Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA DÁ MESQUITA | ||
Descritores: | PRIVAÇÃO DA LIBERDADE INDEMNIZAÇÃO AO LESADO ESTADO ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO | ||
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Data do Acordão: | 05/23/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1 - A Constituição da República não impõe que o Estado indemnize todas as pessoas sujeitas a prisão preventiva ou a obrigação de permanência em habitação com vigilância eletrónica e que depois venham a ser absolvidas. 2 - Por força do disposto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição da República o legislador constitucional remeteu para o poder legislativo a conformação do direito à indemnização ali previsto, sem lhe dar quaisquer concretas coordenadas. 3 - Entendeu o legislador ordinário que a situação de um arguido que foi absolvido no processo criminal em virtude do princípio in dubio pro reu não deve ter o mesmo tratamento daquela outra em que o arguido é absolvido no processo criminal por um juízo positivo de inocência; e, de facto, as situações não são idênticas, pois o segundo beneficia de uma sentença absolutória baseada num juízo sustentado numa prova para além da dúvida razoável ao passo que o primeiro tem uma sentença de absolvição baseada na existência de dúvidas sobre a prática, por ele, do ilícito criminal, o que, por sua vez, gera também dúvidas sobre a própria injustiça da privação da liberdade. (sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1836/21.4T8PTM.E2 (2.ª Secção) Relatora: Cristina Dá Mesquita Adjuntos: Anabela Luna de Carvalho Francisco Matos Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:I. RELATÓRIO I.1. (…), autor na ação declarativa com processo comum que moveu contra o Estado Português, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Portimão, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual julgou a ação improcedente e, consequentemente, absolveu o réu do pedido de indemnização peticionado nos autos. Na ação o autor pediu a condenação do Estado Português a pagar-lhe uma indemnização por danos sofridos provocados pela privação da liberdade «de forma ilegal e injustificada», computando esses danos no valor global de € 145.430,97 (calculando os danos patrimoniais em € 115.430,97 e os danos morais em € 30.000,00), acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Como fundamento da sua pretensão o autor alegou, em síntese, que foi constituído arguido no processo n.º (…) e foi detido, preso preventivamente e sujeito a obrigação de permanência na habitação, num total de 214 dias, e que no âmbito de tal processo veio a ser absolvido de todas as acusações; aduz que houve erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação, pelo menos no que respeita aos crimes de administração dolosa, abuso de poder, participação económica em negócio, branqueamento de capitais e danificação ou subtração de documento e relativamente aos demais crimes de que foi acusado e pronunciado sustenta que ficou demonstrado em julgamento que não foi autor dos mesmos. Na sua contestação o réu defendeu-se por exceção, invocando a caducidade do direito do autor, e por impugnação. Foi dispensada a realização de audiência prévia e elaborado despacho saneador. Procedeu-se à realização da audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do recurso. I.2. O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões: «A. O Tribunal a quo deu como não provado que “A prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação – cfr. fls. 2734 a 7171 (art.º 128º da petição inicial)”. B. Porém, na motivação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida não fundamenta ou justifica minimamente esta sua decisão, limitando a remeter para “fls. 2734 a 7171” do processo crime. C. O que se retira dos documentos existentes a “fls. 2734 a 7171” do processo crime confirma o referido facto, não o desmente como entendeu o Tribunal a quo. D. Razão pela qual o Recorrente impugna a referida resposta / decisão, devendo tal facto ser transferido para o elenco dos factos provados, o que se requer. E. A diferença entre os crimes de que o Recorrente era suspeito aquando da prolação do despacho de aplicação das medidas de coação e, depois, aquelas de que foi acusado e, posteriormente, pronunciado, por um lado, revela de per si, crê-se, uma fragilidade nos elementos recolhidos em sede de inquérito que recomendariam “mão mais leve” nas concretas medidas de coação a aplicar, para mais se tivermos em conta de que o Recorrente nunca tinha sido suspeito ou envolvido em qualquer processo crime e era um reputado médico e autarca. F. E, por outro, demonstra efetivamente que as diligências de investigação realizadas após a prolação do referido despacho de aplicação das aludidas medidas de coação se alteraram a situação sobre a qual o Tribunal de Julgamento viria a pronunciar-se apenas o fizeram no sentido favorável ao Recorrente. Tanto assim é que este Tribunal pronunciou-se no sentido de absolver o Recorrente pela prática de todos os crimes de que era suspeito, depois daqueles que viria a ser acusado e, posteriormente, mesmo daqueles que foi pronunciado. G. Acresce que, a referência que o Tribunal a quo faz constar a meio do facto ora em apreciação – cfr. os elementos recolhidos e as atas de onde decorrem depoimentos testemunhais não exatamente coincidentes com o que resultava do inquérito –, é, ela própria, sintomática e ilustrativa do que se tem vindo a dizer no sentido em que a utilização do advérbio de modo “exatamente” inculca a ideia de que as diferenças entre uns (elementos recolhidos e as atas de onde decorrem depoimentos testemunhais prestado em sede de julgamento) e outros (os elementos resultantes do inquérito) não era sensível ou era mínima. H. Assim, salvo o devido respeito por melhor opinião, afigura-se que a resposta negativa dada ao facto em epígrafe não é suportada pelos elementos probatórios existentes no processo, maxime aqueles que resultam do processo crime em causa nos autos e da documentação que o compõe, pelo que se impugna tal resposta, impondo-se a alteração da mesma requerendo-se, desde já, a eliminação do referido facto não provado e o aditamento de um novo facto com a redação que se propõe de seguida: «As diligências de investigação realizadas após a prolação do despacho de aplicação das aludidas medidas de coação não alteraram significativamente a situação sobre a qual o Tribunal de Julgamento foi chamado a pronunciar-se, nem que tal era expectável que viesse a ocorrer com o decurso do inquérito». I. A conjugação dos referidos dois meios de prova documental (e-mail enviado pelo Presidente do Conselho de Administração da referida sociedade …, SGPS, S.A. aos acionistas da mesma, entre os quais o ora Recorrente, em 29 de Outubro de 2011) e testemunhal (depoimento da testemunha …), permitiria que se respondesse ao facto de forma positiva, dando como provado que «Se o Autor tivesse vendido as ações da «(…)” noutras circunstâncias, poderia tê-las vendido por 150.000,00». J. Ou, pelo menos, tendo por referência o valor de € 3,00 pelas razões e nos termos invocados supra, as 40.000 ações detidas pelo Recorrente podiam ter sido vendidas, se em condições normais e de forma não apressada (pressa essa que a situação então vivida pelo Recorrente impôs), pelo preço total de € 120.000,00, dando-se, neste caso, como provado que: «Se o Autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias, poderia tê-las vendido por € 120.000,00». K. A prova produzida impunha, igualmente, que se desse como provado que «Muitos comentadores e jornalistas tinham opinado sobre a pessoa do Autor e o seu comportamento censurável e alegadamente criminoso» (art.º 176º da petição inicial). L. Com efeito, o Autor produziu prova documental (recortes de jornais) e testemunhal (depoimento da testemunha …) que comprovam tal facto. M. Mas ainda que tais elementos probatórios não fossem suficientes, a informação que permitiria responder positivamente ao referido facto foi pública bastando uma rápida pesquisa na internet pelo nome do Recorrente para chegar à conclusão de que foi nos referidos termos que este foi percecionado, conforme os vários links para órgãos de comunicação social escrita e audiovisual de referência identificados no corpo destas alegações. N. Tais factos, alegados pelo Recorrente na Petição Inicial (art.º 176º), foram, assim, do conhecimento geral, pelo que são notórios e, como tal, não careciam de prova, nos termos do artigo 412.º, n.º 1, do CPC. O. Aliás, o Tribunal a quo deu como provados factos que tornam incompreensível a resposta negativa ao facto acima identificado – vide factos provados 80, 81 e 86. P. Por todas as referidas decisões, impugna-se igualmente a decisão negativa do Tribunal a quo que incidiu sobre o referido facto, devendo o mesmo ser transferido para o elenco dos factos provados, o que ora também se requer. Q. Face aos factos provados 10 e 82, o Tribunal a quo teria de concluir que pelo menos um efeito na imagem do Recorrente com a detenção e prisão – a sua não candidatura às eleições autárquicas para (...) da Câmara Municipal de (…) de (…) –, tinha sido irreversível. R. Neste sentido, forçoso se torna concluir que também quanto ao facto ora em causa – Os efeitos da imagem do autor com a detenção e prisão tenham sido irreversíveis (art.