Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/04.5GBVVC-A.E1
Relator: ANTÓNIO JOSÉ ALVES DUARTE
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
ALTERAÇÃO DAS CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Na modificação dos deveres condicionantes da suspensão da execução da pena de prisão o Tribunal deverá impor deveres em que a possibilidade de cumprimento pelo condenado seja viável, isto é, que sejam material e pessoalmente possíveis de satisfação.

2. Dispondo o condenado de um rendimento líquido mensal de pouco mais de €100, não é razoável impor-lhe, como dever subordinante da suspensão da execução da pena de prisão em que fora condenado, pagar à ofendida a quantia de € 750 no prazo de um ano.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora (2.ª Secção Criminal):

1. Relatório.

1. M. foi condenado pela prática de um crime de maus tratos, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses, subordinada ao dever do arguido pagar à ofendida M.L., a quantia arbitrada a título de indemnização civil, no valor de € 1486,47, acrescida de juros legais à taxa de 4%, desde a data de notificação até integral pagamento, a pagar em duas tranches, sendo, a primeira, na quantia de metade e no prazo de 6 meses, a contar do trânsito em julgado da sentença e, a segunda, no montante do remanescente e no prazo de um ano a contar igualmente da data do trânsito. Porém, decorrido o prazo para pagamento, o Arguido não pagou a primeira nem a segunda tranche, alegando carecer de falta de meios económicos para satisfazer a condição.

Do certificado do registo criminal do Arguido não consta qualquer condenação por prática de crime no período da suspensão.

Precedendo promoção da Exm.ª Sr.ª Procuradora-Adjunta junto do Tribunal recorrido, o Arguido foi ouvido acerca da substituição da injunção imposta por trabalho a favor da comunidade e, nesse caso, que espécie poderia desempenhar de acordo com as suas limitações físicas, tendo ele declarado concordar com tal substituição e que poderia proceder ao transporte de doentes em cadeira de rodas em instituições hospitalares ou de solidariedade social, empenhar o seu esforço na condução de veículos ao serviço destas últimas, auxiliar no carregamento de material de escritório tal como resmas de folhas, pequenos faxes e impressoras, computadores.

Na sequência disso e de novo dando provimento a promoção da Exm.ª Sr.ª Procuradora-Adjunta, a Mm.ª Juíza proferiu douto despacho, no qual decidiu alterar a condição imposta ao arguido, determinando que a suspensão da execução da pena de prisão subordinada:

a) ao dever do arguido pagar à ofendida a quantia de € 750,00;
b) cumprir 150 horas de trabalho a favor da comunidade.

Por outro lado, nos termos da alínea d) do mesmo artigo, decidiu prorrogar o período de suspensão da pena aplicada ao arguido, pelo período de um ano.

2. Inconformado com aquele despacho, dele recorreu o Arguido, pugnando pela alteração, rematando a motivação com as seguintes conclusões:

A) O recorrente apresentou um requerimento em 07 de Outubro de 2008, no qual, solicitou a alteração dos deveres inicialmente impostos na douta sentença transitada em julgado ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 51.º do Código Penal;

B) Fundamentou o seu requerimento na sua situação económica e financeira em virtude de ser reformado por invalidez auferindo um subsídio social por incapacidade em montante de cerca de € 256,00 (duzentos e cinquenta e seis euros), do qual, é deduzida a quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) para pagamento da pensão de alimentos dos seus dois filhos menores de idade;

C) Ou seja, o recorrente e condenado sobrevive com enormes dificuldades por o remanescente do seu rendimento se subsumir a um montante de pouco mais de € 100,00 (cem euros) com o qual, provém à sua alimentação, pagamentos mensais das facturas da água, electricidade e medicamentos, necessitando do auxílio de terceiros;

D) Não tendo como proceder ao pagamento da quantia primeiramente imposta na sentença proferida aquando da sua condenação, daí que viesse requerer a alteração desse dever para trabalho a favor da comunidade;

E) Para tanto apresentou prova documental sobre a sua situação financeira, económica e profissional mediante a qual, o Tribunal a quo deveria tomar posição por ser totalmente incomportável para o condenado dar qualquer quantitativo que fosse à ofendida;

F) Foi proferido o despacho de folhas 264 e seguintes que estipulou a continuidade de pagamento de uma quantia àquela no valor de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), o cumprimento de cento e cinquenta horas de serviço comunitário e a prorrogação da suspensão da pena de prisão por um período de um ano;

G) Sucede, porém, que tal despacho viola o disposto no artigo 13.º/1 da Constituição da República Portuguesa, porquanto, como bem frisa, atentos os factos alegados pelo recorrente, é notória a sua frágil situação económica, devendo ser alterados os deveres inicialmente ordenados;

