o pai, apesar de ao longo destes anos e dos vários apensos a Recorrida ter sido advertida - em sede das inúmeras conferências de pais – e ser essa justificação inidónea para legitimar o seu comportamento. b) Cinco anos na vida de uma criança de idade tão tenra é tempo a favor da Recorrida, para moldar a menor aos seus intentos, cujo acesso consegue vedar ao Recorrente, com a desculpa de ser a menor a não querer estar com o pai, contribuindo desse modo para o corte total de laços entre a menor e o progenitor alienado, aqui Recorrente, pelo que se entende que a Requerida incumpriu culposamente o regime de exercício de responsabilidades parentais antes fixado (art. 41º do R.G.P.T.C.). c) E face a isto e, salvo melhor entendimento, entende o Recorrente que a mui douta decisão do Tribunal a quo viola a norma constante do disposto no artigo 41.º do RGPTC, devendo ainda assim ter considerado verificado o incumprimento. d) Por outro lado, pese embora se possa até aceitar que numa regulação do exercício das responsabilidades parentais e conhecimento das questões a este respeitantes seja permitido ao julgador usar de liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, seja para coligir oficiosamente provas que repute essenciais às finalidades do processo ou para prescindir de actos ou de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção (art.ºs 12º do RGPTC e 986º do CPC) e, neste sentido, incompatíveis com o superior interesse da criança, que também se projeta no direito a uma decisão em tempo adequado e razoável, não se pode olvidar que o superior interesse da criança prevalece sobre quaisquer outros interesses que eventualmente estejam envolvidos ou mesmo em oposição (cf., designadamente, os art.ºs 3º, alínea c); 12º; 28º e 38º do RGPTC). e) Mesmo que o tribunal pudesse considerar as declarações da menor como opinião a ter em consideração, ao tribunal incumbe fazer uma análise crítica de prova, toda a prova, nomeadamente, apurar se tal manifestação de vontade decorre da vontade própria da menor, se é fundada em quaisquer atitudes do Recorrente ou da Recorrida, e se a sua consideração corresponde ao seu superior interesse, o que não foi feito nos autos. f) Uma única perícia baseada na vontade da menor não pode ser a base de justificação para afastar o incumprimento perpetrado pela Recorrida ao longo de anos. g) Decorre dos relatórios policiais, correspondência trocada entre progenitores, declarações dos Recorrente e Recorrida e relatórios do CAFAP presentes nos autos que era a Recorrida que impedia o exercício do direito de visitas, aliás, cabia-lhe a si enquanto progenitora, deixar que o outro progenitor estivesse também presente na vida da menor, explicando a esta e incentivando-a a estar com o pai. h) Face a tudo o que se passou neste e noutros apensos, esta decisão, mais não faz que premiar o infrator/incumpridor dos acordos de regulação das responsabilidades parentais. i) Colocar nas mãos de uma criança a decisão de não estar com o pai, restringe de forma inadmissível os direitos de visita do pai acabando até por prejudicar a própria criança que não tem a maturidade suficiente para decidir, sendo ainda a sentença omissa de fundamentação. j) É relevante para o normal e equilibrado desenvolvimento da menor, a manutenção dos contactos da mesma com o pai, nomeadamente em épocas festivas relevantes como é Natal, bem como em períodos de férias e se apenas com um relatório pericial assente na vontade da menor em não estar com o pai. k) Manter-se esta decisão sem fundamentação alguma, é premiar o infrator e inibir, sem processo judicial, o regime de visitas deste pai, o qual passará a ser apenas o obrigado ao pagamento dos encargos, pelo que nunca mais este pai vai conseguir reverter esta situação, ficando à mercê da boa vontade ou falta dela por parte da menor e da sua mãe, cujo acompanhamento psicológico é urgente, não sendo tal decisão adequada aos superiores interesses da menor. l) A Recorrida criou uma situação reiterada, grave, culposa e censurável ao longo dos anos que impediu o contacto / convívio da menor com o pai, sem que seja punida por isso. m) As “responsabilidades parentais” não são “um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objetivo primacial de proteção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral. n) Pelo que se requer que a decisão seja substituída por outra onde se declare verificado todos os vários incumprimentos das responsabilidades parentais que ao longo de cinco anos, pelo menos, se verificaram, imputando à Requerida (Recorrida) uma vez que da perícia realizada à menor verificou-se que a mesma necessita de apoio psicológico, pois que se o pai não convive com a menor, é com a Recorrida que aquela se apercebe e assimila toda a raiva que a sua progenitora demonstra da figura paterna, moldando assim a decisão da menor e contribuindo a sua atuação da Requerida (Recorrida) para esse efeito, por força da alienação parental que continua a promover. o) Destarte, atentas as motivações supra expostas, entende o RECORRENTE que a sentença sub judice deverá ser substituída, nos termos e pelos fundamentos que concretamente melhor se discriminaram. p) A decisão a quo não respeita o primado da continuidade das relações psicológica profundas - g) do artigo 4º do RGPTC. q) Com esta decisão inexiste qualquer incumprimento desde que fundamentado na vontade de uma menor que carece de apoio psicológico que não lhe é facultado pela Progenitora segundo as próprias orientações judiciais, ou seja, informando o pai das datas das consultas para que o mesmo pudesse acompanhar. r) Acresce ainda ter a sentença recorrida desrespeitado o dever de cuidada fundamentação, e de decisão segundo critérios de oportunidade e de conveniência (e não de legalidade estrita), conforme é próprio de um processo de jurisdição voluntária. s) A sentença sob censura, omite, quer o dever “genérico” de fundamentação das decisões quer a “especial” obrigação de cuidada fundamentação com recurso a todos os elementos de que pode dispor, - nº 1 do artigo 21º do RGPTC - e que deriva direta e necessariamente da faculdade (e responsabilidade) de que dispõe o Tribunal de, com preterição da legalidade estrita, decidir segundo critérios de oportunidade e conveniência - nº 1 do art. 987º do Código de Processo Civil ex vi art. art. 12º do RGPTC. t) Incumprindo assim, as prescrições do artigo 205º, n.