º 186º da petição inicial) – o Tribunal a quo andou mal ao julga-lo não provado, decisão que ora também se critica e impugna, requerendo-se que o dito facto seja dado como provado ou, no limite, seja o mesmo excluído do conjunto de factos não provados e que seja julgado provado um facto com a redação que de seguida se propõe: «A detenção e prisão do Autor / Recorrente prejudicaram a imagem deste, impedindo-o de se candidatar ao cargo de (...) da Câmara Municipal de (…) nas eleições autárquicas de (…)». S. Caso venha a ser dado provado, como se espera, que a prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação e que as diligências de investigação realizadas após a prolação do despacho de aplicação das aludidas medidas de coação não alteraram significativamente a situação sobre a qual o Tribunal de Julgamento foi chamado a pronunciar-se, nem que tal era expectável que viesse a ocorrer com o decurso do inquérito, então terá, necessariamente, que concluir que a aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e OPHVE e a privação da liberdade do Recorrente se ficou a dever a erro na apreciação dos pressupostos de facto de que a referida privação dependia, nos termos previstos no artigo 225.º, n.º 1, alínea b), do CPP. T. Na Acusação, o MP acusou o Autor de dois novos crimes de que não vinha indiciado aquando da prolação do despacho de aplicação das referidas medidas de coação, a saber, os crimes de abuso de poder e de burla qualificada, pelo que, por definição, não foram as suspeitas da prática de tais crimes que justificaram a aplicação das mesmas. U. Depois, pese embora no despacho de aplicação das medidas de coação constasse que o Recorrente era suspeito da prática dos crimes corrupção e associação criminosa (além de outros), certo é que, 4 anos depois, o mesmo não viria a ser acusado por tais crimes com fundamento na total ausência de provas que sustentassem minimamente a prática pelo mesmo destes crimes. V. Ora, se após mais 4 anos de inquérito se chegou à conclusão de que as provas da prática pelo Recorrente eram inexistentes tal significa necessariamente que, aquando da prolação do despacho de aplicação das medidas de coação, 4 anos antes, tais provas já não existiam. W. Pela mesma ordem de razões, não podia ter sido por suspeitas da prática do crime de administração danosa que ao Recorrente podiam ter sido aplicadas quaisquer medidas de coação, maxime as de prisão preventiva e OPHVE, pois, como viria a constar do despacho de pronúncia, o Tribunal de Instrução concluiu pela absoluta omissão dos elementos constitutivos do referido crime. Pelo que restava a suspeita da prática dos crimes de participação económica em negócio, branqueamento de capitais e danificação ou subtração de documento, mas, como também resultou provado, após julgamento, o Autor foi também absolvido totalmente dos referidos crimes. Y. Neste sentido, é imperativo concluir que o não preenchimento dos pressupostos legais dos crimes de participação económica em negócio e branqueamento de capitais e a ausência e omissão dos elementos objetivos e subjetivos do crime de danificação ou subtração de documento já não se verificassem no momento da prolação do despacho de aplicação das medidas de coação. Z. Pelo exposto, não pode deixar de se entender que houve erro grosseiro por parte do Tribunal de Instrução Criminal na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação das medidas de coação privativas da liberdade, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao decidir diversamente, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que conclua pela existência de tal erro grosseiro e, consequentemente, pela subsunção do caso sub judice à previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP, o que se requer. AA. Na sentença recorrida o Tribunal a quo interpreta o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP, frontal e conscientemente contra a Jurisprudência Europeia mais recente e contra a Jurisprudência atual do Tribunal Constitucional refletida no Acórdão n.º 284/2020. BB. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020, de 28 de maio julgou inconstitucional o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo, ou seja, por não ter ficado suficientemente demonstrada, para além de dúvida razoável, a prática dos aludidos crimes. CC. O Tribunal Constitucional entendeu não ser compatível com a Constituição aquele preceito do CPP (artigo 225.º, n.º 1, alínea c), interpretado no sentido de que, não se satisfazendo com a simples absolvição penal, faz depender o direito a indemnização do reconhecimento positivo da inocência do arguido anteriormente sujeito a prisão preventiva, quer essa inocência resulte diretamente da fundamentação da decisão absolutória, quer de novos elementos de prova recolhidos no âmbito da ação de responsabilidade civil contra o Estado. DD. Ou seja, ao invés do que fez o Tribunal a quo, o Tribunal Constitucional entendeu que não é exigível (o citado artigo não deve ser interpretado no sentido de o exigir), como fundamento do pedido de indemnização, nem que a sentença absolutória se baseie numa afirmação positiva da inocência do Autor da ação de responsabilidade civil contra o Estado, nem que o Autor alegue e demonstre na referida ação tal inocência. EE. Em função do que se expôs nestas alegações, impõe-se a este Tribunal ad quem conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida quer por força da verificação da privação da liberdade devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia no que toca aos crimes de administração danosa, abuso de poder, participação económica em negócio, branqueamento de capitais e danificação ou subtração de documento, nos termos do artigo 225.º, nº 1, al. b), do CPP, quer em virtude do juízo de inconstitucionalidade que não pode deixar de ser realizado no que toca à interpretação da norma prevista na alínea c) do citado preceito, no que diz respeito a todos os crimes de que o ora Recorrente era suspeito mas dos quais, a final, veio a ser absolvido. FF. O Recorrente fez prova dos prejuízos que sofreu, nomeadamente nos pontos 75 a 78, 80 a 82, 86 e 87 da factualidade provada, a que acrescem os factos que o Recorrente pretende que venham a ser dados também como provados na sequência da impugnação da decisão proferida pelo Tribunal a quo. GG. Em face da matéria de facto provada acima reproduzida, dúvidas não podem subsistir de que o Recorrente tem direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais reclamada, contrariamente ao que concluiu o Tribunal a quo. HH. Pelo que, sem necessidade de mais considerações, deve este Tribunal ad quem, também à luz do disposto no artigo 665.º do CPC, revogar a sentença recorrida e proferir Acórdão que condene o Estado Português, ora Recorrido, no pagamento ao Recorrente de uma indemnização no montante global de € 145.430,97 (cento e quarenta e cinco mil e quatrocentos e trinta euros e noventa e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais (€ 115.430,97) e de danos morais (€ 30.000,00) provocados pela privação da liberdade do Autor de forma ilegal e injustificada, acrescida de juros vincendos, à taxa legal moratória de 4%, desde a citação até efetivo e integral pagamento, conforme peticionado, o que se requer. II. Ao decidir nos termos constantes da sentença recorrida, o Tribunal a quo violou o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP (entre outras normas legais), interpretando-o em termos julgados inconstitucionais no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020. Nestes termos, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por outra decisão que julgue a ação procedente e condene o Estado Português no pagamento ao Recorrente da indemnização peticionada, farão V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, o que é de inteira Justiça!» I.3. Na sua resposta às de recurso, o apelado defendeu a improcedência do recurso, culminando com as seguintes conclusões: «1 – Pugna o recorrente pela errada apreciação da matéria de facto, por considerar que deveria ter sido dado como provado que: a) “A prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação” – cfr. fls. 2734 a 7171 (art. 128.º da petição inicial); b) “Se o Autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias, poderia tê-las vendido por 150.000“ (art.156.º da petição inicial); c) “Muitos comentadores e jornalistas tenham opinado sobre a pessoa do Autor e o seu comportamento censurável e alegadamente criminoso” (art. 176.º da petição inicial); e d) ”Os efeitos na imagem do autor com a detenção e prisão tenham sido irreversíveis” (art. 186.º da petição inicial). 2 – Sucede que a douta Sentença ora objeto de recurso contém todas as menções previstas no citado artigo 607.° do C.P.C., designadamente: - a enumeração de todos os factos dados como provados e não provados com relevância para a decisão; - a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação exaustiva e o exame crítico de todas as provas em concreto que serviram para formar a convicção do tribunal – com a especificação dos fundamentos que foram decisivos para essa mesma convicção – com a indicação dos factos que foram provados por documentos. 3 – Acresce que os factos que o A. afirma terem resultado provados acima identificados com as alíneas a), b) e e) são conclusivos e especulativos. 4 – Mais quando, como é o caso, «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», o recorrente tem o ónus de impugnação – «sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte – o que implica indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (cfr. alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º citado). 