Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1049/21.5T8BNV.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
CRÉDITOS DE COMPENSAÇÃO ENTRE OS EX-CÔMJUGES
MEIO PROCESSUAL
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – O processo especial de inventário é, em princípio, o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação” entre os ex-cônjuges, mas o respetivo direito de ação não preclude se ali não forem conhecidos ou relacionados.
II – Assim, o cônjuge credor não fica impedido de fazer valer tais nos meios comuns, sendo os tribunais comuns competentes para conhecerem tanto dos pedidos reciprocamente formulados pelos ex-cônjuges, com esse fundamento, como dos referentes aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro que não integrem a massa a partilhar através do processo de inventário, aos quais se aplica o direito das obrigações, da competência dos tribunais comuns.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1049/21.5T8BNV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. AA intentou a presente ação comum contra BB, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 15.585,10€, acrescida de juros à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Em fundamento da deduzida pretensão, alegou, em síntese, que casou com a ré, sem convenção antenupcial, em 20.12.1986, e que o casamento foi dissolvido por sentença decretada em processo de ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em 14.11.2012. Mais invocou que foi intentado processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial, que identificou, onde foi apresentada relação de bens, na qual constam descritas diversas verbas do ativo de bens móveis e imóveis, e do passivo, designadamente crédito do autor por amortização junto da entidade bancária do crédito que foi concedido ao autor e à ré para aquisição da casa de morada de família. Alega ainda que desde 29.04.2009, data em que a ré saiu da casa de morada de família até à data em que foi decretado o divórcio, e mesmo posteriormente, até abril de 2015, foi o autor quem procedeu ao pagamento do crédito, embora se tratasse de dívida comum do casal, pelo que entende o autor ser credor da ré na quantia de 12.585,10€ (doze mil quinhentos e oitenta e cinco euros e dez cêntimos), a título de compensação, e ainda da quantia de 3.000,00€, a título de indemnização por danos não patrimoniais também decorrentes de a ré ter levantado todo o dinheiro de uma conta-poupança, sem o seu conhecimento, deixando-o numa situação de penúria, a suportar sozinho todas as despesas, o que o levou a incumprir certas obrigações bancárias, tendo pela primeira vez uma ação judicial instaurada contra si. Finalmente, invocou que no âmbito daquele processo de inventário, tal verba foi relacionada, mas foi determinada a sua alteração pela decisão da reclamação à relação de bens, remetendo para a jurisprudência que entende considerá-las como créditos do património comum, e relegando para a conferência preparatória a sua apreciação, por haver falta de acordo.

2. Citada, a ré contestou, por impugnação e por exceção, alegando, em apertada síntese (o articulado tem 468.º artigos), que em sede de processo de inventário, foi fixado o dia 12 de setembro de 2012 como sendo a data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, pelo que, antes dessa data inexistem créditos ou dívidas entre os cônjuges. Invoca ainda a exceção de caso julgado, porque essa questão já foi decidida no âmbito do processo de inventário, por decisão que se encontra transitada em julgado, uma vez que, em cumprimento daquele despacho da Sr.ª Notária, a 4 de maio de 2018, o aqui Autor veio juntar ao processo de inventário nova Relação de Bens, aí constando o valor do débito hipotecário à Caixa Geral de Depósitos, atualizado à data de 12 de setembro de 2012 (Verba nº 1 do Passivo) e o valor das prestações do crédito hipotecário pagas à Caixa Geral de Depósitos, entre 12 de setembro de 2012 e 21 de maio de 2015 (Verba nº 2 do Passivo). Aduz seguidamente que se verifica ainda a exceção de litispendência, desta feita porque encontra-se pendente e a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Benavente, sob o nº 909/21.8T8BNV, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum proposta, em 11 de novembro de 2021, pelo aqui Autor contra a aqui Ré, existindo na presente ação (proposta em 23 de Dezembro de 2021) repetição do pedido e da causa de pedir, i.e., a pretensa apropriação pela Ré do saldo integral de uma Conta Poupança e a omissão pela Ré do pagamento da sua metade das prestações do mútuo bancário. Convoca ainda a inaplicabilidade do regime da responsabilidade civil contratual entre autor e ré, devendo excluir-se a aplicação das normas da responsabilidade contratual à violação dos deveres conjugais, e finalmente, a prescrição dos invocados direitos, e o abuso do direito.