º 1, da C.R.P. e 607º, n.º 2, do C.P.C. u) Fazendo uma incorreta e omissa operação logico subjuntiva dos factos ao direito, não dando a conhecer ao Recorrente todas as razões pelas quais o tribunal decidiu como decidiu e não de outra forma, padecendo a decisão de nulidade conforme o disposto no Art. 615º, nº 1, al. b) do C.P.C. v) O art.º 607º, n.ºs 3 e 4 do C. P. Civil impõe ao juiz a discriminação dos factos provados, a interpretação e aplicação das normas jurídicas para concluir pela decisão, o que não aconteceu nesta decisão sentença, pelo que urge a sua revogação. Por tudo o exposto e por mais que V. Exas. Decerto suprirão, deverá a presente Apelação ser declarada procedente e, em consequência, revogada a sentença que julgou improcedente o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, condenando a Recorrida nos precisos termos.» A requerida e o Ministério Público apresentaram contra-alegações, defendendo a manutenção da decisão recorrida. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se a sentença recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS A factualidade a considerar para a decisão do recurso é a que consta do relatório que antecede. O DIREITO É sabido que a generalidade das decisões, têm de ser fundamentadas de facto e de direito. Trata-se de um importante corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais. A garantia de que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas tem, entre nós, assento constitucional (artigo 205º, nº 1, da CRP), está configurada nos artigos 154º e 615º, nº 1, alínea b), do CPC e consta do artigo 6º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia de um processo equitativo (artigo 20º, nº 4, da CRP). Costuma dizer-se que esta obrigação de fundamentação está orientada para permitir um controlo interno (partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes. Existe, porém, uma outra razão, tão ou mais importante do que a referida. Como refere Michele Taruffo[1] «na motivação da sentença o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as «boas razões» que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para a opinião pública. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial». Ou dito de outro modo: «a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão»[2]. In casu, a decisão recorrida limitou-se tão-só a afirmar que, em face da declarações prestadas pela criança BB, «considera o Tribunal que é a menor quem se recusa a estar com o progenitor, ao que acresce que nos termos do relatório pericial relativo à progenitora, elaborado no "Apenso A", se conclui que não existe evidência que haja alienação parental da parte da mesma» A Sr.ª Juíza a quo não discriminou, pura e simplesmente, os factos que a levaram a concluir pela não verificação do incumprimento por parte da requerida, limitando-se a referir as declarações prestadas pela BB, sem transcrever uma única passagem dessas declarações, e a remeter par um relatório do apenso A, sem discriminação do acervo factual que lhe permitisse concluir no sentido em que o fez. Ora, se a Relação pode, nos termos do disposto no artigo 662, nº 2, alínea c), do CPC, oficiosamente anular a decisão de 1ª instância quando repute deficiente, obscura e contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, também se afigura que o pode fazer quando tal matéria seja completamente omissa como sucede no caso em apreço[3]. E nem se argumente que do processo constam todos os elementos probatórios que até permitiriam a reapreciação da matéria de facto, pelo que sempre este Tribunal se podia substituir à 1ª instância nessa apreciação nos termos do artigo 665º, nº 1, do CPC. É que para haver uma reapreciação tem de haver uma primeira apreciação sobre a matéria em causa, a qual no caso não se mostra levada a cabo. O que o tribunal a quo se limitou a fazer foi uma muito sucinta análise de mérito, sem discriminar devidamente os factos pertinentes e a respetiva motivação[4], factos esses nos quais deveria ter assentado a decisão de considerar não verificado o incidente suscitado nos autos. Omitiu-se, em termos suficientes e adequados a explicitação dos factos relevantes, o que inviabiliza o controle interno da decisão, a reponderação a esse respeito do juízo de facto. Por conseguinte, o recurso merece provimento. Vencida no recurso, suportará a progenitora/recorrida as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em anular a decisão recorrida, devendo a 1ª instância emitir decisão com cabal discriminação dos factos que considere provados e não provados, e respetiva motivação. Custas pela recorrida. * __________________________________________________Évora, 26 de setembro de 2024 Manuel Bargado (Relator) Francisco Xavier Maria João Sousa e Faro (documento com assinaturas eletrónicas) [1] In Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009, p. 53, citado no acórdão da Relação de Lisboa de 20.02.2014, proc. 496/09.5TBPNI.L1-8, in www.dgsi.pt. [2] Ibidem, pp. 36-37. [3] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, p. 137. Neste sentido, inter alia, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 01.7.1999, CJ, Ano XXIV, Tomo IV, pp. 90-91, e de 21.05.2009, proc. 6425/2008-6, in www.dgsi.pt, e desta Relação, de 17.03.2016, proc. 2173/13.3TBEVR-O.E1, não publicado. [4] Veja-se, a propósito, a alínea C) das conclusões da resposta ao recurso da recorrida, quando afirma que «a decisão não dependeu única e simplesmente do Relatório pericial, mas das declarações da menor em tribunal e dos restantes meios probatórios (muitos) apresentados em tribunal, nomeadamente, diligências processuais, médico-legais (…)». |