Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ELISABETE VALENTE | ||
Descritores: | NULIDADES DA DECISÃO CONTRADITÓRIO LEGITIMIDADE PROCESSUAL | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 09/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – Se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso. II – O artigo 615.º, n.º 4, do CPC deve ser interpretado no sentido de que, mesmo que seja admissível recurso, se as partes não quiserem recorrer, poderão sempre arguir a nulidade perante o tribunal recorrido. III – Há legitimidade passiva se de acordo com a PI os factos geradores do dever de indemnizar decorrentes do incumprimento contratual são imputados pessoalmente a todos os Réus. (Sumário da Relatora) | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora: 1 – Relatório. «A..., Sa» intentou acção contra AA, BB e mulher, CC, DD e marido, EE, FF e marido, GG e formula contra esses réus os seguintes pedidos de condenação a: “a) Reconhecerem que o contrato promessa ajuizado se tornou impossível de cumprir por eles, por causa subsequente e da sua exclusiva responsabilidade, por terem transmitido para terceiro a título definitivo o prédio que era objeto desse contrato promessa e esse terceiro não poder ser compelido a cumpri-lo; b) Reconhecerem que a autora lhes pagou o preço integral do negócio projetado, no total de € 349.278,74, pelo que devem ser condenados a c) pagarem-lhes o dobro da quantia entregue pela autora que tem natureza de sinal, ou seja, o valor de € 698.557,48, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento; ou, subsidiariamente, e quando assim se não entenda: d) Reconhecerem que o contrato promessa ajuizado é nulo por impossibilidade originária do seu objeto, uma vez que não era, à data da celebração nem hoje, legalmente possível ser deferido o destaque da parcela de terreno prometida vender para construção de um prédio destinado a fins comerciais ou industriais, conforme previsto no contrato promessa, e, por isso, e) a pagaram-lhe a quantia por ela autora entregue, de € 349.278,74, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento ou, quando nem isso se entenda, e também subsidiariamente f) reconhecerem que, tendo recebido integralmente o preço convencionado no contrato e nada tendo transmitido a autora em contrapartida, enriqueceram sem causa justificativa à custa da mesma autora, na medida da quantia recebida, pelo que g) devem ser condenados a devolverem à autora o preço por esta pago, no total de € 349.278,74. “ Para formular esses pedidos, a autora alegou, e provou desde logo documentalmente, em parte, as seguintes causas de pedir: 1) Ter celebrado com HH, entretanto falecido, e mulher AA, um contrato promessa de compra e venda de um prédio rústico situado no concelho ..., que não foi cumprido até hoje; 2) Terem integralmente pago o preço convencionado, matéria que provaram através da junção de dois documentos (documentos n.ºs 6 e 12 juntos com a petição inicial); 3) Ter, entretanto, ocorrido o falecimento do referido HH, a quem sucederam como únicos e universais herdeiros seus filhos os réus BB, DD e FF, todos casados no regime de comunhão de adquiridos; 4) Terem todos os réus recusado o cumprimento do contrato promessa, após o falecimento desse HH; e 5) Terem todos os réus, maridos e mulheres, vendido a um terceiro o prédio prometido vender à autora, através de escritura junta aos autos, de 24 de Fevereiro de 2021, o que tornou impossível em definitivo o cumprimento do contrato promessa, gerando responsabilidade civil indemnizatória. Na contestação apresentada, os réus alegaram a ilegitimidade dos cônjuges dos filhos do falecido promitente vendedor HH, por não serem herdeiros deste. Na sequência da notificação do despacho saneador vieram BB e Outros, RR na ação acima identificada em que é A. A..., SA, arguir a nulidade do Despacho Saneador por omissão de pronúncia, alegando o seguinte: «…Na sua contestação os RR invocaram expressamente várias exceções, que constaram do pedido, nos termos seguintes: a) Serem absolvidos da instância, por exceção do caso julgado; Ou, quando assim se não entenda, b) Serem absolvidos da instância, por ilegitimidade da A; Ou, quando assim se não entenda, c) Serem absolvidos da instância, por prescrição do direito; Ou, quando assim se não entenda, d) Serem os RR CC, EE e GG, absolvidos da instância, por ilegitimidade”; Porém, 3. º Sem prejuízo do que mais adiante se dirá sobre o caso julgado, o despacho saneador é, salvo melhor opinião, omisso quanto às alegadas exceções sobre (i) a ilegitimidade da A, (ii) a prescrição do direito e (iii) a ilegitimidade dos RR CC, EE e GG, sendo que a primeira (i) e a terceira (iii) conduziriam à absolvição da instância e a segunda (ii) à absolvição do pedido e não da instância, como por manifesto lapso se pediu»; Foi proferido o seguinte despacho (recorrido): «(…) Apreciando o requerido, diremos que não é preciso proceder a especial análise para se comprovar que efetivamente existe razão aos réus e que, por lamentável lapso de que nos penitenciamos, se omitiu a pronúncia quanto a várias das exceções invocadas em sede de contestação. (…) No que concerne às exceções de ilegitimidade, e começando pela ilegitimidade da A. surge esta invocada com dois fundamentos. Por um lado, o fundamento que radica em ter ocorrido uma cessão de créditos, mediante a qual a demandante teria cedido o seu crédito a terceiro, conforme consta do documento 8 da contestação. O outro fundamento de ilegitimidade que é apontado à posição da demandante tem a ver com ser-lhe imputável o incumprimento do contrato promessa em questão nos autos, não lhe cabendo legitimidade para imputar assim o cumprimento à parte contrária. Em ambos os casos, entende-se que aquilo que deve ser tido em conta é o disposto no n.º 3 do artigo 30.º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte: Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Assim, a circunstância de poder vir a ser imputável à demandante o incumprimento da relação contratual estabelecida é matéria que tem essencialmente a ver com o fundo da causa. Do mesmo modo, sem prejuízo de podermos aceitar que se indicia, de acordo com o documento 8 da contestação, que virá a provar-se, em sede de discussão e julgamento, a existência de referida cessão de créditos, sempre se dirá que, do modo como a petição inicial se encontra alegada e a relação material controvertida ali é configurada pela demandante, os réus são parte legítima, podendo, simplesmente, vir a ser a final absolvidos do pedido. Na verdade, se os réus não contestassem, com toda a probabilidade seriam condenados no pedido, posto que o tribunal não teria possibilidade de aferir dos elementos de facto e de prova que, entretanto, os réus carrearam para o processo. Nessa conformidade, e assim sendo, tendo em conta o modo como a demandante configurou relação material controvertida na sua petição inicial, a mesma é parte legítima, pelo que se julga improcedente esta exceção. No que respeita à legitimidade dos réus, que estarão em juízo, apenas por serem cônjuges HH dos herdeiros do falecido HH, sem prejuízo de alguma pontual intervenção de algum dos mesmos nas negociações referidas na petição inicial em tempo recente, posterior à instauração de ação a que ambas as partes se referem no presente processo e que foi julgada improcedente por decisão transitada em julgado, concorda-se com os réus, no sentido de que, de acordo com o artigo 1693.º do Código Civil a dívida em causa nos autos não responsabiliza os referidos réus, posto que os mesmos não são herdeiros do referido HH. Como tal, não lhes cabe estar em juízo para eventualmente responder pela dívida em questão. Neste aspeto em particular, entende-se verificar-se ilegitimidade passiva, pelo que se julgam parte ilegítima os réus CC, EE e GG e, nos termos do artigo 278.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, absolvem-se os mesmos da instância. Custas, nesta parte, pela demandante.» Inconformada com tal decisão a A. veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição): «1ª A autora, na presente acção, demandou como réus os herdeiros de HH – que falecera, e com sua mulher, também demandada, lhe havia prometido vender determinado prédio – conjuntamente com os respetivos cônjuges, com quem são casados no regime de comunhão de adquiridos, pedindo a sua condenação a reconhecerem que todos conjuntamente, e a viúva do decesso, haviam tornado impossível o cumprimento do contrato promessa, por terem transmitido o bem prometido vender a terceiro, e a pagarem-lhe as indemnizações respetivas, designadamente a devolver-lhe o preço por si integralmente pago, em dobro, ou, subsidiariamente, em singelo. 2ª - Na contestação apresentada, os réus alegaram a ilegitimidade dos cônjuges dos filhos do falecido promitente vendedor, com o argumento de que a questão respeitava apenas a esses herdeiros e não aos seus cônjuges. 3ª - Tendo sido atribuído à acção o valor de € 698.557,48, superior à alçada do tribunal de primeira instância, foi produzido o despacho saneador, no qual o juiz do processo não apreciou a eventual verificação dessa ilegitimidade, o que levou os réus a apresentarem um requerimento arguindo a nulidade desse despacho por omissão de pronúncia e pedindo que o tribunal decidisse as invocadas exceções. 4ª - Pronunciando-se sobre esse requerimento, o despacho recorrido reconheceu a existência da apontada nulidade, sustentando que os cônjuges dos herdeiros do falecido HH estão em juízo apenas por serem cônjuges desses herdeiros, pelo que de acordo com o artigo 1693.