Por seu turno, deduziu pedido reconvencional, invocando ter sido o autor quem fez sua a quantia de 4.460,68€, com resgate integral do saldo existente num plano poupança e seguro, nunca a tendo compensado da sua metade, no valor de 2.230,64€; tem sido a ré a pagar sozinha e a suas expensas, sem que o Autor a tenha compensado, na proporção de metade, o Imposto Municipal sobre Imóveis, desde o ano de 2019, referente ao prédio misto, onde reside exclusivamente o Autor, dívida esta da responsabilidade do acervo comum patrimonial, na proporção de metade da responsabilidade para cada um dos ex-cônjuges; foi a ré quem, única e exclusivamente proveio ao sustento do filho de ambos, suportando as despesas que indicou, não podendo o autor desconhecer que a sua omissão em contribuir também para o sustento do filho causava um empobrecimento à ré, tendo a partir de maio de 2015 deixado de pagar as prestações mensais do mútuo à CGD, de forma unilateral e sem lhe dar conhecimento. Em virtude do incumprimento a que o Autor deu causa, em 3 de outubro de 2016, a Caixa Geral de Depósitos instaurou ação executiva. A moradia veio a ser vendida e a ré teve que arrendar uma casa, para residir juntamente com o filho do casal.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido formulado pelo autor, e que o pedido reconvencional seja julgado procedente, por provado, e, em consequência, seja reconhecido o direito da Ré sobre o Autor a uma indemnização global de valor não inferior a 13.500,00€, acrescido de juros de mora legais às taxas supletivas legais, contados desde a notificação da presente contestação ao Autor, que deve ainda ser condenado em multa, por litigância de má-fé.

3. O autor replicou, pugnando pela improcedência das deduzidas exceções e do pedido reconvencional.

4. Conclusos os autos, a julgadora determinou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a existência de uma eventual incompetência material do Tribunal, “uma vez que do conteúdo dos articulados resulta que se encontra pendente processo de inventário com o n.º 2584/20.8T8STR, que corre termos no Tribunal de Família e Menores”.

5. O autor pronunciou-se no sentido de inexistir qualquer incompetência material, e a ré defendeu verificar-se tal incompetência.

6. Por despacho proferido em 17.10.2022, foi decidido declarar “o presente Juízo de Competência Genérica de Coruche incompetente em razão da matéria” e determinar “o arquivamento dos autos por incompetência absoluta para apreciação da presente causa”.

7. Inconformado, o autor apelou, formulando as seguintes conclusões:
«a) Entendeu-se na Douta Sentença sob escrutínio que existiria uma incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal para apreciar o presente pleito, isto uma vez que encontrando-se pendente entre Recorrente e Recorrida processo de inventário, a correr termos no Tribunal de Família e de Menores sob o número 2584/20.8T8STR, seria ali que se havia de discutir a pretensão do aqui Recorrente, mais se acrescentando que contra isso nem valeria o pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado também nesta acção uma vez que não podia tal pedido ser autonomizado do primeiro, sendo dele dependente.
b) Entende o Recorrente que o processo especial de inventário em consequência do divórcio não é o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação” entre os cônjuges uma vez que conforme fundamentação apresentada no despacho proferido pela notária, foi alterada quanto ao seu valor a verba 2) da relação de bens apresentada pelo Autor, no seguinte sentido: “(…) pois só a partir de 12 de setembro de 2012 é que as relações patrimoniais entre os cônjuges juridicamente cessaram, pelo que a verba 2 deverá também ser retificada quanto ao seu valor (…)”,.
c) Não se contabilizando, pois, aqueles montantes despendidos pelo Recorrente desde a separação de facto até à consumação do divórcio, sendo a referida dívida eliminada o Recorrente mantém o direito de exigir o pagamento pelos meios comuns, nos termos do art.º 37.º, n.º 3 da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março – em vigor à data daquela decisão.
d) Acresce que é entendimento do Recorrente que não havendo sido determinados créditos relacionados no âmbito de inventário, não fica o respectivo credor inibido de o fazer valer nos meios comuns mormente, quando na contestação à ação interposta para esse fim, o devedor não os admite, o que sempre obrigaria a considerar no inventário tal dívida litigiosa compelindo o credor a exigir o pagamento pelos meios comuns.
e) Como se tem vindo a decidir, designadamente na Jurisprudência citada no corpo alegatório.