5 – Sendo que, no caso o recorrente não cumpre esse ónus que sobre sim impendia na medida em que não especifica, nas conclusões apresentadas, os meios probatórios, nomeadamente por referência às gravações, que impunham uma decisão diferente desses factos. 2. O Acórdão que decidiu o processo penal respetivo (processo-crime n.º … – Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Portimão – Juiz 3), absolvendo o aqui autor dos crimes de que vinha acusado, foi proferido em 30 de janeiro de 2020 – fls. 48 (art. 6.º da petição inicial). Não foi interposto recurso do referido Acórdão, pelo que o mesmo transitou em julgado no dia 29 de fevereiro de 2020 – artigo 411.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (art. 7.º da petição inicial). 4. O autor era respeitado pelos colegas e pelos doentes, não havendo registo de situações suscetíveis de colocar em causa o seu bom nome ou a sua honra (art. 24.º da petição inicial). Foi também dado como provado no acórdão em referência o seguinte: desde a sua vinda para (…), o Autor exerceu várias funções políticas de âmbito regional e nacional (art. 27.º da petição inicial). 5. O Autor desempenhou também várias atividades de natureza privada, a saber: Administrador da (…) – (…), S.A.. Vogal do Conselho de Administração e de Comissão executiva da (…), SGPS, S.A., entre 2008 e 2013 (art. 39.º da petição inicial). 6. Em 1996, o Autor foi nomeado para o cargo de Presidente do Conselho Diretivo do … (art. 40.º da petição inicial). 8. O Autor teve intervenção na criação de um grupo empresarial através de empresas municipais (art. 46.º da petição inicial). Foram reestruturadas a (…) – Empresa Municipal de (…) e criadas empresas municipais que constituíram um grupo empresarial municipal que tinha como escopo o ordenamento urbano, a criação de investimentos em áreas de negócio, bem como a gestão do património e do mercado municipal (art. 47.º da petição inicial). Foi-lhe delegada a Presidência dos Conselhos de Administração de empresas municipais como a “(…)”, “(…)” (art. 42.º da petição inicial). Na reunião de 2 de junho de 2010, o autor propôs a alteração dos estatutos da “(…)”, de requalificação do estádio municipal de (…), tarefa a desempenhar pela “(…)”, tudo conforme resulta do acórdão proferido no processo n.º (…) – fls. 52 (art. 43.º da petição inicial). No exercício das suas funções autárquicas, com os pelouros das finanças, gestão de empresas e turismo, o Autor idealizou novos projetos como o “(…)” – fls. 55/58 (art. 44.º da petição inicial). 9. À data em que os factos ocorreram, o Autor exercia funções como (…) da Câmara Municipal de … (art. 50.º da petição inicial). 10. O Autor tinha expectativas de poder vir a candidatar-se e a ser eleito para presidir ao referido órgão autárquico (art. 52.º da petição inicial). 11. O Autor foi assistente de Medicina Geral e Familiar no Centro de Saúde de (…) até …, tendo reiniciado essas funções em janeiro de … (art. 35.º da petição inicial). 13. Foi, também, coordenador da (…) do Centro de Saúde de (…) em … (art. 37.º da petição inicial). 14. Atualmente é coordenador do Agrupamento … – … (art. 38.º da petição inicial). 16. Cerca de três meses depois, em 29/09/2011, o Ministério Público de (…) proferiu despacho a delegar competências na Polícia Judiciária (PJ) daquela Comarca para investigar se os factos constantes da denúncia anónima correspondiam à verdade e se existiam efetivamente indícios de crime – cfr. fls. 56 e 57 (art. 55.º da petição inicial). 17. A partir daquela data, o referido órgão de polícia criminal (OPC) realizou várias diligências probatórias, designadamente inquirições e pedidos de informações/documentos, buscas e apreensões, envio de cartas precatórias, etc. – cfr. fls. 63 a 786 (art. 56.º da petição inicial). 18. O primeiro relatório intercalar data de (…), descrevendo sumariamente os atos de investigação praticados até então no âmbito do processo-crime ora em questão – cfr. fls. 787 a 818 (art. 57.º da petição inicial). 19. Seguiram-se mais algumas diligências de investigação e em (…) foi proferido despacho de conclusão da apreciação do inquérito pelo MP – cfr. fls. 838 (art. 58.º da petição inicial). 21. Alguns dias depois, em 09/07/2012, o MP promoveu a aplicação de segredo de justiça aos autos – cfr. fls. 878 e 879 (art. 60.º da petição inicial). 22. E em 11/07/2012, o Tribunal proferiu decisão a sujeitar os autos, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça – cfr. fls. 888 (art. 61.º da petição inicial). 23. Em 09/10/2012, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) delegou na PJ – Unidade Nacional de Combate à Corrupção competência para prosseguir com o inquérito da existência de crime – cfr. fls. 1024 e 1025 (art. 62.º da petição inicial). 24. Consta, também, do processo, datado de 09/11/2012, uma informação de serviço do Departamento de Investigação Criminal de (…) registando uma nova denúncia anónima dando conta de que o Autor se preparava para abandonar o país e passar a residir em Angola – cfr. fls. 1030 (art. 63.º da petição inicial). 25. Em 16/11/2012, foi junto ao processo um novo relatório intercalar do DIC de (…) – cfr. fls. 1042 a 1054 (art. 64.º da petição inicial). 26. Em 26/11/2012, o Ministério Público proferiu novo despacho a ordenar (i) a quebra de sigilo bancário e fiscal; (ii) a qualificar o processo como de excecional complexidade e, consequentemente, a determinar o aumento do prazo de inquérito para 18 meses; (iii) a ordenar a realização de buscas e apreensões; (iv) a requerer a autorização para revistas pessoais, (v) a requerer autorização para interceções telefónicas e registo de som e imagem com varrimento eletrónico; (vi) a requerer, ainda, a apreensão de contas bancárias; (vii) e, finalmente, a requerer a emissão de mandados de detenção em flagrante delito do Autor, (…) e (…), todos considerados suspeitos – cfr. fls. 1057 a 1067 (art. 65.º da petição inicial). 28. Entre o dia 28/11/2012 foram realizadas várias escutas telefónicas ao Autor e demais suspeitos, feitos pedidos de informação a diversas Câmaras Municipais e outras entidades fiscais e bancárias na sequência da determinação da quebra dos respetivos sigilos fiscal e bancário, efetuadas várias inquirições e formulados pedidos de perícia financeira e contabilística à unidade competente da PJ para o efeito, bem como pedidos à Autoridade Tributária e Aduaneira documentação como se alcança de fls. 1086 a 1981 (art. 67.º da petição inicial). 29. Em 28/05/2013 foram juntos novos relatórios intercalares da PJ – Unidade de Perícia Financeira e Contabilística e do DIC de (…) – cfr. fls. 1981 a 2099 (art. 68.º da petição inicial). 30. A partir da referida data e na sequência de promoções do MP para o efeito, foi ordenada a emissão de novos mandados de busca e apreensão, bem como de mandados de detenção dos suspeitos fora de flagrante delito – cfr. fls. 2052 a 2221 (art. 69.º da petição inicial). 31. Em (…) o Autor foi detido, constituído de arguido, sujeito a termo de identidade e residência, tendo a sua residência sido alvo de buscas e apreensões pelas 8H00, por elementos da Polícia Judiciária, munida do mandado de busca de fls. 2234 que por sua vez foi acompanhado do despacho de fls. 2097, o que surpreendeu o Autor – cfr. fls. 2229 a 2233 (7.º vol.) (arts. 70.º e 113.º a 115.º da petição inicial). 32. Após apreensão de alguns documentos na sua residência, os agentes da Polícia Judiciária deram instruções ao Autor para recolher elementos no seu gabinete de trabalho na Câmara Municipal de (…), o que sucedeu, já que ali exercia funções de (…) da Câmara Municipal de (…) – fls. 2241 (arts. 116.º, 117.º e 147.º da petição inicial). 34. O Autor foi sujeito ao primeiro interrogatório de arguido detido no dia (…), com início pelas 15H00 (fls. 947 v.) tendo lhe sido imputados os crimes já elencados supra (fls. 932 e ss. – ver despacho do MP, datado de …, 13H45), tendo respondido às questões que lhe foram colocadas sobre a sua identificação e sobre as suas condições pessoais, tendo declarado ser médico, que ao tempo não exercer a medicina, exercendo funções políticas e empresariais, não tendo, na altura, pretendido prestar, de imediato, declarações quanto aos factos que lhe eram imputados, mas apenas prestar alguns esclarecimentos, como a confirmação de ter engolido um documento já em poder da PJ e não se pretender eximir às suas responsabilidades, declarações registadas pelo Mmo. Juiz de Instrução – cfr. fls. 947 v. (fls. 2523 a 2543/2691) (arts. 72.º e 118.º da petição inicial). 35. Findos os interrogatórios, em (…) foi proferido despacho do TCIC a aplicar medidas de coação aos arguidos, com base, no que diz respeito ao Autor, na suspeita da prática dos crimes de administração danosa, participação económica em negócio, corrupção, branqueamento de capitais, associação criminosa e subtração de documento, referindo-se à posição do aí arguido (…), nos seguintes termos: o que aqui foi ponderado foi a natureza altamente complexa dos factos indiciados e a circunstância de o arguido ter exercido o direito ao silêncio e, portanto, de não ter feito constar dos autos a sua versão dos acontecimentos e com ela, dessa forma, se comprometendo, para daí inferir que o total descomprometimento para si resultante daquele exercício iria facilitar a intensificação da continuação da pressuposta atividade criminosa – cfr. fls. 2653 a 2711 (art. 73.º da petição inicial e artigo 5.º do Código de Processo Civil). 37. Do despacho que aplicou a medida de prisão preventiva não foi interposto recurso (consulta do processo crime – artigo 5.º do Código de Processo Civil). 