º do CC, a dívida em causa não os responsabiliza por não serem herdeiros, entendendo, em consequência, que se verificava a ilegitimidade passiva dos réus CC, EE e GG, que foram absolvidos da instância, decisão essa de que, por manifestamente inadmissível, se leva o presente recurso. 5ª – Com efeito: a) Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 4, do CPC e porque a causa tem valor superior à alçada do tribunal chamado a decidir, as nulidades em causa só podiam ser arguidas em recurso, pelo que a decisão foi produzida por órgão incompetente, não sendo, pois, admissível. b) O tribunal invocou, para decidir, o disposto no artigo 1693.º, n.º 1, do CC, em cujos termos as dívidas que onerem doações, heranças ou legados são da exclusiva responsabilidade do cônjuge aceitante, mas, ainda que essa norma fosse aplicável, ela teria de ser conjugada com a do n.º 2 do 1694.º, pois esta prescreve que as dívidas em causa serão comuns se tiverem como causa a percepção dos respectivos rendimentos e estes deverem ser considerados comuns, por força do regime aplicável, matéria que nem sequer foi alegada, pelo que o tribunal não tinha elementos para julgar aplicável o disposto no referido n.º 1 do artigo 1693.º. c) O tribunal invocou, para decidir, o disposto no artigo 1693.º n.º 1, do CC, em cujos termos as dívidas que onerem doações, heranças ou legados são da exclusiva responsabilidade do cônjuge aceitante, mas, ainda que essa norma fosse aplicável, ela teria de ser conjugada com a do n.º 2 do 1694.º, pois esta prescreve que as dívidas em causa serão comuns se tiverem como causa a percepção dos respectivos rendimentos e estes deverem ser considerados comuns, por força do regime aplicável, matéria que nem sequer foi alegada, pelo que o tribunal não tinha elementos para julgar aplicável o disposto no referido n.º 1 do artigo 1693.º. d) Não admitindo o processo senão os dois articulados apresentados pelas partes, se o juiz da primeira instância fosse competente para decidir, teria de previa e obrigatoriamente, para respeitar o contraditório, ouvir a autora (artigos 574.º, 578.º, 579.º e 587.º do CPC) o que não foi observado. e) Os cônjuges dos herdeiros do falecido promitente vendedor, porque casados, como demonstra a escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos, segundo o regime da comunhão de adquiridos, teriam necessariamente de ser demandados em obediência ao disposto no artigo 34.º, n.º 1, do CPC, pelo menos porque, nos termos do artigo 1682.º, alínea a), do CC, teriam sempre de prestar o seu consentimento e pelo menos enquanto tais, pelo que são necessariamente partes legítimas. f) Esses cônjuges não foram demandados apenas por serem casados com os herdeiros de HH, mas por actos próprios deles, uma vez que foram eles quem, conjuntamente com os herdeiros, vendeu o prédio em questão a terceiros, tornando impossível o cumprimento do contrato, e têm de ser responsabilizados por essa decisão, conjuntamente com os cônjuges herdeiros. Nestes termos e nos melhores de direito, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que indefira o requerimento apresentado, ou, quando assim se entender, julgue partes legítimas os réus demandados e todos eles, isto é, incluindo os réus CC, EE e GG, para se fazer JUSTIÇA!» Não há contra-alegações. Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir. Os factos relevantes constam deste relatório. 2 – Objecto do recurso. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso: Questão Prévia – Saber se é possível conhecer neste recurso da alegada “incompetência” do tribunal a quo para proferir a decisão recorrida. 1ª Questão – (Em caso afirmativo) Saber se há tal incompetência do tribunal a quo para a proferir a decisão recorrida (nulidade). 2ª Questão – (Em caso negativo) Saber se houve violação do contraditório (nulidade). 3ª Questão – (Em caso negativo) Saber se os cônjuges dos herdeiros devem figurar como RR na acção. 3 - Análise do recurso. Questão Prévia – Saber se é possível conhecer neste recurso da alegada incompetência do tribunal a quo para proferir a decisão recorrida. Perante este recurso coloca-se, desde logo, previamente, a interrogação sobre a escolha do recurso (e não de reclamação), por estar em causa a invocação de nulidade da decisão. Cremos que, o facto de a nulidade processual coincidir/ corresponder à própria decisão é legítimo conhecer deste recurso, não se exigindo uma reclamação perante o juiz que proferiu tal decisão. Porquê? Porque a recorrente invoca a nulidade da decisão por “incompetência”, ou seja, alega que a decisão não podia ter sido proferida e isso corresponde à alegação de uma nulidade processual. Mas uma nulidade processual especial por corresponder à prática de uma acto não admissível, sendo assim a decisão o próprio acto - vício. (Como sabemos, as nulidades processuais derivam de actos ou omissões que foram praticados antes de ser proferida sentença, traduzindo-se em desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido). Sendo