f) Assim, por maioria de razão, sempre terá que se admitir que o recurso aos meios comuns é igualmente admissível quanto aos créditos que apesar de relacionados no âmbito do inventário, foram ali desconsiderados e, por outro lado, tal dívida é, atenta a posição assumida pela Recorrida no âmbito daquelas partilhas, litigiosa – pelo que a mesma conclusão se impõe.
g) Por outra via aquele processo de inventário já se encontra em fase terminal e tendo as partes já procedido, após notificação para o efeito, à apresentação do Mapa de Partilhas, o que, também por aqui, inviabilizava que se discutisse o que se encontra em causa nos presentes autos naquele outro de inventário.
h) Sendo de acrescentar que, bem ao contrário do decidido, o facto de existir nos presentes autos um pedido indemnizatório por danos não patrimoniais formulado pelo ora Recorrente torna com que o processo de inventário não possa ser usado, isto pela razão que o processo de inventário não se encontra vocacionado, e nem foi essa a intenção do legislador, para no mesmo se discutirem tal tipo de pretensões indemnizatórias.
i) É completamente inadmissível a lei consagrar um meio de agir em juízo, meio esse de que o Recorrente se socorre, e o mesmo vir a ser recusado, como aqui foi o caso, em situações em que a lei o admite pois que tal seria, efectivamente, o denegar do acesso ao direito e aos tribunais nos termos em que a lei configura a sua admissibilidade.
j) Interpretação contrária à aqui sustentada pelo Recorrente, e para além da sua desconformidade com a Constituição como atrás exposto, colocaria o mesmo numa situação de indefesa por lhe ser denegado o direito a obter uma tutela judicial efectiva sem qualquer base de sustentação ou razoabilidade para tal.
k) Como supra sustentado considera o Recorrente que a sua pretensão patrimonial busca respaldo em ser peticionada na acção comum que intentou, assim como os danos de natureza não patrimonial nem podem ser peticionados, por ausência de vocação de tal meio processual, no processo de inventário.
l) E a cada direito que se invoque necessariamente que terá de existir um meio adequado para o fazer valer em juízo, sendo tal o que cristalinamente resulta do artigo 2º, nº 2 do CPC e aquela adequação afere-se pelo pedido formulado na Petição Inicial.
m) Violou a Douta Sentença os artigos 2º, nº 2 do CPC, 37.º, n.º 3 da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, 20º, nº 4, da CRP e 6º da CEDH, não dispondo, assim, de pujança bastante que a permita manter erecta, antes devendo ser revogada e substituída por uma decisão que ordena a regular prossecução dos autos para apreciação de meritis se a tal nada mais obstar.».

8. A Ré respondeu, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.
*****
II.1. – Objeto do recurso
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a única questão a apreciar é a de saber se deve ou não ser revogada a decisão do tribunal a quo que decidiu ser materialmente incompetente para conhecer da presente ação.
*****
II.2. – O mérito do recurso
Perante as pretensões deduzidas por ambas as partes, sintetizadas no relatório, o tribunal a quo ponderando, por um lado, que “o processo de inventário visa, não só, dividir os bens comuns do casal, mas também liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal”, e, por outro lado, que “compete aos Juízos de Família e Menores proceder à partilha dos bens comuns subsequentes a divórcio, por serem eles a quem a Lei n.º 62/2013, de 26/08 atribui competência material expressa para esse efeito”, concluiu que “é no âmbito do processo de inventário, que corre termos no Tribunal de Família e Menores de Santarém, sob o nº 2584/20.8T8STR, que deverá o autor reclamar o pagamento de tal quantia. E, estando o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, efectuado também na presente acção, totalmente dependente do conhecimento da alegada dívida da ré perante o autor ainda na constância do matrimónio, não poderá tal pedido ser autonomizado perante o primeiro.
Por conseguinte, como a violação das regras da competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, constituindo esta uma excepção dilatória insuprível, importa julgar o presente tribunal incompetente – arts. 96º a 98º, 99º, nº 1, 278º, n.º 1, al. a), 576º, n.º 1 e 2, 577º, al. a), e 578º, todos do Código de Processo Civil”.
Cremos, porém, e antecipando razões, que a decisão recorrida que declarou a incompetência absoluta do tribunal comum para julgar a presente ação por entender que a mesma teria que ser dirimida no processo de inventário pendente, perante o caso concreto em apreço, não pode manter-se.