38. O inquérito prosseguiu, sendo que, no dia seguinte, (…) foi junta ao processo uma nova informação de serviço que consigna uma denúncia anónima de que na garagem da habitação do sogro do filho do Autor (…) estariam depositados documentos relevantes à investigação e em que se pede a solicitação de mandado de busca à referida habitação junto do MP – cfr. fls. 2755 (art. 75.º da petição inicial). 39. Nos dias que se seguiram foram realizadas diligências de investigação adicionais, designadamente buscas e apreensões às sociedades arguidas, perícias a suportes informáticos encontrados na posse dos arguidos (computadores, Ipad, telemóveis, etc.) – tendo, para o efeito, sido ordenada a quebra de sigilos de correspondência, bancário, pessoal e outros, relacionados com os ditos suportes –, pedidos e controlo e suspensão de movimentos a débitos sobre contas bancárias tituladas pelos arguidos – cfr. fls. 2757 a 2805 e fls. 2831 e segs. (art. 76.º da petição inicial). 40. Em (…), deu entrada no processo uma nova denúncia anónima sobre a (…) e o (…) Sporting Clube – cfr. fls. 2829 e 2830 (art. 77.º da petição inicial). 42. Em (…), o TCIC proferiu despacho a determinar a aplicação da medida de coação de OPHVE ao Autor, cumulada com a suspensão do exercício de funções públicas e proibição de contactos com os restantes arguidos – cfr. fls. 2902 e 2903 (art. 79.º da petição inicial). 43. Nessa sequência, o Autor, na referida data, foi conduzido à residência dos pais sita na Travessa dos (…), Lote 1, (…) – cfr. certidão de fls. 3074 (arts. 80.º e 205.º da petição inicial). 44. Foram, depois, realizadas diligências de investigação adicionais, nomeadamente a investigação dos Arguidos pelo Gabinete de Recuperação de Ativos, inquirições e pedidos de informações/documentos, buscas e apreensões, perícias, envio de cartas precatórias, etc. – cfr. fls. 3075 e segs. (art. 81.º da petição inicial). 45. Em (…), o Autor apresentou um recurso de impugnação do despacho que aplicou as medidas de coação de OPHVE e de suspensão do exercício de funções públicas, requerendo “a imediata libertação do arguido” – cfr. fls. 3112 a 3133 (art. 82.º da petição inicial). 46. No dia (…), o MP respondeu aos recursos interpostos pelo Autor e (...), pugnando pela respetiva improcedência – cfr. fls. 3312 a 3344 (art. 83.º da petição inicial). 47. Em (…), o Autor requereu autorização para retomar atividade profissional de médico sob vigilância, propondo requerer transferência da Administração Regional de Saúde do (…) para a de (…) – cfr. fls. 3676 a 3678 (art. 84.º da petição inicial). 48. No dia seguinte, 04/09/2013, o MP promoveu a solicitação à DGRS um relatório com vista à análise da possibilidade de harmonizar a OPHVE com o desempenho de funções de médico, bem como a realização de relatório de execução trimestral para revisão da medida de coação aplicada – cfr. fls. 3680 e 3681 (art. 85.º da petição inicial). 50. No dia (…) – Despacho do TJIC a ordenar a manutenção da OPHVE após avaliação trimestral de requisitos e a concretização do pedido de (…) em sede de referido requerimento – cfr. fls. 3736 (art. 87.º da petição inicial). 51. Em (…), foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa a negar provimento ao recurso de impugnação da medida de coação de prisão preventiva / OPHVE aplicada interposto pelo Autor, no qual se concluiu, quanto aos indícios, que na suficiência dos indícios nesta fase processual, a imputação criminosa feita ao recorrente mostra-se claramente sustentada, e quanto a justificação da medida de coação, por um juízo de forte probabilidade de acontecer uma fuga e que o perigo de perturbação do decurso do inquérito, na vertente da aquisição e conservação da prova também se verifica (…) concretiza-se na circunstância de o arguido no decurso da busca à sua residência a pós apreensão de um documento cujo teor de desconhece mas que se sabe que continha referência a quantias monetárias e a correspondência destas a nomes de pessoas ali indicados, arrancou-o das mãos do Inspetor (…) e engoliu-o (…), excluindo o perigo de continuação da atividade criminosa. Concluiu-se, a final por inquestionável, pois, a justeza da medida coativa fixada, não tendo sido violada qualquer das disposições legais invocadas pelo recorrente – cfr. 958 verso e ss. (fls. 3896 a 3925) (art. 88.º da petição inicial). 52. Realizaram-se, depois, várias outras diligências de investigação, designadamente inquirições, buscas e apreensões, interrogatórios – cfr. fls. 3926 (art. 89.º da petição inicial). 54. No dia 19/11/2013, o Autor requereu autorização para prestar serviços médicos no Centro de Saúde de (…), em articulação com o cumprimento de OPHVE – cfr. fls. 4633 a 4636 (art. 91.º da petição inicial). 55. Procedeu-se, depois, a inquirições adicionais, a realização de inspeção extraordinária dos contratos celebrados entre a (…) e as empresas elencadas pela Inspeção Geral de Finanças, foi feito um pedido de cooperação judiciária internacional em matéria penal às autoridades de justiça norte-americanas, interrogatórios, entre outras diligências adicionais (art. 92.º da petição inicial). 56. No dia (...), o MP proferiu despacho do Ministério Público a promover, designadamente, a manutenção do Autor sob OPHVE – cfr. fls. 4782 a 4785 (art. 93.º da petição inicial). 57. Em (…), o TIC proferiu um despacho a manter a medida de coação de OPHVE, a autorizar a mudança de residência do Autor para (...) e o exercício da atividade profissional no Centro de Saúde de (…) e a ordenar entrega do respetivo passaporte – cfr. fls. 4790 a 4795 (art. 94.º da petição inicial). 58. Cerca de uma semana depois, em (…), o TIC proferiu despacho a ordenar o cumprimento da autorização do exercício das funções de médico em articulação com OPHVE pelo Autor – cfr. fls. 4885 (art. 95.º da petição inicial). 59. Em (…), o Autor interpôs recurso do despacho que determinou a manutenção da sua medida de coação de OPHVE, tendo depois perdido o interesse no mesmo, após alteração do seu estatuto processual – cfr. fls. 5054 a 5073/5162 (art. 96.º da petição inicial). 61. Depois disso, prosseguiram as diligências de investigação com a inquirição de mais testemunhas, recolha do depoimento escrito da deputada (…), buscas e apreensões, cartas rogatórias, etc. – fls. 5253 e ss. (art. 98.º da petição inicial). 62. Em (…), foi elaborado e junto aos autos o Relatório Final da PJ – cfr. fls. 6816 a 6904 (art. 99.º da petição inicial). 63. Após mais algumas diligências de investigação e constituição de arguidos, no dia (…) o MP proferiu despacho a declarar o encerramento do inquérito e a deduzir acusação / arquivamento, tendo notificado os arguidos do mesmo – cfr. fls. 7172 a 7468 (art. 100.º da petição inicial). 64. No mesmo, o MP, para além de arquivar o processo no que concerne aos Arguidos (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), Unipessoal, Lda., (…), Lda., (…), S.A. e (…), Lda. (bem como outros processos saídos de outras tantas denúncias anónimas), arquiva também o processo no que ao Autor e, bem assim, aos arguidos (…), (…), (…) e (…), relativamente aos crimes de Corrupção e Associação Criminosa, nos seguintes termos: 66. No mesmo despacho o MP deduziu, também, em nome do Estado Português, pedido de indemnização civil, concluindo, no que ao Autor diz concretamente respeito, nos termos que seguem: 69. Realizou-se o debate instrutório e, em (…), foi proferida decisão instrutória que pronunciou os arguidos nos termos seguintes: (b) Pelo crime de burla qualificada, em co-autoria material: o Autor, (…), (…), (…) e as sociedades arguidas (…), Lda., (…), S.A., (…), S.A., (…), Lda., (…) e (…), Lda.; (c) Pelo crime de branqueamento, em co-autoria material: o Autor, (…), (…), (…) e as sociedades (…), S.A., (…), S.A., (…), Lda., (…) e (…), Lda.; (d) Pelo crime de usurpação de obra em autoria material, o arguido (…); e (e) Pelo crime de danificação ou subtração de documento e notação técnica, em autoria material, o Autor – fls. 201 (392 v. e ss.) (art. 107.º da petição inicial). 72. Realizada a audiência, foi proferido acórdão cujo dispositivo é o seguinte: Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo em: 76. Enquanto (…) da Câmara Municipal de (…), o Autor auferia o vencimento mensal de € 2.163,22 – fls. 44 v./45 (art. 148.º da petição inicial). 77. A partir da data em que foi privado de liberdade, o Autor deixou de exercer as aludidas funções e, consequentemente, deixou também de receber o correspondente vencimento até poder voltar a trabalhar (art. 149.º da petição inicial). 78. O Autor era titular de 40.000 ações representativas do capital social da sociedade (…), SGPS, S.A., com o valor nominal de € 1, cada (art. 154.º da petição inicial). Como forma de preservar a imagem da empresa, o autor foi convidado a vender as ações representativas do capital social da sociedade (art. 151.º da petição inicial), cujo produto usou para fazer face às suas despesas (art. 153º da petição inicial). O Autor vendeu as referidas ações pelo preço global de € 51.282,05 – fls. 1072 (art. 155.º da petição inicial). 79. Os amigos do autor, mesmo adversários políticos, respeitavam-no (arts. 161.º e 167.º da petição inicial). 80. A detenção do Autor e a aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e OPHEV, do conhecimento público, danificaram o referido estatuto social na comunidade de (…) e conduziram ao seu descrédito (arts. 168.º, 171.º e 181.º da petição inicial). 81. Pese embora o processo crime em causa nestes autos estivesse sob segredo de justiça, a detenção do Autor, posterior condução do mesmo a Lisboa e sujeição ao primeiro interrogatório judicial, foram acompanhados pela comunicação social – fls. 1082 (arts. 172.