a regra a de que as nulidades, constituindo anomalia do processo, devem ser suscitadas e conhecidas no Tribunal onde ocorreram e, discordando-se do despacho que as conhecer, poderá ele ser impugnado através de recurso, tal regra não faz sentido se o vicio coincide com a decisão, situação em que faz sentido recorrer (no fundo a nulidade está indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial). Assim se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso. É o caso dos autos, pois à própria decisão em causa subjaz o juízo de competência para o efeito. Como refere Miguel Teixeira de Sousa cf. Blog do IPPC, 28/01/2019 Jurisprudência2018(163),disponívelemhttps://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-63.html. (…) são possíveis três situações bastante distintas: -- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial; -- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial; -- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais. (…) No primeiro caso, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. […]» Ora é este o caso dos autos, a nulidade processual coincide/ corresponde à própria decisão o que legitima o conhecimento do recurso, não se exigindo uma reclamação. Importa, pois, analisar se efectivamente a decisão recorrida é nula. 1ª Questão – Saber se há “incompetência” do tribunal a quo para a proferir a decisão recorrida. A recorrente defende que, o requerimento em causa (base da decisão recorrida) , que veio arguir a nulidade por omissão de pronúncia do despacho saneador a respeito da excepção da ilegitimidade, é manifestamente inadmissível, por violar o disposto no artigo 615.º, n.º 4, do CPC, que impõe que, as nulidades em causa só possam ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença, se esta não admitir recurso ordinário, pois, a admitir, só em recurso as mesmas podem ser julgadas e já que a causa tem valor superior à alçada da primeira instância, é passível de recurso, o que significa que esta questão só podia ser decidida em recurso, sendo, em consequência, a decisão eivada do vício de “incompetência”. Vejamos: Perante a reclamação sobre a alegada omissão de pronúncia sobre o saneador, o Tribunal da 1ª instância, pronunciou-se sobre a mesma. Coloca -se a questão de saber se podia ter feito ou tal nulidade (do saneador) só poderia ser invocada em sede de recurso. Nos termos do n.º 4 do artigo 615.º do CPC «as nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”. Como refere a recorrente, a causa tem um valor superior à alçada da primeira instância, pelo que qualquer decisão é passível de recurso, e por isso defende que o artigo em causa impõe que esta questão – a alegada “omissão de pronúncia” do saneador – só possa ser arguida em recurso. Com todo o respeito por esta opinião, não cremos que essa seja a melhor interpretação do referido artigo. Seguimos a posição defendida no Ac. RL 2014-06-19, processo número 9083/11.7TBCSC.L1-6, Relatora: Maria Teresa Pardal, onde se pode ler: “…não sendo admissível recurso, a nulidade tem sempre de ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença e, sendo admissível recurso, a nulidade poderá ser arguida no próprio recurso; mas, mesmo que seja admissível recurso, se as partes não quiserem recorrer, poderão sempre arguir a nulidade perante o tribunal recorrido.» Neste sentido pronuncia-se Lebre de Freitas, no CPC anotado, volume 2º, 2ª edição, em anotação ao artigo 668.º: «(…) Esta solução é a que se impõe também numa perspectiva sistemática, pois, mandando o artigo 670.º, nºs 1 e 5, do CPC que o juiz de 1ª instância conheça das nulidades arguidas no recurso, não se compreenderia que tal apreciação não fosse feita nos casos em que o recurso é admissível, mas as partes não o interpõem, invocando a nulidade autonomamente, em sede de reclamação.» Em suma, afastamos a “incompetência” do tribunal recorrido. 2ª Questão – (Em caso negativo) Saber se houve violação do contraditório. Também considera a recorrente que foi violado o artigo 3.º, n.º 1 e 3, do Código do Processo Civil. Com efeito, o princípio do contraditório configura-se como o princípio estruturante do processo civil e pretende evitar que as decisões traduzam elementos estranhos aos que foram debatidos no processo, garantindo a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação directa ou indirecta com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. Por conseguinte, a proibição das decisões surpresa não pode significar mais do que a obrigação do juiz facultar às partes a possibilidade de aduzirem as suas razões perante um enquadramento legal sobre o qual ainda não tiveram oportunidade de se pronunciar. Não é o que acontece no caso dos autos, pois na audiência prévia foi dada a palavra ao ilustre mandatário do recorrente, que tomou posição quanto às excepções, nomeadamente quanto à ilegitimidade no sentido da improcedência. Improcede, assim, nesta parte, o recurso. 