Na realidade, a questão que se coloca é a de saber se a lei processual civil, impõe ou não que as pretensões formuladas nestes autos pelo autor e pela ré (a decisão recorrida omitiu no relatório a menção à reconvenção deduzida) fossem deduzidas no processo de inventário para partilha dos bens comuns, e a resposta a esta questão é negativa.
Com efeito, em primeiro lugar, importa notar que a julgadora nem sequer apurou a fase em que tal processo se encontrava, e concretamente se a pretensão aqui deduzida pelo autor no concernente aos denominados créditos compensatórios entre cônjuges, ainda seria passível de resolução naquele processo especial, atenta a fase processual em que se encontra, ou sequer se já teria ali havido alguma decisão que obstasse a prolação de decisão de mérito (ainda que parcial) nestes autos, quando a Ré expressamente invocou (bem ou mal, não importa nesta sede), a exceção de caso julgado de decisão proferida pela Sr.ª Notária, quanto aos créditos aqui peticionados relativamente à compensação alegadamente devida pela ré em virtude de pagamento de prestações de contrato de mútuo, devidas pelo casal mas exclusivamente efetuadas pelo autor, relativamente a bem imóvel comum.
Seja como for, saber se aquela questão ali foi decidida – e consequentemente se está coberta pelo caso julgado decorrente da decisão proferida em processo de inventário –, ou se o não foi – por exemplo, por ser litigiosa e ter sido entendido mais adiante que seria de relegar para os meios comuns, ou pura e simplesmente não foi objeto de decisão expressa mas não foi integrada no cômputo dos bens a partilhar –, concerne à competência do tribunal comum para decidir da questão suscitada, tal como a presente ação se apresenta configurada por autor e ré, atenta a competência residual dos tribunais comuns, e o facto de haver sido alegado que tais créditos de compensação foram excluídos da relação de bens e consequentemente da partilha a realizar no âmbito do processo de inventário, sem que tal alegação tenha sido contraditada nessa parte.
Ora, sendo certo, como se afirmou no Acórdão da Relação de Guimarães de 27.01.2022[3], que “tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles” não é menos verdade que tal decisão só tem lugar naquele processo quando a sua complexidade não seja excessiva e permita a decisão no inventário da existência e montante do crédito em causa, aplicando-se nesse caso à subsequente partilha a regra do n.º 3 do artigo 1689.º do CC.
Porém, se a excessiva complexidade do seu apuramento não permitir uma decisão incidental segura no processo de inventário, agora como antes, os interessados são remetidos para os meios comuns, mas sem que dessa decisão dependa o prosseguimento do inventário nem a própria partilha[4].
Portanto, só por esta possibilidade, bem se compreende que o tribunal comum não seria materialmente incompetente para a decisão da presente ação. Já inversamente, o processo especial de inventário não permite que nele se decidam questões que não caibam no seu âmbito, ainda que lateralmente se repercutam no património pessoal de cada um dos ex-cônjuges.
Com efeito, e em segundo lugar, importa precisar que “[o]s créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges por responsabilidade civil ou que nasçam de outros factos jurídicos negociais – mútuos, locações, etc. -, seguindo os primeiros o regime geral da responsabilidade civil e os segundos o regime geral dos negócios que lhe dão origem.”[5]
Assim sendo, como é relativamente ao pedido formulado pelo autor no concernente a indemnização por danos não patrimoniais, e ao pedido formulado pela ré/reconvinte relativamente a alegados créditos compensatórios crédito que não relacionou no processo de inventário pendente, a créditos decorrentes de pagamentos por si efetuados de despesas surgidas já depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, ocorridas posteriormente à dissolução do casamento, por divórcio, e ao invocado crédito decorrente de haver suportado sozinha despesas com o filho comum do casal, que incumbiria ao reconvindo suportar também, estamos perante a alegação de créditos que não integram a massa a partilhar através do processo de inventário, por não integrarem o passivo comum, nem as eventuais operações de compensação[6]. Estamos, portanto, perante créditos aos quais se aplica o direito das obrigações, da competência dos tribunais comuns.
Nesse sentido se decidiu no aresto da Relação de Coimbra de 24.05.2022[7], afirmando-se que “a resposta à questão da propriedade de um processo para o autor fazer valer o seu direito é dada, num primeiro momento, pelo n.º 2 do artigo 546.º do CPC. Nos termos deste preceito, o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponde processo especial.
Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito do artigo 469.º do CPC, cujo teor é igual ao do n.º 2 do artigo 546.º: “Vê-se, pois, que o campo de aplicação do processo comum se determina não directamente, mas por exclusão de partes: depois de nos certificarmos de que para um determinado caso concreto não há na lei processo especial, é que podemos tranquilamente concluir que esse caso entra na órbita do processo comum. Sendo assim, o problema que se põe, a averiguar se deve adoptar-se, em certo caso, o processo comum ou processo especial é sempre este: estabelece a lei algum processo especial que seja aplicável ao caso? Se estabelece, é esse o processo que deve empregar-se; se não, cai-se no processo comum” [Código de Processo Civil anotado, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, páginas 285 e 286]. (…)
O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal está previsto no artigo 1133.º do CPC, sendo inequivocamente um processo especial. A sua função é a de partilhar bens comuns do casal (alínea d) do artigo 1082.º do Código Civil).
Apesar de ser esta a função do inventário resulta, no entanto, do n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil que a partilha dos bens comuns compreende várias operações, sendo uma delas a conferência das dívidas dos cônjuges ao património comum. Precise-se que estas dívidas são as previstas no n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil, ou seja, as que têm origem no facto de terem respondido bens comuns por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges. Como é bom de ver, a conferência em questão só terá lugar se tais dívidas forem relacionadas ou reclamadas. E, assim, havendo inventário para partilha dos bens comuns, se os cônjuges pretenderem que cada um deles confira o que deve ao património comum, o inventário é inequivocamente o processo próprio para os cônjuges reclamarem tais dívidas”.
Revertendo ao caso em apreço, sucede que a dívida que está em causa na presente ação e se encontraria nas ditas condições, tendo sido reclamada no processo de inventário, de acordo com a alegação do autor, não terá ali sido partilhada, sendo que o pedido formulado quanto a indemnização por danos não patrimoniais não tem cabimento no âmbito daquele processo especial. Por outro lado, parte da reconvenção deduzida, assenta na alegação de um crédito de compensação não relacionado no inventário, e outra parte na alegação da existência de uma dívida de um dos cônjuges ao outro e não ao património comum. É dívida cujos factos que lhe deram origem – segundo a alegação da ré/reconvinte – ocorreram já depois da dissolução do casamento, ou seja, já depois de cessadas as relações patrimoniais entre o autor/reconvindo e a ré/reconvinte.
Por isso que se aplique de pleno o aresto que vimos seguindo quando ali se afirma que “trata-se, assim, de uma dívida que, segundo o n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil, combinado com o n.º 2 do artigo 1697.º do mesmo diploma, não releva para as operações de partilha dos bens comuns.
E não relevando para tais operações, só se poderia afirmar que o processo próprio para a reclamar era o inventário se resultasse expressa ou implicitamente da lei que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, cada um dos cônjuges só podia reclamar os seus créditos contra o outro no processo de inventário.
Esta regra não existe. É certo que também não existe a regra contrária, ou seja, que os cônjuges não podem reclamar, no processo de inventário, os créditos de cada um sobre o outro.
Mais: o n.º 2 do artigo 1689.º e o n.º 1 do artigo 1697.º, ambos do Código Civil, apontam no sentido de que, em relação a uma certa categoria de créditos - mais concretamente aqueles com origem no facto de um dos cônjuges ter satisfeito além do que lhe competia fazer por dívidas das responsabilidades de ambos os cônjuges – o cônjuge pode reclamar, no processo de inventário, o seu crédito contra o outro. Trata-se, no entanto, de uma faculdade. Se a não exercer não fica inibido de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns. E o mesmo se pode dizer em relação aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro com uma origem diferente da prevista no n.º 1 do artigo 1697.º do CC”.
Neste mesmo sentido, pronunciou-se ainda a Relação do Porto, no acórdão proferido em 17.06.2019[8], assim sumariado:
“O processo especial de inventário em consequência do divórcio, regulado nos artigos 79.º e ss. da Lei nº 23/2013 de 05/03 é, em princípio, o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação “entre os cônjuges, devendo aí ser relacionados, e já não em processo de prestação de contas.