º a 174.º da petição inicial). 83. No dia (…), quando foi ordenada a sua prisão no estabelecimento prisional anexo ao estabelecimento da PJ em Lisboa e encaminhado para este estabelecimento, não se sentiu em condições de ser ouvido logo, pelo que ficou na cela (arts. 190.º a 193.º e 201.º da petição inicial). 84. O Autor não teve a alimentação, as condições de salubridade pessoais e o tratamento a que estava habituado e teve contacto com outros presos (arts. 202.º e 203.º da petição inicial). 85. Durante a obrigação de permanência na habitação, esteve impedido de contactar com os restantes arguidos – despacho de 5/7/2013 (art. 205.º da petição inicial). 86. O Autor foi visto e olhado como um criminoso – fls. 1082 (art. 206.º da petição inicial). 87. O autor recebeu tratamento psicológico, devido a algumas ideias suicidas (arts. 207.º a 209.º da petição inicial). 2) Os restantes dados específicos elencados pelo autor relativos ao seu curriculum (arts. 29.º a 34.º da petição inicial). 4) A prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação – cfr. fls. 2734 a 7171 (art. 128.º da petição inicial). 5) As diligências de investigação realizadas após a prolação do referido despacho de aplicação das aludidas medidas de coação em nada alteraram a situação sobre a qual o Tribunal de Julgamento foi chamado a pronunciar-se – cfr. os elementos recolhidos e as atas de onde decorrem depoimentos testemunhais não exatamente coincidentes com o que resultava do inquérito (art. 136.º da petição inicial) – nem que tal era expectável que viesse a ocorrer com o decurso do inquérito (art. 137.º da petição inicial). 6) Se o Autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias, poderia tê-las vendido por € 150.000,00 (art. 156.º da petição inicial). 7) Muitos comentadores e jornalistas tenham opinado sobre a pessoa do Autor e o seu comportamento censurável e alegadamente criminoso (art. 176.º da petição inicial). 8) Os efeitos na imagem do Autor com a detenção e prisão tenham sido irreversíveis (art. 186.º da petição inicial). 9) À data da sua detenção, o Autor desconhecesse, por completo, o que lhe estava a acontecer e, por isso, a interpretação que fazia, ingenuamente, era a de que estava perante um simples erro e que tudo se esclareceria (art. 186.º da petição inicial). 10) Aquando da detenção tenha iniciado tratamento ansiolítico, com recurso a benzodiazepinas e outros medicamentos (arts. 194.º e 195.º da petição inicial).
Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, ou seja, apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, ou por terem sido indevidamente considerados assentes devendo julgar-se não provados, ou por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido considerados assentes (artigo 662.º, n.º 1, do CPC). 1) Que o enunciado julgado não provado – a prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação – deve transitar para o elenco dos factos provados; 2) Que o enunciado julgado não provado – «As diligências de investigação realizadas após a prolação do despacho de aplicação das aludidas medidas de coação não alteraram significativamente a situação sobre a qual o tribunal do julgamento foi chamado a pronunciar-se, nem que tal era expectável que viesse a ocorrer com o decurso do inquérito» - deve transitar para o elenco dos factos provados. 3) Que o enunciado julgado não provado – Se o autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias poderia tê-las vendido por € 150.000,00 – transite para o elenco dos factos provados ou, pelo menos, que seja julgado provado que «Se o autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias poderia tê-las vendido por € 120.000,00». 4) Que o enunciado julgado não provado – Muitos comentadores e jornalistas tenham opinado sobre a pessoa do Autor e o seu comportamento censurável e alegadamente criminoso – transite para o elenco dos factos provados. 5) Que o enunciado julgado não provado – Os efeitos na imagem do autor com a detenção e prisão tenham sido irreversíveis – seja julgado provado ou, pelo menos, que seja julgado provado que «A detenção e prisão do Autor/recorrente prejudicaram a imagem deste, impedindo-o de se candidatar ao cargo de (…) da Câmara Municipal de (…) nas eleições autárquicas de (…)». Vejamos se lhe assiste razão. Antes, porém, e uma vez que o Ministério Público defende que o apelante não cumpriu os ónus de impugnação da decisão de facto, cumpre aferir se o recorrente observou, ou não, os ónus previstos no artigo 640.º do CPC[1]. Prevê aquele normativo legal um triplo ónus que recai sobre o recorrente quando pretende impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, a saber: 1) O ónus de delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; 2) O ónus de fundamentar as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos que, no seu entender, imporiam uma decisão diversa; 3) O ónus de enunciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida relativamente às questões de facto concretamente impugnadas. No caso, o apelante cumpriu cada um daqueles ónus pois indicou os concretos enunciados (não provados) que na sua perspetiva foram mal julgados, indica quanto a cada um deles os meios probatórios (prova documental e testemunhal e quanto a esta transcreve as passagens das gravações do depoimento respetivo) que implicariam decisão diversa e, por fim, indica a solução alternativa que no seu entender a Relação deve proferir. Por conseguinte, tendo cumprido os ónus de impugnação previstos no artigo 640.º do CPC, cumpre proceder à apreciação da impugnação da matéria de facto. Posto isto, apreciemos agora a impugnação da decisão de facto. Relativamente ao enunciado julgado não provado – A prova coligida aquando da prolação da Acusação não era substancialmente diversa daquela já produzida aquando do despacho de aplicação das medidas de coação – o apelante defende que o mesmo deve transitar para o elenco dos factos provados. De acordo com o disposto no artigo 607.º/3, do CPC, na sentença o julgador deve discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Dizia Anselmo de Castro[2] que «são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos», acrescentando que «só, (…) acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste». É entendimento pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Assim, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados; as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova - neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 23.9.2009, proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Ac. STJ de 19.4.2012, proc. n.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Ac. STJ de 23/05/2012, proc. n.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Ac. STJ de 29/04/2015, proc. n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Ac. STJ de 14/01/2015, proc. n.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Ac. STJ de 14/01/2015, proc. n.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt. Ora o enunciado em causa não contém matéria de facto que seja suscetível de prova. Com efeito, no mesmo está contido, tão só, um juízo de natureza conclusiva – uma (suposta) similitude substancial entre a prova que existia nos autos aquando da prolação do despacho de aplicação das medidas de coação e a prova que existia aquando da prolação do despacho de acusação - que não é extraível de factos contidos no enunciado em questão (ou sequer de factos que hajam sido alegados pelo autor apelante e julgados provados pelo tribunal de primeira instância[3]). Consequentemente, não contendo o enunciado em causa matéria de facto mas apenas um juízo de valor que não está sequer ao alcance do homem médio, não há que determinar a sua transição para o elenco dos factos provados, como pretende o apelante, mostrando-se despicienda a reapreciação dos meios de prova por ele indicados, improcedendo assim este segmento da impugnação da decisão de facto. Da mesma forma o enunciado julgado não provado – As diligências de investigação realizadas após a prolação do despacho de aplicação das aludidas medidas de coação não alteraram significativamente a situação sobre a qual o tribunal do julgamento foi chamado a pronunciar-se, nem que tal era expectável que viesse a ocorrer com o decurso do inquérito – não pode transitar para o elenco dos factos provados, na medida em que também ele não contêm matéria de facto, mas tão só juízos de natureza conclusiva que não são extraíveis de factos contidos na respetiva redação, pelo que o tribunal está impedido que se verifique se os mesmos resultam, ou não, da prova produzida, mostrando-se despicienda a reapreciação dos meios de prova indicados pelo apelante, improcedendo, também nesta parte, a impugnação da decisão de facto. * Pretende o apelante que transite para o elenco dos factos provados o seguinte enunciado – Os efeitos na imagem do autor com a detenção e prisão foram irreversíveis», ou, em alternativa, que este enunciado seja excluído do conjunto de factos não provados e que seja julgado provado um facto com a seguinte redação: «A detenção e prisão do autor/recorrente prejudicaram a imagem deste, impedindo-o de se candidatar ao cargo de (…) da Câmara Municipal de (…) nas eleições autárquicas de (…)». O primeiro enunciado relacionado com uma suposta “irreversibilidade” dos efeitos provocados pela detenção e prisão do autor na respetiva imagem não contém matéria de facto mas sim um juízo de natureza conclusiva eventualmente extraível de factos que não estão contemplados no enunciado em questão, o que impede que se verifique se os mesmos resultam, ou não, dos meios de prova que foram indicados pelo apelante, mostrando-se assim despicienda a sua reapreciação por este tribunal. De qualquer modo, sempre se dirá que tal “irreversibilidade” dos efeitos provocados pela detenção e prisão do autor é contrariada pelo facto provado n.