3ª Questão – (Em caso negativo) Saber se os cônjuges dos herdeiros devem figurar como RR na acção. A decisão recorrida considerou partes ilegítimas os cônjuges dos herdeiros (CC, EE e GG) argumentando que, sem prejuízo de alguma pontual intervenção de algum dos mesmos nas negociações referidas na petição inicial em tempo recente, posterior à instauração de ação a que ambas as partes se referem no presente processo e que foi julgada improcedente por decisão transitada em julgado, a dívida em causa nos autos não os responsabiliza posto que os mesmos não são herdeiros do referido HH de acordo com o artigo 1693.º do Código Civil. Vejamos: Estatui o artigo 30.º do Código Processo Civil sobre o conceito de legitimidade “1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falte de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.” Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo. A legitimidade processual passiva é aferida em vista de um critério substantivo, o interesse em contradizer, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação advenha para o demandado, enquanto sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. Ou seja, a legitimidade deve ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa derivar para as partes, face aos termos em que o Autor configura o direito invocado e a posição que as partes, considerando o pedido e à causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o autor. Ora, no caso dos autos e de acordo com a PI os factos geradores do dever de indemnizar decorrentes do incumprimento contratual são imputados pessoalmente a todos os RR., o que extravasa a demanda enquanto meros representantes da herança (ou titulares dos deveres à mesma inerentes). Veja-se o seguinte teor: «Desde que, porém, faleceu o promitente vendedor HH, o referido cabeça de casal da herança aberta por seu óbito, o Réu BB, passou a suscitar contínuas dificuldades à Autora, passando a exigir-lhe, abandonando a decisão de seu pai, a realização imediata da escritura. (…) Em consequência, a autora designou data para a realização da escritura num Cartório Notarial de conveniência dos réus, mas a mesma acabou por não ser celebrada, porque inesperadamente os Réus se recusaram a subscrevê-la, já no notário, argumentando que não era esse o negócio prometido e que metade do terreno era uma área excessiva para substituir a que estava combinada – e essa recusa teve como consequência inevitável a impossibilidade de concretização do negócio (doc. n.º21 junto que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais). (…) as partes reiniciaram negociações com vista a que, ou fosse devolvido pelos Réus o valor recebido, ou fosse concretizado o negócio titulado por aquele contrato promessa, nos mesmos termos, ou em termos semelhantes, que pudessem corresponder a uma solução legal para a transmissão da área de terreno prevista, ou eventualmente de uma área superior, com melhoria do preço estabelecido no contrato promessa. (…) Essas negociações tiveram lugar ao longo dos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021 e durante as mesmas, as partes discutiram a possibilidade, que parecia ser do interesse de ambos os lados, de a Autora adquirir para si a totalidade do terreno componente daquele prédio, como modo de vencer os óbices legais referidos. (…)Estavam as partes em plena negociação, e trocando entre si propostas, quando a autora esperava receber indicação concreta sobre o preço pretendido e sobre a extensão do objeto do negócio, quando veio a autora, inesperada e surpreendentemente, a saber que os réus, rompendo todas as negociações em curso e sem sequer terem advertido a autora de que recusavam qualquer nova negociação, haviam negociado o prédio na sua globalidade, com um terceiro, porque mantiveram com este, sem conhecimento da Autora, negociações paralelas àquelas que mantinham com a Autora, e acabando por vendê-lo. (…) os Réus – em data em que ainda negociavam com a Autora e fingiam manter interesse em negociar com esta – por escritura pública de 24 de Fevereiro de 2021 , celebrada numa notária da cidade ..., venderam o prédio (…) e por causa que aos réus é inteiramente imputável, por emergir de comportamento culposo da sua total responsabilidade. (…) agindo contra todas as regras de probidade e boa fé negociais». Assim, são imputados actos pessoais que justificam desde logo o interesse em contradizer e a sua presença na acção. Tanto basta para concluir pela sua legitimidade, ao contrário do decidido, procedendo assim o recurso. Sumário (da relatora): (…) 4 - Dispositivo. Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a decisão recorrida e consequentemente declarando os RR. parte legítima. Custas a cargo da parte vencida a final. Évora, 28.09.2023 Elisabete Valente Florbela Moreira Lança Ana Pessoa |