H) No entanto, se, por um lado, deixa clara essa intenção, por outro lado, continua a ordenar a imposição de uma quantia com a qual, não poderá ressarcir a ora lesada por insuficiência económica;

I) Viola o princípio da igualdade pela circunstância de incumprido tal dever como é patente segundo a documentação junta, sobre o condenado recairá a possibilidade de cumprir um período efectivo de prisão por não ter dinheiro para pagar à mesma ofendida;
J) Ao passo que, se tratando de um agente com poder económico suficiente, facilmente, dará cumprimento às imposições do Tribunal, enquanto que o ora recorrente o não poderá;

K) Por isso, em conformidade com a máxima constante do referido princípio, ninguém poderá prejudicado em função da sua situação económica e profissional, isto, é, por ser pobre e não ter dinheiro;

L) Se o recorrente requereu ao Tribunal a quo a alteração explicando e fornecendo elementos probatórios suficientes da situação sob a qual, se encontrava e se encontra, então, ao se prontificar para prestação de trabalho comunitário estava a informar de que, com toda a probabilidade, não cumprirá o dever de pagamento a que se encontrava adstrito;

M) Pelo que, como não tem dinheiro, o único recurso que tem para fornecer é a sua força de trabalho;

N) Até o artigo 58.º, n.º 3 do Código Penal que prevê a possibilidade de o condenado poder cumprir entre mais de trinta e seis horas a trezentas e oitenta horas de trabalho a favor da comunidade, foi violado atendendo a que, facultando a possibilidade das referidas horas, deveria o Tribunal a quo ter sopesado cuidadosamente e, em consequência, comutado na totalidade o dever em horas de tal serviço;

O) Finalmente, o mesmo despacho de folhas 264 e seguintes não fundamentou de facto e de direito a modificação de cada um dos deveres impostos ex novo em contradição com o disposto no n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal por aludir à obrigação de todos os despachos decisórios deverem ser fundamentados;

P) Ao que pretende que seja alterado o mencionado despacho na parte em que impõe o dever de proceder ao pagamento da quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) passando a cumprir horas de serviço a favor da comunidade.

3. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência.

4. Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta secundou a fundamentação expendida na resposta do Ministério Público junto do Tribunal a quo.

5. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417°, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do Arguido.

7. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.

II - Fundamentação.

1. A decisão recorrida tem o seguinte conteúdo:

Dispõe o art.º 55.º do Código Penal que, «Se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal:
a) Fazer uma solene advertência;
b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de i ano nem de forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do art.º 50.º».

Atentos os factos alegados pelo arguido, bem como a sua situação sócio económica e familiar, o tribunal, ao abrigo da al. e) do mencionado preceito, o tribunal decide alterar a condição imposta ao arguido, determinando que a suspensão da execução da pena de prisão subordinada:

a) ao dever do arguido pagar à ofendida a quantia de € 750,00;
b) cumprir 150 horas de trabalho a favor da comunidade.

Por outro lado, nos termos da alínea d) do mesmo artigo, o tribunal decide prorrogar o período de suspensão da pena aplicada ao arguido, pelo período de um ano.

Para o efeito, Solicite à DGRS a elaboração de relatório, juntando, para melhor esclarecimento, cópia da sentença, bem como dos requerimentos do arguido (fls. 253 e sg. e 262) e do presente despacho.

Notifique.

2. O Arguido é reformado por invalidez, auferindo a esse título reforma no valor de € 256,00 (duzentos e cinquenta e seis euros).

3. Da qual é descontado o valor correspondente à pensão de alimentos a pagar aos seus filhos menores de idade de € 150,00 (cento e cinquenta euros).

2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.

A abrir diremos que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado. [1] Daí que a única questão a apreciar neste recurso seja a seguinte:

Dispondo o Arguido / Recorrente de um rendimento líquido mensal de € 100, é razoável impor-lhe, como deveres subordinantes da suspensão da execução da pena de prisão em que fora condenado, além de prestar 150 horas de trabalho a favor da comunidade pagar à Ofendida a quantia de € 750 no prazo de um ano?

O caso que nos ocupa resulta da condenação do Arguido / Recorrente na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses, subordinada ao dever do arguido pagar à ofendida M.L., a quantia arbitrada a título de indemnização civil, no valor de € 1486,47, acrescida de juros legais à taxa de 4%, desde a data de notificação até integral pagamento, a pagar em duas tranches, sendo, a primeira, na quantia de metade e no prazo de 6 meses, a contar do trânsito em julgado da sentença e, a segunda, no montante do remanescente e no prazo de um ano a contar igualmente da data do trânsito.