º 74 - O autor voltou a candidatar-se nas eleições autárquicas de setembro de (…), tendo sido eleito. Improcede, assim, este segmento da impugnação da decisão de facto. Em alternativa o apelante defende que se considere provado que a sua detenção e prisão prejudicaram a respetiva imagem e impediram-no de se candidatar ao cargo de (…) da Câmara Municipal de (…) nas eleições autárquicas de (…). A última parte do enunciado em questão – a detenção e prisão do autor impediram-no de se candidatar ao cargo de (…) da Câmara Municipal de (…) nas eleições autárquicas de (…) – está já contemplada no ponto de facto provado n.º 82 – Devido à situação vivida pelo autor, este não concorreu às eleições autárquicas de (…), que tiveram lugar cerca de 3 meses depois da detenção, ele que era apontado como sucessor previsível do anterior presidente e tinha expectativas e ambições em fazê-lo. Quanto à primeira parte – a detenção e a prisão do autor prejudicaram a imagem deste – ela não contém matéria de facto mas antes um juízo de valor eventualmente extraível de factos que não estão contidos na redação do enunciado em causa, pelo que o tribunal está impedido de verificar se os mesmos resultam, ou não, da prova produzida, mostrando-se despicienda a reapreciação dos meios de prova indicados pelo apelante. Ademais tal juízo de valor reporta-se a questão que integra o thema decidendum - responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos sofridos pelo autor em virtude da privação de liberdade a que foi sujeito no âmbito de um processo criminal – eventualmente extraível de factos provados (cfr. facto provado n.º 82) mas que não pode, como tal, integrar o elenco dos factos provados. Pelo exposto, não há que aditar ao elenco dos factos provados os enunciados em questão. * Sustenta o apelante que o tribunal recorrido «errou» ao considerar não provado que «se o autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias poderia tê-las vendido por € 150.000,00», ou que, pelo menos, deveria ter sido julgado provado que «se o autor tivesse vendido as ações da “(…)” noutras circunstâncias, poderia tê-las vendido por € 120.000,00». Escreveu-se na fundamentação da sentença recorrida que «quanto às expectativas de venda das ações da (…) por valor superior (€ 150.000,00) ao que efetivamente vendeu, o email junto e os depoimentos ouvidos foram insuficientes para concluir como pretendido no artigo 156.º da petição inicial». No seu recurso o apelante vem justamente invocar o email junto aos autos na sessão de julgamento do dia 23 de maio de 2023 e o depoimento da testemunha (…), os quais o julgador a quo julgou insuficientes para sustentar o facto em questão. Ou seja, o que o apelante pretende é a substituição da convicção de julgador a quo pela sua própria convicção, aquela que ele terá adquirido por via do documento referido e do depoimento da testemunha acima identificada. Porém, não basta que os meios de prova que fundamentam a impugnação tornem possível a solução defendida pelo apelante; é necessário, ao invés, que a imponham. O que não sucede in casu, senão vejamos. Invoca o apelante o email acima referido, pretendendo retirar do mesmo a ilação de que «noutras circunstâncias» poderia ter vendido as ações da (…) no mínimo por € 3,00 cada. O enunciado em causa foi alegado pelo autor no artigo 156.º da PI, onde este refere que teve de vender as ações “apressadamente”, donde se conclui que ao referir-se a “outras circunstâncias” quererá dizer “se não tivesse de as ter vendido apressadamente”. O email em causa tem a data de 23 de outubro de 2011 e foi emitido no contexto de um aumento de capital da sociedade em causa. Não resulta do referido email, nem poderia resultar atento o lapso temporal que mediou entre a respetiva emissão e a data da veda das ações do autor ocorrida em 18 de dezembro de 2013 (vd. contrato de compra e venda junto aos autos) que aquelas ações poderiam ter sido vendidas, em 2013, por um valor superior àquele que o autor obteve, no mínimo de € 3,00 por cada ação; e pese embora a testemunha (…) tenha declarado no julgamento que o apelante/autor vendeu as ações por um valor «muito abaixo daquele que estava a ser negociado» a verdade é que não concretizou o valor em que «estavam as ações»; acresce que a inauguração e entrada em funcionamento de um centro oncológico, em (…), que a referida testemunha apelidou de «ex-libris da empresa», ocorridas em 2016, por si só não permite avaliar ou aferir o preço de mercado de cada ação quando o autor vendeu as respetivas ações, cerca de três anos antes. Por todo o exposto, não nos merece censura a valoração efetuada pelo julgador a quo relativamente ao enunciado em apreço, improcedendo este segmento da impugnação da decisão de facto. * Por último diz o apelante que deve transitar para o elenco dos factos provados o seguinte enunciado: «Muitos comentadores e jornalistas opinaram sobre a pessoa do Autor e o seu comportamento censurável e alegadamente criminoso». O apelante sustenta que é um facto notório que a sua detenção e prisão «mereceu ampla cobertura mediática por vários órgãos da comunicação social escrita e áudio visual, que o tribunal julgou provado que «A detenção do Autor e a aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e OPHEV, do conhecimento público, danificaram o referido estatuto social na comunidade de Portimão e conduziram ao seu descrédito», que « Pese embora o processo crime em causa nestes autos estivesse sob segredo de justiça, a detenção do Autor, posterior condução do mesmo a Lisboa e sujeição ao primeiro interrogatório judicial, foram acompanhados pela comunicação social» e, ainda, que «O Autor foi visto e olhado como um criminoso» para concluir que «(…) parece-nos evidente que se a detenção do autor posterior condução do mesmo a Lisboa e sujeição ao primeiro interrogatório judicial foram acompanhados pela comunicação social, tal acompanhamento significa – só pode significar – que muitos comentadores e jornalistas tinham opinado sobre a pessoa do autor e os seu comportamento censurável e alegadamente criminoso ou alguém imagina que estando em causa diligências do foro criminal e tendo as mesmas sido acompanhadas pela comunicação social, os comentadores e jornalistas que personificam a comunicação social tivessem opinado sobre outra coisa que não um comportamento censurável e alegadamente criminoso de outro que não o autor/recorrente». Que dizer? Da ampla cobertura mediática da detenção, sujeição a primeiro interrogatório judicial e prisão preventiva do autor/apelante e arguido no processo criminal pretende aquele retirar a ilação de que muitos comentadores e jornalistas opinaram sobre a pessoa do autor e do seu comportamento “censurável e alegadamente criminoso”. Contudo, “noticiar” não equivale necessariamente a opinar sobre a pessoa visada e emitir juízos de valor sobre a respetiva conduta. Donde não se pode retirar a ilação pretendida pelo apelante para julgar provado o enunciado em questão. Improcede, assim, este segmento do recurso. DECISÃO Em face do exposto, improcede totalmente a impugnação da decisão de facto. II.4.2. * O artigo 225.º, n.º 1, alínea c) do CPP estabelece que quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente.Na sentença sob recurso o julgador negou o direito à indemnização por não se ter provado que o autor não praticou os ilícitos penais pelos quais fora pronunciado como exige a alínea c) do artigo 225.º/1, do CPP. O apelante discorda, invocando que a decisão contraria frontalmente a Jurisprudência Europeia e o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020, o qual julgou inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 2, da Constituição, o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio para o reu. Defende o apelante que o artigo 225.º/1, alínea c), do CPP não deve ser interpretado no sentido de se exigir, como fundamento do pedido de indemnização, que a sentença absolutória se baseie numa afirmação positiva da inocência do arguido, nem que o autor alegue e demonstre na ação cível a sua inocência. Vejamos. Liminarmente se dirá que não vem posto em causa no presente recurso que o apelante foi absolvido dos crimes que lhe foram imputados com fundamento no facto de não ter ficado demonstrada a prática, pelo mesmo, daqueles ilícitos penais, ou seja, não houve no processo criminal uma comprovação positiva da sua inocência. Como já resulta do exposto supra, por força do disposto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição da República o legislador constitucional remeteu para o poder legislativo a conformação do direito à indemnização ali previsto, sem lhe dar quaisquer concretas coordenadas. E o legislador ordinário fê-lo no artigo 225.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Decorre da letra do artigo 225.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal e do teor dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que a opção do legislador ordinário foi a de «fazer o Estado assumir a responsabilidade pelos danos sofridos e compensar quem, estando inocente conforme comprovado no final do processo, foi privado da sua liberdade em razão de uma medida de coação preventiva corretamente aplicada»[8]. Donde, quando o interessado for absolvido no processo criminal com fundamento no princípio in dubio pro reu, para que possa obter uma indemnização do Estado terá de provar a sua inocência numa ação autónoma e ulterior ao processo criminal. Ou seja, o artigo 225.