Admite-se, contudo, que não tendo tais créditos sido relacionados no âmbito do inventário não fica o respectivo credor inibido de o fazer valer nos meios comuns mormente, quando na contestação à acção interposta para esse fim, o devedor não os admite, o que sempre obrigaria a considerar no inventário tal dívida litigiosa compelindo o credor a exigir o pagamento pelos meios comuns (cfr. artigos 32º e 33.º da Lei 23/2013 de 05/03)”.
É precisamente o que sucede com os invocados créditos de compensação e com os demais pedidos de crédito ou indemnização de um dos ex-cônjuges sobre o outro, que estão em causa nos presentes autos. Tratando-se de uma faculdade quanto aos primeiros, tal como naqueles arestos se concluiu não existir o invocado erro na forma do processo ou uso indevido da ação declarativa, também aqui não se verifica a declarada incompetência do tribunal comum.
Conclui-se, pois, como naquele aresto do TRC, com respaldo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 03.10.2019, no processo n.º 1517/13.2TJLSB.L1.S2[9], que no Código Civil ou no Código de Processo Civil não existe norma que determine que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, a compensação pecuniária que cada um dos ex-cônjuges está a exigir ao outro por via da presente ação, tenha que ser obrigatoriamente deduzida no processo de inventário. E, não havendo, a conclusão a retirar no caso é a de que tal compensação é abstratamente peticionável através do processo comum de declaração, sendo consequentemente competentes para o seu conhecimento os tribunais comuns.
Nestes termos, sem necessidade de maiores considerações, a apelação interposta pelo Autor procede.
Vencida, a Apelada suporta as custas do recurso, na vertente de custas de parte, atento o princípio da causalidade e o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
*****
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, julgando-se que o tribunal a quo é materialmente competente para a decisão da causa, e determinando o prosseguimento dos autos, como for de facto e de direito.
Custas pela Apelada.
*****
Évora, 28 de junho de 2023
Albertina Pedroso [10]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Juízo de Competência Genérica de Coruche.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Proferido no processo n.º 4218/21.4T8BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, onde podem ser consultados os acórdãos citados sem menção de outra origem.
[4] Como se sintetizou no Ac. TRL de 14.04.2011, proferido no processo n.º 2604/08.4TMLSB-A.L1-2, “o mais que poderá acontecer, é que esta tenha lugar antes do trânsito em julgado daquela acção autónoma, caso em que o crédito que em tal acção venha a ser apurado, será pago – e ainda em observância do disposto no nº 3 do art 1689ºCC, na sua segunda parte – porque já não existam bens comuns, pelos bens próprios do cônjuge devedor”.
[5] Cfr., FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, in “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4.ª edição, COIMBRA EDITORA, 2008, pág. 432.
[6] Cfr., aresto deste TRE de 26.05.2011, proferido no processo n.º 146-F/2000.E1, em cujo sumário se exarou que “Dispondo o artº 1697º do CC sobre as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, dele resultam dois princípios: de que elas são devidas quando as dívidas comuns foram pagas com bens próprios de um dos cônjuges e quando as dívidas de um só dos cônjuges foram pagas com bens comuns. Os créditos derivados de pensão de alimentos em que o interessado foi condenado e porque responderá vitaliciamente o seu próprio património perante o património daquela, não se integram nos “créditos” a que se refere o artº 1689º do CC., não sendo reclamáveis no inventário para partilha de bens em consequência de divórcio, já que não constituem encargo do património comum ou próprio dos cônjuges derivados de compensação pelo qual deva responder a meação do cabeça-de-casal, mas antes um crédito autónomo entre cônjuges que deve ser exigido nos meios comuns”.
[7] Proferido no processo n.º 4224/19.9T8VIS.C1, que seguiremos de perto. Com efeito, ali estava em causa a apreciação da propriedade do processo comum ou do processo de inventário para a decisão, mas a fundamentação tecida interliga-se com o fundamento que motivou a decisão recorrida e tem aqui plena adequação.
[8] Processo n.º 1975/17.6T8VLG.P1.
[9] No qual se ponderou designadamente que “O princípio da legalidade das formas processuais não permite que o processo de inventário instaurado na sequência de divórcio sirva para proceder à divisão de um imóvel relativamente ao qual cada cônjuge é titular exclusivo de uma quota-parte, tal como impede que seja apreciado o pedido de condenação do outro no pagamento de uma dívida própria”.
[10] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.