Como sabemos, é lícito ao Tribunal modificar os deveres até ao termo do período de suspensão sempre que ocorram circunstâncias relevantes supervenientes ou que só posteriormente tiver conhecimento [2] e foi isso que ocorreu no processo.
Também é conhecido que os deveres a impor pelo Tribunal ao condenado como pressuposto da suspensão da execução da pena «… não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.» [3] E se assim é para o estabelecimento ab initio desses deveres, o mesmo se passa, por identidade de razão, para o caso da sua modificação. Na verdade, não faria qualquer sentido a lei supor que o Tribunal tivesse que impor deveres razoavelmente exigíveis pelo condenado para depois, quando confirmado que afinal este os não podia cumprir, as pudesse alterar mas num sentido ainda menos exequíveis por banda dele. Mas já se compreende, naturalmente, que o ajustamento dos deveres seja no sentido de permitir o seu efectivo cumprimento, assim se ajustando a decisão à alteração ou ao conhecimento posterior das reais condições do condenado. [4]
Sendo as coisas assim, «não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres. Como pondera o Prof. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, página. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.» [5] . Ou, conforme já salientou o Supremo Tribunal de Justiça, «a natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão de execução da pena. Por isso, os deveres ou condições a estabelecer na suspensão da execução da pena devem ser adequados, material e pessoalmente possíveis, num plano de reordenação para os valores do direito que previna, no essencial, a reincidência, ou que possa contribuir para a reparação das consequências do crime.» [6] . Trata-se de entendimento repetido, inter alia, pela Relação de Coimbra, quando decidiu que «a alínea a) do n.º 1 do art.º 51.º do Código Penal consagra o princípio de que o tribunal ao fixar o pagamento da indemnização devida ao lesado se deve nortear em função das concretas possibilidades/capacidades económico-financeiras do condenado, que devem ser aferidas a partir daquilo que o condenado puder de acordo com as suas forças...» [7] .

Ora, salvaguardando o devido respeito pela tese que vem fazendo caminho no processo, não podemos de modo algum concordar que, dispondo o Arguido / Recorrente de um rendimento líquido mensal de € 100, é razoável impor-lhe, como dever subordinante da suspensão da execução da pena de prisão em que fora condenado, pagar à Ofendida a quantia de € 750 no prazo de um ano.

Na verdade, dificilmente se admite que se possa alimentar condignamente, mesmo prescindindo de toda e qualquer extravagância que exceda o limiar básico da sobrevivência, quanto mais amealhar para pagar à Ofendida, ao fim de um ano, [8] a quantia de € 750. Como qualquer outra, devemos deixar claro.

Daí que se deva dar provimento ao recurso e revogar-se, na parte em dissídio, o douto despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que fixe ao Arguido / Recorrente um dever compatível com as suas possibilidades económicas [9] e físicas, [10] podendo por passar, eventualmente, por estender o número de horas de trabalho a favor da comunidade a prestar por ele, esse sim um dever sabiamente encontrado pela Mm.ª Juíza a quo como subordinante [11] da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora infligida.

III - Decisão.

Nestes termos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o segmento do despacho recorrido, determinando-se que a Mm.ª Juíza a quo o substitua por outro que fixe ao Arguido / Recorrente a prestação de um dever subordinante da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora infligida compatível com as suas possibilidades económicas e físicas.
Sem custas.
*
Évora, 25-03-2010.

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(António José Alves Duarte - Relator)

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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz - Adjunta)




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[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[2] Art.º 51.º, n.º 3 do Código Penal.
[3] Art.º 51.º, n.º 2 do Código Penal.
[4] O que permite afirmar que o caso julgado assim formado fica sujeito a uma verdadeira cláusula rebus sic stantibus, como foi referido pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, página 196 e por Leal-Henriques e Simas Santos, em Código Penal, 2.ª Edição, 1.ª Reimpressão, página 465 e decidido no Acórdão da Relação de Coimbra, de 16-01-2008, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cons.º Maia Gonçalves, no Código Penal, Anotado e Comentado - Legislação Complementar, 18.ª edição, página 221.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-01-2005, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 78, página 57.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra, de 20-09-2000, na Colectânea de Jurisprudência, ano de 2000, tomo IV, página 51.
[8] Embora o douto despacho recorrido não tenha expressamente dito que era esse o prazo, implicitamente deverá considerar-se que assim é, pois que por idêntico prazo se prorrogou a suspensão da execução da pena.
[9] Que, como vimos, não são nenhumas.
[10] Também elas limitadas, como se infere da circunstância de ser reformado por invalidez.
[11] Infelizmente só em parte.