º, n.º 2, alínea c), do CPP condiciona o direito à indemnização à prova, pelo arguido, de que não cometeu o crime de que foi acusado ou que atuou justificadamente. Tendo sido essa a opção do legislador ordinário, discute-se se a distinção entre os casos em que existe uma absolvição por comprovação da inocência e uma absolvição com fundamento no principio in dubio por reu viola princípios constitucionais, nomeadamente, o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32.º/2, da Constituição (por se exigir que o arguido comprove na ação cível que não foi agente do crime ou que atuou justificadamente[9]) e o princípio da igualdade[10] consagrado no artigo 13.º/1, da Constituição. O Tribunal Constitucional tem considerado em vários acórdãos[11] que o preceito legal em apreço não padece de inconstitucionalidade. Mas, no acórdão n.º 284/2020 onde foi chamado a pronunciar-se sobre «a constitucionalidade da interpretação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP no sentido que restrinja o exercício do direito estabelecido nesta norma à comprovação positiva da inocência ou que o denegue por se sustentar em decisão absolutória ao abrigo do princípio in dubio pro reu», veio a decidir «julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 2, da Constituição, o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reu». Nos tribunais superiores a posição maioritária vai no sentido da constitucionalidade do preceito legal, como nos dá conta o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-2014, processo n.º 2208/11.4TVLSB.L1-7, consultável em www.dsgi.pt, onde se indicam numerosos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que perfilham o entendimento da não inconstitucionalidade do artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Num recente acórdão de 02-02-2023 o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que para haver condenação do Estado a indemnizar por prisão preventiva, em ação declarativa própria, o autor carece de demonstrar que se verifica uma qualquer das hipóteses tipificadas o artigo 225.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e que nem a Constituição nem a lei impõe o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido, ou que não tenha chegado a ser pronunciado, a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de prisão preventiva[12]. Que dizer? O Estado apenas pode ser responsabilizado pela privação da liberdade resultante do exercício da função jurisdicional se aquela tiver sido decretada em violação da Constituição e da Lei. No seu artigo 27.º, n.º 5, a Constituição remete para o poder legislativo a definição das situações em que o Estado incorre no dever de indemnizar pessoas que foram privadas da sua liberdade por atos da função judicial, sem que, todavia, imponha ou forneça quaisquer critérios orientadores sobre os pressupostos daquele direito. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/84[13]sublinhava-se que o direito de indemnização previsto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição encontra-se sob reserva de lei e que o legislador deteria, quanto à conformação do seu exercício, uma larga margem de liberdade, só limitada pela proibição de aniquilamento do conteúdo essencial do direito, limitação essa que apenas deferiria ao Tribunal a possibilidade de controlos de evidência. A este propósito referem Jorge Miranda/Rui Medeiros[14]que «a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efetivação de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova ponderação normativa – complementar da que ele próprio fez, mas da qual não quis tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências. Ou seja, trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e resultados, a Constituição comete a respetiva incumbência ao órgão primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo mas, verdadeiramente, lho reserva (vide Acórdãos n.ºs 90/84 e 160/95» (itálicos e negritos nossos). No acórdão n.º 185/2010 de 12.05.2010[15] o Tribunal Constitucional apreciou a questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (na redação dada pela Lei n.º 59/98) «quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada e, portanto, constitutiva de indemnização estadual, a prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reu» e decidiu que à luz do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal não é inconstitucional quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada a prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reu. Neste acórdão reconheceu-se, justamente, que no normativo em causa o legislador ordinário estabeleceu «um equilíbrio sistémico intrinsecamente complexo e politicamente sensível» que o Tribunal Constitucional não deve substituir. Ali se diz expressamente que «determinar se apenas através de um regime de suportação em exclusivo do sacrifício consistente em sujeitar um indivíduo inocente a privação da liberdade se assegura a eficácia do sistema criminal e, portanto, a proteção da liberdade individual dos demais membros da comunidade, está à margem dos poderes de apreciação do Tribunal». E em outro passo: «(…) importa, por isso, antes de mais, resolver a questão: introduz uma restrição excessiva, ou não proporcionada, do direito à liberdade, lesiva do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, a norma contida no n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal que, não se satisfazendo com um juízo absolutório, faz depender o direito a indemnização por prisão preventiva materialmente injustificada da prova, a produzir na ação de responsabilidade civil contra o Estado, de ocorrência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a imposição da medida de coação?» E respondendo, avança da seguinte forma: «O bem jurídico protegido pelo direito consagrado no artigo 27.º da Constituição ocupa, no sistema de bens jusfundamentalmente tutelados, um inquestionável lugar de relevo. A proteção da liberdade é contígua dos princípios do Estado de direito e da dignidade da pessoa humana; por isso, a norma constitucional que a consagra não pode deixar de impor ao legislador especiais deveres de proteção, desde logo através da emissão de normas que impeçam que a liberdade de cada um seja lesada, por ato da comunidade erguida em Estado ou por ato individual de qualquer dos seus membros. A injunção contida no n.º 5 do artigo 27.º da CRP, segundo a qual a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado em dever de indemnizar (nos termos em que a lei estabelecer), integra um desses deveres de proteção, impendentes sobre o legislador ordinário, e cujo cumprimento é exigido pelo particular relevo que o bem jusfundamentalmente tutelado assume. Perante este relevo – e perante a natureza dos prejuízos decorrentes de prisão preventiva injustificada – poder-se-ia à primeira vista pensar que a restrição da indemnização, em casos de prisão preventiva legal, às situações de ocorrência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a aplicação da medida de coação, não seria, de acordo com o princípio da proibição do excesso, nem necessária nem proporcional (em sentido estrito) face aos valores e interesses constitucionais que justificam a restrição. Sendo estes valores a proteção da segurança, das liberdades dos outros e da eficácia da justiça penal, dir-se-ia que a repartição solidária do sacrifício por via da atribuição de uma indemnização ao indivíduo que esteve sujeito a prisão preventiva que se viesse a revelar ex post, materialmente injustificada, em nada afetaria a prossecução dos valores constitucionais justificativos da restrição, pelo que seria desde logo desnecessária a suportação, em exclusivo, pelo arguido, do prejuízo decorrente de privação da liberdade fora das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 225.º do CPP. (…) Tal conclusão seria, porém, apressada. É que a apreciação da questão de saber se a repartição solidária do sacrifício afeta ou não a eficácia do sistema criminal, ou a segurança, e fundamentalmente, a liberdade individual dos demais membros da comunidade implica, dada a estrutura multipolar das relações jurídicas envolvidas, arbitrar um verdadeiro conflito de liberdades, algo que o Tribunal Constitucional não está em condições de efetuar. Dito de outra maneira, o controlo sobre o modo como o legislador ordinário cumpriu os seus deveres de proteção de bens jurídicos tutelados constitucionalmente, ainda que com restrição de direitos, liberdades e garantias individuais, não pode ter como consequência ser o poder judicial a proceder a avaliações sobre factos, a efetuar ponderações entre bens e a formular juízos de prognose que integram, na sua essência, a função legislativa do Estado. Fazê-lo equivaleria a substituir um equilíbrio sistémico, intrinsecamente complexo e politicamente sensível, estabelecido pelo legislador ordinário, por um novo equilíbrio a estabelecer pelo próprio Tribunal Constitucional. (…) sabendo que a sujeição de um indivíduo a prisão preventiva, em caso de posterior absolvição, daria sempre lugar à atribuição de uma indemnização, o magistrado judicial poderia, consciente ou inconscientemente, sentir-se menos compelido a moderar o recurso a essa medida de coação comparativamente com o que sucede face ao regime atualmente em vigor, verificando-se, inclusive, um aumento do número de prisões preventivas decretadas e, portanto, uma afetação mais intensa da própria liberdade individual do indivíduo. Não interessa saber se tal cenário é certo, provável ou apenas hipnotizável. A mera incerteza basta para que o Tribunal Constitucional não possa senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador, gozando este último de ampla liberdade de conformação relativamente ao próprio juízo quanto à necessidade do regime contido no n.º 2 do artigo 225.º do CPP. (…) o artigo 22.º da Constituição consagra antes do mais uma garantia do instituto. A Constituição recebe e protege aí o instituto infraconstitucional da responsabilidade civil extracontratual do Estado, impedindo dessa forma que o legislador ordinário o aniquile ou o desfigure nos seus traços essenciais. (…) É à lei que cabe determinar em que casos deve o Estado responder civilmente por prejuízos causados às pessoas por atos da função judicial, determinando os respetivos pressupostos e a medida da indemnização. (…)». E referindo-se ao artigo 5.º, n.º 5, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais , diz-se no acórdão: «Neste domínio, a norma da Convenção nada acrescenta face ao disposto no artigo 27.º da Constituição Portuguesa; assim sendo, o juízo que se fez quanto à inexistência de qualquer desconformidade do regime contido no n.º 2 do artigo 225.º do CPP face ao parâmetro contido no artigo 27.º da CRP é extensivo, pela própria natureza das coisas, às normas pertinentes da Convenção Europeia». É inegável que o legislador ordinário, no exercício do poder conformador que lhe compete, concede ao lesado que esteve privado da sua liberdade em virtude da aplicação de medida de coação o direito a ser indemnizado. Direito (previsto no referido artigo 27.º/5, da Constituição) que se fundamenta na repartição solidária do sacrifício que decorre da privação da liberdade; quer dizer, as faltas de justificação material para a privação da liberdade não devem ser suportadas apenas pelo arguido mas devem também ser compensadas por toda a comunidade política na medida em que ela se revelou necessária para a salvaguarda de outros valores protegidos constitucionalmente, como os da eficácia da justiça, da segurança e da própria liberdade individual dos demais membros da comunidade política. Simplesmente, na alínea c) do artigo 225.º/1, do CPP, o legislador condiciona esse direito à comprovação de que aquele não praticou o ilícito criminal ou que atuou justificadamente; destarte, se no acórdão absolutório do processo criminal o arguido foi absolvido apenas em obediência ao princípio in dubio pro reu, querendo ser indemnizado terá de provar, em ulterior ação cível, que efetivamente não praticou o crime ou que atuou justificadamente. É que, como é consabido, existem muitos casos em que os arguidos são absolvidos apenas por falta de provas, o que não significa que sejam inocentes. E se é evidente que o arguido inocente deve ser indemnizado, também nos parece óbvio que o culpado, se bem que absolvido por força do princípio in dubio pro reu, não o deva ser sem que tenha de provar, junto do tribunal competente, a sua inocência ou que atuou justificadamente. Desta forma se estabelece um equilíbrio entre o dever de indemnizar, por um lado, e o ónus de o arguido fazer aquela prova, por outro[16]. O que não parece razoável é que o interessado em ser indemnizado beneficiasse «como que se uma dupla presunção, em detrimento do Estado, o que, para este também poderia ser considerado desproporcional» – assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2023, proc. nº 4064/18.2T8SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt. Como se diz neste último aresto, e que inteiramente subscrevemos, «se o princípio da inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP) se estendesse à própria ação de indemnização (e é verdadeiramente essa, a das repercussões externas à decisão de absolvição/não pronúncia, a base da análise feita pelo TC) criar-se-ia uma verdadeira presunção contra o Estado, ainda que este tenha agido no estrito cumprimento das normas relativas à aplicação de medida de coação, ou seja, sem culpa. O estado responderia, pois, pelo risco da própria atividade pública que constitucionalmente lhe é cometida». Ademais, e como se escreveu na declaração de voto anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020, subscrita pelo sr. Juiz Conselheiro Manuel da Costa Andrade: «O princípio in dubio pro reu, como instituição do processo criminal, não pode impor-se aos demais ramos do direito, no sentido de predeterminar juízos, valorações e consequências pragmáticas próprias destes outros ramos do direito. Até porque se trata de ramos de direito que obedecem a racionalidades e códigos próprios e se inscrevem em horizontes axiológicos-normativos distintos, por vezes antinómicos. Tal vale sobremaneira e de forma paradigmática para os pertinentes regimes probatórios. Sabe-se como, diferentemente do processo penal, o processo civil assenta no princípio da autorresponsabilidade probatória das partes e conhece um régie de proibições de prova não sobreponível ao do processo penal. Estão em causa sistemas normativos diferentes vocacionados para interpretarem e julgarem em termos assimétricos os mesmos pedações de vida sobre que venham a convergir. Por ser assim, factos que é forçoso dar como não provados em processo penal e tratá-los como se eles, pura e simplesmente não existissem, podem perfeitamente ser dados como provados noutros ramos do direito e aí valorados como cumprindo fattispecie das pertinentes previsões legais. Só pode ser assim em homenagem à separação, autonomia e autorreferência da lei civil (substantiva ou adjetiva) ou outra, face ao desempenho do sistema penal (substantivo ou adjetivo). (…)». Entendeu o legislador ordinário que a situação de um arguido que foi absolvido no processo criminal em virtude do princípio in dubio pro reu não deve ter o mesmo tratamento daquela outra em que o arguido é absolvido no processo criminal por um juízo positivo de inocência; e, de facto, as situações não são idênticas, pois o segundo beneficia de uma sentença absolutória baseada num juízo sustentado numa prova para além da dúvida razoável ao passo que o primeiro tem uma sentença de absolvição baseada na existência de dúvidas sobre a prática, por ele, do ilícito criminal, o que, por sua vez, gera também dúvidas sobre a própria injustiça da privação da liberdade. Em síntese e concluindo, não impondo a Constituição que o Estado indemnize todas as pessoas sujeitas a prisão preventiva ou a obrigação de permanência em habitação com vigilância eletrónica e que depois venham a ser absolvidas, a opção do legislador contemplada na alínea c) do artigo 255.º/1, do Código de Processo Penal não é contrária ao texto constitucional, pelo que não nos merece censura a sentença recorrida. * Improcede, assim, a apelação.Sumário: (…) III. DECISÃO Em face do exposto, acordam em julgar a Apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida. As custas relativas a esta instância de recurso são da responsabilidade do apelante, nada sendo devido a esse título porquanto o apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de custas de parte. Notifique. DN. Évora, 23 de maio de 2024 Cristina Dá Mesquita (Relatora) Anabela Luna de Carvalho (1ª Adjunta) Francisco Matos (2º Adjunto) __________________________________________________ [1] Este dispositivo legal tem a seguinte redação: «1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da requerida; A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere pertinentes. 3 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º». [2] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, pp. 268-269. [3] O enunciado em questão é uma reprodução do teor do artigo 172.º da Petição Inicial; neste articulado o autor não concretiza que prova existia aquando da acusação e que prova existia aquando do despacho de aplicação das medidas de coação de molde a aferir da alegada similitude entre a prova que existia num e noutro momento. [4] Dispõe este preceito que «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos». [5] Vide, entre outros, Acórdão do STJ de 11.09.2008, proc. n.º 08B1747, e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de maio de 2021, proc. n.º 711/20.4T8VRL.G1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt. [6] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt. [7] Processo n.º 711/20.4T8VR.G1, consultável em www.dgsi.pt. [8] Vide declaração de voto do sr. Juiz Conselheiro Pedro Machete anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020. [9] Em face do disposto no artigo 225.º, n.º 2, alínea c), do CPP, o critério de fundamentação da absolvição do arguido constitui elemento constitutivo do direito à indemnização por privação da liberdade (prisão preventiva/obrigação de permanência em habitação) legal. [10] Este princípio impõe ao legislador que trate de forma igual situações de facto substancialmente idênticas, obrigando-o a fundamentar quaisquer diferenças de tratamento em razões objetivamente fundadas e justificadas por valores constitucionais relevantes. [11] Por exemplo, os acórdãos n.ºs 12/2005/T, 13/2005/T e 185/2010. [12] Proc. n.º 4064/18.2T8SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt. [13] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt. [14] Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 314. [15] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt, tal como todos os demais que se vierem a invocar. [16] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-2014, processo n.º 2208/11.4TVLSB.L1-7. |